You are on page 1of 24
" VITORINO . MAGALHAES GODINHO ESTRUTURA — DA ANTIGA SOCIEDAD PORTUGUESA 3*edigao Prof? fris Kantor FLH 261 — Historia Ibérica I Texto G / «2 4 Cépias arcadia CAPITULO Ill A ESTRUTURA SOCIAL DO ANTIGO REGIME 1 —Estratificagdo social e discriminagées A sociedade de Antigo Regime, que na esfera politica corresponde @ monarquia absolute, nasce com as viagens de descobrimento e fixagao além- cmar @ entra er convulséo, para em boa parte norrer, no final do século XVIII ¢ nas revolugées liberais'do primeiro tergo do XIX. Ao abrir, os povos peninsulares s80 0s pioneitos da grande aventura da descoberta do Globo @ da creago do mercado 3 escala mundial; em raz3o dos seus empreendimen- tos de navegago e ocednicos 6 que se forja pouco a pouco a economia do copitalismo modermo, Ora, ‘quando chegamos 20 ocaso do século XVIII @ a Inglaterra inicia, com 0 tear mecinico, com 2 fiagdo mecénica, com 0 emprego da energia do vapor, 2 ‘grande transformacdo que levars & produgio om massa e a novas condicdes de vida social, os povos peninsulares vo permanecer enredados nas estru- turas, agora arcaizantes, que tinham feito a sua gléria n mas estavam inteiramente desajustagas. Em cone traste com as civilizagdes altamente idustrializadas, ndo apenas os povos subdesenvoVidos mas ainda 0s povos com estruturas persis Regime: alguns, em vias de déSenvolvimento, outros, recusandy a modemidadé para cuja eclosio até tinham contribui Para responder a este problema fundamental, h&, portanto, que remontar aos séculos XV a XVIII; impée-se, além disso, vé-lo, n’o Unicamente no quadro portugués, mas amplamente no contexto peninsular; no podemos, na verdade, isolar nunca © recanto ocidental, quer das terras altas da Meseta, quer, até, das outras fachadas Maritimas, umas atlanticas, -outras mediterraneas, de toda a Penin- sula Ibérico, Na sociedade de Antigo Regime, o mais aparente € a divisio em estados ou ordens — clero, nobreza, brago popular. € uma diviséo juridica, por um lado, 6 por outro, uma. diviséo de valores e de compor. tamentos que esto estereotipados, fixados de uma ‘vez para sempre, salvo raras excepgdes. Cada qual ‘ocups uma posicdo numa hierarquia rigida, segundo tem, ou nao, titulos e tem, ou nao, direito a certas formas de tretamento. Formas de tratamento As maneiras nominais-como hd que dirigi @ outrem, © que 6 uyrem_pode exigir foram € reguladas por lei em| 1594 (@ 1739} proibia-so ndo sé dar o tratamento, como-mesma.aveité-lo, 8s pessoas 2 que no era dovido. Assim, o alvaré de 29 de 72 Janeiro de 1739 reserva a Exceléncia 20s Grandes, tanto eclesidsticos como seculares, ao Senado do lisboa ¢ 83 damas do Paco; a Senhoria pertence aos bispos e cénegos, aos viscondes e bardes, aos gentis-homens de Camara @ mogos fidalgos do Pago; abaixo, h& s6‘dircito a Vossa Merc. Ora esta titima forma fora exclusiva do rei até 1490, mas em Gil Vicente aparece jé dada a burgueses; Vossa Senhora, de origem estrangeira, de comeco aplicava- *8e apenas ao rei e circulo real, depois -alargou-se 3 nobreza, estandy consagrada a. seguir a Alfarro- beira; entretanto, 0 tratamento pronominal Vés, indicative de cortesia © distincia (que, com o tu familiar ou de superioridade, constitulra a nica maneira de se dirigir a outrem,.nos séculos Xill @ XIVmpois as formas nominais surgem no final de TrezeMoge no século XV), desaparece a moio do século XVIII Thiggley Cintra). Na realidade, as formas superiores vao-se depre- cian ~ medida que os escaléés -inforiores pro- curam dbtekesse tratamento para ascenderem sociale mente. Bem ‘sighificativo, 0 que se passcu com o Dom, que as OMenagées regulam estritamente (liv. V, tit. 92, § 7), cominando severissimas penas aos contraventores: nada menos que a perda do’ “toda a fazenda 0 a porda do privilégio de fidalgo, 08 que o tiverem, ficando plebeus. Nem os condo nem os bispos 0 podiam tomar por razdo de seus titulos (menos ainda os basterdos). Mas © sevori- dade das penas levava a nfo as aplicar, @ dal insta- lar-so c fassiddon do uso, de modo que um: 1611 lei de\1611) (Proves Hist. Genealégica, Il, ne 7) autoriza\g-Dom a todos os bispos, condes, mulheres. 73 e 2 4 ShbKoTEsEE KE VEOH ee ¢ filhas de fidalgos assentes nos livros reais, desem- bargadores, e até aos bastardos.dos titulares nas- cidos depois'da promulgagdo: e reduz a pena para 100.cruzados de multa e degredo de 2 anos para Africa, ‘reservando a aplicagio da Ordenacdo & reincidéncia, + Ore, que. vemos nés em O Hissope de Anténio Dinis da Cruze Silva (entre 1768 © 1777)? Ao bispo ise d8 a «Reverendissima Exceléncian, 20 deo “(portanto, as dignidades eclesiésticas), «Vossa Se- nhorian, :«Meu: Senhom, ou s6 «Senhor», ao advo- gado dirigem-se por. «Vossa Mercé —e abaixo da ‘Senhoria 0 poeta aponta «o Dom surradon. Sob a hierarquia, legalmente .fixada, hd uma constante ‘tenséo com as realidades sociais em mudanga; mas ‘s ordem tradicional defende-sé com a promulgecéo ‘de"medidas constrangentes, © apega-se as distin. gdes, Como se 18 em O Hissope: «De mil ceriménias Vis rodeada/Os assentos reparte a Precedéncia.» — @ a altura’ em que desaparece o tratamento prono- minal, substituido pelas enfSticas «Vossa Exceléncian @ «Vossa Senhorian—e também’ a, altura em que na Gra-Bretanha se esté a processar a Revolucio Industrial; vineado contraste de tumos. Deste modo as pessoas inscrevem-se imediata- mente em categorias que se distinguem pelo nome, Pola forma de tratamento, pelo traje e pels penas 2 que esti sujeitas. Na Crénica de D. Jogo | enu- meram-se quatro“estados do reino: prelados, fidal- ‘90s, letrados, cidadaos (peticgo dos povos as cortes de 1385, na Parte Il, cap. 1) — abaixo dos cidados, ©u povo no sentido politico (homens bons), hé a grende massa, sem representagso em cortes. O rei, 4 quando se dirige a5 categorias sociais-juridicas, escreve por ordem: juizes e oficiais (¢ a categ dos «letrados»), fidalgos, caveleiros, escudeiros, homens