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Primeira edicdo em francés, 1987 Primeira edicdo em portugués, 2002 Titulo original: De I’imperfection © 1987, Pierre Fanlac, Périgueux, Franca ISBN 2-86577-113-X Traducéo de De I’Imperfection, do original francés para 0 portugués: Ana Claudia de Oliveira RevisGo da traducdo: Eric Landowski Revisdo do texto: Lucia Teixeira e Yvana Fechine Projeto e arte da capa: Angela Detanico Fotografia de A. J. Greimas: Jean-Marie Floch Tradugao das apresentacées de De I’Imperfection: IntrodugGo de Paolo Fabbri, in Algirdas Julien Greimas, Dell’Imperferzione, tradu¢&o do francés para o italiano de Gianfranco Marrone, Palermo, Sellerio editore, 1988, pp.IX-XXVIII, TraducGo do italiano para o portugués de Eugé- nio Vinci de Morais, reviséo de Ana Claudia de Oliveira e Jodo Batista Simon Ciaco. ApresentagGo de Ratl Dorra, in Algirdas Julien Greimas, De fa imper- feccién, traducdo do francés para o espanhol de Rail Dorra, Mexico, Fondo de Cultura Econdémica-Universidad Autonoma de Puebla, 1990, pp. 7-19. Tra- ducao do espanhol de Elisa de Souza Martinez e Vicente Martinez, revisco de Ana Claudia de Oliveira. ApresentacGo da coleténea dirigida por E. Landowski, R. Dorra e A. C. de Oliveira, Semidtica, estesis, estética (Sao Paulo-Puebla, Educ-UAP, 1999, 280 p.). Traducao do espanhol de Elisa de Souza Martinez e Vicente Martinez, revisGo de Eric Landowski. O DESLUMBRAMENTO Robinson — o de Michel Tournier' —, que até ess ¢ mo- mento havia conseguido ordenar sua vida segundo o ritmo das gotas de agua que caiam uma a uma de uma clepsidra improvisada, encontrou-se de repente despertado pelo “siléncio insélito” que lhe revelou “o ruido da Ultima gota a cair na bacia de cobre”. Constatou entio que a gota seguinte, “renunciando decididamente a cair’, chegou mesmo a “esbogar uma inversio do curso do tempo”. Robinson se recostou de novo para saborear durante alguns momentos esta inesperada suspensio do tempo. Em seguida, GD se leva et alla s'‘encadrer dans la porte. L'éBlouis- sement heureux qui! ‘enveloppa le fit chanceleret] “obligea as appuyer de I'épaule au chambranle, (“(ele) levantou-se e foi colocar-se na moldura da porta. O feliz deslumbramento que 0 envolveu fé-lo vacilar € obrigou-o a encostar o ombro ao alisar,”] ‘Michel Tournier, Vendredi ou Les Limbes du Pacifique, Paris, Gallimard Folio, 1967, pp.92-95. Para o estabelecimento da versio portuguesa, em alguns trechos utilizamos a tradugio de Fernanda Botelho (Sexta-feira, ou Os limbos do Pacifico, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001, pp. 82- 85). Entretanto, em outros optamos por uma solugao prépria. rr a A. J. Greimas E soba forma econémica de algumas notagdes soma- ticas que o autor apresenta 0 grande evento estético. A relagio com a propria experiéncia "vivida”, todavia, como se ela nao pudesse ser dada diretamente, nao é re- tom.ada sendo mais tarde, quando Robinson se pée a re- fletir sobre "o éxtase que o havia possuido” ea buscar-lhe um nome, chamando-o de “um momento de inocéncia”. E pois, posteriormente, ao dar-lhe a forma de uma lem- branga nostalgica cognitivamente elaborada, que Robinson, delegado pelo autor, tentard elaborar a repre- sentagao dessa experiéncia, evocando, como corolario do siléncioe gracas a ele obtida, a pausada "ilha inteira”, ao passo que cessant soudain de s incliner les unes vers les autres dans Je sens de leur usage — et de leur usure—les choses étaient retombées chacune de leur essence, épanouissaient tous deurs attributs, existaient pour elles-mémes, naivement, sans chercher d autre justification que leur propre Perfection. ["cessando repentinamente de se inclinar umas sobre as outras no sentido de seu uso — e de sua usura—, as coisas, cada uma recaida da sua esséncia, exibiam todos os seus atributos, existiam por si prépria; inocentemente, sem procurar justificagao que nao fosse a da propria per- feicao.”] Esta visdo que lhe havia trazido “um breve instante de in- dizivelalvorogo” sugeriu-lhea possibilidade da existéncia de 24. Da lweetieicAO une autre fle derriére celle ou il peinait solitairement... plas fraiche, plus chaude, plus fraternelle.... ("uma outra ilha atras daquela onde penava solitari a- mente... mais fresca, mais quente, mais fraterna...”] 