You are on page 1of 21
6 BLNVIDINI V¥OLNOSE TOTAVTD olaay 0 anb ainawsouaisod aigorsap arunjd svyy olduidyC) psof vioupy vp osinsucs tun vind sojuor ap awuinjos wn viaua ‘v20d9 vussata UNE “pay some, v1 -sjsa1 vu squauypvdiouisd ‘Sooppried sossensp wa sono? sttas ap sundjy 4109 -yqnd v ossud ‘youonvyy viouaSy vu opuvyjyqusl “Soyjoquss Shas Wipe v assasndsip as manb ap vosng wa ajuaumesou anued v apiap 2s 22110[-) anb ‘ousijeusol ou vssas8ui opuvnb “ov6} ap uv ou atuauos 7 _, 19621289 ap vyno.ian BYU anbios, ‘vf? op -unBas ‘opines mia o-opuvlsin ‘QUUvIsA Up Spat 0-apHO2sa 2 OYfYAVAI 0109 -ygnd ma vsuad ope ‘ommrastua ‘aa vssacy @O1I PUTUEL axqog MpHyninuL ‘soi sas ua w5ad wisn ‘ousepe) ap swYfo] $94 we “asai2se ‘MISISSY ap Bs -vqvov enb oimar ap opSummasasdy vin sod wpvadsus ‘souv asou soy (y sagsosuas usesa snaui so a ““opinby 9 oss} 2 "Zan vusn via sMUssH uBIZIp $0110 SQ), ‘Sop -vuorafas wvtsas p2uNH solo? shes svyAy “svSuvis2 4od switiIsa SYLIgISIY ‘svaraf-swuuinb sv “eavayqnd anb orpoued mn ‘oonqureuzey 3p OEIC 0 vind oyuamsvjnBes viaua anb ‘sojuor sundjy ovina sanairsa vw wssyg +, oank wgquivt na -apiap a ‘opni ap sysi 4od sorny mn wiavy anb aiqorsap vja ‘vpoyyrons -vIyy ‘aosvu ank wsjo9 ‘oy onto? ‘a1onap mod, 249 OYU O40} anb op -vjanas tof ayy ‘vuruou bpuy ‘onb wa oinswoUs o vpiored nIsy “SoIuauodep Shas ap wun wa arusa[D wsomausas ’,vavjnguy vl 1a souD a1a5 So psec, “sopputpa OURU So1j19S0 SUNB{p 109 OMSalU a ‘SwIStAad 9 SvUsol WA sopujgitd soiuo stassazap mo? “odusai sivin vy opvSauos viavYy apypian va Vupsaly oping -oad DNS SUA $b) we “oxeBeaqas oRSeIO9 Op OUay ap oySvaygnd py mod ‘souv $x Sov vininsaty vu aanamsppioifo noastsa s0}7adsy] ae] QLNVIDINI VUOLIMOST FOIMUVTID YOTALIEVD aS ndo chegara até a editora ¢, deste modo, os contos ficam fora da premiacao 2 permanecem inéditos até 1978, ano em que sdo publicados postumamen- te na antologia A bela e a fera (com excegdo do conte “Mocinha”, publi- cade em joraal em setembro de 1944 ¢ inserido por Clarice em A legiao estrangeira, em 1964, sob o titulo de “Viagem a Petropolis"). Na verdade, Clarice cogitara publicar estes primeiros escritos ainda na década de setenta, mas suprimira dos originais alguns deles (“Mingu’; “Didrio de uma mulher insone’; “A crise”; “Muito feliz") e, serdo assim, estes contos se perdem para sempre. O escritor Affonso Romane de Sant’Anna recorda-se que eles haviam sido arrancados quando Clarice lhe envia uma copia datilografada, pedindo seu parecer sobre uma posst- vel publicagdo. Na presente edi¢éo encontram-se reunidos quatro contos inéditos de Clarice Lispector: "© triunfo”, primeiro texto de sua autoria a ser publica- do, en 25 de maio de 1940, no periédico Pan; “Eu e Jimmy” (40 de outu- bro de 1940) e “Trecho” (9 de janeiro de 1941), ambos em Vamos Lér! ¢ “Cartas a Hermengardo” (30 de agosto de 1941), publicado na revista Dom Casmurro. Nos quatro contos, 0 tom intimista, confessional e subjetivo que mar- caria sua obra jd se encontra presente; assim como é possivel observar em cada um deles a construgdo de personagens femininas que anseiam por liberdade e autonomia, num mundo ainda predominantemente criado por € para os homens. 10 Outros Escrrros O TRIUNFO* O relégio bate 9 horas. Uma pancada alta, sonora, seguida de uma badalada suave, um eco. Depois, 0 siléncio. A clara man- cha de sol se estende aos poucos pela relva do jardim. Vem subindo pelo muro vermelho da casa, fazendo brilhar a trepa- deira em mil luzes de orvalho. Encontra uma abertura, a janela. Penetra. E apodera-se de repente do aposento, burlando a vigi- Jancia da cortina leve. Lufsa continua imével, estendida sobre os lengdis revoltos, os cabelos espaihados no travesseiro. Um brago cé, outro 14, cru- cificada pela lassidao. O calor do sol e sua claridade enchem o quarto. Luisa pestaneja. Franze as sobrancelhas. Faz um trejeito com a boca. Abre os olhos, finalmente, e deixa-os parados no teto. Aos poucos o dia vai-lhe entrando pelo corpo. Ouve um ruido de folhas secas pisadas. Passos longinquos, mitidos e apressados. Uma crianga corre na estrada, pensa. De novo, o siléncio, Diverte-se um momento escutando-o. E absoluto, como de morte. Naturalmente porque a casa é retirada, bem iso- lada. Mas... e aqueles rufdos familiares de toda manha¢ Um soar de passos, risadas, tilintar de lougas que anunciam o nascimen- to do dia em sua casa¢ Lentamente vem-the A cabega a idéia de que sabe a raz4o do siléncio. Afasta-a, contudo, com obstinagao. De repente seus olhos crescem. Luisa acha-se sentada na cama, com um estremecimento por todo o corpo. Olha com os * Pan, Rio de Janeiro, n? 227, 25 de maio de 1940, pp. 11/13. CLEARICE ESCRITORA INICIANTE i olbos, com a cabega, com todos os nervos, a outra cama do apo- sento. Esta vazia. Levanta o travesseiro verticalmente, encosta-se a ele, a cabeca inclinada, os olhos cerrados. E verdade, entéo. Rememora a tarde anterior ¢ a noite, a atormentada e longa noite que se seguira e se prolongara até a madrugada. Ele foi embora, ontem & tarde. Levou consigo as malas, as malas que hd duas semanas apenas tinham vindo fes- tivas com letreiros de Paris, Mildo. Levou também o criado que viera com eles. O siléncio da casa estava explicado. Hla estava s6, desde a sua partida. Tinham brigado. Ela, calada, defronte dele. Ele, o intelectual fino e superior, vociferando, acusando-a, apontando-a com o dedo. E aquela sensacio ja experimentada das outras vezes em que brigavam: se ele for embora, eu morro, eu morro. Ouvia ainda suas palavras. *— Vocé, vocé me prende, me aniquila! Guarde seu amor, dé-o a quem quiser, a quem ndo tiver o que fazer! Entende? Sim! Desde que a conhego nada mais produzo! Sinto-me acorrentado. Acorrentado a seus cuidados, a suas caricias, ao seu zelo excessi- vo, a vocé mesma! Abomino-a! Pense bem, abomino-a! Eu...” Essas explosdes eram freqiientes. Havia sempre a ameaca de sua partida. Luisa, a essa palavra, se transformava. Ela, tao cheia de dignidade, tao irénica e segura de si, suplicara-lhe que ficasse, com tal palidez e loucura no rosto, que das outras vezes ele ace- dera. E a Felicidade invadia-a tao intensa e clara, que a recom- pensava do que nunca imaginava fosse uma humilhacgao, mas que ele Iho fazia enxergar com argumentos irénicos, que ela nem ouvia. Dessa vez ele zangara, como das outras, quase sem motivo. Lufsa interrompera-o, dizia ele, no momento em que uma nova idéia brotava, luminosa, em seu cérebro. Cortara-lhe a inspiracdo no instante exato em que ela nascia, com uma frase tola sobre 0 tempo, e terminando com um detestavel: “nao & querido?” Disse que precisava de condicdes proprias para produ- 12 Ourros Escritos zit, para continuar seu romance, ceifado logo de inicio por uma incapacidade absoluta de se concentrar. Fora embora para onde encontrasse “o ambiente”. Ea casa ficara em siléncio. Ela parada no quarto, como se tivessem extrafdo de seu corpo toda a alma. Esperando, vé-lo surgir de volta, enquadrar-se na moldura da porta o seu vulto viril. Ouvi-lo-ia dizer, os largos ombros amados estremecendo num tiso, que tudo ndo passava de uma brincadeira, de uma experiéncia para inserir numa p4gina do livro. Mas 0 siléncio se prolongara infinitamente, rasgado apenas pelo sussurro monétono da cigarra. A noite sem lua invadira aos poucos 0 aposento. A aragem Fresca de junho fazia-a estremecer. “Ble foi embora”, pensou. “Ele foi embora.” Nunca ihe pare- cera tao cheia de sentido essa expressdo, embora a tivesse lido antes muitas vezes nos romances de amor. “Ele foi embora” néo era tao simples, Arrastava consigo um vacuo imenso na cabega € no peito. Se af batessem, imaginava, soaria metélico. Como Viveria agoraé Perguntava-se subitamente, com uma calma exa- gerada, como se se tratasse de quaiquer coisa neutra. Repetia, repetia sempre: e agoraé Percorteu os olhos pelo quarto em tre- vas. Torceu o comutador, procurou a roupa, © livro de cabeceira, os vestigios dele. Nada ficara. Assustou-se. “le foi embora,” Revolvera-se na cama horas ¢ horas e o sono nao viera. Pela madrugada, amolecida pela vigilia e pela dor, os olhos ardentes, a cabega pesada, caiu numa meia inconsciéncia. Nem