bons, e por derradeiro, povo (por ex. carta dé 1453, 8 vila de Elvas, em Documentos das Chan- celarias Relatives a Marrocos, t. ll, n° 141; carta: de 1494 a ilha da Madeira, em Silva Marques, Des- cobrimentos’Portugueses, vol. Il, p. 429— e igual- mente a carta do duque de.Beja a mesma ilha, idem, p. 457). Em cortes e nas ceriménias principais, figu- ram em primeiro lugar os grandes pretados — arce- bispos e bispos — em segundo os grandes senhores de titulo— duques, mestres de Ordens, marqueses, conselheiros, senhores de terras, alcaides-mores —, seguidos de outros fidalgos, depois os cavaleiros, em terceira categoria os cidadaos, por dltimo 0 povo (pelo menos, os seus procuradores—claro que © Povo, abaixo dos cidadios, nao aparece nas cortés) (Relagdes de Pero de Alcdgbva Carneiro, pp.’206, 207-212, 268 ¢ 337-9, relativas a 1521, 1544 e 1562; Freire de Oliveira, Elementos para a Hist. do Muni- cipio de Lisboa, t. Il pp. 11 © 0). Peéo ¢ pessoa de mor qualidade A distingdo fundamental é, porém, a que opée © pedo & pessoa de mor qualidade, ou seja, aos clérigos € aos nobres. 0 clero tem foro privativo; © fidalgo, quando @ preso, ¢-0 no castelo. com menagem, ao passo que o comum vai para a cadeia da cidade —tronco (por ex., T. T., So Lourengo, Il, 7, Cochim, 1547). Por outro lado, 0 pedo carac- teriza-se por poder ser acoutado. Assim, quando 6 alguém arrenega de Deus, ou da Fé, ou de Nossa # Seniors, ou profere blestémias eontra os santos, < se @ fidalgo, cavaleiro ou escudeiro paga pena pe- Cuniaria (dobrada no caso do primeiro) e 6 degre- dado um ano para Africa (trés, em caso de reincie déncia); sendo pedo, além da pena pecunisria (me- tade da que paga o cavaleiro ou escudeiro), recebe 30 agoutes a0 pé do pelourinho, com baragu @ pregao, e se reincidir 6 degregado para as galés (Reformagao da Justiga, 1582, em Leys de D. Sebas- tid, p. XXII). Portanto, quando se sobe na hierar. quia, 0 valor da pena pecuniéria aumenta (duplicando de categoria para categoria). A variagio da natureza da Pend ou a sua Proporcionalidade consoante a qualidade, estado @ condi¢ao do criminoso, do autor do delito ou infrac- tor mantém-se para todos os crimes, delitos e infrac- gbes. Ao_agoute tratando-se dé pedo, corresponde © degredo em pessoa de mor qualidade. Por exemplo,~ ‘© ocioso e vadio seré preso e agoutado Publicamente, ©v, se for pessoa em que nio caibam acoutes, degredado para os Lugares de Além por um ano {alvar de 1570, em Leys de D. Sebastiéo, p. 112; Ordenagées. liv. V, tit. 68); quem tiver tabernas ¢ vendagem fora dos lugares autorizados, se for pedo, seré agoutado publicamente, pagaré. 2000 réis Perderé © que tem para vender, mas sendo de mor qualidade, além de pagar o dobro, e da perda das mercadorias, sofre degredo de um ano para os coutos do Reino (idem, pp. 116-7). Quando cabe pena de degredo qualquer que seja a qualidade da Pessoa, no caso da de mor qualidade 6 para Africa, ‘no caso do peo apenas para féra de Lisboa e termo 76 —assim a quem aluga casas a mulheres solteiras f fora dos bairros autorizados (idem, p. 120). Cabendo agoutes a0 pedo, 0 degredo é igual para as duas categorias: a mulher que ensinar mogas sem licenca da Camara 6 acoutada publicamente e degredada para fora de Lisboa e termo por.um ano, sendo Eda categoria inferior, e em vez dos agoutes paga BE 20. cruzados se for da superior (em caso de rein }. déncia, quer de uma quer de outra, o degredo%é para Sio Tomé ou Principe) (idem, pp. 115-6). © homem que dormir com uma mulher virgem ou vidva honesta (neste caso, menor de 25 anos), € n§o casar com ela por vontade de qualquer das partes, desde que ela seja convinhdvel e de condigo para casar, 6 condenado a pagar-lhe ucasamenton (que no primeiro caso inclui a satisfago da virgin- dade). segundo sua qualidade, fazenda 9 condigso de seu pai; no possuindo bens para isso, so for pessoa em que cabem acoutes, 6 agoutado com ‘um barago e pregao pela vila e degredado para Africa 2 até mercé del-rei; se for fidalgo ou pessoa de qua- lidade que nao possa ser agoutado, a pena reduz-se ao degredo. (Ordenagées, livro V., tit. XXIII). 0 adultério 6 punido (a menos de perdio do marido) com execug&o capital dos dois culpados; mas se 0 adultero for de mor condigéo que 0 marido, por exemplo, aquele fidalgo @ este cavaleiro ou éscudeiro, ou aquele cavaleiro ou escudeiro e este pedo, a sentenga no seré executada sem confirmagao régia (idem, tit. XXV); a0 marido que encontrar a mulher em adultério & licito matar 0 adiltero, mas ndo se este for fidalgo, cavaleiro ou de semelhante quali- dade. Estas medidas revelam bem o sentido hierdr- 7 SoU VOUS % é a SUES TO CKOK ESET HC UVS quico da sociedade e quanto 0 poder esté ao servigo, da preservacao dessa hierarquia. Escala de valores @ mentalidade colectiva Essa escala de valores da sociedade estruturada em ordens esté a tal ponto assimilada pela mento- fade colectiva que conduz a atitudes aparentemente paradoxais. Néo admira, decerto, que um Alvaro de Brito, poeta do Cancioneiro Geral (1516), se aflija com a confusio entre os trés estados devida aos «trajos demasiados / em que todos sam iguais»: pertence ao circulo dominante; por isso afirma: «Nom deve- mos ser comuns /-senam pera Deos amarmos / e ‘servirmos, / nam sejamos todos uns / em ricamente ‘calgarmos / e vestirmos» (t. |, pp. 232-3). Também no admira que outro posta da mesma époce, Joo Barbato, aconsethe a quem quer servir amores: esta dama que servires / nam valha menos que ti / por linhagem»; 6. preferivel ser menos amado, mas por dama; de alto estado, a gozar a liberdade de outra de menos conta (t. Il, p. 112). O que nos deixa Perplexos a0 primeiro embate, e depois nos leva 2 afirmar 2 assimilagéo de tal escala pela mentali- dodo colectiva, 6 ver que nas Cortes de 1472 e 1481-1482, por exemplo, so os procuradores das cidades e vilas—logo, do Terceiro Estado — que Se queixam contra o alastrar do luxo, contagiando 