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Re INI NN vere VEwr « FUEGO THEY SU YL x ARIUN APPADURAT da modemnidade possam ser entendidos (¢ contestados) diversamente como paz mundial, capacidades nacionais, fama individual e virilidade ou mobilidade de equipa, os recursos da modernidade contidos no eri- quete implicam uma confluéncia de interesses vividos em que produto- res ¢ consumidores de criquete partilham 0 entusiasmo pela indianidade sem as suas muitas cicatrizes divisoras. Finalmente, embora talvez me- nos conscientemente, 0 criquete dé a todos estes grupos e agentes a sen-| sagio de terem libertado 0 jogo dos habitos ingleses levados para as co- Ignias ao nfvel da lingua, do corpo e da ac¢ao, bem como da competigao, da economia e do espectéeulo, Se ndo houvesse criquete na india, teria sido preciso inventar outra coisa qualquer para que o piblico experimen- tasse os recursos da modernidade. 6 O numero na imaginagao colonial No fim de 1990, nos tiltimos meses do regime de V. P. Singh e na tur- bulenta transigdo para um pais governado por S, Chandrasekhar, a india (especialmente o Norte de lingua hindi} foi abalada por duas grandes ex- plosdes. A primeira, langou membros de diferentes castas uns contra os outros, de tal maneira’que ‘muitos temeram pela derrocada da admis a. A segunda, as- sociada & cidade santa de Ayodhya, opés hindus e muculmanos pelo con- trolo de um local sagrado. Estas questées entrecruzadas, cujas relagbes tém sido muito notadas e analisadas, envolvem problemas de legitimidade (quais sio os teus direitos?) e de classificagio (a que grupo pertences € em que paisagem politica se inscreve o teu grupo?). Este capitulo explora \_a8 rafzes coloniais de uma dimenstio da volitil politica de comunidade classificagao na india contemporanea. Ao fazé-lo, segue na esteira de mui tos autores recentes que relacionaram as politicas de casta e comunitéria com a politica da representatividade de grupo no século XX (Kothari, 2}, 19894, 19895; Shah, 1989) e com o papel dos censas coloniais (Thapar, 1989). Mas as ligagbes precisas e distintivas entre enumeragio e classi 155 wok 1 OY OVO YOM GG PINION VEUVVuULVve ARJUN APPADURAT da escola subalterna, como Ranajit Guha (1983), David Amold (1988) € Dipesh Chakrabarty (1983). Este elemento surge também sob forma resi- dual num grande estudo da imaginagdo orientalista na {ndia (Inden, 1990). O interesse de Cohn pelos censos prolonga-se igualmente numa importan- te colectanea de textos (Barrier, 1981). Todos estes historiadores demons- traram de diversas formas que as classificagdes coloniais tiveram 0 efeito de reorientar importantes préticas indfgenas segundo novas direcgSes, atribuindo pesos e valores diferentes as concepgdes de identidade de gru- po, de distingSes fisicas ¢ de produtividade agréria existentes. Mas pres- tou-se menos atengGo & questo dos nimeros, da mensuragdo € quantifi- cago desta iniciativa. ( vasto oceano de niimeros relativos & terra, aos campos, colheitas, florestas, castas, tribos, etc., coligidos sob dominio colonial desde cedo, no século XIX, nfo foi uma iniciativa wilitéria de feigao meramente refe- rencial. O seu utilitarismo integrava-se num complexo de técnicas infor- macionais, justificativas e pedagégicas. Determinados funcionérios em determinados niveis do sistema, preenchendo formulérios burocriticos destinados a fornecer dados quantitativos em bruto, consideravam a sua tarefa utilitéria num sentido corrente, burocrético. Os mimeros oficiais fo- ram muitas vezes utilizados para importantes fins pragmiticos, como es- tabelecer os impostos na agricultura, resolver conflitos com terrenos, de- cidir diversas opgées militares e, mais para o fim do século, tentar adjudicar reivindicagdes indigenas de representagdo politica ¢ de altera- Ses administrativas. Os némeros foram sem diivida tteis para tudo isso, ‘Mas o que & menos dbvio € que foram geradas, cas em quantidades tais que ultrapassavam de longe quaisquer finalidades burocraticas unifi- cadas. As estatisticas agrérias, por exemplo, no sé estavam cheias de er- ros tecnicos ¢ de classificago como também estimulavam novas formas de pratica agréria e de auto-representagao (Smith, 1985). Portanto, embora as primeiras politicas coloniais de quantificagao se tenham pretendido utilitérias, diria que os nimeros foram progressiva- meate assumindo um lugar eada vez mais importante na ilsio de conirolo burocrético, tornando-se uma chave do imagi Yirio colonial em que as abs- 153 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGEO tracgbes contabilisticas de pessoas e recursos, a todos os niveis imaginé- veis e para todos os fins conceptive's, criaram a sensago de haver con- twolo sobre a realidade indigena. Os nimeros integravam-se na recente ex- perigneia histérica da literacia para a elite colonial (Money, 1989; ‘Thomas, 1987), que assim comegou a acreditar que as quantificagées so socialmente titeis. Facil € provar que © significado destes nimeros era muitas vezes inexistente ou auto-suficiente, sem se tornar um referente principal para uma realidade complexa, exterior &s actividades do Estado colonial. A longo prazo, estas estratégias enumerativas contribufram para inflamar identidades comunitérias e aacionalistas que na reajidade mina- ram o dom{nio colonial. Temos pois que saber como é que a ideia de né- mero, enquanto instrumento do controlo colonial, terd podido entrar na imaginagao do Estado. Relativamente & Inglaterra, para resporider a esta pergunta hé que re- montar & hist6ria da numeracia, literazia, fiscalismo piblico e pensamento actudrio nos séculos XVII e XVIII (Hacking, 1975, cap. 12; 1982, 1986; Brewer, 1989). E na realidade uma histéria muito complexa, mas no fim do século Xvi, niimero, tal como paisagem, heranca e povo, passam a fa- zer parte do Iéxico