a cabeca deixou de trabalhar, imagens, as mais loucas, chegavam-lhe & mente, apenas esbogadas e jd fugidias. Soam 11 horas, compridas e descansadas. Um passaro da um grito agudo. Tudo imobilizou-se desde ontem, pensa Lufsa. Continua sentada na cama, estupidamente, sem saber 0 que faca. Fixa os olhos numa marinha, em cores frescas. Nunca vira agua com tal impressao de liquidez e mobilidade. Nem nunca notara o quadro. De repente, como um dardo, ferindo agudo e CLARICE ESCRITORA INICIANTE 18 profundo: “Ele foi embora.” Nao, é mentira! Levanta-se. Com certeza ele zangou-se e foi dormir no aposento contiguo. Corre, enopurra sua porta. Vazio. Vai & mesa onde ele trabalhava, remexe febrilmente os jor- nais abandonados. Talvez tenha deixado algum bilhete, dizen- do, por exemplo: “Apesar de tudo, eu te amo. Volto amanha.” Nao, hoje mesmo! Acha apenas uma folha de papel de seu blaco de notas. Vira-a. “Estou sentado ha duas horas seguramente € ndo consegui ainda fixar a ateng4o. Mas, ao mesmo tempo, n&o a fixo em coisa alguma ao meu redor. Ela tem asas, mas enn parte alguma pousa. Nao consigo esctever. Nao consigo escrever. Com estas palavras arranho uma chaga. Minha mediocridade esta tao...” Luisa interrompe a leitura. O que ela sempre sentira, vagamente apenas: mediocridade. Fica absorta. E ele sabia-o, entdo¢ Que impressio de fraqueza, de pusilanimidade, naquele simples papel... Jorge..., murmura debilmente. Quisera nao ter lido aquela confissdo. Apdia-se 4 parede. Silenciosamente chora. Chora até sentir-se lassa. Vai até a pia e molha o rosto. Sensacao de frescura, desafo- go. Est4 despertando. Anima-se. Tranca os cabelos, prende-os para cima. Esfrega 0 rosto com sabo, até sentir a pele esticada, brilhante. Olha-se no espelho e parece uma colegial. Procura 0 batom, mas lembra-se a tempo de que nao € mais necessario. A sala de jantar estava as escuras, imida e abafada. Abre as janelas de uma vez. Ea claridade penetra num impeto. O ar novo entra répido, toca em tudo, acena a cortina clara. Parece que até o relégio bate mais vigorosamente. Luisa queda-se ligei- ramente surpresa. H4 tanto encanto nesse aposento alegre. Nessas coisas de stibito aclaradas e revivescidas. Inclina-se pela janela. Na sombra dessas arvores em alameda, terminando lé ao longe na estrada vermelba de barro... Na verdade nada disso notara, Sempre vivera ali com ele. Ele era tudo. S6 ele existia. Ele 14 Outros Escritos tinha ido embora. E as coisas nao estavam de todo destituidas de encanto. Tinham vida propria. Luisa passou a mo pela testa, queria afastar os pensamentos. Com ele aprendera a tortura (sic) as idéias, aprofundando-as nas menores particulas. Preparou café e tomou-o. E como nada tivesse para fazer e temesse pensar, pegou umas pegas de roupa estendidas para a lavagem e foi para o fundo do quintal, onde havia um grande tanque. Arregagou as mangas ¢ as calcas do pijama e comegou a esfregé-las com sab§o. Assim inclinada, movendo os bragos com veeméncia, o labio inferior mordido no esforco, 0 sangue pulsando-lhe forte no corpo, surpreendeu a si mesma. Parou, desfranziu a testa e ficou olhando para frente. Ela, tao espiri- tualizada pela companhia daquele homem... Pareceu-lhe ouvir seu riso irénico, citando Shopenhauer, Platéo, que pensaram e pensaram... Uma brisa doce arrepiou-lhe os fiozinhos da nuca, secou-lhe a espuma nos dedos. Luisa terminou a tarefa. Recendia toda ao cheiro Aspero e simples do sabao. O trabalho fizera-lhe calor. Olhou a torneira grande, jorrando gua limpida. Sentia um calor... Subitamente surgiu-lhe uma idéia. Tirou a roupa, abriu a torneira até o fim, e a 4gua gelada correu-the pelo corpo, arrancando-lhe um grito de frio. Aquele banho improvisado fazia-a rir de prazer. De sua banheira abrangia uma vista maravilhosa, sob um sol j4 ardente. ‘Um momento ficou séria, imével. O romance inacabado, a con- fissfio achada. Ficou absorta, uma ruga na testa e no canto dos labios. A confissio. Mas a agua escorria gelada sobre seu corpo e reclamava ruidosamente sta atengao. Um calor bom jé circulava em suas veias. De repente, teve um sortiso, um pensamento. Ele voltaria. Ele voltatia. Olhou em torno de sia manhé perfeita, res- pirando profundamente e sentindo, quase com orgulho, 0 cora- co bater cadenciado e cheio de vida. Um morno raio de sol envolvett-a. Riu. Ele voltaria, porque ela era a mais forte. CLARICE ESCRITORA INICIANTE 15 | é : . D e p i a , EU E JIMMY* Lembro-me ainda de Jimmy, aquele rapaz de cabelos casta- nhos e despenteados, encobrindo um cranio alongado de rebel- de nato. Lembro-me de Jimmy, de seus cabelos e de suas idéias. Jimmy achava que nada existe de tao bom quanto a natureza. Que se duas pessoas se gostam nada hd a fazer sendo amarem- se, simplesmente. Que tudo o mais, nos homens, que se afasta dessa simplicidade de principio de mundo, é cabotinismo, ¢ espumia. Se essas idéias partissem de outra cabega, eu ndo tole- raria ouvi-las sequer. Mas havia a desculpa do cranio de Jimmy e havia, sobretudo a desculpa de seus dentes claros e de seu sor- riso limpo de animal contente. Jimmy andava de cabega erguida, 0 nariz espetado no ar, e, ao atravessar a rua, pegava-me pelo braco com uma intimidade muito simples. Eu me perturbava. Mas a prova de que eu jé esta- va nesse tempo imbufda das idéias de Jimmy e sobretudo do seu sorriso claro, é que eu me repreendia essa perturbacdo. Pensava, descontente, que evoluira demais, afastando-me do tipo padréo — animal. Dizia-me que € futil corar por causa de um brago; nem mesmo de um brago de uma roupa. Mas esses pensamentos eram difusos e se apresentavam com a incoeréncia que transmito agora ao papel. Na verdade, eu apenas procurava uma desculpa para * Folha de Minas, Belo Horizonte, 24 de dezembro de 1944 ~ conto antigo xeproduzido no jornal sem autorizacao da autora. 46 Ourros Escriros gostar de Jimmy. E para seguir suas idéias. Aos poucos estava te adaptando & sua cabeca alongada. Que podia eu fazer, afi- nal¢ Desde pequena tinha visto e sentido a predominancia das idéias dos homens sobre a das mulheres. Mame antes de casar, segundo tia Emilia, era um foguete, uma ruiva tempestuosa, com pensamentos préprios sobre liberdade e igualdade das mulheres. Mas veio papai, muito sério e alto, com pensamentos préprios também, sobre... liberdade ¢ igualdade das mulheres. O thal foi a coincidéncia de matéria. Houve um choque. E hoje mame cose e borda e canta no piano e faz bolinhos aos s4ba- dos, tudo pontualmente e com alegria. Tem idéias proprias, ainda, mas se resumem numa: a mulher deve sempre seguir 0 marido, como a parte acesséria segue a essencial (a comparagao € minha, resultado das aulas do Curso de Direito). Por isso e por Jimmy, eu também me tornei aos poucos natural. E foi assim que um belo dia, depois de uma noite quente de verdo, em que dormi tanto como nesse momento em que escre- vo (sio os antecedentes do crime), nesse belo dia Jimmy me deu um beijo, Eu previra essa situagdo, com todas as variantes. Desapontou-me, é verdade. Ora, “isso” depois de tanta filosofia e delongas! Mas gostei. E dai em diante dormi descansada; néo precisava mais sonhar. Encontrava-me com Jimmy na esquina. Muito simplesmen- te dava-lhe o brago. E mais tarde, muito simplesmente acaricia- va-lhe os cabelos despenteados. Eu sentia que Jimmy estava ma- ravilhado com o meu aproveitamento. Suas ligées haviam pro- duzido um efeito raro e a aluna era aplicada. Foi um tempo feliz. Depois fizemos exames. Aqui comeca a histdéria propria- mente dita. Um dos examinadores tinha olhos suaves e profundos. As mos muito bonitas; morenas. CLARICE ESCRITORA INICIANTE 7 (iimmy era claro como um bebé.) Quando me falava, sua voz tornava-se misteriosamente Aspera e morna. E eu fazia um esforco enorme para ndo fechar os olhos e nao morrer de alegria- Nao houve lutas intimas. Dormi (sic) pertrava-me com 0 examinador a tarde, As seis horas. E encantava-me sua voz, falando-me de idéias absolutamente ndo-jimiescas. Tudo isso. envolvide de creptisculo, no jardim silencioso e frio. Era eu entao absolutamente feliz. Quanto a Jimmy conti nuava despenteado e com o mesmo sorriso