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ARTIGOS INCERTEZAS DA TRANSICAO NA AMERICA LATINA* FRANCISCO C. WEFFORT O processo de transigao 6, por sua qualidade e por suas, proprias caracteristicas, povoado de incertezas. Podemos tomar esta idéia quase como 6bvia. Podemos até ir mais longe, no mesmo raciocinio, e concordar com Adam Przeworski em algo que nao é de nenhuma maneira Obvio e que é, de resto, essencial: a incerteza constitui um dos-aspectos essenciais do jogo democratico. A de- mocracia, diz Przeworski, emerge como um “contingent outcome of conflicts”, um resultado contingente de conflitos. Neste. sentido, a preocupacdo coma certeza nos resultados do jogo politico pode ser trago da.mentalidade autoritaria. Como diz o sugestivo titulo da * Este texto, na sua forma inicial, serviu de abertura para as discussdes do IV Encontro do Forum Cone Sul, ocorrido, sob o tema geral “Democracia: como se participa?”, de 13a 15 de novembro de 1987, em Santa Catarina, Brasil. Participaram do Encontro, realizado sob 0 patrocinio do ILDES, politicos e intelectuais democratas ¢ socialistas da Argentina, Brasil, Chile; Paraguai e Uruguai, Em uma segunda oportunidade, este texto foi discutido em um Seminario do CEDEC (224-88). Agradego. a todos os colegas e companheiros que, nestas reuniées, me ajudaram com suas criticas € comentirios. Agradego, em particular, a Maria Vict6ria Benevides e Guillermo O'Donnell que viram este trabalho na sua “pentiltima” redagao e me ajudaram a chegar a sua forma atual. 6 LUA NOVA~ SKO PAULO ~ MARCO 89 N? 16 traducdo brasileira de um artigo, justamente festejado, de Przeworski, “ama a incerteza e scras democratico”.* Raciocinios como estes nao devem,, porém — alias nao o pretendem -, nos levar a tomar com ligeireza a atmosfera que envolve as transigdes politicas a que assistimos hoje no Cone Sul. Parece-me evidente que, pelo menos em alguns casos, existem motivos para graves cuidados, Uma coisa €:a incerteza que se entende normal e necessaria ao jogo democratico. Outra é a que acompanha 0 processo histérico de paises recém-saidos dos regimes autoritarios e que diz respeito as proprias possibilidades de implan- tagao de um regime democratico. Também nao cabe, me parece, pelo menos nao ainda, identificar essa atmosfera de inseguranga quanto ao curso da tran- sigdo com o desencanto que se observa em alguns paises, como a Espanha. O desencanto pode significar, no caso da Espanha, de- cepcio, desinteresse, desmobilizagao etc., em face de um quadro institucional democratico que se pode considerar como algo nao s6 adquirido mas também consolidado. Se quisermos uma definigao, talvez possamos ver no desencanto a decep¢ao da participagao, ou a decep¢ao dos participantes. $40 os sonhos democraticos — muitos deles sem base real quer na experiéncia quer na teoria, mas ha muito tempo acalentados — que se esboroam diante dos primeiros insuces- sos ¢ das muitas dificuldades, alias tio comuns nas fases iniciais da consolidacdo:das democracias. Odesencanto agrava a incerteza mas nao €.a mesma coisa. Nao nego que j4 se pode encontrar algo.de desencanto-em alguns paises do Cone Sul, em especial na Argentina e no Brasil. Mas ele tem, em todo caso, um sentido diferente. Aqui, as pessoas nao se desen- cantam com a democracia 4 qual se chegou mas, pelo contrario, parecem descrer cada vez mais da possibilidade dese chegar 4 democracia, Em outras palavras: as preocupagdes com a sorte da democracia no Cone Sul dizem respeito 4 propria possibilidade da consolida¢ao dos processos de transigao democratica em curso. Deste modo, a quest4o, central em outros contextos, de como participar da democracia, nao é ainda, entre nés, a de. como participar de uma democracia consolidada. Este é um problema, em si muito importante, que podemos reconhecer nas democracias mais * Praeworski, Adam, "Ama a incerteza e serds democrdtico”, revista Novos Estudos, CEBRAP. INCERTEZAS DA TRANSIGAO NA AMERICA LATINA 7 firmes e tradicionais do mundo, entre as quais a da propria Inglaterra. A-questdo central aqui é antes, em alguns casos, como no Chile e no Pataguai, a de construi-la. Nem mesmo no caso mais avangado do Uruguai, onde se trata de reconstruira democracia, poderiamos dizer que estamos diante de uma democracia consolidada. A questdo da participagao na democracia da América Latina poe em questio a possibilidade da propria democracia. Deste modo, aqui a incerteza dizrespeito nao apenasaos resultados eventuais do jogo democratico, mas, sobretudo, a possibilidade de que este jogo se consolide. Existem numerosos escritos sobre as lutas pela democra- cia e sobre os processos de transi¢ao em curso na América Latina,em. particular no Cone Sul. Nao pretendo fazer aqui um balanco bibli- ografico sobre o tema, 0 que exigiria muito mais leitura do que me foi possivel no tempo que tive para preparar este texto, Mas, se nao posso fazer um balango dos escritos, pretendo, isto sim, fazer um balango das questées as quais eles — pelo menos os mais importantes —se referem. O que 0 leitor tem em mios €, portanto, um trabalho preliminar e confessadamente inconcluso. Creio que a atmosfera de incerteza que envolve a transi¢a0 exige dos pesquisadores, ao invés de conclusGes, a capacidade"de formular as perguntas certas. £ esta a tentativa que se faz neste trabalho. Se nesta procura chegarmos a algumas respostas seguras, tanto.melhor. E melhor ainda se, além de um questionamento que satisfaga a nossa curiosidade intelectual, chegarmos também as perspectivas de aco que contribuam para aprimorar os rumos da nossa luta pela democracia ou, onde esta j4 tenha chegado, paraasua consolida¢ao. I — AS INCERTEZAS DA TRANSICAO E A ORDEM DO RETROCESSO Em simpésio sobre a transicao brasileira, realizado em inicios de 1987 na Universidade de Sao Paulo, Guillermo O'Donnell afirmou que a transig’o brasileira estaria ameacada de “morte lenta”. E, ao fazé-lo, expressou uma inquietagéo que muitos dos seus colegas brasileiros compartilham. Diga-se de passagem que, pes- simista em rela¢ao ao processo brasileiro, O'Donnell nao chega a ser propriamente otimista em relacao as possibilidades da transi¢ao em 8 LUA NOVA- SAO PAULO — MARCO 89 