da imaginagdo poittica britanica (Ludden, 1993) e im- plantou-se firmemente a ideia de que um Estado poderoso nio pode so- breviver sem fazer da enumeragdo uma técnica essencial de coftrolo social. Assim, em Inglaterra o censo deu répidos passos téenicos ao longo de todo 0 século XIX e sem diivida forneceu o esquema geral dos censos do final do século xix na india. Um panorama do material dos censos bri- tanicos do século xix (Lawton, 1978) sugere que, operando num quadro de classificagées simples que os servizos partilhavam com 0 povo, os cen- sos ingleses ndo tiveram os efeitos refractivos e generativos que tiveram na india, Embora no possa provar aqui, sem sombia de diivida, yue as opera ges metropolitanas do censo britinico foram diferentes das levadas a cabo na india, hé és boas razBes para supor que houve diferengas im- Portantes. Primeiro, a base do censo britdnico foi esmagadoramente terri- torial e ocupacional e nio étnica ou raci . Segundo, na medida em que 159 ARJUN APPADURAL 1s seus objectivos eram socioldgicos, em Inglaterra, os censos ligavam-se, directamente as politicas de representago, como na questo das 2onas de- gradadas. Finalmente, € muito importante que tanto os planos de censos ingleses como franceses (bem como as ciéncias sociais embrionérias a que estavam associados) tendessem a reservar as suas investigagoes mais in- tromissoras para as suas margens sociais: os pobres, os depravados, os Ioucos e os ctiminosos. Nas col6nias, pelo contrario, toda a populagio era considerada diferente de um modo problematico ¢ essa diferenca reside ‘no préprio coragdo do orientalismo (Nigam, 1990, p. 287). Além disso, na {ndia, esta propensao orientalista foi tragada para ir ao encontro da sua contrapartida indigena na aparente cardinalidade da diferenga propria da ideologia indigena de casta tal como esta aparece aos olhos ocidentais. Neste sentido, as similitudes e diferengas entre os projectos coloniais bri- tinicos e franceses esto ainda por discemnir, mas é evidente que a preo- cupagdo interna com os comportamentos desviantes ¢ a marginalidade se estendeu & administragio de populagdes inteiras no Oriente (Armstrong, 1990; Rabinow, 1989). Embora houvesse ligagdes claras e importantes en- tre acgdes de classificagio, cigncia, fotografia, criminologia, etc., na me- tr6pole e nas colénias, néo parece que as actividades enumerativas assu- ‘missem a mesma forma cultural em Inglaterra e na {ndia, quanto mais no fosse porque os Ingleses nao se viam como um vasto edificio de comuni- dades exéticas desprovidas de uma organizagio digna desse nome. ‘Num cenério colonial como a India, o encontro com um conjunto de grupos altamente diferenciado, religiosamente Outro, deve ter assentado ha preocupagao metropolitana da ocupagdo, classe e religido, tudo ele- mentos proeminentes dos censos britinicos do século XIX. Criou-se assim uma situagao em que a recolha de informagao e de arquivos para essa in- formagiio assumiu proporgdes enormes e os dados numéricos se tornaram cruciais para esta tendéncia empirista. Por essa altura, o pensamento es- tatistico era aliado do projecto de controlo cfvico, em Inglaterra como em Franga, em projectos de saiide piiblica, planeamento urbano, direito penal e demografia (Canguilheim, 1989; Ewald, 1986, Hacking, 1975, 1982, 1986). Ter pois sido tentador para os burocratas“turopeus imaginar que 160 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGKO bons dados numéricos tormariam mais ffcil o arranque de projectos de controlo social ou de reforma nas colénias. Esta hipstese levanta duas questdes diferentes mas relacionadas entre si, Seria a India um caso especial ou limite relativamente a0 papel da enu- meragio, exoticizagao e dominago nas técnicas do modemo Estado-na- 40? Diria que foi um caso especial, porque o olhar orientalista defron- tou-se na india com um sistema indigena de classificagio que parecia virtualmente inventado por uma qualquer forma anterior e indigena de orientalismo. Nao subscrevo a opinido de que os textos hindus constituem uma mera variago sobre textos orientelistas tardios, assim just tendéncias de exoticizagio, por exemplo, dos cédigos de leis coloniais, Defender bem esta posigdo levar-me-ia muito para fora deste contexto, mas quero simplesmente observar qu: também o essencialismo é uma questo de contexto e que a relagio entre o estereotipismo hindu e 0 es- sencialismo britanico em matéria de casta no se pode considerar fora de uma comparagio exaustiva das formagSes estatais e re tos hist6ricos muito diferentes. Nao obstante, no seria acertado pratender que o orientalismo britani- co no deparou, na india, com um imagindrio social indfgena que parecia valorizar de forma notavel a diferenga de grupo. Na {ndia, a casta, embora fosse em si uma parte muito complicada do imaginério social indiano ¢ tivesse sido refractada e reificada de muitas formas através das técnicas briténicas de observagao e controlo, nao foi, porém, uma invengio da ima- ginagio politica dos Ingleses. Neste sentido, a depuracao orientalista da India trazia consigo uma forga social que s6 pode ocorrer quando duas teo- rias diferentes partilham um prinefpio essencial: que os corpos de certos grupos sio portadores de diferenga social e de estatuto moral. E por isso a India é um caso especial. Mas, vista do Angulo do presente, a india pode também ser considerada o caso limite da tendéncia do modero Estado- -nagio para ir buscar ideias existentes de diferenca linguistica, religiosa ¢ territorial para «produzir povo» (Balibar, 1990)*. O papel dos niimeros nos aparelhos coniplexos de recolha de informa- ges, como 0 aparetho colonial na {ndia, tinha dois lados que, em retros- josas em contex- 161 TUTTE COCCOCOOOO COO OOOO SE SOUIGGE ARIUN APPADURAT pectiva, ha que distinguir. Um deles, podemos qualificé-lo