que me esquecera de: esclarecer a Jimmy a nova situacdo. Um dia, perguntou-me por que andava eu tao diferente. Respondi-lhe risonha, empregando os termos de Hegel, ouvidos. . pela boca do meu examinador. Disse-lhe que o primitivo equilt- brio tinha-se rompido e formara-se um novo, com outra base. E : indtil dizer que Jimmy no entendeu nada, porque Hegel era _ um ponto do fim do programa e nés nunca chegamos até 1a. Expliquei-lhe entéo que estava apaixonadissima por D..., ¢,. numa maravilhosa inspiracéo (lamentei que o examinador nao me ouvisse), disse-lhe que, no caso, eu n4o poderia unir os con: traditérios, fazendo a sintese hegeliana. Intitil a digressdo. Jimmy olhava-me estupidamente e s6 soube perguntar: = ~Eeut Irritei-me. Nao sei, respondi, chutando uma pedrinha imagindria e. pensando: ora, arranje-se! Nés somos simples animais. Jimmy estava nervoso. Disse-me uma série de desaforos, que eu nao passava de uma mulher, inconstante e borboleta como todas. E ameagou-me: eu ainda me arrependerei dess mudanga sGbita. Em vo tentei explicar-me com as suas teorias eu gostava de alguém e era natural, apenas; que se eu fosse “evo- luida” e “pensante” comecaria por tornar tudo complicado, apa: recendo com conflitos morais, com bobagens da civilizagao, coi: 18 Outros EscriTos: sas que os animais desconhecem em absoluto. Falei com uma elogiiéncia adordvel, tudo devido a influéncia dialética do exa- minador (af esta a idéia de mame: a mulher deve seguir... etc.) Jimmy, palido ¢ desfeito, mandou-me para o diabo a mim e as minhas teorias. Gritei-lhe nervosa, que ndo eram minhas essas maluquices e que, na verdade, s6 podiam ter nascido de uma cabeca despenteada e comprida. Ele gritou-me, mais alto ainda, que eu nao entendera nada do que entao me explicara com tanta bondade: que tudo comigo era tempo perdido. Era demais. Exigi uma nova explicagdo. Ele mandou-me de novo ao inferno. Saf corifusa. Em comemoraco, tive uma forte dor de cabe- ¢a. De uns restinhos de civilizagao, surgiu-me o remorso. Minha avé, uma velhinha amavel e Iticida, a quem contei o caso, inclinou a cabecinha branca e explicou-me que os homens costurnam construir teorias para sie outras para as mulheres. Mas, acrescentou depois de uma pausa e ur suspiro, esquecem- nas exatamente no momento de agir... Retruquei a vové que eu, que aplicava com éxito a lei das contradigées de Hegel, nado entendera palavra do que ela disse. Ela riu e explicou-me bern- bumorada: Minha querida, os homens s&o uns animais. Voltavamos, assim, ao ponto de partida¢ Nao achei que esse fosse um argumento, mas consolei-me um pouco, Dormi meio triste. Mas acordei feliz, puramente animal. Quando abri as janelas do quarto e olhei o jardim fresco e calmo aos primeiros fio de sol, tive a certeza de que nao hé mesmo nada a fazer sendo viver. $6 continuava a me intrigar a mudanga de Jimmy. A teoria é tao boa! CLARICE BSCRITORA INICIANTE Este preambulo também serve por uma desculpa. E que per- cebo, mesmo através das palavras mais doces que o milagre de respirares me inspira, o meu destino de jogar pedras. Nunca te zangues comigo por isso. Uns nasceram para lancar pedras. E afinal, (comeca aqui minha fungdo) por que sera mal Jancar pedras, sendo porque elas atingirao coisas tuas ou dos que sabem rir e adorar e comer? Uma vez esclarecido este ponto e uma vez que me permite jogar pedras, eu te falarei da Quinta Sinfonia de Beethoven. Senta-te. Estende tuas pernas. Fecha os olhos e os ouvidos. Fu nada te direi durante cinco minutos para que possas pensar na Quinta Sinfonia de Beethoven. Vé, € isto sera mais perfeito ainda, se consegues ndo pensar por palavras, mas criar um esta- do de sentimento. Vé se podes parar todo o turbilhac e deixar uma clareira para a Quinta Sinfonia. E tao bela. $6 assim a terds, por meio do siléncio. Compreendes! Se eu aexecutar para ti, ela se desvanecer4, nota apés nota. Mal dada a primeira, ela ndo mais existira. B depois da segunda, o segun- do nao mais ecoaré. Eo comego serd 0 prelidio do fim, como em todas as coisas. Se eu a executar ouvirés misica ¢ apenas isto. Enquanto que h4 um meio de deté-la parada e eterna, cada nota como uma estdtua dentro de ti mesmo. Nao a executes, é 0 que deves fazer. Nao a escutes € a pos- suirgs, Nao ames e ters dentro de tio amor. Nao fumes o teu cigarro e terés um cigarro aceso dentro de ti. Nao ougas a Quinta Sinfonia de Beethoven e ela nunca terminaré para ti. Bis como eu me redimo de langar pedras, tao sempre... Fis que éu te ensinei a ndo matar. Erige dentro de tio monumento do Desejo Insatisfeito. E assim as coisas nunca morrerdo, antes que tu mesmo morras. Porque eu te digo, ainda mais triste que langar pedras é arrastar cadaveres. CARTAS A HERMENGARDO* Meu querido Hermengardo, Em verdade eu te digo: felizmente tu existes. A mim me bastaria apenas a existéncia de uma criatura sobre a terra para: satisfazer o meu desejo de gléria, que nao € sendo um profundo desejo de vizinhanga. Porque eu me enganei quando hé tempos imaginei como real minha antiga vontade de “salvar a humani-: dade”, “malgré”, ela. Agora s6 desejo mais alguém, além de mim _ mesma, para que eu possa me provar... E nessa volta para Idalina compreendi também que tao belo e tao impossivel como aquele outro sonho é 0 de tentar salvar-se a si mesmo. E se é t&o impos: stvel, por que entdo me encaminhar para esta nova cidadela que seria agora uma pobre mulher perturbadaé Nao sei. Talvez por- que é necessdrio salvar alguma coisa. Talvez pela consciéncia tardia de que nés somos a tinica presenga que no nos deixara até a morte. E é por isso que nés amamos € nos buscamos a nds mesmos. E porque, enquanto existirmos, existird 0 mundo e : existiré a humanidade. Eis como, afinal, nds nos ligamos a eles. E tudo isso que eu estou dizendo é apenas um preambulo qualquer que justifique meu gosto de te dar tantos conselhos. Porque dar conselhos é de novo falar de si. E c estou eu... Mas, afinal, eu posso falar com a consciéncia em paz. Nada conhego que dé tanto direito a um homem como 0 fate dele estar vivendo. * Dom Casmurre. 30 de agosto de 1941. CLARICE ESCRITORA INICIANTE 24 20 Outros Escritos E se nao puderes seguir meu conselho, porque mais Avida que tudo € sempre a vida, se nao puderes seguir meus conselhos e todos os programas que inventames para nos melhorar chupa - umas pastilhas de hortela. Sao tao frescas. Tua. Idalina 22 Ourros Escriros TRECHO* Realmente nada aconteceu naquela tarde cinzenta de abril. ‘Tudo, no entanto, prognosticava um grande dia. Ele lhe avisara que sua vinda constituiria o grande fato, o acontecimento maxi- tho de suas vidas. Por isso ela entrou no bar da Avenida, sentou- se junto a uma das mesinhas da janela, para vé-lo, mal apontas- se na esquina. O garcom limpou a mesa e perguntou-lhe o que desejava. Dessa vez justamente no precisava ficar timida e ter mhedo de cometer uma gaffe. Estava esperando alguém, respon- deu. Ele olhou-a um momento. “Seré que tenho um ar to aban- donado que nao posso estar esperando alguémé” disse-the: ~ Espero um amigo. E sabia agora que a voz sairia perfeita: calma e negligente. (Ora no era a primeira vez que esperava alguém.) Ele limpou uma nédoa inexistente no canto da mesinha de mdrmore e, apés ‘uma demora calculada, retrucou, sem ao menos olhé-la: ~Sim, senhora. Acomoda-se melhor na cadeira estreita. Cruza as. pernas com certa elegancia que, Cristiano mesmo dissera, é-Ihe natural. Segura a bolsa com as duas maos, suspira descansadamente. Pronto. § sé esperar. Flora gosta muito de viver. Muito mesmo, Nessa tarde, por exemplo, apesar do vestido apertar-lhe a cintura e ela esperar com horror o momento em que tiver que se levantar e atraves- * Vanios Lér!, Rio de Jancizo, 9 de janeiro de 1941. CLARICE ESCRITORA INICIANTE 23 sar 0 comprido recinto com a saia justa demais, apesar de tudo isto acha bom estar sentada ali, no meio de tanta gente, para tomar café com bolinhos, come tedos. Tem a mesma sensagao | de quando era pequena e a mae Ihe dava as panelinhas “de ver- dade” para encher de comida e brinear de “dona de casa’. Todas as mesinhas do café esto repletas. Os homens fumam