N® 16 seu proprio pais, a Argentina. No caso do Brasil — 0 que interessava, de modo mais direto, as discussées havidas na Universidade de Sao Paulo = as:razGes da preocupacao de O'Donnell sao, sobretudo, de natureza politica. Sao razGes politicas diversas que comecam pelo alto grau.de controle dos herdeiros do regime anterior sobre 0 processo de transi¢4o, o continuismo das praticas patrimonialistas e clientelistas predominantes no cenario politico brasileiro, a hetero- geneidade e desorganizagao dos setores populares que facilitam a existéncia de uma “simbiose” entrée a burguesia e o Estado, tornando, deste modo, mais dificil o caminho da modernizag4o e da democra- tizagdo das relacdes sociais no pais.” Observadores brasileiros da politica brasileira, em espe- cial quando situados na esquerda (ou perto de alguma posic¢do de esquerda), tém-sido ainda mais duros na avaliagao das perspectivas atuais da transigao, Comegaram j4 ha.algum tempo as criticas @ transicao brasileira, assinalando insuficiéncias e impasses que ten- deriam a leva-la a um fatal imobilismo ¢ a uma conseqiiente re- gressdo autoritaria, Quem pretenda pegar a onda noinicio faria bem em ler uma famosa entrevista de Raymundo Faoro, datada de 1985, sob 0 sugestivo e polémico titulo “O Estado Novo do PMDB". Faoro alude 4 continuidade do autoritarismo no bojo da prépria transigao democratica,. quando associa a Nova Repiiblica a lembranga do Estado Novo, ou seja 4 ditadura Vargas de 1937- 45, e quando:evoca as imagens em torno do regime de 1964 como tendo sido o “Estado Novo da UDN”.** Hi também quem, como Luciano Martins, critique a propria nogdo de uma “transicdodemocratica” afirmando que aose dizer “democratica” uma transi¢&o cujo fim nao se pode conhecer de antemio, s6 se consegue fazer um exercicio de “wishful thinking”.*** Polémicas, sempre e inevitavelmente polémicas, as avaliagdes em torno da transi¢do surgem em todos os quadrantes da esquerda brasileira. Temos de considerar, ou nao, a possibilidade de retrocessos? Diante de perguntas como estas, sao freqiientes na esquerda as avaliagdes do género “a transi¢4o parou”, “congelou”, “apodreceu” etc... No PT, partido que sempre se-caracterizou por 10'Donnell, Guillermo, "Transigées, Continuidades e Alguns Paradoxos", comuni cagdo ao Simpésio sobre Transi¢ao, USP, abril, 1987. Exteaso resumo desta comuni- cacao pode ser encontrado no jornal "O Estado de Sao Paulo", 20-9-87, sob 0 titulo, alids muito sugéstivo, de "A Ditadura pode voltar: Sem Golpe”. “Faoro, Raymundo, “O Estado Novo do: PMDB", revista Senhor, dezembro.de 1985. "Eu me refiro a um semindrio de Luciano Martins, no CEDEC, 1987. INCERTEZAS DA TRANSIGAO NA AMERICA LATINA. 9 uma ‘nitida oposigdo ao regime militar e ao governo da Nova Repiblica, a avaliagéo predominante é de que estamos diante de ufna transic&o conservadora que, alias, acentua cada vez mais seus tragos conservadores. AvaliagGes pessimistas se encontram também em partidos empenhados, desde 0 inicio, na sustentacao da Nova Repiblica, como o PCB, o qual procura, de algum tempo para.c4, distancias pelo menos em face do governo. Outro exemplo é.a onda de criticas que partiram do PMDB ao governo federal quando da aprovacao do presidencialismo e do mandato de cinco anos para os Presidentes da Repablica. Agravam-se, desde entao, as divisdes no intetior do. PMDB, com o surgimento do bloco dissidente dos “hist6ricos”, dando inicio a um movimento que conflui na criagao do PSDB. Como seria de esperar, as avaliagdes oscilam com a con- juntura e com a posi¢ao que adotem as forgas politicas, neste ou naquele momento. Mas o.pessimismo é generalizado em qualquer das. posigdes do espectro politico. Se as avaliagées dos politicos servem de critério para a verdade do processo,:poderiamos concluir que estamos, no Brasil, diante de uma transi¢ao sem saida. E se tal conclusdo pode parecer precipitada, estariamos, em todo caso, diante de uma transi¢ao que, pelo menos nas aparéncias, naosatisfaz as.expectativas de ninguém. Vale a pena tomar por extenso as avaliagdes de alguns dos “herdeiros do regime anterior”. Diz, por exemplo, Mario Henrique Simonsen, ex-Ministro do governo do General Ernesto Geisel e, ainda hoje, ligado-a grupos politicos e econdmicos que deram sustenta¢ao ao regime militar no Brasil: “com 0 governo superendi- vidado, com os politicos concentrados em distribuir empregos sem trabalho e com a idéia de que slogans enchem a barriga dos pobres, estamos caminhando para 0 retrocesso”. Esta frase se encontra em artigo publicado, aliés-com imenso destaque, na revista de maior circulagao do pais. Neste.artigo, onde Simonsen se lan¢a em ambici- osa reflexZo politica sobre as. dificuldades da situagdo econdémica brasileira, ele encontra, até mesmo, alguma possibilidade para comparagGes internacionais.* Além de mengées a Espanha, China, URSS, Estados Unidos etc. elc., sempre sobra espaco para algumas referéncias 4 América “Simonsen, Mario Henrique, “O risco de se optar pelo atraso”, revista Veja, n° 997, 14- 10-87. 10 LUA NOVA— SAO PAULO = MARGO 89: N° 16 Latina, embora, como de hAbito entre os neoliberais brasileiros, no lugar negativo do exemplo que naose deve seguir. Depois de afirmar que estamos caminhando para 0 retrocesso, diz Simonsen: “Nao tenhamos ilusdes: o fato de termos crescido 7% ao ano nos tiltimos quarenta anos.nao significa que estejamos destinados ao progresso e que a faganha se repetira nos proximos quarenta anos, Estamos ameacados .de. uma estagnacao, semelhante 4 que o populismo peronista implantou na Argentina desde 1945”.