0 relato do feliz evento que acabamos de resumir permite reconhecer as Principais articulagdes da seqié n- cia discursiva que Supostamente relata uma apreensio estética excepcional. A razio dessa escolha — sem que qualquer juizo de valor sobre o texto ai intervenha — explica-se pelo fato de que 0 escritor, embora nosso con- temporaneo, é 0 representante quase perfeito dasconcep - Ges estéticas da época classica e nos fornece um po nto de partida privilegiado. Assim, a propria apreensao é concebida como uma relacdo particular estabelecida, no quadro actancial, entre um sujeito e um objeto de valor, Essa relagio naoé"natu- ral”; sua condicao primeira éa parada do tempo, marcada figurativamente pelo siléncio que bruscamente sucede ao tempo cotidiano, representado como um Tuido ritmado. Aesse siléncio correspondeuma parada repentinade todo movimento no espaco, uma imobilizacgao do obj eto- mundo, do mundo das coisas que até entao nao cessavam de “inclinar-se... no sentido de seu uso—e de suausura— ...”. O objeto estético nao alcanga, Pois, a perfeicéo, anado ser convertendo-se no “sonho de pedra” de um certo classicismo. A suspensio do tempo e€ a petrificagao do espago estado marcadas duas vezes pela palavra repenti- namente (“soudain'), que sublinha uma pontualidade 25 a A. J. Greimas imprevisivel, criadora de uma descontinuidade no dis- curso e de uma ruptura na vida representada. Nao se trata aqui, entao, de uma simples troca de iso- topia textual, mas de uma verdadeira fratura entre a di- mensio da cotidianidade e "o momento de inocéncia”. A passagem a esse novo “estado de coisas” se manifesta como a acdo de uma forga que vem do exterior: 0 deslum- bramento é, de fato, segundo os diciondrios, o “estado da vista golpeada pelo clarao demasiado brutal da luz”. Ini- cialmente recostado sobre o seu leito, 0 sujeito se levan- tou, coloca-se na moldura da porta, vacila e se sente obrigado a encostar 0 ombro no alisar; 0 deslumbramento oatinge de pé; abalado, desequilibra-se confuso. A comunicagao estética se realiza no plano visual — € a “ilha inteira”, completamente transfigurada, que 0 sujeito “vé” —e ainda somente no que € eidético; a cor aqui nunca intervém: uma marca a mais do classicismo de Tournier. Porém, é, afinal de contas, a luz que golpeia a vista do sujeito—a luz, que é 0 patamar mais profundo davisualida- de. O deslumbramento atinge o sujeito e transforma sua visdo: encontramo- nos diante de uma estética do sujeito. Poder-se-ia esperar que 0 evento estético, que nao é sendo um “relampago passageiro”, se inserisse no discur- so da cotidianidade: a um amplo exame dos minuciosos programas da jornada precedente segue-se 0 desapareci- mento progressivo da coisa extraordinaria que lhe acon- teceu, e Robinson se perde “no encadeamento das peque- nas tarefas e da sua etiqueta”. No entanto, a impossibili- dade de dizer diretamente o que se passou, de se dizer 26 Da IMPERFEIGAO enquanto sujeito, o obriga ase debrucar sobre o objeto, separando-se dele depois. Assim, o estado do sujeito é somente sugerido mediante suas manifestagoes externas: um comentario pensado e nostdlgico sucede aquela expe- riéncia, uma tensa espera a precede. A nostalgia dirigida ao porvir comporta conotagées euforicas: “era possivel mudarsem decair”; " alarva havia pressentido, em um breve éxtase, que um dia ela voaria”. Trata-se, na verdade, de uma nostalgia da perfeiese: espacial inicialmente, sob a forma de uma “outra ilha” en- trevista por um instante; em seguida, instalada sobre o eixo temporal, mas oculta por uma tela da imperfeicao que constitui “a mediocridade de suas preocupagoes”. Ao observar um pouco mais de perto esta “outra ilha”, percebe-se que as “coisas”, para alcancar a perfeicao, efetuam antes de tudo dois tipos de movimentos diame- tralmente opostos: primeiro, elas se inclinam umas em diregao as outras — conforme sua funcionalidade e ‘sua deterioragio—, em