8 agente med e medida», que verberam a gente boixa por vestir panos de seda e fina la, e acusam o luxo de dissipar as fortunas e deitar o Reino a perder (os fidalgos mudam trajes amitide, vestem brocados, 8 “dM c panos de seda € de la de altos pregos, abusam das guarnigdes douradas @ prateadas nas armas); ¢ sio esses mesmos procuradores a pedir a fixag3o do vestuario e calgado segundo as categorias — os esta- dos, qualidades e condigdes—, numa hierarquia minuciosa e rigida; 0 rei 6 que acha impraticdvel, imitando-se a proibir © ouro e panos de ouro aos nGo-cavaleiros. Nas Cortes de 1697-1698 um dos sapitulos apresentados pela Cdmara do Porto pede uma pragmatica rigorosa que s6 20s nobres reco- nhecidamente tais autorize o uso da seda, Quer dizer que ndo sé os mercadores © industriais se apegam a hierarquia tradicional ¢ condenam a ucon- fuséo dos estados» pelo que hoje designariamos welevagio do nivel de vida», como ainda nado véem © interesse econdmico da transformag3o em negé- Cio de massa de um negécio até ai de luxo. Vale a pena aduzir outros exemplos para nos apercebermos do que representa na estruturacao da sociedade de Antigo Regime a consideragio, o pres- tigio. Quando no século XVII se protendeu fomentar 2 produgio de po no Reino, visto as importages se terem tornado extremamente gravosas para a eco. Nomia nacional ¢ para o eririo régio, Severim, de Faria prope, entre outras medidas, que seja conce- dida a categoria de tidalgo a todo 9 lavrador que lavrar és moios de pio —atribuia-he grande e Gicia. Portanto o simples facto de isentar de certas penas infamantes e de dar direito a certas formas de tratamento € a certos tipos de vestusrio constit como agora dizemos, uma motivagdo econdmica extremamente incentivante. No reinado de D. Jodo Ii agravavam-se os povos de que os oficios de correcto- 79 res ¢ fretadores de Lisboa andavam em «pessoas bai- 298 € no pertencentes para elesy; de modo que uma carta régia de 1492 exclui desses cargos os oficiais os oficios mecénicos, resérvaride-os 3 «cldadios da cidade de Lisboa» e a «pessoas honradas» — os Mesteirais nJo sé «honrados», trabalhar com as aos (exercer oficio mecdnico) 6 wvil». A atitude, reste caso, do grupo mercador perante o mesteiral Noutro caso, atitudé de nobres fa perante esses mes- mos oficiais mecanicos: @ Regimento e estat Ordens Militares, de 1572, exclui do hébito os filhos ou nétos de oficial mecanico; @ no seminério instic tuido em Africa para sustentar e crear no exercicio da guerra os de nobre geragdo mas Pobres, s6 se rece- berao fidalgos de nobre Sangue e yeragdo por pai © por mak A Sociedade de Antigo Regime estd, como vi-| ‘MOS, estratificada juridicamente, e os estados e con-| des das pessoas distinguem-se pelas formas de| tratamento © pelo vestuério, implicando estatuto diferente perante a justiga, Na ordem juridica inscrevem-se ainda certas dis- criminagées de origem rdcica 0U, quando menos, religiosa, @ a que opée o livre 80 escravo. Depois das expulsdes e conversées forgadas do reinado de D: Ma nuel, moutos e judeus, que até formavam as suas comunidedes préprias, embora sujeitos a tributagso especial, s6 podem andar no Reino e Ultramar (sale vas excepgdes regionais) com licenga régia, e tém que trazer sinal pelo qual sejam conhecidos como tals: os judeus, carapuga ou chapéu vermelho, os mouros, uma lua de pano vermelho de quatro dedos, cosidé no ombro direito, na apa e no pelote. Pena 80 Go contravengao: preso, pagaré mil réis da primeira Utz ° 2.000 da segunda: da terceira, seré confiscado, Te XC ative Guer live (Ordenagées, liv, V. tit, XCIV). Mesmo os que se converteram continuam 2 solrer de certes incapacidades: por exemplo, © Ree Gimento das Ordens Militares, de 1572,\exclui do habito os de raga de mouro ou judeu. Formalmente, todos os estantes sio conversos; na fealidade, muitos 08 cristéos-novos continuariam a judaizar, cabenac & Inquisiggo. manter a unidade da fé. Mas 6 certo que {al 2680 visou outros objectives, e resvalou mesmo Preponderantemente Para a sua consecucao, 0 Santo Oficio serviu de arma anticapite rquico-eélesibstic sie do Cancioneiro Geral (tI, np. 76-8) D. Mantare, da Silveira, descrevendo o ambiente em Arzila, aponta isBo entre crist@os e judeus, sublinhando tue o \riunfo pertence a0 «que tem mais sotil mao, / mele Maneiras d‘apresséon. E ainda em 1713 9 cénsul francés Du Verger se fazia eco de que no Brasil 1 eza profundamente mercantilizada aésaltos da concorréncia (sobre os seus efeitos, Wele"Se 0 ensaio «Réstauragaon em Enseias, vol, 2). Os escravos Sociedade de estados ou ordens, mas modelade Por uma economia mercantilista, em que o trato de ‘ 8 J 2 2 > = 2 2 > = escravos desempenha um papel que nao pode passar em, silencio: fornecimentos para as Indias de Cas- tela—minas, plantagdes de exportagio—e para a prépria Espanha e outras zonas mediterraneas, em- prego da escravidao nas exploragées agricolas € nos ‘engenhos nos arquipélagos adjacentes e outros do Atlantico, e rio Brasil, além de servir a bordo dos navios. Mas mesmo no Reino hé uma camada es- crava que deve ter chegado a atingir um décimo da populagdo total, pelo menos em certas regides me- ‘tropolitanas. Se 0 escravo, na metrdpole, jé néo é, como entre (0s Romanos, simples «instrumento com voz» (mas continua a ser contado frequentemente entre o gado @ as cousas), se, no caso de se ter tornado cristo, j8 no pode ser vendido mas nicamente dado, toda- via sofre de incapacidades decisivas que as Ordena- ges ainda registam, 0 asilo eclesiéstico néo Ihe vale para, fugindo ao seu senhor, se livrar de cativeir E:licito arrencé-lo de 18 pela forca, e se, resistindo, for morto, 0 autor da morte no tem de responder por ela (liv, Il, tit. 5). A ninguém & consentide man- ter cércere privado; mas isso no se entende no que encerrar seu escravo a fim de o castigar de mas ma- nhas e costumes (liv. V, tit. XCV). Se 0 homem livre dormir com parenta ou criada