* Ou seja, depois de tanto crescimento sempre pode aparecer algum irresponsavel que ponha.tudo a perder. Em outras palavras, o risco do retrocesso est4, precisamente, na possibilidade de o Brasil de hoje vir a imitar a Argentina de 40 anos antes. Tentemos nos colocar acima das disputas polémicas de circunstancia; para captar 0 que elas pretendem dizer no fundo. Simonsen nao entra em detalhes mas nfo creio'que esta referéncia.a uma -possivel “argentiniza¢ao’ do. Brasil seja meramente casual, Referéncias.4 América Latina sempre tém um forte significado simbélico na hist6ria politica brasileira, Qualquer que possa: ser a opiniao de qualquer argentino sobre 0 significado do Perén de 1945, na.boca.de um neoliberal brasileiro 0 significado é de redistribuigao de: renda - (ou,..’se. ,quiserem, distributivismo desenfreado..e demagégico), de estimuloa organizagao sindical (ou deimplantagao de.uma “repablica sindicalista”) e de presenga de massas na politica (ou de demagogia populista). Para que.nao haja equivocos, tenhamos presente,.desde logo, que uma imagem.como esta, verdadeira ou falsa, atribuida.ao Perén de 1945, pode assustar os neoliberais brasileiros quase tanto quanto a notavel ruptura representada pelo Presidente Alfonsin em relacdo ao regime militar argentino, Embora muitos argentinos considerem que 0 processo das responsabilidades dos militares ficou aquém do necessirio, no Brasil os julgamentos.dos militares ecoaram, especialmente para os “herdeiros do regime anterior”, como um- barulho muito além do suportavel, A imagem.de ruptura, de sobera- nia.popular e de altivez do. poder civil, representada por Alfonsin, * Embora levando em conta a inten¢io polémica de Simonsen, inten¢ao nem sempre propitia a preciso hist6rica, nao se pode passar por alto umi equivoco cronolégico evidente. A Argentina de 45 vivia uma época de afluéncia que durou pelo menos até inicios dos anos 50. Alids, ndo se vé como pudesse Perén, em outras condigées, levar 3 prdtica uma politica de aumento do salirio real dos trabalhadores e de redis- tribuigao de renda. INCERTEZAS DA TRANSIGAO NA AMERICA LATINA WW pode ‘soar, transferida.para o Brasil, como o devaneio radical de algum.-democrata enlouquecido. Qualquer ‘das possiveis . saidas democraticas da Argentina — seja pelo peronismo, seja pelo: radica- lismo, sem falar das alternativas mais 4 esquerda — aparece, para um neoliberal'brasileiro, como um exemplo temivel. Mas ha algo que merece-um comentario especificamenté brasileiro no artigo de Simonsen. Ele est cheio de alusdes hist6ricas, personalizadas umas, impessoais outras; aos grandes conflitos pol cos:da:hist6ria:brasileira deste século. Ele evoca — apenas evoca ~a figurachistrica de Getilio Vargas, embora sem dizer-Ihe o nome. O Getilio:de 1945, certamente, mas também o de 1950,-e, evidente- mente também sem dizer-lhe o nome, a figura’de Joao Goulart. Nio foram-ambos representantes de um nacionalismo, de um distributi- vismo e de uma aproximacdo com os meios sindicais que um ‘eco- nomista neoliberal ter4 de considerar tanto invidveis quanto inde- sejaveis? O grande risco que vé Simonsen € — nas suas ‘proprias palavras — de o Brasil vir a “ratificar simultaneamente uma op¢ao irracional pelo atraso tecnolégico, pela xenofobia, pelo estatismo e pelo ‘mais’ riefando dos tipos de ‘capitalismo cartorial que ja’ se abateram sobre: sua Hist6ria. Tudo isso em nome:de um “progres- sismo” que ninguém sabe o que significa — porque; na-verdade, nao significa coisa alguma além de um progressivo estado de tumulto mental”. Para Simonsen, a esquerda € 0 atraso e a confusdo mental: Estariaele pretendendo dizer que a direita signifique a modernidade ea clareza? Todo este jogo de alusdes busca seus efeitos: Tentando assustar alguns brasileiros ‘com o passado argentino,:na verdade, Simonsen est4 buscando argumentos para justificar uma volta ao seu proprio passado, isto’é, a politica neoliberal que’ ele; Campos e Delfim. executaram no Brasil. Com as péculiaridades da situagao brasileira que impede os excessos de desindustrializa¢o aos quais se chegou na Argentina e no-Chile,-a politica: destes neoliberais brasileiros se inspira em critérios familiares aqueles que ditaram as politicas:dos “Chicago boys”, no Chile, e de Martinez'de Hoz, na Argentina. Tome-se o problema pela esquerda ou pela direita, parece claro: que os’ nossos paises do Cone Sul passam por uma época-de acertode contas com o passado, como uma forma de decidir ‘qual caminho tomar para construir 0 futuro. E nao creio que ‘se ‘trate apenas de uma metffora para politicos e para intelectuais, masdeum 12 LUA NOVA- SKO PAULO ~ MARGO 89'N®16 sentimento que atinge, sem davida, amplos setores dasociedade.Do passado podemos tirar ensinamentos e motivos de inspiragao tanto quanto de inseguranga e medo. E neste ponto que pode surtir efeito, tanto na Argentina quanto fora dela —e, neste caso, em particular no. Brasil -, uma alusdo a tragica historia da instabilidade. social e politica, a de aps 1955 e, pior ainda, a de apés 1966. Ou, muito pior ainda, a de apos 1976. Uma historia de tragédia a qual nao se deve querer regressar, nem na Argentina nem no Brasil. Mas deve ficar claro também que, se buscamos exemplos de instabilidade, teremos muitos em qualquer pais da América Latina, O.caso argentino éapenasum caso, £ de se prever que, dentro de.algum tempo, os-neoliberais deixem de falar mal de Per6n para voltarem a falar mal de-Allende. O efeito que se busca, do lado da direita, com exemplos como este € sempre 0 mesmo. O. outro lado da incerteza nao é exatamente uma busca ansiosa da ordem, de alguma ordem? A Espanha de novo é um exemplo interessante: a meméria da guerra civil nao impediu a maioria de querer a democra- cia mas, como jé se disse, “queriam-na ao menor custo possivel”, E entre os nossos povos do Cone Sul quantos nao serdo os que, depois do longo periodo de instabilidade pelo qual passamos ou, estamos passando, anseiam pela perspectiva de uma ordem politica estavel? Quantos, nao sero, em meio as populages do Cone Sul, os que temem os conflitos que um processo, mais profundo de democrati- zacao inevitavelmente reforcaria? Quem pode, por exemplo, ignorar 0 fato de que o préprio processo de democratizagdo coloque em debate o tema do socialismo, com a:sua reconhecida capacidade de polarizar 0 quadro politico, mobilizando uns quantos e assustando outros tantos? Quem argumenta em nome da ordem nio esta impedido de falar também de democracia e de progresso. O neoliberal. brasi- leiro Mario Henrique Simonsen talvez possa ser tomado como um exemplo que, neste aspecto, vale para muitos. neoliberais latino- americanos, Aparentemente esquecido de haver sido servidor de um regime de .forga — onde o neoliberalismo na economia se.combinou bastante bem coma doutrina da seguranga