seguida, elas recaem em "sua esséncia” eeclodem—elas se erguem em conseqiiéncia—e ésomente entao que se poem a existir sem justificativa, na perfeicao de sua imobilidade. A tensao, obtida por esse duplo movi- mento, €o prego do relaxamento definitivo. Aespera pre- cede figurativamente 0 evento. Uma retroleitura, um retorno a espera inicial parece lf entado necessaria: A vrai dire le silence insolite qui régnait dans Ia piéce \ venait de lui étre révélé par le bruit de la derniére goutte tombant dans le bassin de cuivre. En tournant la téte il 27 m A.J. Greimas constata que la goutte suivante apparaissait timidement sous la bonbonne vide, sétirait, adoptait un profil piritorme, hésitait puis, comme découragée, reprenait sa forme sphérique, remontait méme vers sa source, renongant décidément 4 tomber, et méme amorgant une inversion du cours du temps. ("Para dizer a verdade, o siléncio insélito que reinava no aposento fora-lhe revelado pelo ruido da ultima gotaa cair na bacia de cobre. Voltando a cabega, verificou que a gota seguinte aparecia timidamente sob 0 garrafao vazio, esti- cava-se, adotava um perfil piriforme, hesitava depois, como se desencorajada, retomava sua forma esférica, che- gava a remontar 4 sua origem, renunciando decididamente acair, e até esbocando uma inversdo do curso do tempo.”] O paralelismo das duas descrigées € impressionante: a gota d’4gua, tal como as “coisas”, efetua, sobre 0 eixo da verticalidade, uma dupla operagao: uma queda detidano meio do caminho e uma ascensdo gloriosa. Exceto que a repre- sentacao da “outra ilha” aparece comb um simples comen- tario, vagamente filos6fico, do verdadeiro objeto estético que é a gotad’agua recusando-se a cair. No entanto, as duas passagens se situam, textualmente, ora como a espera, ora como a reminiscéncia da propria apreensio estética. Voltando 4 histéria da gota, notar-se-a de inicio que aqui se trata nado de uma tnica gota, mas de duas e de duas tensdes atentas. A primeira gota, aquela que cai, é apreen- dida pelo sujeito instalado no tempo regulado pela dimen- 28 | Da IMPERFEICAO sao da sonoridade: 0 barulho da queda provoca a espera da gota seguinte € 0 “siléncio ins6lito” quese instalaéafigura da distensividade, prefigurando o evento extraordinario. Bem diferente é 0 estatuto da gota seguinte, cuja pre- senga n4o é mais sonora, mas visual. Esta, enquanto figura do mundo, apropria-se gramaticalmente das fungdes do sujeito e opera ostensivamente, no coragao do objeto, como um ator modalizado e patémico. Sao aqui reconhe- civeis dois programas de fazer. O primeiro é aquele de uma perda relativa e corresponde, mutatis mutandis, a inclinagao das coisas relatadano comentario. A gota — aparece timidamente — estica-se —adota um perfil piriforme porém, uma vez que chega a esse ponto, —hesita e — se desencoraja. Anarrativizagao do comportamento da gota, manifestado com a ajuda de uma aspectualizagao espacial —incoatividade lenta, alongamento, dilatacdo — termina num estado mo- mentaneo, em forma de péra, que, devido a uma forte pate- mizacao, sugere certas formas harmoniosas do corpo femi- nino, mas sobretudo os volumes eas curvas daestéticabarroca. O programa é, no entanto, rejeitado. A gota —retoma sua forma esférica —remonta a sua origem e€ —esboga uma inversao do curso do tempo. 29 m A.J. Greimas O éxito final é evidentemente homologavel eclosao das coisas no texto interpretativo, dado, em particular, 0 fato que a forma esférica da gota, forma chave de todo classicismo, corresponde a tltima palavra do comentario: a perfeigao. A“ inversao do curso do tempo”, observagao filos6fica que a primeira vista parece deslocada nessa pas- sagem figurativa, explica-se entéo como o remontar em diregio a nascente, do barroco ao classico. en Um problema de ordem mais geral aqui se coloca. Ana- lisando atentamente “as figuras do mundo” descritas por Bachelard, Paolo Fabbri questionou o seu carater objeti- vo — seu estatuto de objetos “pregnantes” —, assinalando todo o tempo ainsistente presenga dos sujeitos no interi- or das descrigées dos principais temas bachelardianos. A