de justificati- Vo, o-outro, de disciplinar. Uma parte muito grande da informagio esta- tistica reunida pelos funcionérios britinicos na India ndo servia apenas para tomar mais facil aprender ou descobrir como governar os territérios indianos. Estes dados estatisticos contribufam também para analisar e en- sinar, no contexto do discurso ¢ da prética burocriticos, primeiro entre a Companhia das indias Orientais e 0 parlamento inglés, mais tarde entre 605 funciondrios da coroa na India e os seus patrdes em Londres. (Smith, 1985, € uma exposigao clissica da Iégica geral que interliga relat6rios, manuais ¢ registos da India no século XIX.) Os nimeros eram uma parte fundamental do discurso do Estado colonial porque os seus interlocutores metropolitanos se tinham tornado dependentes dos dados numéricos, por mais duvidoso que fosse o seu rigor € relevancia para as grandes inicia- tivas administrativas relativas a recursos. A dimensao justificativa do uso dos ntimeros na administrago colonial, como € ébvio, esté também rela~ cionada com os diferentes niveis do Estado britinico na {ndia, onde os ni- meros alimentavam uma série de conflitos instalados entre funcionérios indianos dos niveis inferiores da burocracia, percorrendo o sistema até a0 governador-geral da India, através de uma série de comissdes, direcgdes- -gerais concorrentes e titulares de cargos que travavam um debate interno constante sobre a plausibilidade e relevancia de varias classificagdes ¢ dos riimeros a elas ligados (Dirks, 1987, caps. 10 ¢ 11; Hutchins, 1967, p. 181; Presier, 1987, cap. 2). Os niimeros relativos a castas, aldeias, grupos religiosos, produtos, dis- tincias e pocos entravam numa linguagem de debate politico em que 0 es- tanuto de referéncia rapidamente se tornou muito menos importante neste do que era no seu papel discursivo de apoio ou subversio dos virios gestos classificativos e das teses organizativas neles baseadas. E importante notar que 05 niimeros permitiam uma comparagao entre tipos de lugares e pes- sous com outras diferengas, que eram formas concisas de transmitir gran- des compos de informago e que serviam como forma suméria de captar € apropriar eracteristicas de outro modo recaleitrantes da paisagem huma- India. Ndo que os nimeros nao servissem um objectivo refe- nae soci DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO rencial directo na pragmética colonial, pois indicavam caracteristicas do mundo social indiano aos burocratas e aos politicos, mas este objectivo referencial tinha muitas vezes menos importincia que o objectivo ret6rico, E isso deve-se em parte ao facto de a mera vastidao dos nimeros envol- vvidos nos principais debates politicos do século XIX tornar intratavel a sua dimensio estritamente referencial ou informacional. Contudo, as fungdes justficativas destas estratégias numéricas pare- cem nio ter sido mais importantes do que as suas fungdes pedagégicas e disci mn ares, Relativamente a esta tiltima, as ideias de Foucault sobre bio- tica sio'sem divida extremamente relevantes, pois o Estado colonial considerava-se parte integrante do corpo politico indiano ao mesmo tem- po que se empenhava em reinscrever a politica do corpo indiano, espe- cialmente no seu envolvimento com 0 sati, a prética de suspender © corpo de ganchos, 0s ritos de possessio e outras formas de manipulagiio do cor- po (Dirks, 1989; Mani, 1990). Voltare: mais tarde a este ponto, Mas a questo numérica complica de certo modo as coisas. E que nao se trata aqui simplesmente das necessidades logisticas do Estado, mas também das suas necessidades discursivas construidas fundamentalmente como necessidades estatisticas Além disso, ndo se tratou apenas de fornecer o leo numérico & engre- nagem administrativa cuja forma discursiva fora construfda através de um complexo desenvolvimento europeu que inclufa pensamento proba- tico e prética cfvica. Foi também uma questio de disci funcionalismo do Estado colonial (ver também Smith, 1985, ¢ Cobn, 1987), bem como a populagio que estes funciondrios desejavam controlar e reformar, de maneira a que os nimeros pudessem tomnar-se indispensd- veis nas praticas e no estilo burocriticos. Numero e politica cadastral 0 ponto de ruptura entre os momentos empirista e disciplinar da nu- merologia colonial observa-se nos muitos documentos técnicos produzi- 163 ARJUN APPADURAL idos nos meados do século XIX. HA muitas maneiras de conceptualizar esta ‘mudanga, incluindo a que nela vé «uma transformagio do censo de ins- trumento fiscal em instrumento de conhecimento», nas palavras de Ri- chard Smith (1985, p. 166), que identifica a ocorréncia desta alteragdo no Punjab, por volta de 1850. Na anilise que se segue, uso um documento mais ou menos do mesmo perfodo, da {ndia Ocidental, para ilustrar a for- ‘macio do novo olhar numérico do Estado colonial nos meados do século XIX. Este documento, publicado com 0 titulo Relatério Conjunto de 1847, foi na verdade publicado em livro em 1975 pelo Departamento de Registo Fundiério do Estado de Maharashtra, na India Ocidental (Governo de Ma- harashtra, 1975). O subtitulo € Normas para a Mensuragao ¢ Classifica- do para as Inspecedes do Decito, Gujarate, Konkan'e Kanara. Pertence a.uma classe de documentos que mostram que a Companhia das indias Orientais procura normalizar as suas préticas de exploragdo de terrenos ‘em toda a extenso dos seus territérios e racionalizar priticas geradas no “ltimo quartel do século XVIIte primeira parte do século XIX, no calor da conguista. E, por exceléncia, um documento de racionalizagio burocréti- cca, na sua intengZo de criar e estandardizar-as normas do rendimento fun- diério para toda a terra sujeita 8 jurisdi¢do da Companbia na regio do De- cdo. Mas contém também uma série de cartas ¢ relat6rios do principio da década de 1840 que revelam uma