nacional na politica, eque fez uso abundante do sigilo, da politica secreta (sem, esquecer a policia secreta)-e da violéncia — ele vai por ai, alegremente, dispa- rando as suas ligGes de democracia, “Sem transparéncia, a democra- cia € uma farsa” — eis ai um conceito de fazer inveja a muitos democratas. Pena que ele atire contra a farsa e acerte na democracia, INCERTEZAS DA TRANSIGAO NA AMERICA LATINA 13 ao modo de quem joga a crianga com a agua do banho. “Um regime democratico montado na maquina centralizada, farisaica, gastadora e irresponsdvel que se encastelou no Estado tera o mesmo destino que oseu antecessor: 0 colapso.” Estamos diante de uma adverténcia ou de uma ameaga? O casamento do neoliberalismo com a doutrina da seguranga nacional, dos tecnocratas com os militares, teve, todos o sabemos, a sua fase de farisaismo pretensamente democratico. A propésito, nao foi também o que ocorreu, em diferentes momentos historicos, na Argentina, no Chile e no Uruguai? Estaremos, no Brasil, voltando a isso? Evidentemente, nao se deve imaginar que o mal-estar diante das possibilidades de um retrocesso se limite ao caso brasi- leiro. A Argentina, que caminha na frente do Brasil e, em geral, a passos muito mais répidos, no processo de transi¢&o, poderia talvez sugerir outros exemplos. Tomando o caso argentino pelo lado otimista, come¢o por assinalar que as experiéncias eleitorais recen- tes dos argentinos indicam a presenga, se nao de um sistema partidario consolidado, pelo menos de dois grandes partidos (ou dois grandes “movimentos hist6ricos”?) empenhados em disputar 0 poder no terreno da opiniao piblica, da sociedade civil e da’ de-. mocracia. Nao pretendoignorar a contribui¢ado dos partidos minori- Larios, em geral de perfis ideolégicos mais nitidos ¢ situados mais a esquerda; Mas entendo que, do mesmo modo que nas primeiras eleigdes da fase de transi¢ao, a grande novidade hist6rica foi a vit6ria do radicalismo sobre o peronismo, indicando a vitalidade politica da sociedade civil argentina para buscar alternativas, através da criagao de uma nova maioria e de uma nova fonte de legitimidade para a retomada da democracia, sinais semelhantes de satide democratica se manifestaram depois com a formagao de uma nova maioria do outro lado do campo. Parece-me claro que as duas grandes forgas de- mocraticas, ou seja 0 radicalismo ¢ 0 peronismo, chegaram, ou estio chegando, aquele ponto de reconhecimento e de legitimacao reciprocaque, apesar de todas as divergéncias sobre outros aspectos, torna a:convivéncia democratica possivel. Embora obscurecida pela vitoria recente de Menem, do lado mais autoritario do peronismo, a perspectiva para a-Argentina parece indicar uma possibilidade de re- organizacao das forcas politicas segundo critérios democraticos, & pouco, mas j4 é mais do que tém outros paises, inclusive o Brasil. Mas nem tudo sio flores. Existem os “de fora” em relagao ao processo democratico: os “herdeiros do regime anterior” conti- 14 LUA NOVA- SAO PAULO ~ MARGO 89 N® 16 nuam bastante fortes para criar problemas, Nao ha como deixar de observar que transi¢ao argentina~ caso tipico de uma transi¢4o por ruptura, onde o-novo regime democratico foi-capaz'de marcantes e incontrastaveis afirmagdes da soberania do poder civil — deixa um travo de amargura depois das duas ondas recentes de manifestagdes militares. Estou entre os que pensam que as primeiras manifestacgdes, em torno das discussées politicas sobre a lei'de “obediéncia devida”, acabaram obrigando o presidente a concessées:que afetaram a sua autoridade eas proprias instituigées: Foi s6 a partir da segunda ameaga de golpe, do Coronel Rico, que o governo Alfonsin passou ater condigdes de dar aos rebeldes o tratamento devido. No caso do Brasil, os “herdeiros do regime anterior” ameagam-com as palavras, na‘Argentina usam diretamente as armas: Nos dois paises, 0 clima de incerteza‘tem algo de parecido, sofrendo com isso a.confianga popular rios politicos civis ¢ nas instituigées democraticas. Existem possibilidades de retrocesso na Argentina? Exis- tem possibilidades de retrocesso no Brasil? Um ponto, pelo'menos, parece claro: no clima de incerteza em que vivemos todos, .os fantasmas do passado se misturam com os fantasmas do retrocesso. Os ‘argumentos s4o, evidentemente, diferentes segundo o pais e segundo a posi¢ao politica que se prefira. Sao diferentes também os remédios propostos. Mas sente-se, em meio a discussdo, que algo nao vai bem. E que as incertezas sobre a transi¢4o sao de natureza inteiramente diversa daquela que se haveria de esperar como normal no jogo democratico, Pelo menos até onde se pode vere prever, nio-ha, nem no Brasil nem na Argentina, possibilidade de golpe militar.Talvez améacas, mas sem chances maiores de‘éxito, Na Argentina, porque a'ruptura da sociedade e dos partidos com os militares foio bastante profunda para inviabilizar-as tentativas de golpe,'que:se’ existem, manifestam-sé. como’ fenémenos' isolados: tanto: no“ plano ‘militar quanto, 0 que é mais relevante, em relacdo:a sociedade e as forcas politicas predominantes, No Brasil, pela‘razdo oposta; é-tantaa continuidade entre o antigo regime militar e o atual que tentativas de golpe militar nem parecem necessirias. Isso, poréni, nZo tem sido'o bastante para eliminar as nuvens que‘pesam no-horizonte: Nos dois paises, a: ransi¢déo:democratica se acha na.situagao de um exército que deve prosseguir a marcha em terreno pantanoso. Dentre os paises do Cone Sul,’o Uruguai, ja varios obser- varam, €.0 que apresenta algo mais proximo de uma democracia INCERTEZAS DA TRANSIGAO. NA AMERICA LATINA 15 consolidada, até porque, junto como Chile, o pais de maiortradicao democratica: Se o Brasil € um pais de cr6nica instabilidade partidaria, o Uruguai Gunto com o Chile ou talvez mais ainda).tem uma historia de estabilidade dos partidos. Blancos e Colorados terao mudado ao longo do tempo, desde uma €poca distante em que eram bandos armados em disputa pelo poder numa sociedade agropastoril, pas- sando pela fase em que foram as organizagées de poder das oligar- quias, até a €poca.atual.em que aparecem comio grandes organi- zacées politicas (sobretudo eleitorais), de uma