subjetivacio da gota d'4gua operada por Michel Tournier reintroduz, em seus préprios termos, a questao da parte assumida pelo sujeito na elaboragao da apreensao estéti- ca. Sobretudo, nao devemos esquecer que o belo nao éa gota de agua. Apresentada como antecipa¢ao do evento estético, a gota, como toda parabola, reclama um comen- tario que, apesar de consolida-la, talvez a enfraquega um pouco. A insergdo na cotidianidade, a espera, a ruptura de iso- topia, que éumafratura, a oscilagao do sujeito, o estatuto par- ticular do objeto, a relagao sensorial entre ambos, aunicidade da experiéncia, aesperanga de uma total conjungao por advir, esses siio os poucos elementos constitutivos da apreen- so estética que o texto de Michel Tournier nos revelou. 30 O GUIZZO° O senhor Palomar passeia ao longo de uma praia deserta e percebe uma jovem que, deitada sobre a areia, “toma sol com os seios nus”. Como bom filésofo da vida cotidiana, ele nado deixa de se interrogar sobre a atitude a tomar ante a vista de um seio nu, que é uma coisa agradavel] de olhar, um objeto estético e ao mesmo tempo “aquilo que na pessoa € especifico do sexo feminino” e que, por isso, coloca problemas de moral social. Estas conside~ ragdes o obrigam a voltar, varias vezes, sobre seus passog para testar as diferentes hipéteses que formula sobre 0 bom uso do olhar diante desse objeto insdlito. Por duas vezes, ele tenta “nado ver”: na primeira, ele vira a cabeca para que “a trajetoria de seu olhar permanega suspensa no vazio”; na segunda, ele aflora “com uma uniformidade eqiianime” os diversos elementos de seu campo visual a fim de que “o seio fosse absorvido completamente na paisagem”. Revelando-se as experiéncias pouco convincentes por razoes de ordem ética, duas outras tentativas consistirao em “ver” o peito da moga de uma certa maneira. Dois retratos do seio nu emergirao entao da pena de Italo 'N.T. No original, o autor emprega a palavra em italiano para designar 0 efeito do evento estético. m A.J. GReIMAS Calvino: o primeiro, de carater estético, ¢ rejeitado pelo proprio espectador sob pretexto de que “uma supervalori- zacao daquilo que um seio € € significa”, uma apreciagao do objeto estético em si, pde esse “entre parentéses”, separando-o de seu contexto cultural e erdtico; o segundo, ao contrario, é rejeitado pelajovem que "se levanta de um salto... seafasta... como se fugisse das insisténcias moles- tas de um satiro”, enquanto ele, numa exaltagao ético- patémica, queria exprimir pelo seu olhar sua “gratidao por tudo... pelo cosmos que gira em torno daqueles ciispides aureolados”. Somente a descrigao da apreensio estética nos inte- ressa aqui. Si volta e ritorna sui suoi passi. Ora, nel far scorrere a suo sguardo sulla spiaggia con oggettivitta imparziale, fa in modo che, appena il petto della donna entra nel suo campo visivo, si noti una discontinuita, un scarto, quasi un guizzo. Lo sguardo avanza fino a sfiorare Ia pelle tesa, si ritrae, come apprezzando con un lieve trasalimento la diversa consistenza della visione e lo speciale valore che essa acquista, e per un momento si tiene a mezz aria, descrivendo una curva che accompagna il rilievo del seno da una certa distanza, elusivamente ma anche protettivamente, per poi riprendre i] suo corso come niente fosse stato.” “Italo Calvino, Palomar, Torino, Einaudi. 1983, pp. 12-13. Na sua analise, Greimas utilizou a tradugao francesa de ].-P. Manganaro (Paris, Seuil, 1985. p. 17). Tradugao para 0 portugués de Ivo Barroso: Palomar, Sao Paulo, Companhia das Letras, 1994. PP-12-14- 32 Da IMPERFEICAO [Volta e torna a voltar sobre seus passos. Ora, ao fazer com que seu olhar deslize sobre a praia com objetividade imparcial, procede de maneira que, mal o seio da moga penetre emseu campo de vista, perceba-se uma desconti~ nuidade, um desvio, quase um sobressalto. O olharavanca até aflorar a pele estendida, retrai-se, como que avaliando com um leve estremecimento a consisténcia diversa da visdo € o valor especial que essa adquire, e porummomen- to permanece a meia altura, descrevendo uma curva que acompanha o relevo do seio auma