discussio séria entre 0 funcionalismo local e central sobre as minticias da cartografia do terreno agricola na {n- dia Ocidental e os seus objectivos mais vastos, como tributagio e resolu- go de conflitos. E um documento basilar da politica cadastral. Na esteira da caracterizagio que Ranajit Guha fez. da «prosa de con- tra-insurreigao» (Guha, 1983), podemos qualificar 0 Relatério Conjunto de exemplo classico da prosa de dominagao cadastral. E uma prosa com- posta em parte por regras, em parte por ordens, em parte por apéndices e em parte por cartas e peti¢Ges, a ler como um todo. Nesta prosa, os debates intemos da burocracia fiscal, a pragmética da formagio de normas e a-re- térica da utilidade agompanhavam sempre as recomendagdes finais das autoridades aos virids\niveis das novas técnicas. Sio documentos cuja re- 168 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO. trica manifesta é técnica (isto ¢, positivista, transparente e neutral) mas cujo subtexto € contestatério (relativamente aos superiores) e disciplinar (relativamente aos inferiores). © grosso do documento, como muitos outros do seu género, € verda- deiramente borgesiano, esforgando-se por encontrar métodos e repre- sentagGes textuais préprios para captar a generalidade © as minticias do terreno agricola indiano, A analogia com elissico de Jorge Luis Borges, a historia do mapa que tinha que ser tio grande como o terreno que re- Presentava, nio € fantasiosa, como demonstra esta queixa de um funcio- nirio sobre uma técnica cartogréfica anterior: ‘ Por altura do levantamento do Deco por Mr. Pringle, prepararam-se uns re- sistos muito pormenorizados.c intrincados, chamados kaifiats, que também achimos bem pér de parte por serem inite's e por, dado 0 seu comprimento complexidade exagerados, se tomarem mais obscuros que esclarecedores dos a5- suntos de que tratam; e ainda por o seu volume tornar impossivel a detec de erros (nota de rodapé de 1975: os kaifiats preparados para muitas das aldeias ins- Peccionadas por Mr. Pringle tinham para cima de 300 jardas de comprimento) (Relatbrio Conjunto, p. 55) A despeito desta queixa de 1840 sobre os absurdos borgesianos dos esforgos cartograficos anteriores, a tensfo entre economia repre- sentativa e pormenorizagio nao desaparece. Ao longo de toda a década de 1840, prossegue a luta entre a5 auto:idades fiscais do Decio e as Finangas, que tém aspiragdes algo mais sindpticas e pandpticas nas suas inspecgOes. Primeiro, hd a relagdo entre mensuragio e classifica- ‘40, que é por sua vez objecto explicito de anslise em muitas das cartas © relatorivs que conduzem ao Relatdrio Conjunto, onde foram fixadas as regras basicas de inspecg&o para esta regio e para as décadas sub- sequentes. No que toca & medi¢do, os funciondrios briténicos directa- mente responsdveis pela tributagdo entendiam-na como um problema de adaptar os métodos trigonométricos, topogréficos e agrimensérios para criar mapas que consideravam exactos ¢ funcionais. Pretendiam «multiplicar as c6pias destes mapas de maneira econémica e rigorosa, 165 xy we ARJUN APPADURAI bem como precaver-se de futuras tentativas fraudulentas de alteragdo», ¢ portanto estes funcionérios sugeriram que «deviam ser litografados» (Relatério Conjunto, pp. 9-10). A sua preocupagio de rigor nas medi- Ges incorporava ja as ideias estatisticas existentes sobre percentagens de-erro e «margem de erro», que queriam reduzir. Estes funciondrios reconheciam que a classificago ¢ uma questo muito mais ingrata do que a mensuragdo; mas no respeitante & mensura~ ‘¢do, eram ingenuamente positivistas: «Estes resultados tém um cardcter absoluto e invariavel e podem ser atingidos de muitas maneiras com igual seguranga» (p. 10). A classificagaio de campos com vista a uma tributagio justa levantava um ror de problemas quanto a tipificago dx variagtio para fins de classificagio, de modo que a classificagao podia ser suficientemen- te geral para se aplicar a uma vasta regido mas suficientemente especifica para albergar importantes variagées de terreno. A solugdo resultante im- plicava uma classificagdo dos solos em nove fases, um complexo sistema de notagdo para os inspectores no terreno € um intrincado algoritmo para ‘a tradugio desta variagdo qualitativa em valores quantitativos relevantes para a tributagdo do rendimento, Por outras palavras, as disciplinas detalhadas de mensuracio ¢ classi- ficagio (uma com base nas préticas icbnicas de trigonometria ¢ inspec. em geral, a outra nas ideias numéricas e estatfsticas de margem e percen- tagem de erro) foram as técnicas gémeas através das quais se concebeu ‘uma politica fiscal equitativa, assente em principios de aplicabilidade ge- ral que fossem simultaneamente to sensiveis quanto possivel as variantes locais. Esta mentalidade — generalidadé da aplicagao e sensibilidade a variagées minimas — correspondia & principal tenso nao s6 nas inspec~ ges cadastrais como em todas as aspiragbes informacionais do Estado co- oni. Como eaplicarei adiante, esta mentalidade ¢ também o clo crucial entre a l6gica cadastral da primeira metade do século e'os censos demo- {grificos da segunda, em termos de enumeragio e exoticizagio. As discusses que rodearam o relatorio de 1847 revelam também a tensiio emergente entre as variedades de conhecimento que constitufam ta. Nao € de admirar que os funciondrios mais pré- DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO ximos das variagdes locais ¢ do tigor e jastiga no terreno levassem a mal as obsessivas necessidades pandpticas dos niveis mais elevados da bu- rocracia. Hustrando literalmente a forga do «suplemento» textual (3 ma- neira desconstrucionista), as tabelas numéricas, valores e mapas permi- tiam que a contingéncia — a pura confusdo narrativa das descrigdes em prosa da paisagem colonial — fosse domesticada no idioma