daquele com quem vive, morra por isso morte ‘natural; mas no caso de ela ser escrava branca apenas degredado para sem- pre para o Brasil (liv. V, tit. XXIV) —nBo sendo portanto castigado se a escrava for de cor, Em caso da fogo posto, se 0 culpado for pedo é preso e degre- dado por dois anos para Africa, anunciando-se 0 dagredo com baraco e prego pela vila, ¢ além disso 82 pagaré 0 dano (sendo escudeiro, 2 pena é a mesma, mas anunciada sé na audiéncia; sendo cavaleiro ‘ou fidalgo, paga o dano as partes, e o rei é que determina 0 outro castigo); ora tratando-se de es- cravo, 6 agoutado publicamente, e ou o dono paga © dano ou entrega © escravo para se vender e do produto fazer o pagamento (liv. V, tit. LXXXVI, §5) © escravo, ora seja cristéo, ora 0 nio seja, que matar seu senhor, ou 0 filho do senhor, sera atormen- tado com as tenazes e ser-Ihe-o decepadas as maos, morrendo depois na forca; se apenas ferir, sem matar, Sofreré morte; @ quando apenas arranque arma con- tra seu senhor, sem sequer o ferir, 6 agoutado publicamente com barago e pregao pela vila, e é-Ihe decepada uma mao (liv. V, tit. XLI). Ao escravo fugido, faré o juiz do lugar onde for apanhado dizer 2 quem pertence por meio de tormento de agoutes (até quarenta), sem mais figura de julgamento, @ sem apelo nem agravo (liv. V, tit. LXIl) S80 das mais dispersas proveniéncias geograti- aS OS escravos que se importam para Portugal e lihas durante estes séculos de Antigo Regime. No sé- culo XV trata-se, evidentemente, de guinéus e cand- fios. La diz Garcia de Résende em 1834, referindo-se 808 pretos de Benim e Guiné: «Vem gran soma a Portugal / cadano, também as ilhas». 0 mapa dito de Cantino, de 1502, regista essa importagao, e em 1578 Sassetti constata de igual modo a vinda para o Reino de escravos de Cabo Verde e Sio Tomé — prove- nientes, claro, da costa africana desde 0 Cabo Verde até ao Equador. Damido de Géis, em 1541, estima nuns 10000 a 12000 os que vém da Africa negra, além dos que vém de Marrocos e Séara, India, Brasil, 83 Estimativa muito provavelmente exagerada. 0 ita: liano hi poueo citado avalia-os, no entanto, em mais de 3 000 por ano, Duarte Nunes de Lego, em 1599, escreve: «notério 6 os muitos mil escravos de Guiné © Ge outras partes da Etiépia e da India que neste reino hé...»; Lisboa, @’ meio do século XVI, contaria uma dezena de milhar — 10% da sua populagao; ne ihe da Madeira pela mesma altura, orgariam por une 3000, numa populagéo total de 20000 habitentes, Nessa dezena de milhar parece ter-se mantido a o- pulegao escrava de capital nas primeiras décadas de Seiscontos, a aceitarmos os nimeros de Nicolau de Oliveira em 1620; © no intervalo.o holandés Ven Linscnotten avaliara-a em mais de 10000. J4 em 1468-1466 Rosmithal assistia ao extraordinério afluxo de cativos a0 Reino, e via mesmo no Porto «muitos infigis escravos», cada ano chegando aos milhares, Tembém Minzer em 1494, se espanta com a quent. dade de escravos pretos e acobreados existentes om Lisboa. Ainda em 1687, o pedido da Camara de Lis. boa, de rigoroso cumprimento da tei que proibia's Porte de armas aos escravos, a fim de evitar as cons. antes desordens, revela que o seu nimero conti nuava a ser elevado (Damiaos Peres, em Histéria de Portugal, t. VI, pp. 373-4.). Referimos o quantita. tivo de escravos na Madeira, onde chegou a preo. Cupar 0 poder central, pretendendo limité-to, Nos Acores, no séculd XVI, também (testemunha Thevet, Cesmographie, liv. XXII, cap, 7) os Portugueses Possuiam numerosos escravos ‘para trabalhar e cul. tivar as terras. Na realidade, encontramo-los, no Reino e Ihes, ‘em todas as actividades: na lavoura, na pesca, nos’ 84 Servigas domésticos ou da vida urbana (acartando Agua, vendendo peixe, por ex.), nos oficios. Assim, frei Joo de Séo José, em 1577, indica que no Algarve os mestres de lagares de azeite sio negros, Negros trabalham nos Olivais, 0 esparto 6 apanhado Por negros ¢ negras. Mas do Oriente também vinham, numerosos, pela rota do Cabo: japées, que ‘exercem todas as artes com bom entendimento, de igual modo que os chins, de maravilhosa inteligéncia (e extraordindriog cozinheiros), pretos de Mogambi- ‘que para os trabalhos pesados (Sassetti, pp. 128-6). 2—0s tras estados ou ordens * 0 lero © lero constitui © primeira brago do Reino, alés, sob varios pontos de vista, de naturoza bom dilerente dos outros dois, Por um lado, forma ume organizagio prépris, com a sua hierarquia interno, Pera mais dependente de uma cabeca que so situs no estrangeiro. Além de gozar de foro privativo, Teo Se Peles suas leis préprias (direito canbnico), tem 28 suas regras de comportamento préprias, 0, POF outro lado, 0 resto da sociedade esté-Ihe subor. ginado no que respeita @ sua fung&e oopecificn, E como que um Estado dentro do Estado. Mesmo os rendimentos régios esto, desde 1218, gravados com 2 «décima a Deus». A igreja 6 asilo onde nBo podem peoettar, ‘SaNVO @xGep¢i0 (caso dos escravos, por exemplo) as autoridades civis ou militares, Coin > nobre Salvo ern Con AS suas reridas ou 6s seus bens nao sofr 85 2 favor do Estado, a nfo ser quando 0 proprio clero vote auxilios financeiros ao Reino, com autorizagao «de Roma. O clero—e é este um dos problemas fun- damentais da época que tratamos — aumenta numé- ricamente de maneira extraordinaria do século XV a0, século XVIII; avoluma-se, em especial, o numero de conventos e a importancia des ordens monésticas — um dos tragos solientes da histéria social penin- sular.nestes séculos. De 203 no final da era quatro- Centista,:os conventos saltam para 396 no final da era quinhentista, quase duplicando, pois, num século; contam-se uns 450 quando da Restauragéo, 477 no primeiro tergo do século XVIII, 510 (sendo 380 de frades © 130 de freiras) em 1833. J: 0 holandés Van Linschotten observara com espanto que Lis- boa estava a.tal ponto semeada de mosteiros, con- ventos e hospitais que quase igualavam em riamero as restantes