certa distancia, elusiva~ mente mas também protetoramente, para depois retomar seu curso como se nada houvesse acontecido.”] Esta breve passagem “estética” se encontra, como se vé, duplamente enquadrada: como uma imobilizacdo momentanea do sujeito entre dois deslocamentos ordina- rios — Palomar “torna a voltar sobre seus passos” “para depois retomar seu curso” —, mas aindacomoum engloba- mento da visao pelo referente contextual, apenas explici- tado—uma "objetividade imparcial” da praia, que ele rein- tegra, em seguida, “como se nada houvesse acontecido” — e que o devolve a cotidianidade das coisas e dos homens. Pequenos procedimentos, aparentemente insignifi- cantes, da escritura marcam a mudanga de isotopia que ocorre entre a vista “ordindria” ea visdo “extraordinaria” do mundo: quando, situado no exterior, o sujeito faz com que “seu olhar deslize sobre a praia”, é “o peito da mu- lher” —novo sujeito frastico— que “penetra em seu campo de vista”. O objeto estético se transforma em ator sintatico que, manifestando de tal modo sua “pregnancia”, avanga 33 mm A.J. GREIMAS sobre o sujeito-observador. Amesma adequagao concer- ne por outra parte ao sujeito da experiéncia: o “olhar”, presente primeiro como um simples instrumento de sua vista, torna-se ele mesmo 0 delegado ativo do sujeito; ele “avanga”, "se retrai”, coloca~se em uma posigao receptiva, fora do sujeito somatico. Que significa isso, sendo que a apreensao estética aparece como um querer reciproco de conjungao, como um encontro, no meio do caminho, entre osujeito eo objeto, no qualum tende rumo ao outro? Basta pensar na maneira como Michel Tournier trata um fen6- meno comparavel para ver que seu sujeito — Robinson — vive de modo quase auténomo, para nao dizer autista, seu "deslumbramento feliz”, enquanto 0 espetaculo do objeto estético — “uma outra ilha” — entreabre-se para ele como um outro mundo, na imobilidade da coisaem si. Aestética de Calvino remete, ao contrario, a concepgio husserliana da percepgdo, na qual as estruturas receptivas do sujeito se projetam adiante das Gestalten desejosas de com elas se reunir. Dotado da fungio sintatica do sujeito, construido no meio do campo perceptivo pela protensividade do olhar, 0 objeto estético nao se constitui definitivamente a nao ser produ- zindoadescontinuidade sobre 0 continuo do espago visual. A mudanea de isotopia mais acima reconhecida se afirma como uma verdadeira fratura que Calvino manifesta por uma triplicagao: a “descontinuidade” é interpretadacomo um "desvio” que separa 0 peito nu do resto do mundo, mas é 0 “relampago” — ou melhor, o guizzo — que representa figurativamente e consagra a superagao de fronteira. 34, Da IMPERFEICAO m O guizzo— palavra intraduzivel, pois, enquanto lexicali- zagao de uma construgao figurativa, recobre, poder-se-ia dizer, o essencial da estética de Calvino—foi-me explicado como um termo que designa o tremeluzir do pequeno peixe saltando da 4gua, como um raio argénteo e brilhante, que, em um instante, retine o cintilardaluzcomaumidade da agua. A subitaneidade do evento, a elegancia dessa ges- tualidade tremulante, o jogo da luz sobre uma superficie aquatica: eis aqui, imperfeitamente decompostos, alguns elementos de uma apreensAo estética apresentados em uma sintese figurativa. Tanto como Michel Tournier, Italo Calvino situa a ex- periéncia estética sobre o plano visual, o que lhe confere a caracteristica do classicismo. No entanto, ainda sobre essa dimensao sensorial, uma hierarquia de sensagoes é admitida. Segundo ela, o estrato eidético é considerado como 0 mais superficial, seguido do cromatismo, e, no nivel mais profundo desse género de percepgaio estética, encontra- sealuz. Porém, enquanto para Tourniera luz golpeia o sujeito comoum "deslumbramento feliz”, € do objeto que parte, para Calvino, 0 guizzo: trata-se entdo nao de um deslumbra- mento dos olhos, mas da fascinagao do objeto. Palomar nAo para ai: seu olhar avanga — € 0 avango 6, como se sabe, a forma figurativa do desejo— “até aflorara pele estendida”, prolongando assim a isotopia da visuali- dade pela tatilidade. Pois 