abstracto, preciso, completo e frio do niimero. Claro que os ntinieros podiam ser contestados, mas esta luta tinha qualidade instrumental, muito longe do calor da novidade, da luz da fotografia e do realismo colonial das etno- grafias administrativas. Estas propriedades eram de particular valor para aqueles que procura- vam domar as préprias diversidades do terreno e das pessoas que outros aspectos do episteme oriental como a fotografia, os didrios de viagem, as gravuras ¢ exposigdes muito fizeram por criar. Em 1840, o tenente Win- gate, superior responsével pela tradugdo das’ necessidades tributirias do Estado colonial em praticas técnicas e bu-ocriticas localmente exequiveis para o Deciio, escreveu a0 comissério do fisco de Poona, seu superior ime- diato, exprimindo claramente a sua frustragdo ante a volubilidade dos in- teresses da burocracia central: «A presente inspecgio, além do mais, foi institulda com objectivos puramente fiscais e a questo de a subordinar aos da Geografia e Topografia foi agora lzvantada pela primeira vez. Por- tanto, ndo se poderd com justiga objectar, quanto ao plano de operagées, que no inclui o cumprimento de objectivos nao contemplados ao tempo da sua formagio» (p. 69). funcionério do nivel superior seguiate da burocracia fiscal, embora menos directo do que Wingate, tora também claro que esté confuso com 2 relagiio entre as necessidades fiscais e.as necessidades «cientificas» dos seus superiores. Colocado entre dois niveis importantes da burocracia, ‘acrescenta, 20 concluir uma importante carta, que «sejam quais forem os motivos que levem um funciondrio do Fsco a desejar um mapa, os que foram jd fomecidos na tltima inspeceZo sob as ordens do Major Jopp e 0s que estio agora a sair da Inspecgio Fiscal do Decio, de que anexo um exemplar, parecem-me amplamente stificientes; e se for necessirio algo 167 ARJUN APPADURAI mais preciso ou detalhado, deve ser, concluo, para alguma espécie de cigncia especulativa, sobre cuja necessidade nio me compete fornecer opinidio» (pp. 81-82). Documentas como o Relatério Conjunto foram cruciais para discip! nar os nfveis inferiores, especialmente os funciondrios nativos, nas préti- cas empiristas do governo colonial. Na colecg3o de mapas, medidas e es- is de toda a espécie, estes documentos e as regras neles contidas ¢ debatidas mostram que os funciondrios europeus mais novos se preocu- pavam sobretudo em garantir que os padrées da pritica administrativa co lonial fossem respeitados até as mais minuciosas técnicas corporais dos agrimensores. Estas técnicas podem considerar-se técnicas disciplinares aplicadas tanto ao funcionalismo europeu inferior como aos seus subor- dinados indianos. Mas havia uma diferenga importante. Enquanto os pri- meiros podiam no reconhecer a sua sujeigao ao regime do ntimero nos idiomas da ciéncia, do patriotismo e da hegemonia imperial (com que se identificavam racialmente), para os funciondrios indianos estas priticas eram uma inscrigdo directa no seu corpo e no seu espirito de préticas as- sociadas a0 poder estrangeiro dos seus dirigentes. Neste como noutros aspectos do. controlo da mao-de-obra e recursos coloni nem todas as subalternidades eram idénticas. Na realidade, o vasto aparelho de inspeciio fiscal fazia parte de um sistema complexo de disciplina e vigildncia mediante o qual era instilada nos funciondrios nativos toda uma série de hdbitos numéricos (ligados a habitos de descrigdo, iconografia e distingio); estes habitos, por sua vez, implicavam 0 niimero através de um grupo complexo de papéis, incluindo os de classificagae, ordenagao, aproximagio e identificagao. A aritmética politica do colonialismo era ensinada muito literalmente no terreno e traduzida para algoritmos capazes de tornar habituais futuras. actividades numéricas e de instilar a descrigao burocratica com um: fra-estrutura numeroldgica. Em cada uma destas importantes vias, a prosa do controlo cadastal langou as bases e constituiu um ensaio para o discurso posterior relativo is comunidades humanas e sua enumeragio. Este ensaio teve és com- 168 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO ponentes: montou 0 cendrio para 0 uso generalizado de técnicas enume- rativas padronizadoras para controlar 2s variagdes materiais no terreno; tratou as caracteristicas fisicas da paisegem, bem como a sua produtivi- dade e variabilidade ecolégica enquanto separdvel (em certa medida) dos complexos i S.No seu. uso € significado para os in- dianos rurais; € constituid uma preparapdo pedagégica para o tipo de re- gime disciplinar que mais tarde seria necessario aos inspectorés dos cen- sos demogrificos ¢ a colectores de dados de todos os niveis. O niémero (¢ 2 ideologia estatistica subjacente ao niimero) concatenou estes textos cadastrais ¢ forneceu os elos essenciais entre estes fextos e os debates que eles relatam, as prdticas que se destinavam a disciplinar. As- sim, através de uma leitura atenta destes documentos técnicos aparente- mente simples, podemos destringar as tensGes e fracturas ideolégicas, bem como as préticas de ensino e vigildncia, em que ndo se trata apenas de «a terra € para mandar» (Neale, 1969). © governo colonial tinha uma funcio, pedagégica e disciplinar, de modo que «a terra é para ensinar»: medir e base educativa da cultura do nimerd em que a es- tica se tornou o discurso legitimador do apéndice (conferindo peso in- directo A porgio verbal do texto) ao mesmo tempo que deu aos funcioné- ios superiores um sentido pedagégico e disciplinar do controlo nio apenas sobre o territdrio onde procuravam governar, mas também sobre 05 funciondrios nativos necessérios paca levar a cabo essa governacio. Pelo que respeita aos nativos, 0 regime do niimero, com¢ ressalta de todas as paginas desses documentos, existe de certo modo para contrariar 0 hé- bito de mentir