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Quadros Mecinicos Fisionomias urbanas Uma paisigem dentro de uma caixa de vidro, pendurada na parede. Em primeiro plano, criangas brincando junto ao porto, mais atris, duas mua- Iheres se dirigem as barracas da feira, sob as arvores ¢, ao fundo, a torre da igreja se destaca contra © céu cos ~ os barcos, a roda digua, o catavento, as © mecanismo do relégio poe em movimento = aos sola jjanelas e as pessoas, Uma paisagem meciniea Una paisagistica do urbano esti se esbogando aqui. Mas nio seu 4 de um quadro que se abra, como uma jancla, para espeticulo da cidade. O que vemos & um dispositive dtico-mecinico. O modelo de paisagismo de Benjamin é o do pintor de panoramas, £ nas galerias, nos dioramas, nas exposigdes universais € nos interiores que vai buscar os componentes da paisagem O quadro me Ali se passa de um tempo a outro, de uma dimensio a ro plano ¢ fundo, entre retrato do cotidiano nico é um dispositive de passagem. Tudo esti contido nel ‘outra. Ligagio entre prime! © imagem de terras longinquas, entre pintura ¢ aparelho dtico, entre © real ¢ a ilusio. Intersec¢io ¢ iro ¢ 0 cenirio de feira, entre a tre © qua literatura de folhetim ¢ 6 museu de cera, entre a obra de arte dni caca reprodugio técnica, entre miniatura ¢ arquitetura, entre o jogo de armar © a cidade. Passagem entre pintura ¢ arquitetura ¢ fotografia e cinema ¢ urbanismo. quando entram em crise 0s siste A cultura contemporiny mas modernos de pensar ¢ ver que até ha pouco garantiam a identidade © 0 lugar das coisas, remeteria a estes antigos dispositivos. Assim & que a 81 produgio artistica mais recente, como os reiratos compésitos de Rosin- nt gla Rennd € o cinema fenakistocépico de Jorge Furtado, reconstitu m os quadros mecinicos, O olhar contemporineo vai partir daqueles velhos mecanismos Uma mutaga na primeira metade do século XIX = quando o olhar direto passa a ser substituido por priticas 1 cessencial na natureza da visualidade ocorreria \, 11s visuais no fazem mais ne- que as ima nhuma ret feréncia a posigio de um observador no mundo, Uma reorga- nizagio da visio, que produziria um novo tipo de observador, um novo 0 no campo de visio heterogénco regime do olhar. Uma transforma que ecoaria um século depois, com a fotografia ¢ o cinema, e reafirmaria hoje sua atualidade, com a implantagio de espacos visuais fabricados pelo computador ¢ a imagem eletronica'. a Umna nova modalidade de espectador toma lugar, quando se passa da camera obscura ~ paradigma da visio nos séculos XVII ¢ XVII = 82 sosmecinios POF OS aparelhos dticos, em particular 0 estereoscépio. Os aparelhos de producio de efeitos “realistas” na cultura visual de massa eram na verda de baseados numa radical abstragio ¢ reconstrugio da experiéneia dtica. © olhar ganha uma mobilidade ¢ uma intercambialidade sem preceden- tes, abstraido de qualquer referente ou lugar Surge um “observador ambulante de novos espa formado pela convergén- ade existir a 10s urbanos, tecnologias ¢ imagens. Dei propria posibilidade de uma postura contemplativa. No hi mais um acesso Ginico a um objeto, a visio é sempre miiltipla, adjacente, sobre- pondo outros objetos, Um mundoven que tudo esti enrcirculagio. Essa mutacio nos principios da visualidade, pelo desloca- mento do observador, ji estava esbocada antes: as vistas de Veneza por Canaletto apresentam uma cidade que s6 é inteligivel como uma arti- ~ \ qulagio de mniltiplos pontos de vista. Variagdes que fagam as coisas afloraremy deste-espago-confuso, organizando-as como num cenirio. Proprias de uma cidade barroca, textura aberta sem referéncia a um significante privilegiado que Ihe dé orientagio ¢ sentido, Nao por acaso tas urbanas de Canaletto sio uma referéneia para os arquitetos con- asv temporineos que se defrontam com metropéles desprovidas de centro € perfil