casas da cidade — evidente exagero mas impressio convincente. Numa representagao dirigida 2 Filipe ll de Portugal talvez na segunda década seis- centista agrava-se que «so tantos os clérigos e fra- des que se comem uns aos outros» —e chega-se a propor que durante dez anos se fechem os estudos @ _ No se ordene ninguém (F. Almeida, Hist. da Igreia, t. III, pp. 519-20), e D. Luis da Cunha diré, volvido mais de um século, que a fradaria nos devora, a fra- daria nos mata. Qual o sentido numérico de tais afir- magées? A meio do século XVII, contando-se em Portugal mais de 25000 frades e freiras e mais de 30.000 clérigos numa populagdo de quase 2 milhées, h& um eclesiéstico ou religioso para 36 habitantes ‘ou menos; na vizinha Espanha, ao findar esse século, “@ proporgéo andar por uns 33 (s40 180000 em 86 menos de 6 milhdes — Hamilton, Florecimiento del capitalismo, p. 128); dadas as incertezas dos cél- culos, a Peninsula deve girar toda & volta da mesma proporgao, A pressio social e econémica do clero néo resulta propriamente do némero dos que 0 consti- tuem, mas sim dos lagos que @ si prendem toda 2 populagio. & que, além de gozer dos privilégios e imunidades de que ja falimos, arrecada para si um quinh3o importante da «rendas nacional (vere- mos adiante o significado desta expressao). De toda @ produgio nacional cobra 1/10 —é 0 dizimo ecle- sidstico ou décima a Deus, cuja instituiggo remonta, entre nés, a0 século XII ou oceso do precedente, generalizando-se seguidamente. Estes dizimos podem wenfeudar-sen em comendas, unir-se 2 catedrais, mosteiros, etc.. recebendo 0 paroco 36 2 pordo cOngrua, Mas sio, alm disso, as oblagées pias, 2 principio ofertas graciosas a0 eclesiéstico pela administragao dos sacramentos, depois generslizadas e transformadas em emolumentos praticamente obri- gatérios (donde nasciam demandas constantes, che- gando 0s parocos a mandar penhorar os bens dos figis); entram também as ofertas a0 altar, para celebragao dos oficios divinos (cera, lampadas. vinho, etc.) e 0 dar de jantar (vitualha), bem como as ofertas para obras de assisténcia ou de refeigao das. igrejas ou capelas, para por uma imagem no altar, @ tantas outras, E mais, hé as primicias — os primeiros géneros recolhidos, dados & igreja ou 20 péroco ou ao prebendério. Outras ofertas ainda, de’ inicio voluntarias mas que o clero passa a exigit como devides por lei. Um exemplo: na diocese de 37 Braga muitos diocesanos ofereciam votos a Santiago ercediam 1 840000; quer dizer que em 95 anos ara defesa contra os mouros: esses votos vieram a dyes oom 84% em moeda estdvel. Ora na primeins Constituir boa parte da renda da ‘mesa arcebispal constavam de certa quantia de PSO © outros frutos, © por cada jugada de bois uma medida dos melhores frutos a modo de Primicias, assim de p80 como de vinho, para a mesa dos cénegos; ora muitos diocesa- Ros nao queriam upagarn, e obtiveram sentenga favoravel do juiz dos feitos da coroa; mas D. frei Bartolomeu dos Mértires convenceu finalmente o rei a julgar 2 favor da igreja (Frei Luis de Sousa, Vida do Arcebispado, liv. 1V, cap. 2): 0 Celeiro é que Constituia, porém, a parte mais grossa de todo 0 ren- dimento do arcebispado (idem, tiv. |, cap. 13). Mas além de todos esses rendimentos anuais, a i ' a a lgreja € grande proprietéria de toda a sorte de bens. ; ck Sem davida as Ordensgdes proibiam que as igrejas modo, uma ideia estrutural da sociedade de Antigo ~ ou ordens pudessem haver bens nos, requengos Regime. Em 1832, no Algarve, as rendag eclesidsticas (liv. Ul, XVI), bem como pudessem comprar andavem entre 65 e 67 contos de réis © as receitas ou por qualquer titulo adquirir (mesmo que em publicas (alfandegas, impostos, etc.), por 72, Por 1 Pagamento de divida ou em testamento) bens de esta altura, no todo do Reino as corporagées reli- raiz sem especial licenga del-rei (tit, XVIII), Todavia giosas tém de’ rendimento 1 162 contos, a0 passo igrejas e mosteiros recebiam constantemente heran- que os impostos directos somam Para o Estado "98s para obras pias e sufrigios (bens deixados por & volta de 1600 contos, " alma), e desde 1567 espalhara-se 0 costume de distribuir em obras pias as tergas dos que faleciam A nobreza ¢ os seus réditos sem testamento. Em 1715 0 abade de Mornay dizia Para Franca que 0 clero possuia 2/3 do Reino; nio Uma boa parte dos rendimentos eclesidstico- atingia essa proporcdo, mas a sua participagso na imonésticos néo é, contudo, para empregarmos ume propriedade do solo osciliaria entre 1/3 © 1/4, Eenressio da época, «comidan pelo préprio elero. E 0 que representariam os rendimentos eclesidsticos Este, aliés, nos seus escalées superiores esté Intima- em Felaglo a0 rendimento nacional? Em 1537 aquéles mente imbricado com a nobreza, e na Peninsula Ibé, i somariam 1 milh3o de cruzados-ouro, em 1632, rica os fidalgos conseguiram chamar a si apreciSvel 88 89 1, iquinhdo dos proventos das igrejas, mosteiros e dife- Eyentes fundagées pias. Quando frei Bartolomeu dos «Mértires.pretendeu, no seu arcebispado, restituir 0 ‘seu a seu déno, sabia que «entrava em guerra desco- cberta com’ maior parte do Reino e com toda a nobreza dele, cujas rendas principais constam de igrejas e comendasn; esses possuidores de rendas 1na origem eclesiésticas consideram-se e agem como proprietérios, ¢ n3o como usufrutuarios, que afinal sho (Vida do Arcebispo, liv. Ill, cap. 7). Além dessa participagao interposta na produgao agro-pecuaria, é a nobreza detentora directamente de percentage muitissimo elevada dos bens de raiz, Podemos calcular que no século XVII uns 95% do solo peninsular pertencem aos dois bragos, nobre e clerical, conjuntamente, sendo a parte daquele, de longe, a maior. A fidalguia é uma ordem que assenta no propriedade fundisria, portanto, mas ndo exclusivamente —e esta constitui uma das origina- lidades da sociedade peninsular. Perticipa também largamente dos réditos publicos, tendo em boa- sporte a0 seu