sociedade urbana, moderna, enfrentada coma necessidade de buscar um novo modelo de.desenvolvimento em regime democratico. Os “partidos tradicio- nais” mudaram mas continuam 14. Talvez se tenham modernizado. Em todo caso, € certo que,se os “partidos tradicionais” nao se mo- dernizaram, o sistema partidario se modernizou. Ou comeg¢ou a se modernizar com o reconhecimento dos partidos e liderangas que compéem a Frente Ampla como sendo 0 “terceiro” do jogo. A possivel modernizagao dos partidos e do sistema tradi- cional nao basta, porém, para descaracterizar a sua continuidade. Os “partidos tradicionais” sio uma construgao especifica da histéria uruguaia e, ao que parece, bastante eficazes, pelo menos para orga- nizar eleigGes. Como diz Juan Rial, eles compGem um sistema de partidos com duas inst4ncias: “uma bipartidista e outra polipartidista, mas ambas ocorrem ao mesmo tempo. Trata-se de dois grandes partidos (...) que em realidade constituem confederagées de fragdes partidarias quase totalmente auténomas, unidas paraa a¢doeleitoral, unicamente”. Neste tipo de jogo, estes dois partidos sobreviveramao regime autoritario de 1933-1942 e ao de 1973-1985, tornando-se, nas duas ocasides, em importante suporte da redemocratizacao do pais. Desde 1971, surge pela esquerda uma terceira forga, com os grupos, partidos € liderangas que se colocam debaixo da bandeira da Frente, Ampla, representando cerca de 30% de votos em Montevideo e cerca de 20% no pais. Poderiamos dizer, acompanhando alguns pesquisa- dores do jogo politico uruguaio, que o Uruguai teria passado de um sistema bi-partiddrio tradicional para um sistema tripartid4rio mo- derno? Este é um importante ponto de davida sobre 0 caso uruguaio: tero os partidos uruguaios, além de sua reconhecida capacidade para organizar eleicGes, também a necessaria capacidade para for- mar governos? Além dos partidos, a modernidade do Uruguai se reflete fas circunstancias em que transcorre a transicao. Em 1980, o Uruguai 16 LUA NOVA ~ SAO PAULO ~ MARGO 89 N° 16 aparece como um caso excepcional de vitoria da democracia-em plebiscito organizado pela ditadura. E as greves gerais do periodo final do regime militar sdo prova bastante de que o fendmeno da modernizacao pode incluir também o crescimento da capacidade de organiza¢ao da sociedade civil, em especial a dos trabalhadores. Fiquem estas rapidas indicagdes sobre uma pequena sociedade moderna e de cultura politica acentuadamente democratica ‘para registrar a exce¢do que, esperemos, possa tornar-se regra no Cone Sul.* Mas se 0 processo vai de modo. cambaleante no Brasil e topa com dificuldades na Argentina, em circunstancias em que nao se véem grandes sinais de mudanga no Chile e no Paraguai, como definir as perspectivas da transi¢ao democratica do Cone Sul? Esta quest4o pode ser também colocada nos seguintes termos: éstariamos entrando, como esperamos, cm nova etapa histérica na América Latina, marcada pela revalorizacdo da democracia, rompendo, por- tanto, com um passado de tradig6es autoritérias? Ou as transigdes que vemos diante de nés'seriam apenas alguns exemplos a mais de uma histéria latino-americana marcada por ciclos alternados -de aberturas e de fechamentos? A historia da América Latina estaria condenada a serum movimento pendular, um mpvimento de “sistoles e didstoles”, para usar as expressées do principal estrategista politico do regime militar brasileiro, 6 Genetal Golbery do Couto e Silva? Estariam as transi¢gdes atuais destinadas ao sumidouro de 'mais‘um periodo autoritario? E disso que se fala quando se mencionam as incertezas-da transic¢ao na América Latina. Se é verdade que a democracia nasce dos conflitos emergentes na sociedade e sé tem de ser entendida como um sistema de administragao de conflitos, pode-se excluir'a possibilidade de que, uma vez mais, em nossa hist6ria, ela venha a morrer dos mesmos conflitos que, em teoria, deveriam dar-Ihe vida? Tenho minhas dividas se as incertezas que rondam as transicdes do Cone Sul seriam da mesma natureza saudavel daquelas que Praeworski define como inerentes as regras do jogo e as instituigdes da democra- cia. Até onde posso ver, elas refletem mais 0 sentimento de:angistia de quem vé avolumarem-se no horizonte as nuvens escuras de uma * Rial, Juan, Partidos Politicos, Democracia ¢ Autoritarismo (tomo 1), CIESU, Edi- ciones de la Banda Oriental, Montevideo, 1984. Ver também Gillespie, Charles, Uruguayos transition from collegial military-technocratic rule, capitulo do livro coletive Transitions, organizado por O'Donnell, Schmitter e Whitehead, The Johns Hopkins University Press, USA, 1986. INCERTEZAS DA TRANSICAO NA AMERICA LATINA 7 tempestade que pode chegar a inviabilizar as regras ¢ as instituigdes que a:democracia desejaria ‘estabelecer. Nao ha, evidentemente, como decidir-ex-ante em torno desta questdo, mas creio que seria, no minim, imprudente desconsiderar a possibilidade de um risco tao grave. Faremos a seguir um esbogo sobre 0 conjunto da situagao econémica e social dos paises do Cone Sul. Creio que se perceberd, nas linhas’do:quadro, tao genérico e indicativo quanto o permitem as limitagdes de espa¢o, que as nossas incertezas sobre os rumos da transi¢ao nao s4o-apenas subjetivas. Os riscos existem. Se é assim, a questao central da luta pela democracia nesta parte do. mundo deve ser entendida comora de continuar o processo da transi¢do e como consolidar a democracia. E penso que continuar e consolidar a democracia requer uma perspectiva que permita aprofundar a democracia, dar-lhe raizes no solo social e econdmico dos paises do Cone Sul. Isso para mencionar aqueles paises, como o Brasil e a Argentina, onde a transi¢do ainda ndo chegou a uma democracia consolidada. £ evidente que nos casos, tao diferentes entre si, do Chile e do Paraguai, as dificuldades sao ainda maiores. Nesses dois paises, as expectativas democraticas se concentram hoje na espe- ranca dé um desenlace feliz nas sucessdes (até que enfim pre- visiveis!) de Sttoessner e de Pinochet." Il - _PROJETOS HISTORICOS: OS DELES E OS NOSSOS Depois das grandes mudangas dos anos 20 e 30, os anos 60 e 70 aparecem como outro grande momento de inflexdo na historia da América Latina. E