grossos charutos € os rapazes, metidos em amplos jaque- tdes, se oferecem cigarros. As mulheres bebem refrescos ¢ mor- dem doces com a delicadeza de roedores, para nao espalhar 0 “batom”. Faz um calor muito forte e os ventiladores zumbem nas . paredes. Se ela nao estivesse de preto poderia se imaginar num café africano, em Dakar ou Cairo, entre ventarolas e homens morenos discutindo negécios ilfcitos, por exemplo. Mesmo entre espides, quem sabe? metidos naqueles lengdis drabes. Naturalmente era meio absurdo estar brincando de pensar justamente nessa tarde. Justamente quando Cristiano Ihe pro- metera o maior dia do mundo ¢ justamente, oh! Justamente quando tinha medo que nada sucedesse... simplesmente pela auséncia de Cristiano... Era absurdo, mas sempre que the acon- teciam “coisas” ela intercalava essas coisas com pensamentos perfeitamente fiiteis e despropositados. Quando Nené ia nascer e ela estava no hospital, deitada, branca ¢ morta de medo, acom- panhou obstinadamente 0 véo de uma mosca em torno de uma xfcara de chd e chegou a pensar, dum modo geral na vida aciden- tada das moscas. E na verdade, conclufra, acerca desses pequeni- nos seres ha grandes estudos a fazer. Por exemplo: por que é que possuindo um belo par de asas nao voam mais alto¢ Setaio impo- | tentes essas asas ou sem ideal as moscas? Outra questo: qual a atitude mental das moscas em relagéo a nés¢ E em relagao & xicara de ché, aquele grande lago adocicado e morno¢ Na verda- de, aqueles problemas nao eram indignos de atengdo. Nés é que ainda ndo somos dignos deles. 24 Outros EscriTos Um casal entrou, O homem parou a porta, escolheu demo- tadamente o lugar, para !4 encaminhou-se com a mulher debai- ‘xo-do brago, o at feroz de quem se prepara para defender um direito: “Eu pago tanto quanto os outros.” Sentou-se, circundow um olhar de desafio pela sala. A mocinha era timida e sorriu para Flora, um sorriso de solidariedade de classe. Bem, o tempo est4 correndo. Um gargom de bigode louro ditige-se a Flora, segurando acrobaticamente uma bandeja com refresco escuro no copo suado. Sem. Ihe perguntar nada, pousa a bandeja, aproxima o copo de suas méos e se afasta. Mas quem. pediu refresco, pensa ela angustiada. Fica quieta, sem se mover. ‘Ah! Cristiano, venha logo. Todos contra mim... Eu nao quero tefresco, eu quero Cristiano! Tenho vontade de chorat, porque hoje é um grande dia, porque hoje €o maior dia de minha vida. Mas vou conter em algum cantinho escondido de mim (atrés da portaé que absurdo) tudo o que me atormentar até a chegada de Cristiano. Vou pensar em alguma coisa. Em qué? “Meus senho- res, meus senhores! Eis-me aqui pronta para a vidal Meus senhores, ninguém me olha, ninguém nota que eu existo. Mas, meus senhores, eu existo, eu juro que existo! Muito, até. Olhem, vocés, que tém esse ar de vitéria, olhem: eu sou capaz de-vibrar, de vibrar como a corda esticada de uma harpa. Eu posso sofrer com mais intensidade do que todos os senhores. Eu sou superior. E sabem por qué? Porque sei que existo.” E se bebesse o reftesco¢ Pelo menos aquela mulher que a olha como se-ela nao estivesse ali, como se ela fosse uma mesinha vazia, verd que ela faz alguma coisa. -Escolhe com cuidado uma palhinha, desembrulha-a com gestos negligentes e chupa o primeiro gole. Ainda bem que Nené ndo veio. O refresco é muito gelado e tudo que Nené vé quer provar, Quando Cristiano vier, perguntara antes por ela ou por Nenéé Cristiano disse que ambas eram duas criangas, que no CLARICE ESCRITORA INICIANTE 25 | ql | i grupo ele era o nico adulto. Mas isso ndo entristece muito Flora. Uma vez, logo no princfpio, ele a deixou sentada a um canto do quarto e pés-se a passear de um lado para outro, esfre- gando o queixo. Depois parou diante dela, olhou-a um tempo e disse : “Mas é uma menina!” No entanto, depois se acostumou € Flora sempre Ihe agradava. Mesmo porque desde pequena sabia brincar de tudo. Com o Ruivo brincava de soldado que mata, com a vizinha debaixo era carroceiro, no colégio bancava a india que tem. nauitos filhos, e ainda professora, dona de casa, vizinha mA, mendiga, aleijada e quitandeira. Com o Ruivo brincava de soldado, obrigada pelas cixcunstancias, porque precisava con- quistar sua admiracao. Assim, nao foi dificil brincar de amante de Cristiano. E brin- cou tdo bem que ele, antes de partir, lhe disse: Sabe, vocé, gurizinha, vale mais do que eu pensava. Nao é uma menininha, nao. £ uma mulher cheia de senso e indepen- déncia. Gostou do elogio de Cristiano como quando ele elogiara seu. vestido novo. Ou quando o professor de francés lhe dissera: “Vocé serez ainde un bon poéte!” Ou quando sua mie dizia: “Quando isso crescer vai prender qualquer um!” Ora, natural- mente que ela sabia fazer diversas coisas e até muito bem-feitas. Mas ela no era nenhuma daquelas personalidades que encarna- va para se divertir ou por necessidade. Flora era outra que nin- guém descobtira ainda! Eis o mistério. O refresco faz-lhe um mal horrivel. O est6mago se contrai em nduseas. Fecha os olhos um momento e vé o liquido escuro em ondas revoltas fluir e refluix, rugindo. E Cristiano nao vem. Faz uma hora que esté ali. Se Cristiano chegasse naquele momento mandaria buscar qualquer coisa amarga ¢ as nduseas desapareceriam. Depois ele diria orgulhoso: “Nem sei mesmo 0 que vocé faria sozinha. Vocé arranja coisas justamente no 26 Ourros Escairos momento impréprio.” E por que de repente esse gosto de café na bocaé Acena para o garcom. “Agua gelada”, pede. Depois do pri- theiro gole, anima-se: + De que era 0 refresco? ~ De café, senhorita. Ah, de café. Uh, piorou. O garcom a encara com curiosidade e ironia: = Esté melhor, mademoisellee = Sem diivida, eu nao sentia coisa alguma. ~Beba uma xicara de café quente que passa tudo, continuou ele irredutivel. = Traga, por favor. “Cristiano, onde est4 vocé? Eu sou pequena, meus senhores, no fundo eu sou do tamanho de Nené. Nao sabem quem é Nenéé Pois ela é loura, tem os olhos pretos e Cristiano diz que nao se surpreende ao ver sia carinha muito suja. Diz que no nosso quarto desarrumado, as flores frescas, o rostinho de Nené é meu ar de “pobre querida” so indivisiveis. Mas hé uma coisa nio meu estémago. E Cristiano nao vem. Se Cristiano nao vier? A dona da casa onde moramos, meus senhores, jura como € fre- qitente o abandono de mogas com filhos. Conhece até trés casos. Que dizem? Oh, nao fumem agora.” O gargom vem com o café. Tem um lindo bigode louro. Se eu fosse a senhora, procurava me livrar do refresco. Tem muita gente que enjoa com refresco de café. £ s6 botar dois dedos no céu-da boca. © toillete € 4 esquerda. Flora volta de 14 humilhada e nao ousa encarar o bigode louro. Recosta-se na cadeira e sente-se miseravelmente bem. Uma aragem fresca penetra pelas janelas. “Declaracées de Mussollini. Suicidio no Leblon! Olhe a Noite!” Longinquos sons de buzina. Cristiano perdeu o trem ou me abandonou para sempre. CLARICE ESCRITORA INICIANTE O café tornou-se familiar aos seus olhos. Os garcons sao afi- nal uns homens bobos e muito ocupados. Esto ajeitando as cadeiras no estrado da orquestra, limpando o piano. Fregueses de outra classe, da classe dos que depois do banho e do jantar “precisam gozar a vida enquanto s4o mogos; e para que se tem dinheiro¢” instalam-se as mesinhas. “Quer dizer que eu estou perdida”, pensa Flora. Ouve de infcio umas pancadinhas surdas, ritmadas, singula- res € misteriosas, subindo do estrado da orquestra. Em eferves- céncia crescente, como animaizinhos borbulhando em meio des- conhecido, vai-se acentuando o ritmo. E de repente, do tiltimo negro da segunda fila, ergue-se um grito selvagem, prolongado, até morrer num queixume doce. O mulato da primeira fila contorce-se numa reviravolta, seu instrumento aponta para o ar € responde com um “bu-bu’ rouco e infantil. As pancadinhas parecem homens e mulheres gingando num terreiro da Africa. Stibito, siléncio. O piano canta trés notas soltas e sérias. Siléncio. A orquestra, em movimentos suaves, quase imével, agacha- da, desliza um “fox-blue” pianissimo, insinuante como uma fuga. Alguns pares safram enlacados. Estou aqui ha tanto tempo, ha tanto