servico um Estedo profundemente mercantilizado: s80 os «casamentosn, as tengas & outras mercés, e principalmente os assentamentos, ligados a certas categorias ou funcées, ou ainda as actividades mais ou menos licitas aferentes a deter minados cargos (exercicios de capitanias, por exem: plo). Chegam-se a elaborar listas de cargos com | 2.estimativa do que podem render a0 benelicirio— assim 0 livro de 1582, relativo a0 Oriente (ed. Men- des da Luz). Directamente ou por interposta pessoa, entra no tréfico maritimo, em todo o comércio com as regides 90 mais longinquas do Globo, seje a seda da China, a prata do Japio, 0 cravo e a noz de Banda e das Mo- lucas, a canela de Ceilio, 0 agicar brasileiro ou de ‘So Tomé, os escravos de Guiné ou Angola. Tal par- ticipagao € de importéncia decisiva. Na verdade, encontramos nobres a monopolizar as saboarias do Reino —caso do infante D. Henrique. e depois do seu filho adoptive D. Fernando —, a armar navios para exercer um corso frutifero (por ex., Rui Valente, cavaleiro da Casa Real e provedor da Fazenda do Algarve, em 1463, arma caravela em que vai por capitio um cunhado, escudeiro, a fir, de saltear os mouros no Estreito, recebendo do rei em mercé © quinto das presas) ou para trafego lucrativo (0 cavaleiro Gongalo de Paiva passa em caravela sue ferro da ilha de Cabo Verde pare os rios da Guing, em 1499, e em comegos do séc. XVI 0 porteiro Jorge de Melo arma navio para andar a, resgatar no Senegal), a explorar engenhos industriais (um cavaleiro da Casa Real, Francisco de Almeida, & que fica em Azamor com dois lagares de fezer cera que eram do tempo dos mouras); encontramos nobres a organizar, ou como accionistos de compa- nhias comerciais, nem que seja sob capa, com testas de ferro (e inclusivé o proprio rei), encontrimo-los em todos os tratos e mercancias, sejam eles quais, forem, 0 capitio de Azamor, D. Alvaro de Noronha ganhou milhares de ducados «com certas manhas», entendendo-se com os mouros; um judeu que dele se agravava é que foi preso, e 0 capitio continuou no cargo (0 rei chegara @ pensar em demiti-lo) apesar das grandes murmuragdes (Simancas, E 367, de €vora 9-V-1524). D. Jodo de Castro, antes de 1 partir para a India em 1845, contiou todos os seus bens ao mercador-banqueiro Lucca Giraldi. Em 1678 fegressa da India o vice-rei Luis de Mendonga; consigo traz uns 2 milhdes de cruzados—mas @ fragata naufraga; tomara, porém, a precaugdo de colocar em vérios bancos da Europa 4 a 5 8 de cruzades, ganhos sobretudo no comércio com Mogambique (com um cabedal inicial de 200000 @ 300000) Em 1715 os negociantes que tratam no. Brasil queixam-se amargamente: 6 quo © vice-rei, marqués de Angeja, negociou com os Ingleses a admiss&o directa de mercadorias brit&nicas nos por- tos brasileiros, € isto contrariamente a todas as leis portuguesas. O embaixador francés em Lisboa explica entio que os governadores ultramarinos tém licenga de mercadejar por conta propria, e que slo eles que geralmente compram (ou encarregam outros de comprar) as mercadorias dos navios estrangeiros entrados nos portos sob todos os pretextos (do abade Mornay, 26-111 e 14-V-17165, Paris, Arch. du Ministére des Affaires Etrangéres). Quando, em 1722, 0 navio de guerra em que vinha de Goa 0 filho do conde de Ericeira foi tomado Por corsarios fran- eses, houve grande consternagao em casa do conds Por se afundarem as esperangas postas nesse re- gresso com Copiosas. riquezas; e foi também perda Censideravel para o rei, para a rainha (desde sempre interessada na rote do Cabo) e para uns tantos fidalgos que todos os anos recebiam rendas consi- deraveis do Oriente (De Montagnac, 14-IV-1722, Paris, Arch. Nationales, Aff. Etrang.). Em 1733 0 irm&o do patriarca de Lisboa e cunhado do secretério de Estado, D. Lourengo de Almeida, que fora gover- 92 nador de Minas dez anos, volta com uma fortuna imensa, que fizera passar para a Europa durante a sua estadia no Brasil; calculavam-na em 18 milhdes de cruzados em ouro e@ diamantes (consigo trazia 's6 60.000). Foi muito bem recebido pelo rei, gragas & acgo do cunhado, que para preparar essa exce- lente recepgao reconciliara primeiro o monarca com © conde de Assumar, governador precedente: quando este regressara, ao fim de seis anos de governo, com mais de 100000 moedas de ouro, D. Jofo V no o recebera e mantivera-o afastado da corte, Comendas e vinculos ‘ Estado-mercador, nobreza mercantil: como tipo social caracteristico, 0 fidalgo-negociante, o alto fun= cionario-mercador enobrecido. Impera o mercanti- jismo (a economia dominada pela fungao de mer- cado), mas sem mentalidade burguesa. € que essa classe dominante esta, por outro lado, convém relem- bré-lo, ligada & propriedade do sol elo sistema das comendas tem acesso aos rendimentos das ordens — militares (cuja incorporagao na Coroa, no sécule XVI, correspondeu, em parte, ao que foi a sec'ilarizagao | dos bens eclesiSsti¢os nd: pals que Tisrom- a. Reforma), @ pelo sistema do morgadio tem a pos a maos 2 maior parte dos bens de raiz. As comendas sao afinal atribuigdes ‘do usufruto_de_bens de ordens’ religioso-militares. Em comecos do século XVII havia cerca de 600 comendas, cujo rendimento variava entre 1 conto! 