que a maior parte dos nativos, tanto agricultores como agri- mensores, consideram constitucional: Temos portanto parte da resposta A pergunta com qite comegdmos, a saber, que papel especial tem a enumeracao dos corpos no dominio colo- nial? Sugeri que os niémeros eram um aspecto voliivel do imagindrio fungo colonial de um modo justificativo e pedagézico, bem como de um modo mais restritamente referencial. A hist6ria do dominio britinico no século XIX pode ler-se, de certo modo, como um deslocamento do uso mais funcional do nimero no que foi chamado militarismo fiscal do Es: 169 Ge ete GE Fey OE es to eH eK ‘ ARIUN APPADURAL tado britanico nos assuntos intemnos (Brewer, 1989) para um papel mais pedagégico e disciplinar. Os corpos indianos néo s6 foram sendo gradual- mente categorizados como thes foram atribufdos valores quantitativos (Bayly, 1988, pp. 88-89), cada vez mais associados ao'que Ian Hacking chamou «nominalismo dindmico» (1986), ou seja, a criagdo de novos ti- pos de personalidade mediante actividades categorizadoras oficialmente impostas. (O niimero desempenhou um papel essencial neste nominalismo to di- nimico do panorama colonial, de certo modo por trazer consigo uma guagem partilhada & transferéncia-de informagao, ao debate © & equiva- 0 e periferia e as discusses entre um imenso exéreito de burocracias mediadoras na india. O niémero fazia pois parte da tarefa de traduzir a experiéncia colonial em termos apreens{veis pela metrépole, termos que poderiam abarcar as peculiaridades etnoldgicas suscitadas pelos vérios discursos orientalistas. As glosas numéricas cons- tituem uma espécie de metalinguagem do discurso burocrético colonial no qual se podem arrumar entendimentos mais exéticos, num tempo em que enumerar populagdes e controlar ¢ reformar a sociedade era moeda cor- rente na Europa. Estas glosas numéricas, que aparecem a acompanhar da- dos de descrigdo e recomendagdes discursivas, devem considerar-se um quadro normalizador das realidades discursivas mais estranhas que os tre- chos verbais de muitos textos coloniais precisavam de construir. Este qua- dro normalizador funciona em trés dos niveis analisados por Foucault: co- mhecimento € poder, texto € praxis, leitura ¢ dominagdo, Segundo a distingao de Richard Smith (1985) entre govemno-por-registo e governo- -por-relatério, vé-se que os nimeros nos registos forneciam o lastro em- pirico ao esforgo descritivo do olhar colonial, ao passo que os niimeros nos relatérias forneciam um quadro mais normalizador, equilibrando os aspectos contestatério e polifénico das secgdes narrativas destes relaté- rios, em que algumas das tensdes da «prosa da contra-insurreigo» eram partithadas (Guha, 1983). 170 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO Contagem colonial de corpos Estas préticas enumerativas, no cenéio de uma sociedade largainente agricola que 0 Estado mogol tinha praticamente j preparado, em grande medida, para o controlo cadastral, teve outra importante consequéncia, Nio foram um mero ensaio de priticas de contagem para os censos na- cionais indianos apés 1870, Realizaram também uma importante tarcfa, até hoje quase ignorada. O enorme aparelho de disposigées fiscais, ins- pecgdes agrérias e mudangas juridicas e burocréticas da primeira metade do século XIX fez mais do que mercantilizar a terra (Cohn, 1969): trans- formou «senhores em senhorios» e camponeses em agrétios (Prakash, 1990); e transformou as estruturas reciprocas de dédiva e de honra em ti tulos vendéveis, semioticamente fracturados e comercialiaaveis, que fo- ram postos no mercado sem deixarem de possuir a forga metonimica que 6s ligava as pessoas nomeadas. Arrancou também os grupos sociais as suas complexas estruturas de grupo localizadas ¢ as préticas agricolas em que tinham estado inseridos, fosse no contexto do «colonato silencioso» dos inams do Sul da india (Frykenberg, 1977; Dirks, 1987), dos inams de Maharashtra (Preston, 1989), dos jomaleiros escravos de Bihar (Prakash, 1990) ou dos Julahas de Uttar Pradesh (Pandey, 1990). A imensa diver- sidade de castas, seitas, tribos e outros agrupamentos priticos da paisagem indiana transformou-se numa vasta paisagem categorial liberta das espe- cificidades do campo. Esta alterago processa-se em duas fases principais, uma associada a0 perfodo anterior a 1870, durante o qual as questées de ocupagio e tribu- tagdo da terra sZo projectos coloniais dominantes, outra no periodo entre 1870 ¢ 1931, época do grande Censo Pan-Indiano, cujo projecto dominan- te a enumerago das comunidades hummanas. Os anos que vio de cerca de 1840 a 1870 assinalam a transigao de uma para outra destas orientagoes principais. O primeiro periodo instala as condigées para o segundo, pois € dominado por uma preocupagio pela base fisica e ecol6gica da produ- tividade e rendimento da terra; como jé afirmei, a pritkeira época liberta em certa medida esta variabilidade do mundo social © humano a ela as- im ARJUN APPADURAL sociado, no contexto dos esforgos para travar uma batalha pela estandar- dizagio contra a variagéo no terreno. No segundo perfodo, tdo bem ex- plorado por Rashmi Pant (1987) no contexto das Provincias do Noroeste e de Oudh, ocorre o movimento inverso € os grupos humanos (castas) sio tratados em grande medida abstraindo dos contextos regionais ¢ tertito- riais em que funcionam, Claro que € importante notar que estes projectos coloniais eram concomitantemente afectados pelas contradigGes internas (a pressio para a especificidade e generalizago dos nomes das castas no Censo Pan-Indiano, por exemplo), por incoeréncias entre os diferentes projectos colonials e, acima de tudo, pelo facto de as operagbes burocr’- ticas coloniais ndo transformarem necessariamente as préticas ou as men- talidades no terreno. Voltarei a este tema no final do capitulo, numa