tempo! pensa Flora e sente que deve chorar. Quer dizer que estou perdida. Comprime a testa com as m4os. Que é que vem agora? O garcom tem pena e vem lhe dizer que pode esperar quanto quiser. Obrigada. Vé-se no espelho. Mas ela é esta que esta ali¢ é essa, de cara de coelho assustado, quem est4 pensando e esperando¢ (De quem é essa boquinha? De quem sao esses olhinhos? Seus, ndo me amole.) Se eu nao procurar me salvar, afogo-me. Pois se o Cristiano nao vier, quem diré a toda essa gente que eu existo¢ E se eu, de repente, gritar pelo garcom, pedir papel e tinta e disser: Meus senhores, vou escrever uma poesia! Cristiano, querido! Juro que eu e Nené somos suas. 28 Outros Escriros Vejam sé: Debussy era um mitisico-poeta, mas téo poeta que tum s6 dos titulos de suas suftes fazem vocé se deitar na relva do jardim, os bragos sob a cabega, e sonhar, Vejam s6: Sinos entre folhas. Perfumes da noite... Vejam sé... gritou uma mulher magra na mesa vizinha, batendo com as costas das maos na mesa, como se dissesse: “Eu lhe garanto, agora é noite. Nao discuta.” — Tolice, Margarida, retrucou um dos homens friamente, tolice. Ora muisico-poeta... Ora veja... Flora pediria papel e escreveria: “Arvores silenciosas perdidas na estrada. Reftigio manso “de frescura e sombra.” Cristiano nao viré. Um homem se aproxima. Que ha¢ ~ Hein¢ = Fergunto se deseja dangar, continua. Pisca os olhos miopes com um ar tolo e curioso. + Oh, nao... Realmente, ndo... eu... Ele continua a olhé-la. ~ Eu, francamente, no posso... Ob, talvez mais tarde... Espero um amigo. Ele ainda parado. Que fazer com aquele entulho¢ Mew ‘Deus, os meus olhos. ~ Eu na ~ For favor, madame, j4 entendi, diz o homem ofendido. E se afasta. O que foi que aconteceu, afinal? Nao sei, nao seivSe eu ndo abaixo o rosto, véem os meus olhos. Arvores silen- ciosas perdidas na estrada. Oh, com certeza eu no choro por causa do homem miope. Também nao é por Cristiano que nunca mais viré. E por essa mulher suave, é porque Nené é linda, linda, € porque essas flores tem um perfume longinquo. Reftigio manso de frescura e sombra. “Meus senhores, agora jus- CLARICE ESCRITORA INICIANTE 29 tamente que eu tinha tanto para dizer, nao sei me exprimir. Sou uma mulher grave e séria, meus senhores. Tenho uma filha, meus senhores. Poderia ser um bom poeta. Poderia prender quem eu quisesse. Sei brincar de tudo, meus senhores. Poderia me levantar agora e fazer um discurso contra a humanidade, contra a vida. Pedir ao governo a criagéo de um departamento de mulheres abandonadas e tristes, que nunca mais terdo o que fazer no mundo. Pedir qualquer reforma urgente. Mas nao posso, meus senhores. E pela mesma razao nunca haverd refor- mas. E que em vez de gritar, de reclamar, s6 tenho vontade de chorar bem baixinho ¢ ficar quieta, calada. Talvez no seja 36 por isso. Minha saia € curta e apertada, Eu nao vou me levantar daqui. Em compensagio tenho um lengo pequeno, de bolinhas vermethas, ¢ posso muito bem enxugar o nariz sem que os senhores, que nem sabem que eu existo, vejam.” Na porta surge um homem grande, com jornais na mao. Ola para todos os lados procurando alguém. Vem esse homem exatamente na direcéo de Flora. Comprime sua mo, senta-se. Olha-a com olhos brilhantes e ela ouve confusamente palavras soltas, “Bichinha, coitadinha... o trem... Nené... querida...” ~ Tolice Margarida, tolice, diz o homem na mesa vizinha. — Quer alguma coisa¢ pergunta Cristiano. Refrescot — Oh, nao, desperta Flora, O garcom sorri. Cristiano, completamente feliz, aperta-lhe levemente 0 joe- tho por baixo da mesa. E Flora resolve que nunca, nunca mais mesmo, hé de perdoar Cristiano pela humilhac4o sofrida. E se ele ndo tivesse vindo¢ Ah, entao toda essa espera teria desculpa, teria sentido. Mas, assimé Nunca, nunca. Revoltar-se, lutar, isso sim. E preciso que aquela Flora desconhecida de todos, apareca, afinal. — Flora, eu tive tanta, tanta saudade de vocé. — Meu bem..., diz Flora docemente, esquecendo a saia curta e apertada. 30 Outros Escriros CAPITULO 2 CLARICE JORNALISTA - larice Lispector iniciou suas atividades jornalisticas em 4940. Seu pai morrera ert agosto do mesmo ano e Clarice passara a morar entdo em companhia de suas irmas Elisa e Tania, esta recém-casada. A familia migrara para o Rio de Janeiro, vinda do Recife, cinco anos antes. Clarice contava apenas vinte anos quando procurou Lourival Fontes, diretor do DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda - em busca de uim emprego como tradutora. Entretanto, na auséncia de vagas para esta funcdo, ela foi contratada para trabalhar como repérter redatora na ‘Agéncia Nacional, distribuidora de noticias vinculada ao DIP A Agencia Nacional, drgdo criado pelo governo Vargas, funcionava, segundo Anténio Callado, um de seus colaboradores, como “a redagiio de un jornal preguicoso’, pois ndo the cabia descobrir a noticia, mas apenas dar um tom oficial ao que havia sido anunciado antes pelos jornais. ‘A produgito de Clarice na Agencia Nacional foi publicada sobretudo ina revista Vamos Lérl, pertencente ao jornal A Noite, para onde passa- + ria’ colaborar regularmente a partir de fevereiro de 1942, conforme regis- trado em sua carteira de trabalho. "A presenga da jovem Clarice na redacio destoava amplamente do que se costumava ver no jornalismo da década de quarenta. As mulheres que colaboravam na imprensa da época restringiam-se quase que exclusiva- mente as paginas femininas. O jornalista Francisco Barbosa, companhei- rode redacao de Clarice, lembra que o redator de policia costumava falar palavrses “como quem toma um copo d’dgua”. A cada palavrdo dito, Clarice ruborizava, Anos mais tarde, ela comentaria com seu filho Paulo que os jornalistas acabaram por criar um codigo na redacéo, dando bati- “CLARICE JORNALISTA 3h — das na mesa, para substituir os freqijentes e inadequados palavrées que costumavam falar em sua presenga. Todavia, a entrada de Clarice Lispector no mundo do jornalismo, mais que lhe garantir uma forma de sustento, encarregou-se de abrir-the tambér as portas da literatura: foi nas redacées que Clarice encontrou seu primeiro grupo de amigos escritores, como Francisco Barbosa e Liicio Cardoso. Ambos se tornariam amigos pessoais da escritora e Cardoso exer- ceria um papel determinante em sua formagdo literdria. Foi ainda pela intermediagdo de Barbosa que a editora de A Noite publicaria o primeiro romance de sua autoria, Perto do coragao selvagem. A proposta era que a editora do jornal arcasse com as despesas da publicagéo e Clarice, em contrapartida, abrisse mao de seus direitos autorats, ndo recebendo qual- quer remuneracdo pela venda dos exemplares. Perto do coragéo selvagem foi publicado em 1943, numa tiragem de mil exemplares, e ganhou o Prémio Graca Aranha de melhor roman- ce, ent 1944, As duas reportagens produzidas por Clarice para a Agéncia Na- cional e selecionadas para a presente edi¢éo sao: Onde se ensinard a ser feliz (Didtio do Povo, 19 de janeiro de 1941}, onde a jovem reporter acom- panha a inauguracgho das “Cidades das meninas” ~ projeto idealizado pela primeira-dama Darcy Vargas — onde cinco mil criangas érfas passa- riam a viver com dignidade; e Uma visita & casa dos expostos (Vamos Lér!, & de julho de 1941}, onde Clarice registra o papel da Fundacdo Romdo de Matos Duarte no acolhimento de criancas abandonadas. Outros Escritos ONDE SE ENSINARA A SER FELIZ* Por Clarice Lispector redatora da Agéncia Nacional Ressurge o sonho do padre Flanagan. Os Estados Unidos haviatn gritado para o mundo, [4 de um cantinho de Nebraska, ‘ondé dominava Liliput: nao existe menino mau, falta-lhe apenas um lar. E aquela surpreendente “Boys Town” que se abriu para as criangas foi a afirmacao gloriosa do que parecia um sentimenta- lismo anacrénico. E foi, ainda mais, o cadinho onde criangas se defrontaram, alma contra alma, em primitiva simplicidade, ris- cando ‘tudo o que a civilizagao aconselhara como indispensdvel: ‘0s preconceitos de raga, de religiao, e 0 édio, o grande édio que nascé magnifico no individualismo cultivado e morre humilhado, ao soar a primeira sirene. Os meninos do padre Flanagan jamais desejarao a