se estes dois “momentos” histéricos podem ser considerados como de grandes embates politicos € porque, para 0 bem ou para o mal, colocaram na ordem do dia das decisGes politicas as grandes perspectivas de mudanga (ou de conservagao) das so- ciedades latinoamericanas. Os anos 20 ¢ 30 assinalam a crise geral das sociedades agrarias tradicionais dos paises do Cone Sul. Os anos 60 e 70 recolhem os frutos da crise e assistem aos primeiros embates visando decidir os rumos da modernidade e da democracia nessa parte do mundo. De modo geral na América Latina e, no que importa * Este texto € de antes do plebiscito no Chile, no qual as oposigdes sairam vitoriosas, 18 LUA NOVA- "SAO PAULO ~ MARGO 89 N° 16 a este trabalho, de modo especifico nos paises mais modernos do Cone Sul, buscava-se, por todos os lados, resposta para as necessi- dades reais, objetivas, do desenvolvimento hist6rico das sociedades latino-americanas. Parte importante dos temas dessas €pocas hist6ri- cas continua vigente no “momento” atual. Oexemplo do Paraguai, aparentemente tao diferente dos outros paises do Cone Sul, vale, melhor talvez do que os demais, para reforgarmos a percep¢ao dos tra¢os de continuidade que persistem entre estes diferentes “momentos” hist6ricos. Apesar de mais proximo da tipica sociedade tradicional latino-americana (ou talvez por isso mesmo), 0 Paraguai, de algum modo, se antecipa aos outros paises. A ditadura do General Stroessner, implantada em 1954, pode ser considerada uma antecipacao, sob alguns aspectos, dos regimes militares dos anos 60 e dos 70, dos paises do Cone Sul.* Stroessner chega ao poder num quadro internacional de forte pressio norte-americana sobre a América Latina, Terminam, nos anos 50, debaixo do clima pesado da guerra fria (agravado pela guerra da Coréia), algumas das tentativas nacionalistas-populares surgidas, em alguns paises, do bojo da crise da sociedade agraria. £ a €poca da politica estilo “big stick”; de Foster Dulles, que.contribuiu para as quedas de Getdlio Vargas, em 1954 no Brasil, de Per6n, na Argentina de 1955, e de Rojas Pinilla, na Colémbia, em 1957. Chegando ao poder nestas circunstancias, Stroessner se consolida a sombra das emergentes ditaduras do Brasil e da Argentina, no novo quadro dos anos 60. A ditadura Stroessner, a de mais longa duragao na América Latina, aparece, portanto, como uma ponte entre duas grandes épocas histéricas.** Nos anos 60, os debates politicos de todos os paises apresentavam, com as variagGes de énfase e de estilo que as diferen- tes circunstancias nacionais impunham, os grandes temas da mu- danga da estrutura da sociedade, da economia e do Estado. O tema da democracia estava presente mas, na maior parte dos casos, em posi¢do de menor relevancia. Mais importantes para a mentalidade da época eram os temas da estrutura agraria, do crescimento (ou “Azevedo, Euclides e Rodriguez, José Carlos, Manifiesto Democratico— Una Pro- puesta para el Cambio, Editorial Araverd, Asunci6n de! Paraguay, 1987. **Acompanho, nas anotagdes sobre o Paraguai, a andlise de Azevedo ¢ Rodriguez, op. cit., Quanto as “derrubadas* deste periodo, convém nao esquecer que a primeira foi a de Jacob Arbenz, na Guatemala, com apoio manifesto € comprovado do governo dos Estados Unidos, © governo americano jé tinha entdo definida, para a América Central, uma politica que continua até hoje praticamente a mesma, com todas as conseqiléncias que se conhece naquela regiao. INCERTEZAS DA TRANSICAO NA AMERICA LATINA 19 desenvolvimento) econémico nacional, dos desequilibrios regio- nais, da‘formaco do mercado interno, das desigualdades sociais, da distribuicdo de renda,-da marginalidade social. A questéo da de- mocracia e.da modernizagao do Estado viriam, talvez, ao fim desta lista. Busco uma forma neutra, se é que isso existe, de formular estes temas precisamente para sugerir que eles surgiam como pontos centrais dentro de disputas e de grandes conflitos hist6ricos sobre os caminhos da América Latina. E que podiam receber solugdes, boas ou mAs, que viriam de qualquer lado dentre as forcas em presen¢a no jogo politico. A propésito, Manuel Antonio Garreton sugere uma idéia interessante para discutir 0 significado das grandes decis6es en- volvidas naquela época. Sobre os regimes militares implantados nos anos 60:€ 70, no Cone Sul, diz 0 socidlogo chileno que eles tiveram ~e ainda -tém, como’parece ser 0 caso do Chile — mais do que uma dimensio de reacio dos movimentos populares e aos regimes democraticos entao vigentes. A evidente excecao 6 a do Paraguai, onde a ditadura militar-civil de Stroessner sucede a ditadura civil do Partido Colorado, nao surgindo pois, do quadro-de um regime democratico em crise. Nos demais paises, além de reagir - em geral de modo repressivo e com extrema violéncia — aos “projetos histéri- cos” da esquerda'e da democracia, os regimes militares também teriarh formulado seu proprio “projeto hist6rico”, em geral de sentido neoliberal e modernizador. Garreton lembra que os regimes militares tinham (e, talvez, ainda tenham,-emi alguns casos).um projeto de reorganizagao da sociedade, de modernizac4o dos seus vinculos com o sistema capi- talista internacional. No caso do Chile, comsua frustrada experiéncia de transi¢ao socialista, 0 projeto militar envolveria a reinsercio do pais nos marcos do sistema capitalista. Em alguns casos, como é, notoriamente, oda Argentina de apés 1976, o “projeto hist6rico” dos militares envolve a idéia sinistra — alias de ressonancias nitidamente totalitarias, em que pesem suas origens supostamente liberais - de que:eles estariam diante de uma sociedade enferma, como tal merecedora de tratamentos de choque e de um empenho de rege- neracdo sob diregao das Forgas Armadas.* *Garreton, Manuel Antonio, “The Political evolution of the Chilean military regime and problems in the transition to democracy”, capitulo de Transitions, j4 citado. Para uma anilise do caso argentino, Cavarozzi, Marcelo, Autoritarismo y Democra- cia (1955-1983), Centro Editor de America Latina, Buenos Aires, 1983. 