50 000 réis, totalizando 150 contos (0 rendimento da rota do Cabo anda entio por uns 234). Herculaho 93 LAMA Oe mn ee PLE. CvedsbbbuuwS 2 @ 2 @ 2 @ » 2 > * @ J » 2 a» Caracterizou Portugal como pals: de vinculos, co- mendas e bens da coroa. Um vinculo é um conjunto de bens que est4 vinculado, que esté unido indis- solbvelmente a uma familia; trata-se de uma forma de propriedade inaliendvel e indivisivel, transmitida em linha masculina através do Primogénito, com exclusio dos irmaos, que apenas recebem subsidios tirados do rendimento do morgadio; nao existe, pois, © direito de tester, e em cada momento o possuidor do vinculo n&o € mais do que administrador dos bens que o integram. Aiém do morgade, que & 0 vinculo de bens laicos a uma familia nobre, ha outra forma de vinculo, a capela: a gapela é um conjunto ) de bens em principio afectos 2 uma obra pia, a assegurar 0 culto, mas que em grande parte acaba Por constituir um morgado; quer dizer, esté também indissoluvelmente vinculado a uma familia que cum- pre os deveres religiosos inerentes a tal tundacao, “mas goza do usufruto desses bens. Distribuigao da propriedade Estas instituig6es caracterizam bem a ordem nobilidrquico-eclesidstica, Interessa sobremaneira ave- figuar a sua incidéncia social e econdmica no con- junto da populogio. Em 1632 0 juiz do povo de Lis boa envia & corte, em Madrid, uin relatério finan- ceiro, em que sublinha: no ha nos Reinos lavrador que lavre em terra propria, por quase toda ser res- Pectivamente das igrejas, reguengos da coroa, ou foreira a diversos senhores, e os foros e pensées dels, © imposigées e tributos imoderados. Lembremo-nos de que os estudos feitos em relagdo 8 Espanha scis- 94 centista concluem que uns 95% da terra pertencem & nobreza ¢ ao clero, D. Luis da Cunha em 1736 dira aproximadamente 0. mesmo: «O Reino de Portugal» 6 uma ourela de terra que divide em trés partes, ade que 2 primeira ndo é, ainda que o poderia ser, bem cultivada, que a segunda pertence 3s ordens eclesidsticas, compreendendo as monésticas, ¢ que a terceira parte produz um pouco de gréo, que todavia nao basta para subsisténcia de seus mora- dores, sem que the venha de fora.» Se tentarmos cingir estatisticamente a situagio, no ocaso do século XVIII, encontramos, para Espanha, @ seguinte distribuigao: 51% do solo pertence a nobreza, 16.5% a0 clefo, € 180-86 32% aos plebeus (contra 68% aquelas duas ordens). Mas estas percentagens glo- bais mascaram diferengas regionais extremamente importantes. Assim, na regio de Avila, Salamanca, Valladolid, 20s morgados pertence 80% da terra, & Igreja quase 20%, ficando os plebeus reduzidos 2 08%! Tracemos no mapa a distribuigio gerat da propriedade e dos sistemas de exploragao. A cor- ditheira central da Peninsula constitui a grande divi- séria, Para 0 Sul, incluindo o Alentejo, espraiom-se 5 latifUndios trabalhados por um proletariado agri- cola —os jornaleiros, isto é, os que trabalham dia a dia, recebendo por cada uma dessas jornas de trabalho © respectivo salario (jomal), representam mais de metade da populagio rural, Para o Norte dessa cordilheira, sio menos de 50%, mas em nenhuma regido da Peninsula os proprietarios culti- vadores, isto ¢, os que cultivam a terra propria directamente, alcangam metade da populagdo agri- cola; aqui convém distinguir trés zonas: no Nordeste 95 (Catalunha) © Leste (Valencia) predomina a enfic teuse, no Centro ‘setentrional (Biscaia, Navarra, Aragio), 0 arrendamento a longo prazo, no Noroeste (Galiza, Castefa-e-Velha, Asturias) 0 arrendamento 2 curto prazo, com mini-exploragdes (e sublocagio, Com foro) — & também 0 caso do nosso Minho, Tipos de bens, categorias sociais e sua geogratia Tentemos, na esteira do jurista Lobao, uma clas- siticagdo dos vérios tipos de bens em Portugal. Em Primeiro lugar, os bens da coroa—patriménio do Estado; os bens realengos, Ou reguengos, esses, sio bens particulares de rei, e os. que os cultivam solvem quota de frutos (1/4 ou 1/5), além de Pagarem laudémio (muitos reguengos estéo concedidos, usus- frutuariamente, a nobres); as comendas séo con- juntos de bens cujos rendimentos estao concedidos @ particulares nobres, no as havendo todavia vin- culadas; os padroados s8o bens em que a sucessio se faz como fiés morgados, andando aliés muitos anexos @ morgados; bens_alodi 880 os de pro- priedade plena: raros em Portugal (e no resto da Peninsula), a nao ser em regime de latifindio; bens jugadeiros sao os que pagam sé jugada (contribuigio Predial) @ no laudémio; bens enfiteuticos ou em, Prazados, © censos reservativos ou” EaMsignativos (réditos 4nuios); hé ainda os 1s concelhios, logra- douros comuns, em que anualmente sio pela Camara repartidos quinhdes (por ex., em ‘Soure) — aliés i8 no século XVI, como se vé em Gil Vicente e S& de Miranda, a nobreza andava a vedar 0s pastos, pelo menos nas serras. No Alentejo, j& 0 notava 96 Severim de Feria em 1624, provincia em muita parte deserta, em que o povoamento é em herdades muito Gfastadas (conviria junté-lo em vilas, como é na Esiremadura espanhols, a fim de fomentar 0 mercado interno), cada proprietério tem duas e trés herdades, 6 0 resultado é que as lavra mal; 0 gado numerose, mas como néo & guardado em currais, solve alte mortandade. E pouco depois Faria e Sousa, subli- nhando que os lavradores sio os mais deles pode- roses em fazendas, indica que dos tilhos, sustentados gracas a essas fazendes nos estudos, esto cheios . ©s tribunais, e por aqui chegam a ministros. Lobao, 20 abrir 0 século XIX, continua @ Notar, relativamente 20 Alentejo, que as herdades tém ranchos de criados, muites juntas de bois, ¢ nelas se semeiam ‘Muitos moios de semente. J& em telacdo & Beira, Minho, ‘Trés-os-Montes e mesmo Estremedura, indica que os lavradores comumente sao pobres, trabalhando por Si @ com seus criados (em pequeno ndmero) (Mor- gados, cap. 3, § 14). No Mesmo sentido, dois séculos atrés testemunha Severim de Faria (Arbitrios para Abundéncia de Pam, 1624) que em Entre-Douro-e- -Minho s80 numerasos 08 pequenos lavradores, nenhum tem 10 ovelhas nem 20 vacas; 0 gado & melhor cuidado do que no Alentejo, guardado em currais. Mas aqui a proliferagio demogratica’ ‘ogava a nobreza na necéssidade, esclerece-nos Faria e Sousa (Europa Portuguesa, t. Ml, parte IM), estando no século XVI! arruinados muitos castelos @ torres. Todavia era na Beira (Aveiro, Coimbra, Viseu, Guarda, Idanha) que a populagio segricola era na maior parte pobre — de trato e traje titimo: tanto mendigam os que nada tém como os que " 97 Bewe eee eue BEeS we ow VOUS tém alguma cousa— acabados os labores, vo até Castela a mendigar. O cardeal da Mota, em 1734 («Parecer sobre a fébrica das sedas», ed. Borges de Macedo) acentua que no Norte de Portugal ha tanta gente ociosa e pobre por falta de emprego (dai a vantagem de se estabelecerem manufacturas). Segundo 0 coronel Franzini (Balbi, Essai, t. |, pp. 234-5) a populagao ligada a terra ir-se-ia assim, no comego do século XIX: Proprietérios e outros que _N.” % vivem de suas rendas 60000 11 % Cultivadores proprietarios 96000 17,7% Cultivadores arrendatérios 135000 24, Jomnaleiros . 