ané- lise do stbdito colonial. O erisaio fundamental de Pant analisa modo como a casta se toma uma sede crucial de actividades do censo nacional apés 1870, 20 contrério de ou- tras sedes. A par do ensaio de Smith (1985), a tese de Pant permite-nos ver que a pritica burocrética colonial, como lugar de ago contingente e his- toricamente configurado por direito prOprio, contribuiu para criar uma re- lagdo especial e forte entre essencializagio, disciplina, vigilancia, objecti- ficagdo e consciéneia de grupo nas tiltimas décadas do século XIX Os ntimeros desempenharam um papel crucial nesta conjuntura e 0 pri- ‘meiro panorama estatistico foi um factor determinante na gravitagZo do censo para a casta como sede-chave da classificagao social, pois a casta surge como a chave da variabilidade social indiana, bem como da men- talidade indiana. Pant, que parte da obra anterior de Smith, salienta que o uso da casta para «diferenciar uma corrente de dados» comegou por ser aplicado ao dominio das estatisticas de género nesta regio (1987, p. 148). Especificamente, defende-se, no relat6rio de 1872 do Censo’Pan-Indiano para as Provincias do Noroeste e de Oudh que certas hipsteses sobre a taxa dos sexos relativamente ao infanticidio femninino s6 se podia explicar por referéncia A casta. Este intuito de explicar e controlar comportamentos exéticos é uma prova crucial de que empirismo e exoticizagdo ndo eram aspectos desligados do imaginério colonial na india. Esta ligagio das es- in DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACAO tatisticas empfricas & gestio do exético esteve na base de uma orientagio politica mais geral, a saber, que muito do que era preciso conhecer sobre populagio indiana s6 poderia tornar-se inteligivel mediante a enumera- gio detalhada da populagio em termos de.casta. Embora a hist6ria subsequente do Censo Pan-Indiano mostre que hou- ve na prética’enormes dificuldades e anomalias no esforgo de construir para toda a India uma grelha de castas nomeadas e enumeradas, o princi- pio s6 nos anos de 1930 foi abandonado. Como demonstra Pant, «pelo vi- rar do século, o estatuto epistemoldgico de casta como sede do reconhe- cimento de unidades qualificadas e socialmente eficazes da populagio indiana jé estava instaurado, assim o confirmam os Relat6rios dos Censos de 1911-1931» (p. 149). Mas hé também que notar que, como a recolha de dados sobre casta criou um fluxo de informagdo enorme e dificil de processar, jé na década de 1860 apenas zs «maiorias numéricas» tiveram destaque nos relat6rios dos censos. A preocupacio com as maiorias nu- méricas nasceu pois como princfpio para organizar a informacao dos cen- sos. Este prinefpio burdcratico aparentemente inécuo é, como € Sbvio, a base ldgica das ideias de grupos maioritirios e minoritérios que mais tarde afectou a politica hindu-mugulmana na {ndia colonial e a politica de castas na India durante todo o século XX ¢ até hoje. Embora seja certo que a casta enquanto tropo essencial para taxono- mizar a paisagem indiana é um produto relativamente tardio do dominio colonial (Pant, 1987), a essencializagao mais generalizada dos grupos in- dianos remonta pelo menos 20 inicio do século XIX, quando no antes, como demonstrou Gyan Pandey com as castas dos teceldes de Uttar Pra- desh (Pandey, 1990). Até as tltimas décadas do século XIX, porém, a es- sencializago dos grupos no discurso orientalista e administrativo esteve \ muito separads das priticas enumerativas do Estido, excepto na medida em que se ligavam directamente a objectivos fiscais localizados. Uma anélise do censo colonial de 1823 no Sul da India (Ludden, 1988) mostra que 0 interesse do final do século x1x pela classificagio e extymeragio so vern muito de tras. Mas este primeiro censo, no geral, parece prag- mitico, localista e relacional no seu tratamento dos grupos e no de aspi- 173 GUE ECOVUVETE VE WE UY EOweTE we eww! ARJUN APPADURAL rages abstractas, uniformistas ou enciclopédicas. Foi um censo ainda orientado para o fisco e no para 0 conhecimento, para usar 0s termos de Smith, Depois de 1870, porém, no s6 os ntimeros passaram a fazer parte in- tegrante do leologias priticas dos seus funcio- nérios inferiores como os grupos sociais indianos ficaram funcional e dis- cursivamente libertos das paisagens agrérias locais, 4 deriva numa vasta enciclopédia social pan-indiana. Esta libertagZo ficou a dever-se a0 sen- tido erescente de que a morfologia social de easta poderia fornecer, atra- vés do censo, uma grelha geral para organizar o conhecimento da popu- 1a. So estas as condigdes da forga especial do censo indiano a seguir a 1870, que se déstinava a quantificar classificagdes anteriormen- te estabelecidas, mas que na realidade teve apenas 0 efeito contrério: timular a automobilizagdo destes grupos para uma série de formas p cas translocais mais vastas. £ também este o lugar para notar a diferenga fundamental entre os Bri- tdnicos e os seus predecessores mogéis: se se esforgaram por cartografar e medir a terra sob o seu controlo para efeitos fiscais (Habib, 1963), ge- rando assim uma grande parte do vocabuldrio tributdrio ainda hoje vigente ia € no Paquistio, os Mogéis nZo realizaram porém, que se saiba, qualquer censo de pessoas, facto apontado por Irfan Habib como a prin- ipal razdo da dificuldade em calcular a populagio da {ndia mogol (Habit 1982, p. 163), A enumerago de vérias coisas por certo fazia parte do ima- ¢gindrio do Estado mogol, bem como o reconhecimento das identidades de ‘grupo, mas nio a enumeragio das identidades de grupo. Quanto as outras ‘grandes formagdes politicas pré-coloniais do subcontinente, como 0 reino de Vijayanagara, parecem nio ter seguido os processos lineares, centrali- zadores, arquivistas das Mogéis e estar orientadas no éentido do niimero enquanto cosmopolitica de