A pluralidade de vistas foi condi 0 para a formagio de um observador competente para consumir as vastas quantidades de imagens ¢ informagdes que comegavam a ser postas em circulagio no século XIX. Densidade ¢ complexidade que também caracterizariam a ima- gem contemporinea, determinada pelo sual € con= ideo. O campo vertido numa superficie de inscri¢io,em que um amplo leque de efeitos poderio se produzir. Uma nova disposi¢io da paisagem — uma nova visualidade — afirma-se aqui, Uma superticie planar, desprovidarde profindidades em que os clementos sio justapostos. Onde 0 olhar se desloca lateralmente, multiplicando o& ponros Um espago de agre perspectivas ¢ linguagens. A paisagem convertida num daqueles antigos cenirios automiticos dentro de uma caixa de vidro, um quadro meci- ©. sagio de virias Mas os instrumentos do ver podem apre metrépole? Esse paisagismo urbano esti assentado em aparatos dtico- rider a imagem da mei anicos — os dioramas, os cenirios pintados em barracas de tiro a0, alvo ¢ 0s cartdes-postais de celofane ~ que ainda vacilavam nos limites do mundo moderno. O retrato da cidade é tragado no universo menor ¢ profano dos dioramas ¢ decalcomanias'. Esta idéia de que é nos objetos mais banais do mundo cotidia- no que foi se aninhar o sublime das grandes paisagens cristaliza-se mais claramente no surrealismo. Caber-lhe-ia a gloria de ter primeiro pres- sentido a cnergia contida naquilo que é “antiquado”, nas primeiras construgdes de ferro, nas primeiras fibricas, nas fotografias mais antigas, nos objetos que comecam a cair em desuso. Ninguém até entio tinha percebido até que ponto a miséria da arquitetura ¢ dos interiores podia se converter no seu contririo, O surrealismo resgata esse horizonte ur- bano vulgar ¢ desolador. Ele di voz a este mundo de coisas, em cujo centro esti a cidade", O flincur é este novo observador. Com sew passo lento ¢ sem direcio, ele atravessa a cidade como algu ma, observando calmam caminho. Com esse seu jeito de passear, como se re m que contempla u m panol te Os tipos © os lugares que cruza em seu” colhesse espécies para uma verdadeira tipologia urbana, ele esti "a fazer botanica no asfalto"™ Ele faz“um inventirio das coisas”: 0 trabalho de classificagio caracteris- tico da época. Nio por acaso surge ao mesmo tempo que as chamadas"fisio- logias”.um género literirio popular que se dedicava a descrever os tipos humanos que se podiam encontrar na rua ¢ todos os cenirios urbanos | “a € Z ae”? ap ler , . 9.2” “ possiveis em que se poderia viver, Pode-se dizer entio que, uma vez na \ rua, noso caminhante “olha a sua volta como em um panorama”. Ese modo de andar na cidade, a arquitetura das gale 5.0 dispositive dtico- mecinico dos panoramas, das feiras ¢ dos jogos infantis constituem mo- dos combinados de ver a cidade. — Sosicbinbunados deivex 2.ciuader ee Z Trata-se, diz Benjamin, de uma literatura panorimica: os fo Ihetins imitam “o primeiro plano plistico ¢,com seu fundo informativo, © segundo plano largo ¢ extenso dos panoramas”. Como um tableat écanique. As fisiologias pertencem 40 mesmo universo dos herbirios ¢ das colegdes. Ao caducarem, no século XVIII, os antigos modos de relacionamento ¢ hierarquizagio das coisas, cria-se um novo espago,em que as coisas agora se justapdem. Um espaco de vizinhanga em que tudo pode vir se colocar, onde 0s seres se apresentam uns ao lado dos outros. O jardim botinico, os acervos zooldgicos ¢ 0 gabinete de histéria natu- ral apresentam as coisas num quadro*. 