1... 2. 215 000-"39,7% Pastores e outros servigais paraogedo. ... ... 35000 64% Soma . 541 000 N3o sabemos bem qual o grau de confianga que merecem estas estimativas. Parece pelo menos que -devemos entender a segunda categoria — cultivado- es proprietérios — como abrangendo sobretudo os enfatiotas, os foreiros de prazos, Em 1952-1954 ini- camente 14% dos agricultores s80 por conta prépria. predominande no Norte © Algarve; e hé 56% de jornaleiros; ent8o 0 grau de concentragéo das explo- rages agricolas, dado pelo indice de Gini (de 0 a 1), inscreve acima de 0,700 os distritos de Portalegre, fvora, Setbal, Castelo Branco, Beja, Santarém, Lisboa: como se vé, todos abaixo da cordilheira cen- tral; a menor concentrago 6 no de Viana do Cas- telo, seguido pelo de Viseu, depois o de Leir 98 Aveiro, Coimbra (Niveis de Desenvolvimento Agri- cola ‘no Continente Portugués, Lisboa, 1963). Vis- tumbra-se, por debaixo das transformagées do libe- ralismo, @ pe ia estrutural de Antigo Regime. Mas voltemos: atrés do século XIX. Nao podemos aperceber-nos do «peso social-econdmico da ordem nobilidrquico-eclesiéstica apenas pela espantosa con- centraglo de propriedade de bens de raiz. O senhorio E idispensével no esquecer que essa ordem dominante, composta dos dois bragos, domina ainda boa parte do Terceiro Estado pelos lagos de depen- déncia pessoal constelados no senhorio, que em Por- tugal persistiu sob a forma de capitanias (especial- mente no Ultramar) @ donatarias. Pelo senhorio gozam certos nobres de fungdes de autoridade (judi- cial, por ex.) sobre 0 comum integrado na sua donataria, e arrecadam certos direitos fiscais ren- dosos. 0 priorado do Crato, por exemplo, dividido a Meio pelo Tejo, estende-se de Alter do Chao ao Zézere entre os dois Pedrégios; compreende, no Alentejo, as vilas de Crato, Tolosa, Amicira, Gavido, Gélete, © a0 norte Belver, Vila Nova dos Cardigos, Proenga-a-Nove, Serta, Pedrégio Peaueno. e 23 freguesias, 6 000 vizinhos (30000 habitantes); fora do priorado, o Prior do Crato tem jurisdigao secular e nas igrejas na Vila de Oleiros e na Vila de Alvaro; a fazenda, que rende ao todo uns 35 000 cruzados, compie-se dos dizimos, dos direitos da quarta parte dos frutos, de censos perpétuos, direitos reais (excepto alcavalos), e muitas defesas e propried.- 99 des, que além dos dizimos pagam foro; séo ainda do prior todas 2s aguas dos rios—ninguém pode fezer moinhos nem lagares sem licenca sua @ sem * Ihe-pagar 0 foro —, na Serté muitos lagares movidos @ gua, um celeiro, armazéns de azeite, em Proenga um lagar_e@ um celeiro, em Pedrégi0 um lagar, No Crato 5 lagares hidréulicos e 2 celeiros: tem pes. ‘auelras @ caneiros, que andam aforados, e barcas, Por exemplo @ da Amieira, que rende 200000 réi¢ (Carvalho da Costa, t. Ul, pp. 575-6 e 690-1). Visitemos uma comenda: a de Gontijas @ Valada (no termo de Pias, a0 norte de Tomar) dé para o comendador 0 dizimo do azeite, os oitavos do linho, © uma parte do dizima @ citavo de po e vinho, per. tencendo a outra parte ao Convento de Cristo, que recebe além disso as primicias e meungas (idem, 1 Ill, p. 219). Vejamos como sio divididos os dizi. mos, por exemplo em Alcécovas e seu terma (Alen. tei0): 1/3 & para o comendador de Cristo (que paga 20 reitor 40000 réis e dé para a fébrica da igreja 50000), outro tergo vai para 0 arcebispo cabido de Evore (a0 prelado cabem 2/3 desse terco, ou sejam 2/9, © 20 cabido 1/3 dele, ou seja 1/9), ¢ 0 Festante terco é distribuido pro rata por quatro bene- ficiados (idem, t. Ul, p. 463). Passemos a alguns senhorios. 0 senhor de Guardio (serra do Caramulo) tem 1/8 de todos os frutos, com 42 casais que ihe pagam seus foros fogagas. O conde de Redondo tem, nessa terra alentejana de que é senhor, 6 300 réis de jugada, ou seja, 36 alqueires de cada moio que se semeiz, mais os citavos do vinho, e 50 000 réis do Portegem; de igual modo em Alvito o conde-bario tem 1/8 dos -vinhos e as jugadas do po. De Peni- 100 che recebe 0 conde da Atouguia os dizimos do pes- cado e 10% das cargas das embarcagées que saem a barra: esses direitos rendem-the uns § 000 cruzados; além disso, a Camara dé-lhe um «jantam cada ano que importaré nuns 200000 réis, O Terceiro Estado Como se compe o Terceiro Estado?“As Orde- nagées (liv. V, tit. 72), bem como 0 alvarb de 1570 sobte os ociosos e vadios, f6ra dos estados eclesids- tico ou nobre, reconhecem trés modos de vida: viver com senhor ou com amo, & um deles, ter oficio ou mester em que trabalhe e ganhe sua vida, 6 0 outro, @ andar negociando negécio seu ou alheio 6 o ter ceiro; claro que dai deduzimos um quarto modo de vida licito a quem nao pertence aos dois primeiros bragos (0s privilegiados): 6 ser amo, isto 6 pro- prietério ou arrendatério ou enfatiota de uma explo- rag3o, e trabalhé-la com os seus criados e femilia- Fes (a lei no tinha que se the referir como item na enumeragao, porquanto visa os que se deslocam sem ter essa base de sustentago) Encontramo-nos, pois, com quatro grupos: 2) agricultores (trabalhando quer a terra prépria quer a que tém de mao ain b) mercadores Negociontes; ¢) mesteirais, oficiais mec&nicos, isto &, 0 ligados as actividades industriais: d) os que servem outrém — na agricultura, no comércio ou na indistria (nestes dois ramos, apenas se contam nesta categoria os servigais no qualificados, os nao pro- fissionais propriamente ditos), nos servigos demést Cos € anexos, Veremos noutro ponto (2.* Parte, Anto- 101

You might also like