guerra. Ressurge o sonho do padre Flanagan, Num recanto do Brasil, 4 margem de uma estrada, cinco mil garotas se instalardo em casas, em verdadeiras casas, cobertas, divididas em quartos e salas... E certamente na primeira noite ao abrigo, cinco mil garo- tas no poderao adormecer. Na escuriddo do quarto as milhares de cabecinhas que nfo souberam indagar a raz4o do seu abando- no anterior procurarao descobrir a troco de que se Ihes d4 uma casa; uma cama e comida. Quando recebiam caridade, recebiam também um pouco de humilhagdo e de desprezo. Nao deixava de ser bom, porque sentiam-se quites, e muito livres. Livres para o 6dio. Mas nas * Didrio do Povo. Campinas, SP, 19 de janeiro de 1941. CLARICE JORNALISTA casas onde agora s€ acomodam, casas limpas, com hora certa de almogo e de jantar, com roupa € livros, so tratadas com natura- {idade, com bom humnor... ‘As cinco mil garotas sofrerao na davida durante alguns dias, desconfiadas e ariscas. Mal sabem, as meninas de Darcy Vargas, que iniciam a vida diante do sentimento mais raro neste | mundo: 0 da bondade pura, que nao pede para sie apenas dé. ‘A “Cidade das Meninas” ndo é propaganda para turismo. Esta a realidade mais séria e comovente. Nasceré inteligente € organizada. Sera uma escola de mulheres. O que a criminologia, a sociologia e psicologia pesquisatam e afirmaram no mundo cientifico seré agora aplicado no terreno prdtico. Entrevistada, a : sra. Darcy Vargas, com efeito, acentua que nao é sa casa € 2 comida que essas criancas receberao. Porém, e sobretudo, 0 _ ambiente, 0 lax. A sua preocupagao em. nao construir um daque- les casardes imensos a semelhanga de um internato, que se gra- varia na meméria de seus habitantes como uma penitencidria, UMA VISITA A CASA DOS EXPOSTOS* A HISTORIA DO PORTUGUES ROMAO "44 de janeiro 1738 - 14 de janeiro 1938. Meméria do 2° centendrio da criacdo da Casa dos Expostos, ‘ora Fundacéo Romo de Matos Duarte, em honra ao fundador e posta sob a Protegao Divina, na ligdo de Jesus, no exemplo de S40 Vicente de Paula, no amparo da Santa C © abrigo a 34.343 criancas. Administragao de 1927-1938.” Até ler o original estil sar um longufssimo patio sombreado, subir a escadaria de pedra, ‘asa da Misericérdia ena dedicagao das Fithas da Caridade, a Fundagao até hoje deu Jo da placa de bronze, é preciso atraves- obedece aquela orientacao. Nas centenas de casas, simples e ale- gres, as meninas se desenvolveraéo sem promiscuidade, como parar um instante diante da Virgem Maria, asilada entre rochas, numa pequena familia. A educacdo Fisica, profissional e artisti muggos ¢ fios d’Agua, subir de novo escadas. A sala é grande eclara. Irma Voisin fecha as janelas para que 0 retrato ds Duarte refulja na escuridao, ¢ conta sua histéria: =] n’etait pas trop riche, mais il était trop bon... O portugués Roméo de Matos de segura o chapéu nas maos, como sé favor Num belo dia de sua vida, 14 pelos anos d abriu sua port: ca, fornecerd a base de vida das pequenas cidadas e constituira o pectilio das jovens mulheres, na sua entrada na vida. Serao admitidas até a idade m4xima de 8 anos, quando ainda uma vida tranqitila e dirigida possa apagar-lhes as marcas deixadas pelo abandono e pelo sofrimento. Florescerao tranqiila e pacificamente. Mas no momento do | adeus a “Cidade” saberao, enfim que realmente se thes dava tanto em troca de alguma coisa. O Brasil, a América, o Mundo precisam de criaturas felizes. Elas riem. Créem. Amam. As: jovens mulheres saberdo, entao, que delas se espera 0 cumpri- > mento do grave dever de ser feliz. : em todos os outros bebés do mundo. De pensamento em pens: ¥ Vaiios Lér! Rio de Janeiro, 8 de julho de 1941. Outros EscrirTos ‘CLARICE JORNALISTA a4 ie Romao Duarte tem um rosto humil- acabasse de pedir un. le 1700, Romao a e encontrou um bebé depositado na soleira. Roméo recolheu o bebé, deu-lhe leite e (sic), mas pés-se a pensar a- 35 mento, chegou 4 conclusdo de que deveria nascer a Casa dos Expostos. B foi assim que ela nasceu. Perto, um retrato de Pedro I e outro de Pedro II, que visita- ram a Casa. ~ A princesa Isabel vinha provar o leite das criangas, fazia camisolinhas... ACASA DA ‘RODA” H4 mais de duzentos anos inaugurada, ¢ 0 abrigo 0 lar dos enjeitados. Diariamente, uma média de 4 a 5 criangas vem incorporar-se a instituigéo. Umas chegam crescidinhas, sabendo do nome, da idade e dos pais. Outras, mesmo de noite, sio depo- sitadas na roda, aberta para a Travessa Visconde do Cruzeiro, € que sob o peso do embrulhinho 14 colocado, gira e faz soar uma campanhia. D. Atila Silveira acode, recebe o presente e entrega- o as irmas. Entdo comega a vida de mais um exposto. Ali, até a maioridade, receberd assisténcia completa. Passaré pela “creche”, sob a superintendéncia geral do Dr. Martinho da Rocha, aprender4 a engatinhar, a andar, a ler, a trabalhar, a rezar, a amar, a escolher, a odiar, Ent8o estara pronta para sair e lutar com os de fora. As meninas aprendem os servigos domésticos, curso prima- tio, bordado, datilografia. Se arranjarem casamento antes de completar os 21 anos, o que € diffcil porque s4o pouco vistas, sairfo com enxoval, conselhos e tudo. Ou poderdo trabalhar e de volta do trabalho terdo a casa onde dormir. Os meninos, apés 0 curso primério, so selecionados para as oficinas. Os mais inteligentes aprenderdo tipografia. Depois vern encadernacio, sapataria, alfaiataria. Os que amam a miisi- ca, “estudardo para a banda de miisica”, como disse a Irma 36 QuTROS ESCRITOS en Isabel. E, A noite, poderao estudar fora o curso ginasial, de guarda-livros, ou seja o que for. Se encontrarem trabalho, sairéo ‘antes de completar a maioridade ou trabalharao 14 dentro miesmo, mediante pequeno ordenado. As vezes 0 exposto se enxerta de tal modo 4 nova 4rvore, que dela s6 se desprende quando murcho. Assim, ainda mora na Casa dos Expostos uma turma de velhinbos que nunca se lem- brow de fugir. Irma Isabel diz que Teresinha, um. dos velhinhos, esta se es- quentando ao sol e que, apesat de sua relutancia em se mostrar, eu poderei vé-la. Eu tinha porém recebido a li¢do de D. Atila. — Aqui vém uns “ceportos”, pedem para a gente tirar retra- tos... N&o tém mais o que fazer. Deixei, portanto, Teresinha, que deve ser tropega € doce, aproveitar a mornidao do sol sem retrato e sem assistentes. OJARDIM DA INFANCIA Irma Voisin me conduz pelos longos corredores, silenciosos como os de hospitais. Na sala espagosa funciona uma espécie de jardim da infan- cia,com aqueles quadros de “Ivo chuta a bola”, “Rosina Jé seu livro”, As guriazinhas estao sentadas em volta da irma- professora. =Cantem para a moga ver. Cantam o Hino Nacional. E, como sempre, depois do «Deitado eternamente...”, as palavras comegam a rarear, surgem olbares assustados. Mas um apressado ¢ forte “Terra amada, Brasil!” tudo salva. Uma moreninba midda recita uma poesia sobre o “coracao do Brasil” e se senta envergonhada. Irma Voisin ea professora estao orgulhosas. CLARICE JORNALISTA 37 ONDE O CORREIO NAO TEM FUNCAO. : Na outra sala esto os-bebés de 6 a 10 meses, mais ou metios, quando ainda ndo sabem engatinhar. La estdo eles nos Fassamos pelo refeitdrio de cadeirinhas altas, para os pequeni- | bercos, nas mais variadas e dificeis posigGes, ¢ ai de quem se nos, pelos refeitérios das maiores, com 170 lugares, a mesa posta, | abottece terrivelmente. Um (sic) pedido de higiene recomenda jécom 0 pao ea laranja em exposicSo. Lampadas penduradas, com ~ (sic)““Admnirai as flores e as criangas a certa distancia.” trepadeiras murchas nos fios, como depois de uma festa. No | ‘Mal comecam, porém, a desabrochar, (sic) isolamento e ~ fundo, Nossa Senhora, sob a inscrigao “Ave Maria”. vida nova. Passamos o dia brincando no terrago. Agora mesmo Depois, a despensa, com os enormes recipientes cheios dos’) 544 vitrola toca “Lourinha, serés a rainha deste carnaval” e os mais variados géneros. Na parede, em vigiléncia suprema, um | _ichinhos mintisculos sambam... Nao ha diividas que, apesar de Jesus cercado de flores. 