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0 din em que comemes Mavia Dulee Antigamente, sim, antigamente, tu preparavas para ‘mint caramelos de ca, de limdo, caramelos recheaddos que eu retirava da boca e punha-os contra o sole eles se abriam em vitrais gosmentos que a saliva dissolvia ‘aos poucos. Depois, depois vinha o melhor, a lingua escamoteava no caramelo ~ como se estivesse revolven- do residuos da cérie de um dente. Sérgio de Castro Pinto” Quando aconteceu, viviamos tempos dificeis. Escassez de alimentos, a colheita infeliz no campo, a seca torrando a terra, a pele e as esperangas dos sertanejos. O prefeito decretando estado de calamidade piblica. Os homens e as mulheres de muitos filhos, dividindo 0 teto com a fome, saqueavam, desesperados, quitandas, armazéns ¢ feiras livres. Matavam e morriam pelo que lhes garantisse um prato de sopa. (© reumatismo que tomara uma das pernas de ma- mie 0 aleijao numa das suas maos tornavam-na incapaz de muitas atividades. Meu pai, que nunca vi, deveria estar morto ou muito Longe. © que dava na mesma. Bem cedo aprendi a odid-lo, gracas ao retrato das suas ages pintado por mamie, © casebre a0 lado da ponte nos servia de morada desde que nasci, Faganha das grandes viver naqueles dias, ‘Abandonara sala de aula, vez que a merenda escola, nico atrativo que li me pend, o governo no enviva hd muitos meses. Nas iltimas semanas, a gente sobrevivia da incerta sgenerosidade dos vizinhos. Depois que os problemas de satide detiveram mame em casa, rejeitada nas Frentes de ‘Trabalho de Emergéncia por ser pouco produtiva, a solusio foi ela fazer cocadas, tapiocas e beijus, saindo eu ‘41a para vende-los. Mas ninguém tinha dinheiro. Muitas veres eu chegava em casa chorando, impotente. Meninos maiores, homens-feitos mesmo, comiam o produto sem agar; tiravam-no a forca, me batiam de sobra. Desistimos, Azar da barriga. Pedir, a gente nio pedia, que mamae ‘morria de vergonha. Quanto a mim, qual o problema, se as tripas ndo fazem ceriménia para denunciar 6 oco no estOmago? A ameaga de uma surra de largar a pele me continha. Entio era ficar esperando, com a tristeza na ara, aoportunidade de alguém perguntarsea gente tinha comido ¢, ante 0 nosso silencio, nos dar qualquer coisa. © que nio era tio comum. As pessoas tém os seus problemas, Para que se ocupar com os dos outros? Ainda ‘maisnaqueles tempos. As vezes, nio seousava nem mesmo ‘um bom-dia, como diz poeta, Costumava sair a zanzar com a meninada. Vez.o4 coutra,em jogos e divertimentos, ganhava deles um naco de pio, um biscoito, um pedaco de doce, cuja metade levava para mamae enganar a boca com um copo dgua. ‘Accompanhia de outrascriangas me distraiafazendo cesquecer muitas mazelas, inclusive a fome, Brincar me trazia a ilusio, ainda que momentines, da felicidade, A melhor das brincadeiras consistia em nos embrenharmos pelas capociras, bem longe dos olhos de adultos e de ment nas boateiras e, todos nus, nos abandonarmos 20s toques ce caricias, nada a ocupar-nos os pensamentos. ‘Num dia desses, conhecemos Maria Dulee. io se sabe como nos descobriu. Certo era que tinhamos eandidato a admissio no grupo. Ser accito alt implicava passar por uma variedade de testes com o fim de provar ndo ter o bucho furado, a lingua solta. A orga- nizacio era metédica, com regrasrigidas. Sempre variar de lugar. Nunca sair em bando, mas um apés outro, dis- ‘retamente, até estar todo mundo reunido, Um adulto nos encontrasse, eacabava os. Li estava ela, os olhos enormes de ameixas secas, envolvendo acena em surpresa ¢arrebatamento, Os trajes ‘no nos traziam uma menina das nossas. Naoera do barto. Nem da cidade, nem da regio, talvez nem do pais. Foi o que nos revelou seu jeito de falar. Em tudo contrastava Oem que comemas Maria Dee conosco, a maneira de ver 0 mundo, a condigao social Diferentemente do que aconteceria se diante de nés estivesse outra pessoa ou mesmo animal, sua presenga nao ros incomodou em absoluto, Continuamos a agir como se sozinhos, Melhor: a0 adotar a atitude de presumi-la invisivel, mais tomava gosto o que faziamos, Dia seguinte, foi nos encontrar no lugar e horério que combinamos aos cochichos, longe dela. Agimos de :modo idéntico ao dia anterior. Mas por pouco tempo. Atéo instante em que ela, rindo, me estendeu uma fata de torta cde maga com recheio de passas, Trazia consigo uma ces- tinha e igualmente distribuiu para cada um de nés doces, pastéis, bombons, chocolates, piezinhos de coco, biscoitos. Fuio primeiro amigo que conquistou, jé quea mim tinha distinguido em primeiro plano. Além disso, a0 des- cobrir que eu comera sé metade da torta levando a outra para minha mae, passou.a trazera minha parte em dobro. Aquilo me enterneceu a ponto de dar um né na garganta e queimar os olhos. Maria Dulce dizia-se filha de um homem muito rico, dono de uma rede de pastelarias einckistrias de doces, com filiais até no estrangeiro. Que estava aqui desde a véspera com 0 fim de dar expansio aos seus negécios. A partir daquele dia, 0s atos tomaram outro rumo. [Nossa sociedade secreta passoua reunir-seali para esperar Aniinio Mariano Maria Dulce. Ela chegava na hora certa e nos maravilhava a todos com diferentes iguaras. Os prazeres da carne, ma~ ravilhas do est6mago, Nenhuma diferenca. Ao comermos as coisas de Maria Dulce, ago de sobre-humano, delcio samente estranho, nos envolvia. ‘Apenas no primeiro dia, presos @ mecinica dos

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