0 tato € algo a mais do que a estética classica dispde-se a nele reconhecer—sua capaci- dade para explorar o espago e levar em conta os volumes: 35 wm A.J. GREIMAs © tato se situa entre as ordens sensoriais mais profundas, ele exprime proxemicamente a intimidade optimal e ma- nifesta, sobre o plano cognitivo, a vontade de conjungao total. A visualidade de Calvino, prolongando-se assim, desce delicadamente alguns graus em direcdo ao toque, forma figurativa da conjungao. Adelicadeza do escritor, mesclada de ironia, nado cessa de nos surpreender: enquanto 0 olhar de Palomar avanga para aflorar o seio nu, ele se retira imediatam “com um ligeiro estremecimento”, a ente como que para apreciar, consisténcia da visio. Tudo ocorre como se, com esse gesto de valoragao, 0 sujeito, abandonando a conjungao tatil, se retirasse com tato para colocar sobre 0 objeto um juizo de ordem cognitiva. Porém nao € assim. Basta abrir um dicionério na palavra “estremecimento” para encon- trar que significa: "Conjunto de sacudidas musculares que agitam brus- camente o corpo, sob efeito deuma emogao vivaoudeuma sensacdo inesperada.”* A apreciagao é entao de ordem tatil e nao cognitiva. Mais ainda: 0 estremecimento, enquanto conjunto de sacudidas musculares, afeta, pela mediagao do olhar de perto, 0 corpus delicti,o objeto, endo o sujeito. Aocontrario,a“emogioviva” ea “sensagio inesperada”, isto €, as reagoes patémica € sensorial, sao 0 proprio do sujeito. O estremecimento, como concretizacio da estesia, encontra-se, pois, distri- buido tanto sobre o sujeito quanto sobre o objeto e marcao eens *Definigao do Petit Robert, Dictionnaire de la Langue Frangaise. 36 cr Da IMPERFEICAO sincretismo dos dois actantes, uma fusio momen-tanea do homem e do mundo, reunindo ao mesmo tempo, para dizer como Descartes, a paixio da alma e a do corpo. Uma nova consulta ao diciondrio permite compreender qual € o objeto desta apreciacao vibrante: trata-se, diz Calvino, da “consisténcia diversa da visdo”. O diciona- rio nos ensina que, contrariamente 4 impressio que da uma leitura superficial, a consisténcia ndo deve ser lida de maneira positivista, associada a “pele estendida” aflo- rada pelo olhar, mas que se trata da visdo, isto é, numa primeira acepcao, de uma “representac4o imagindria” e, em seguida, de uma “representagao de origem sobrenatu- ral”: inaugurada por um guizzoe terminada porum estre- mecimento, a apreensdo estética é uma transfiguragao do seio nu em uma visdo sobrenatural. Acoisa parece evidente se for aceito, seguindo o mesmo dicionario, que o antonimo de “visio” nao é outro senao “realidade”. Ecomo nome de realidade que se pode entao designar a isotopia que engloba, pelos dois lados, esta surrealidade que é a isotopia estética. Constatagdo essa que convém estender ao guizzoe ao seu cintilar argentife- ro: basta pensar nas conclusdes de Max Luthi, eminente folclorista suigo, segundo o qual a cor do maravilhosodos contos europeus é, de maneira geral, metalico -argénteo. O instante de felicidade termina. O olhar imobiliza- se no meio do caminho para se transformar, de sujeito, em ponto de vista do observador. E 0 decrescendo, o retorno a superficie visual e inclusive ao seu estrato eidé- tico. Assiste-se 4 separacdo progressiva do sujeito e do 37 m A.J, GReimas objeto: enquanto o objeto é apenas visto como 0 “relevo do seio”, o olhar do sujeito o acompanha “descrevendo uma curva” como se esbogasse um desenho. Sem davida, também aquio classicismo de Calvino ultrapassa a beleza imovel de um “sonho de pedra” para se apresentar como uma estética da graga, assinalada ao mesmo tempo pela linha curvae pelo movimento do olhar que a descreve, esse gesto do olhar realizado “de uma certa distancia” — e nao “a distancia” como o dizo tradutor para o francés —ouseja, "a uma boa distancia”, abandonando, meioa contragosto, com ar de “protetor das artes”, este objeto evanescente. A ruptura da isotopia estética e o retorno a “realida- de” ocorrem, inevitavelmente, como a passagem do reino da beleza a republica do gosto. 38

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