12> tudo, as Filhas da Caridade conseguiram ser mées. A maior prova Irmé Isabel mostra a sala de aula. Meninas com roupas lis- é este laco que elas conseguiram colocar na cabecinha raspada de ‘rades e aventais azul matinho- Mas nem fustos nem folgaces ‘uma menina que danga com uma estranha (sic) — uma guriazi- lemais. E dentro de cada um, uma criaturinha muito pessoal, nha de rosto magro, olhos meio vesgos. com gestos préprios e carinha inconfundivel. Como é seu nome? E aula de leitura. Uma menina, magrinha e viva, lé, numa : Indiferenga. voz muito clara, uma pagina sobre “Correi é ”, mae pag) bre “Correios ¢ Telegx afos : | —Quantos anos vocé tem O correio leva cartas aos parentes e amigos. O “cariba- Nada mento”... A . toe ~Elas estranham as pessoas de fora — diz a Irma Genoveva, — Carimbamento — corrige a irma. comi certo orgulho. Liga de novo a vitrola e negrinha recupera o par. Perto, um sofazinho e duas cadeiras: numa, um urso € noutra A “CRECHE” =)" um cachorro. Um telefone vermelho sobre a mesa esmaltada. — Nunca hé vaga, informa Irma Isabel. Ha 32 anos que estou | S : aqui e nunca... | OARMARIO DAS TROUXINHAS Mas ndo se rejeitam bebés. Mesmo porque... rejeitar contra oe quemé¢ Arranja-se um bergo, faz-se uma pequena clareira entre Bo atquivo. Um armério repleto de embrulhinhos, onde as caminhas e dentro dele o nené € bem-vindo. ; esto ahotados os precdrios dados sobre a procedéncia de seus Na sala dos recém-nascidos, mostram-me um prematuro donos. “Marilena, exposta, parda, com 12 dias — 11-5-41." masculino. Um verdadeiro feto, a cabeca, sem exagero, menor. “Regina Aparecida...” que uma laranja-lima. Veio sem nenhuma indicagao. Foi logo ~~ Essa veio sem. indicagdes¢ batizado. “Era dia de Sao Bonifacio e Bonifacio se chamou”... = Sim... Como sabe? Mas a histéria nao sera longa. Bonifacio, a esta hora, j4 deve 4 Atempo me lembro que todas sdo “aparecidas’... ser anjo. <)> Por nada... 38 Outros Escritos (CLARICE JORNALISTA. 39 Quando chega um bebé, anota-se, roupa por roupa, sinal por sinal, sua aparéncia. Assim, se alguém vier reclamé-lo, teré de fazer a descrigéo perfeita e completa. Ou no conseguira o-exposto. SUPLICA DAS ASILADAS — CONCEICAO CONTA SUA HISTORIA Na sala de costura estado as crescidas, de 18 anos mais ou menos. Bordam com uma perfeig&o que j4 se tornou conhecida. Recebem encomendas para enxovais de noivas, de bebés. E enquanto bordam, cantam a “Stiplica a Nossa Senhora para a sua protec&o”, preparando-se para a festa de maio. “Oh, dai a todos nés amparo e assisténcia pra alcangarmos um dia a gléria do Senhor! Conservai & donzela a flor da inocéncia, Ao coragdo contrito a feliz peniténcia A todos nosso amor.” E quase impossivel conversar com as mocinhas. Meninos e meninas da Casa dos Expostos, a um olhar, se recolhem, enru- bescem e perdem a fala. Apesar de tudo, converso com Conceigao. Tem quatorze anos, diz. Veio com quatro e j4 est4 na casa ha sete anos... Explico-lhe: ~~ Se vocé veio com quatro e jd est4 aqui ha sete anos, tem onze anos somente... Ela olha para mim desconfiada. “Tenho quatorze”, diz, tei- mosa. Quer saix para trabalhar enquanto é tempo. Tempo de qué Enquanto tem mde. Tem irmaos, também, que moram 40 Outros Escritos com a mae, Quando nasceu, as coisas eram diferentes ¢ ela foi asilada. “Onde mora sua mae” ~ H& que tempo estou para perguntar... Mas ndo ha somen- teo trabalho, o estudo e a religiao. Fazem as vezes, além das saf- das normais, grandes passeios, 4 Feira de Amostras, ao Pao de ‘Agtcar e na propria Casa véem filmes bonitos, sobre Anita Garibaldi, por exemplo, divertidos, como os desenhos anima- dos, Conceigdo adora cinema. Além disso elas mesmas tém um teatrinho em que sao atrizes. Um palco pequeno, decorado com jovens gregas, dancando num prado florido. Um piano de verda- de, doado pelo Banco do Brasil, parece: Alias a Casa dos Expostos vive mais de donativos. A quantia fixa para as despe- sas é pequena e nao é eldstica, apesar das economias da esplén- dida dona de casa que é Soeur Voisin. OS MENINOS So, em geral, mais desembaragados do que as meninas. Andam soltos, brincando, lendo as histérias dos bandidos norte-americanos que eles compram com seu proprio dinheiro, ganho em pequenos trabalhos para a casa. Um mulatinho inteligente, estudante de tipografia, esté hoje encarregado da faxina. Mas, nos pequenos intervalos, que ele mesmo cria, lé 0 “Suplemento Juvenil”. Chama-se Norman. Quem deu esse nome? “Minha mae.” Pausa, “Onde esté ela?” ~ Sei ndo — responde, distraido. Ainda nas oficinas de tipografia, falo com Davi Rocha de Oliveira, de uns 20 anos, mais ou menos. Depois de aprendido o oficio, foi trabalhar fora e ficou por 14 durante uns trés anos. Mas achou que estava desaprendendo o que aprendera, que nao tinha a oportunidade de empregar toda a técnica que assimilara quan- do pequeno. E voltou. Agora trabalha, mediante ordenado, para CLARICE JORNALISTA. AL a propria Casa. E filho de uma antiga asilada que, enviuvando, 0 cedeu as Irmas. Est4 noivo e tema um sorriso calmo e feliz. Eassim, sob o olhar doce e firme da Caridade, vio aos pou- cos entrando na estrada larga os que iniciaram o caminho por atalhos estranhos e diffceis. E assim é que a tragédia nao € 0 “pao nosso de cada dia” dos expostos. Entre todos eles hd, certamente, os que esperam pela juz fechada, pelas lagrimas. Os que talvez odeiem os compa- nheiros por sofrerem da mesma falta de mae e da mesma pre- senga do uniforme. Mas esses saberao um dia libertar-se. Os outros, come Norman, s40 distrafdos. E, apesar de todas as Ave- Marias e de todos os santos, arranjarao sempre um “Suple- mento Juvenil”. ARODA VAI FECHAR¢ Ha um dispositivo do novo Cédigo Penal que nao permite a aceitagao de criancas sem. claros dados de identidade. Os infra- tores receberdio a pena de um a cinco anos de prisdo. Que acontecerd com a “roda”¢ Que aconteceré com Regina Aparecida e com Bonifacioé Porque o &nimo que inspita 0 pai ou a mae de Bonifacio é isentar-se da responsabilidade de suas vidas. E s6 as ocultas € que isso é atingido. Que fard a “toda” para subsistir? Talvez avente um processo em que nao haja perigo de uma descoberta de identidade, ou qualquer coisa no género. Nao é proibindo a aceitacao de criangas nao identificadas que se acabaré com o nascimento delas. E enquanto nao se pode terminar com essa situagao, € provavelmente nem tao cedo se poderé, o melhor é encaré-la de frente e aceité-la. Mesmo porque é preciso néo esquecer: além do infratot ao dispositivo penal, ha Bonifacio e Regina Aparecida que néo tém a menor culpa. 42 OuTROS EscriTOS CAPITULO 3 CLARICE ESTUDANTE Cae Lispector ingressou na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, em 1939. Ela escolhe 0 curso meio a0 acaso, a partir de uma avaliagao de seu pai que ~ observando que desde peque- wa cla era muito reivindicadora dos direitos das pessoas ~ ihe diz entéo que ela seria advogada. Interessada sobretudo por Direito Penal, ela ouve do jurista ¢ profes- sor San Tiago Dantas, seu amigo na éyoca, 0 comentario de que quem ascolhe advocacia por causa de Direito Penal, nio é advogado, é literato. De fato, Clarice termina o curso ent 1942 mas nunca aparece para buscar odiploma, chegando a afirmar numa entrevista que sé levara a faculdade a cabo por conta de seu desconforto ao ouvir de ura amiga que “tudo o que ela comegava, ndo tinka o costurae de acabar’. E ainda na faculdade que ela conhece 0 futuro marido, Maury Gurgel Valente, com quem se casa, em 1 943. Com o término do curso, Clarice acompanha Maury — entdo em missdo diplomdtica — numa série de via- gens que os levariam a fixar residéncia em diversos paises ¢ se estenderia por quinze anos, até a separacao do casal, em 1959. Mas € ainda na faculdade que Clarice produz os dois textos reunidos nesta edicdo, ambos para a revista A Epoca, organizada pelos alunos do curso de Direito. “Observagies sobre o direito de punir’ e “Deve a mulher trabatharé” foram publicados em agosto de 1941, ¢ refleren algumas das preocupagées centrais da joven estudante Clarice Lispector. No prinaetro, ela questiona o proprio fundamento do “direito” de punir, externando seu desejo de uma teforma radical no sistema penitencidrio do pats (uma das razbes que a levariam ao curso de Direito, conforme declarou em diversas