84 as mecinics _ © género do tableau & a forma preferida dos folhetinistas ¢ historidgratos nos séculos XVIII ¢ XIX.O quadro permite, em pouco espago. por em Cena usos € Costumes, Caracteres sociais ¢ conflitos, Mostrar a fisionomia da grande cidade, condensando num instantineo — $F Complexa simultancidade, Dai prestar-se 4 mistura de géneros. O tableau wrbano, esse género conciso, é apropriado para satisfazer simulta~ neamente os diversos tipos de abordagem’. Ele configura pontos topo- grificos do mapa de uma cidade com toda a sua carga arquitetdnica, historica, simbélica ow resultante da expe © tema da fléncric implica uma teoria da visio, Justamente para que nio se trata mais de um olhar imediato, como o daquele que ire usa o termo flinewr para definir 0 nein ncia ¢ da memoria pessoais. most contempla uma paisagem. Baudel tipo de observacio que cle admira no pintor parisiense Consta Guys, recorrendo para isso a anotagées feitas por Poe. Benjamin observ Baudelaire observando, por meio de Poe, o pintor. Ele usa a figura do transcunte ¢ a poética baudelairiana como lentes através das quais se pode ver a vida parisiense. Paris, o objeto da pintura de Guys, é trazida a0s olhos do leitor através de uma série de mediagdes’ O flineur aponta para 0s limites do realismo do século XIX. Combina o olhar casual daquele que passeia com a observacio atenta do detetive, vé a cidade ampl'como uma paisagem ¢ fechada como um quarto: instaura um modo complexo de visio, construido através de ni | sobreposigdes ou seqiiéncias de diferentes formas de espago, de deseri- gdes, de imagens, Moore , hens ~Fbeben ~ le Tabla dt Pr A experiéneia da flinerie transforma a rua num aparato ético ~ semelh nte as arcadas ¢ aos panoramas. A rua como um dispositive do ‘+85 olhar. Essa idéia de um espago ¢ um sujeito dticos — em que 0 centro (fixo) é substituido pelo ponto de vista (para varias direcdes) — cialmente barroca esen= Tudo entio se justapde, todas as dimensdes se encaixam no mesmo quadro, Se, por um lado,a cidade se abre como um espago sem mites ~ paisagem ~, por outro, também se encerra numa redoma fe= chada ~ 0 quarto. Um teatro mecinico, uma barraca de feira. A rua convertida em interior: as butiques pa © proprio protagonista da experiéneia urbana integra-se a 1 armarios. ce esse cenirio. A figura do fléncur avanga sobre a calgada de pedra “como se ele fosse animado por um mecanismo de relojoaria”. © passante & um personagem dese presépio, dessa pintura mecinica, Um autémato: ‘seu coragio assume a cadéncia de um relogio” Dai o fendmeno de sobreposicio (colportage) do espago ser a 85 experigncia fundamental daguele que passeia, A expressio remete 4s coisas de menor valor, dessas vendidas em grandes quantidades em feiras ~ colporter ¢ anunciar, atividade do mercador ambulante, que ven= de quinquilharias. Alude is formas populares de representagio, conto as pinturas de barracas de parques de diversio ~ centrais na teoria da arte moderna cm Baudelaire. O efvito permite perceber simultane mente tudo 0 que-acontece potencialmente_num_ mesmo espago Implica condensagio de diversos eventos num s6 lugar ou narrativa, A colportage junta todas as coisas como num quadro taxindmico, Noti- vel a atualidade do fendmeno: a imagem contemporinea é também uma justaposi¢io ~ em contigiiidade — de diversos suportes, tempos ¢ dimensd BS Desde 0 Renascimento, com a perspectiv: percebidas como distribuidas no espaco. O olhar percorria a extensio vendo antes o que esti em primeiro plano, depois o que vem mais atris, 56 por fim 0 que est no fundo. O olhar avangava em profundidade, se esta num fazia no tempo ¢ no espago. Aqui, 20 contririo, tudo 0 qui determinado lugar é percebido simultaneamente. O espaco perde suas coordenadas, fundo se confundindo com o primeiro plano: Como faziam as historias de folhetim da época ~ chamadas de colportage ~ que mostravam terras exoticas como se fossem familiares, misturando o prd~ ximo ¢ 0 longinquo, o passado ¢ o presente. Tudo = tanto o que esti na frente quanto ao fundo ~ é visto. ao mesmo tempo. Hi flt 2 Ndi. war 2 & \@ Quadros mecdnicos Isso porque, na flancrie,"*as dist

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