20 LUA NOVA~ SKO PAULO ~ MARGO 89 NP 16 Aqui se colocam alguns problemas bastante significativos para o conhecimento da realidade dos paises do Cone Sul: Em todo caso, problemas muito importantes para enfrentarmos.o tema da transigao democratica e de suas perspectivas de consolidagéo. O primeiro deles pode ser formulado da seguinte maneira: até que ponto os regimes militares tiveram éxito em seus projetos de mudar a sociedade? Eles mudaram a sociedade segundo seus préprios Projetos ou eles fracassaram em seus proprios projetos? No plano econémico, pelo menos, creio que se pode admitir que ha um caso claro de éxito: o do Brasil. E ha um caso claro de fracasso: o da Argentina. Que dizer dos demais paises? Que dizer do plano social? E do plano politico e ideolégico? Assinalo, a propésito, que a dimens4o de “projeto histérico” dos regimes militares foi, no inicio, um projeto anti, nao um projeto afirmativo, de direito proprio. Na linguagem deles, foi um projeto antiestatista, anticomunista, antipopulista e anti-revolucionario. E foi também, embora em momentos muito.especificos e como bandeira de minorias menos significativas, um projeto confessadamente anti- democratico, de cunho fascista ou: corporativista. Como se sabe, € como é prdéprio da légica perversa dos movimentos reacionArios, eles. derrubavam.a democracia em nome da defesa da democracia. Em todo caso, 0 que importa aqui assinalar é que os. projetos dos regimes militares foram, na origem, uma reagao ao projeto histérico (ou aos projetos hist6ricos, porque em verdade eram e continuam sendo diferentes) que os. movimentos nacionalistas-populares, os movimentos revolucionirios e os partidos democraticos. socialistas propuseram as, sociedades do Cone Sul nos anos 60 e, em alguns casos, em inicios dos. anos 70. Isso significa que a pergunta que se faz acima sobre os projetos deles se desdobra em uma pergunta sobre os mossos pro- jetos. No “momento” atual, isto é, nos anos. 80, nesta fase das transigdes do Cone Sul, o que permanece dos nossos projetos dos anos.60?:Na busca das respostas,a estas perguntas.talvez possamos encontrar as.pontas do fio que nos permitiriam desenredaro.novelo das nossas incertezas atuais quanto aos. rumos do: processo: de transigao democratica. H4 um. balango hist6rico a ser feito para definirmos o quanto mudaram as sociedades do Cone Sule 0 quanto tais mudangas pesam, para o bem ou para.o mal, sobre as possibili- dades da democracia e das perspectivas de mudanga destas. so- ciedades, INCERTEZAS DA TRANSIGAO NA AMERICA LATINA 21 Em primeiro lugar, uma constatagao importante: a unidade possivel dos paises do Cone Sul est4 no terreno da questo da democracia, Esta observacio, felizmente de sensocomum hoje entre os demtocratas e as esquerdas dos paises da regiao, diz uma verdade relevante.* E uma verdade que ndo apenas define objetivos mas também descreve realidades. Dizer que a unidade possivel dos paises do Cone Sul esta no terreno da questéo da democracia significa também dizer que os regimes militares nos legaram estrutu- ras autoritarias de Estado muito mais consolidadas do que as que existiam. antes deles. E estruturas autoritarias que nos incumbe mudar. Mas significa algo mais: que, depois das experiéncias dos regimes militares, a questo da democracia adquiriu, no pensamento dos democratas e da esquerda em geral, uma relevancia que nao se conhecia nos anos 30 nem nos anos 60. Esta semelhanca de condicao politica implica em uma alteragao do préprio conceito do Cone Sul, com a inclusdo. do Paraguai e do. Brasil no clube. Evidentemente, quando. decidimos considerar o Brasil e o Paraguai como paises do Cone Sul, perdemos algo da clareza sociolégica da época em que podiamos falar do Cone Sul como constituido de Argentina, Chile e Uruguai, precisamente os paises mais urbanizados, industrializados e modernos da América do Sule, em verdade, de toda a América Latina. Esperemos que o que se perde em clareza sociologica possa ser compensado em clareza politica. Trata-se, em todo caso, de uma clareza amarga. Se 0 Paraguai tem o discutivel privilégio de haver-se antecipado aos deémais, com o-cesarismo militar-civil de Stroessner, o Brasil tem o privilégio, nao menos discutivel, de inaugurar a fase das ditaduras latino-americanas de padrao.moderno. Comegam ali, em 1964, os famigerados regimes burocratico-autoritarios, os quais se apéiam mais, no, poder. burocratico e na capacidade. de violéncia das insti- tuigées militares do‘ que no poder pessoal, discricionario, de um chefe militar de estilo caudilhesco tradicional; Foi depois do golpe de Estado de 1964, no Brasil, que tais regimes burocratico-autoritarios + Spoeret, Sergio, “Buolucién ‘socio-politica en el Cono Sur”, revista Leviatan, n® 23/24, 1986, p. 96. Este autor observa que nos paises do Cone Sul, "pese a la diversidad de situaciones nacionales—un tema es comun y prioritario: la democracia” ©.96). ved LUA NOVA~ SAO PAULO - MARGO 89 'N® 16 se estenderam também para a Argentina (1966), a (1973) e Uruguai (1973).* Se estamos em‘situagado semelhante. quanto: oe politico fundamental —a luta da democracia contra a ditadura —nao creio que possa dizer o mesmo dos critérios.econdémicos e sociais. Quando se consideram os aspectos econémicos e sociais, a diversi- dade do'Cone Sul aparece com enorme nitidez; E aqui nao se pode minimizar.os resultados da anlise comparativa dos éxitos e dos fracassos. dos regimes militares, Depois de tanto tempo de domi- nagao'militar, a realidade destes paises 6, em boa parte, eS obem € para o mal, “fruto” da dominagio militar, Fernando Fajnzylber, em ‘excelente trabalho apresentado ao Forum Cone Sul, realizado no Uruguai, em 1986, enfatiza impor- tantes diferengas no processo de crescimento do Brasil quando comparado com a Argentina, 0 Chile e o Uruguai. Segundo 0 autor, estas diferengas levam.a caracterizar, do lado do Brasil, odinamismo. econémico, e do lado dos paises modernos do Cone’Sul, o estan- camento, E as explicagGes‘destas diferengas deveriam ser buscadas nos regimes militares. “O: primeiro aspecto a destacar na politica neoliberal aplicada aos paises do Cone Sul (ele se refere especifica: mente a-Argentina, Chile e Uruguai) seria a dramatica érosao da (sua) posigao com rela¢o tanto ao Brasil’como ao conjunto da regido (ele se refere aqui a América Latina); em 1950; a Argentina, Chile e Uruguai geravam 32% do produto interno bruto da América Latina superando quase em 50% a dimensao econémica do Brasil; em 1983, sua gravitacdo relativa se havia reduzido a 16% com relacdo a América Latina e equivalia a praticamente metade do Brasil. Em-1950, a Argentina tinha uma participa¢do no: PIB regional: levemente superior a do Brasil e na etaneeee este Gltimo pais praticamente'a triplica.”