CLARICE ESTUDANTE 48 entrevistas); e no segundo, reflete possivelmente sobre sua propria condic¢do de mulher estudante e aspirante a uma carreira, numa faculdade freqiien- tada sobretudo por hontens, ¢ onde as mulheres mal chegavam a somar dex por cento dos alunos. S OBSERVAGOES SOBRE O DIREITO DE PUNIR 4, Nao hé direito de punir. Hé apenas poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque 0 Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, nao é punida porque se acima dum homem b4 os homens acima dos homens nada mais ha. E nao hé direito de punir porque a propria representacao do crime na mente humana € 0 que ha de mais instvel ¢ relativo: como julgar que posso punir baseada apenas em que o met cri- tério de julgamento para tonalizar tal ato como criminoso ou ndo, é superior a todos os outros critérios¢ Como crer que se tem verdadeiramente o direito de punir se se sabe que a nao observancia do fato X, hoje fato criminoso, considerava-se igualmente crime? “Nenhum de nés pode se lisonjear de nao ser : tim criminoso relativamente a um estado social dado, passado, futuro ou possivel”, disse Tarde. O que é certo, na questéo da punigéo, € que determinadas instituigdes, em dada época, sentindo-se ameacadas em sua soli- dez com a perpetracao de determinados atos, taxa-os como puniveis, muitas vezes nesses atos nao hé nem a sombra de um --delito natural: essas instituigdes querem. apenas Se defender. Outra humanidade falaria antes em. “direito de se defender”, diteito de lutar, de deixar comparecer ao campo de guerra a ins- tituigdo velha e a nova. Porque 0 crime significa um ataque 2 determinada instituicdo vigente, em grande parte das vezes e se nao fosse punido representaria a derrocada dessa instituigao € 0 44 Outros Escritos . CLARICE ESTUDANTE 45 estabelecimento duma nova. Assim, processar-se-ia uma evolu- ¢4o mais rapida e violenta, de resultados provavelmente maus, tendo-se em vista a freqiiente anormalidade do criminoso. A sociedade, porém, mais sabiamente, prefere falar num “direito de punir”, forga unilateral, garantidora de uma boa defesa contra o ataque 4 sua estabilidade. 2. Uma hipétese quanto ao surgimento e evolugao do direi- to de punir: De inicio, nao existiam direitos, mas poderes. Desde que o homem péde vingar a ofensa a ele dirigida e verificou que tal vinganca o satisfazia e atemorizava a reincidéncia, s6 deixou de exercer sua forga perante uma forga maior. No entanto, como acontece muitas vezes no dominio bioldgico, a reagéo — vingan- a —comegou a ultrapassar de muito a a¢ao — ofensiva — que a provocara. Os fracos unitam-se; e é ent&o que comega propria- mente o plano, isto é, a incursdo do consciente e do raciocinio no mecanismo social, ou melhor, é af que comega a sociedade propriamente dita. Fracos unidos nao deixam de constituir uma forga. E os fracos, os primeiros ladinos e sofistas, os primeiros inteligentes da historia da humanidade, procuraram submeter aquelas relagdes até entéo naturais, biolégicas e necessarias ao dominio do pensamento. Surgiu, como defesa, a idéia de que apesar de no terem forga, tinham direitos. Novas nogées de Justiga, Caridade, Igualdade, Dever foram se insinuando naque- le grupo primitivo, institufdo pelos que delas necessitavam, tao certo como 0 €0 fato dos primeiros remédios terem sido inven- tados pelos doentes. E no espirito do homem foi se formando a correspondente daquela revolta: um superego mais ou menos forte, que daf em diante regeria e fiscalizaria as relagdes do novo homem com os seus semelhantes em face da sociedade im- pedindo-lhe a perpetragdo de atos considerados por todos como 46 Outros Escritos proibidos. A medida que essas nogées foram se plasmando no individuo e no decorrer das geragées, os meios de vida foram extinguindo cada vez mais sua possibilidade de usar da forca bruta nas relagdes de homem para homem. Na resolugao de seus litigios, néo mais aparecia o mais forte e musculoso diante do tnenos poderoso pelo préprio nascimento e natureza. Igualados pélas mesmas condigées, afrouxados na sua agressividade de animal (pelo nascimento do superego (homem social), fizeram (sem que o objetivo fosse delimitado em sua consciéncia) uma espécie de tratado de paz, as leis, pelas quais os interesses e os “proibidos” ndo seriam violados reciprocamente, sob a garantia duma punicdo por parte da coletividade. Ba passagem do casti- go ministrado pelo ofendido para o castigo provindo de toda a Sociedade. E isso se explica: uma vez que todos estavam em con- digdes mais ou menos iguais, dificil seria a defesa; para manter a inviolabilidade das leis fizeram titular do direito toda a coletivi- dade, advers4rio forte. O resto segue-se naturalmente. Os mais capazes, os mais fortes so incumbidos de vigiar a observancia dessas leis, e cons- tituem o primeiro Estado, isto é, organizador permanente da éstabilidade social. Esse novo érgao no decorter dos tempos for- talecido pelo apoio de todos, passa a encarar o poder, mesmo indepéendente da aquiescéncia individual. E esse drgao a si mesmo concede, sem que tenha um outro fundamento o “direi- to de punir’. 3. Uma lig&o de Sécrates ensinava que antes de qualquer discussio filoséfica se definissem os termos. De fato: ao falar em direito de punir nao se abrangem com esse termo contetidos diversos¢ Atualmente, em verdade, nao é de punir que se tem dixeito, mas de se defender, de impedir, de lutar. Punir 6, no caso, apenas um resquicio do passado, quando a vinganga era 0 obje- CLARICE ESTUDANTE 7 tivo da sentenga. E a permanéncia desse termo no vocabuléric juridico é um ligeiro indicio de que a pena hoje ministrada ainda nao é uma pena cientifica, impessoal, mas que nela entra muito dos sentimentos individuais dos aplicadores do direito (como sejarh sadismo e idéia de forga que confere o poder de punir). B nesse caso até repugna admitir um “direito de punir”. Agora se faléssemos num direito de defender a sociedade contra a reincidéncia de um crime, num direito de tomar a sia diregéo duma vida no sentido de restitui-la & normalidade, entdo seria fraca a expressdo “direito de punir”. Antes dever-se- ia falar em “dever de punir”. 4. A teoria dum contrato social estipulado entre os homens eos Estados, concedendo aqueles a estes 0 direito de punir, peca por conferir 4 evolugao da sociedade e do direito muito da inter- vengdo consciente do homem. “I/ a’y a personne qui, en entrant dans une societé civile, stipule de (Etat qu'il le punira s’il commet quelque crime”, disse Pastoret. E se se retirar o elemento “vonta- de” desse contrato, ipso facto ele perde o carater de contrato. 5. Houve um tempo em que a medicina se contentava em segregar o doente, sem curd-lo e sem procurar sanar as causas que produziam a doenga. Assim é hoje a criminciogia e o insti- tuto da punigao. Surge na sociedade um crime, que é apenas um dos sinto- mas dum mal que forgosamente deve grassar nessa sociedade. Que fazem¢ Usam 0 paliativo da pena, abafam o sintoma... e considera-se como encerrado um processo. Como entdo imagi- nar que o fundamento desse poder que a sociedade tem de punir est4 na sua legitimidade, se essa legitimidade sé se explicaria por sua utilidade¢ E onde sua utilidade¢ Se X comete latrocinio e é encarcerado, A, B, C, D... etc., ficam impedidos de cometer o 48 Outros EscriTos mesmo crime¢ A punigdo esqueceu-se de encarar a reincidéncia no seu sentido lato. ‘S6 havera “direito de punir” quando punir significar o empre- go daquela vacina de que fala Carnelucci contra o gérmen do crime. Até entao seria preferivel abandonar a discussdo filosdfica dum “fundamento do direito de punir’, e, de cabega baixa, conti- nuar a ministrar morfina as dores da sociedade. Nota: Um colega nosso classificou este artigo de “sentimen- tal”. Quero esclarecer-lhe que o Direito Penal move com coisas humanas por exceléncia. S6 se pode estudé-lo, pois, humana- inente. E se o adjetivo “sentimental” veio a propésito de minha aluséo a certas questdes extrapenais, digo-the ainda que nao se pode chegar a conclusdes em qualquer dominio sem estabelecer as ‘premissas indispensaveis. CLARICE ESTUDANTE 49

You might also like