** i Num estudo especifico. sobre o Brasil, Wanderley Guil- herme dos Santos chega a conclusdes:semelhantes quanto a intensi- dade‘do-ritmo da industrializagaove’ da‘urbanizacio ‘brasileira: nos Ultimos trinta anos, O-crescimento industrial brasileiro s6 €:com- * Existe ampla literatura sobre estes regimes, tanto os da América Latina quanto os da Europa do Sul. Ver de O'Donnell, El Estado Burocratico Autoritario, Editorial de Belgrano, Buenos Aires, 1982. Também de O'Donnel, Schmitter¢ Witehead (organizadores), Transitions, jé citado, * Fajnzylber, Fernando, "Reflexién sobre limites y potencialidades econdmicas de la democratizacién”, Forum Cono Sur, ILDIS, julio, 1985. INCERTEZAS DA TRANSICAO NA AMERICA LATINA 2B Pparavel ao da URSS, entre os anos 20 e os anos 50, ao dos Estados Unidos da passagem do século XIX para o século XX e ao da Inglaterra da revolucdo industrial. Constatada a diferenga de ritmo, anote-sé¢ que ela conduz a uma paradoxal aproximacdo entre esses paises. Ha um encur- tamento das distancias estruturais entre o Brasil e os trés paises de moderniza¢gao mais “avangada”, Argentina, Chile e Uruguai. Con- forme sugerem alguns indicadores s6cio-econémicos da CEPAL, talvez o.mesmo raciocinio valha também para outros paises com- pardveis a0 Brasil, isto €, paises de modernizacao “atrasada” — ou, se se-quiser, de modernizacao recente ¢ rapida — como a Colémbia ou 0 México. Enecess4rio acrescentar que também existem, ao lado das diferengas, semelhangas estruturais muito significativas. Paracomegar, todos os paises da regiado estao afetados gravemente pela divida externa. Todos eles, assim como os demais paises da América Latina, sofrem 0 peso da depressio atual, de 1987 e 1988, assim como sofreram pesadamente os efeitos da de 1980-1983. SegundoaCEPAL, esta ultima foia pior deste meio século, derrubando os niveis de vida, em 1983, aos.padrdes de 1977. Mais ainda: o PIB por habitante caiu 16% no Uruguai, 12% na Argentina, 11% no Chile e 9% no Brasil. Segundo dados de 1985, relatados por Fajnzylber, a Argentina, Brasil, Chile e Uruguai estéo quase no mesmo nivel quanto a renda por habitante, entre 2.240 e 2,650 délares (metade da renda por habitante da Espanha, 1/4 da renda por habitante do Japao e da Inglaterra, 1/6 da renda por habitante dos Estados Unidos e da Suécia). Mais do que uma aproximag¢4o estrutural, trata-se de uma aproximagio quanto aos efeitos da crise, Persistem diferengas im- portantes entre os paises do Cone Sul quanto aos indices de desigual- dade social, muito maior no Brasil do que nos demais, O que nio impede, na constata¢ao de nova diferenca importante, o reconheci- mento de que o éxito econémico do regime militar brasileiro es- tabeleceu também as premissas de mudangas culturais e politicas relevantes. Longe de ter uma cultura politica democritica aoestilodo Uruguai, 0 Brasil adquiriu, contudo, como efeito do intenso processo * Santos, Wanderley Guilherme, “A Pés-Revolugdo Brasileira”, capitulo em livro coletivo organizado por Helio Jaguaribe, Brasil, Sociedade Democratica, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1985. Ver também de Wanderley Guilherme dos Santos, Crise e Castigo. 24 LUA NOVA~ SKO PAULO = MARCO 89 N®16 de crescimento econémico, aspectos de uma cultura econdmica de tipo capitalista. Como assinala Luciano Martins, o Brasil das dltimas duas décadas foi tomado por uma notavele historicamente surpreen- dente generalizacao do ethos capitalista.* Em que pesemas restri¢des da populagao ao regime militar, o sistema econdémico capitalista alcangou, neste periodo, uma grande aceitagéo popular e, deste modo, uma legitimidade muito mais notavel do que em qualquer outra Epoca na histéria do pais. £ obrigatorio reconhecer que se trata de um éxito politico e econdmico do regime militar brasileiro; quando comparado aos congéneres latino-americanos. £ certo que se trata de um éxito relativo em mais de um aspecto, Como observa Wanderley Gui- Iherme dos Santos, 0 crescimento econémico-industrial brasileiro de padrao moderno nao comeg¢a com o regime militar, mas vem desde os anos 50, desde Juscelino Kubitschek pelo menos, A propésito; os cAlculos sobre o ritmo do crescimento brasileiro retroagem, habitu- almente, aos tltimos quarenta anos, iniciando-se, portanto, nio com a ditadura de 1964 mas com a retomada da democracia no segundo ap6s-guerra. Mas esta observacdo, importante em si mesma, nao impede réconhecer, de novo acompanhando Wanderley Guilherme; que a intensificagdo do crescimento econémico ocorre nas décadas de-60'e 70, isto é, durante o regime militar. : © desempenho dos regimes militares nos demais paises significou o desastre total, como no caso da Argentina, ou assinala éxitos menos expressivos. Ha registro, para o caso do Uruguai, deum crescimento de 4,2% entre 1974 e 1980,.¢ ha anotagdes semelhantes também para o Chile, em diferentes momentos. Ha mesmo quem fale do periodo de Pinochet como de uma “revoluci6n invisible” no plano econémico,"* Isso, porém, nao muda 0 quadro geral de fracasso'dos regimes militares daqucles paises em scu proprio projeto de conferir um novo perfil & economia’e & sociedade, Sobre o Uruguai, diz Juan Rial: “No estamos no Uruguai como no caso do Brasil, onde o dinamicosul-litoraneo quebrou oanterior estilo'de desenvolvimento da industrializagdo substitutiva de importagées e onde a industriali- zagao aliada ao capital transnacional comoveu profundamente a sociedade”. Algo de semelhante se poderia dizer sobre 0 Chile. * Luciano Martins em Semindrio do CEDEC, 1987. ** Refiro-me a Chile, Revolucién Silenciosa, de Ricardo Lavin, Editorial Zig Zag, 1987, Santiago, Chile, que descreve aspectos da modernizacao do Chile sob Pinochet.

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