nomes,teritrios, honras, quotas ¢ relagbes, mogéis do subcontinente indiano ant: do aqueles que, como os Maratas, geriram dominios po ‘mente m icos elaborada- jetarizados (Perlin, 1987), parecem nio se ter interessado pelo . cado a terra na primeira metade do século XIX e por fim a idei DIMENSOES CULTURAIS DA GLoBaLIzacao niimero como instrumento directo do controlo social. Nestes regimes pré- -coloniais, as actividades enumerativas andavam ligadas & tributago, con- lade e rendimento fundidrio, mas o elo que liga enumerago a iden- idade de grupo parece na verdade muito débil. Quando o havia, sempre pareceu ligado a formaga (associagdes de luta e gi ral (Freitag, 1990) sociais muico especfficas, como as akharas ica), ¢ no A enumeragio da populagiio em ge- ador entrasse no imagindrio do Es- médio foi essencializar € taxonomizar 0 anterior 10 (de tipo europeu), a que se seguiu o habito enume: entre classificagdes demogrificas e politicas de i chegamos finalmente ao coragdo da tese, tan- to no que respeita as diferengas entre o reg:me colonial da India (e suas con- , bem como 03 seus predecessores indfgenas) como ao elo que liga politicas classificativas coloniais e politicas democrd- ticas contemporineas. A enumerago do corpo social, concebido como agregados de individuos cujos corpos erum intrinsecamente colectivos Sticos, cria 0 cendrio em que a diferenca de grupo é o princfpio central a. Ligar'a ideia de representagao & ideia de comunidades caracte- rizadas por comunalismos bio-raciais (intemamente) e diferengas bi que ocorreu na colsnia foi uma conjuntura que nunca se verificou na metr6pol cial de normalizar a variagZo no solo e no territério, a par da a representagtio numérica € a chave para normalizar a pi renga que representava 0 corpo soci médion (0 homnie%yroyen de Que! (como calcanhar de Aquiles epistemolégico) ¢ transitou para 0 dor ARJUN APPADURAL da diferenga de grupo, Instala-se assim uma extensdo orientalista da ideia metropolitana de representagio numérica de grupos (entendidos como sendo compostos por individuos médios) e da ideia de eleitorados sepa- rados, que é uma evolugdo natural dessa outra, a de a India ser uma terra de grupos (tanto para fins civis como politicos) e de os agrupamentos so- ciais indianos serem intrinsecamente especiais. Assim, sob 0 dominio co- lonial, pelo menos na india britanica, a dimensio numérica da classifica~ ‘go traz em si a semente de uma contradigao especial, pois foi levada a existir num mundo concebido como uma das incomensurdveis diferengas de grupo, Nacionalismo, representagdo € nimero ‘A abordagem comunitarista, que mais tarde (na primeira parte do sé- culo Xx) teré-a sua mais importante manifestagio nos eleitorados separa- dos para hindus € mugulmanos (Hasan, 1979; Pandey, 1990; Robinson, 1974), de modo algum se restringiu a estes. Assentava nas ideias anterio- res da casta como principio bésico de uma morfologia geral da populagio indiana (conhecida pelos censos) ¢ outras ainda mais antigas sobre a ca~ pacidade da enumeragdo para captar a natureza variavel e tratavel da terra e dos recursos da india. Esta abordagem comunitarista foi também crucial para a definigdo da dindmica de ideias de maioria e minoria como termos culturalmente codificados para os grupos dominantes e submetidos do Sul da {ndia (Frykenberg, 1987; Saraswathi, 1974; Washbrook, 1976, cap. 6) e noutros pontos. E portanto plausivel afirmar, como Rajni Kothari (19892, 19896) e outros, que o préprio tecido da democracia indiana con- tinua a ser adversamente afectado pela ideia da votagdo em bloco nume- ricamente dominada, por oposigio as ideias mais cléssicas do voto indi- vidual de cada burgués como cidadio democritico. Embora saia do ambito deste capitulo demonstrar em pormenor de que modo a importéncia cognitiva da casta nos censos indianos dos anos de 1870 antecipa a politica comunitéria deste século, hd que notar que, mes- 176 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO ~ mo depois de 1931, quando a casta deixou de ser uma preocupagao central dos censos na India, a ideia de politica como contrério das comunidades essencializadas e enumeradas (este titimo é um conceito que devo a Ka viraj, 1994) jé se tinha apoderado da organizacao regional e local e pas- sava portanto a dispensar o estimulo do censo para continuar a dominar 2 politica indiana. Como observou Shah (1989), houve um esforco regular (e resultante) nestas décadas passadas para inverter a politica pés-1931 de climinagio da contagem de castas para os censos. Hannah Pitkin (1967) ¢ outros escreveram eloquentemente sobre as re- ages complexas entre representago nos seus sentidos moral, estético ¢ politico. Nao preciso repetir aqui esta genealogia ocidental, ekcepto para notar que muito cedo na histéria do Iuminismo a ideia de democracia cou ligada a uma ideia de soberania representativa dos stibditos. Portanto, como salientou Robert Frykenberg (1$87) para 0 contexto indiano, a po- litica eleitoral tornou-se simultaneamente uma politica de representagdo (do povo para 0 povo — um jogo de espelhos.em que o Estado se torna virtualmente invisivel) e uma politica ce representatividade, ou seja, uma politica de estatisticas em que alguns corpos podem valer por outros cor- pos por causa do prinefpio numérico da metonimia, em vez dos variados prinefpios cosmopoliticos de representagdo que caracterizavam as ideias de direito divino em muitas organizagées sociais pré-modernas. No século-XIX e principio do século Xx, o Estado colonial da india achou-se numa interessante contradicao por procurar usar as ideias de re- presentagao e de representatividade nos niveis inferiores da ordem politica indiana, com prinefpios paternalistas, monarquicos e qualitativos no topo. A histéria da governagio da india por iadianos (que se confinou a um tipo de corpos ao nivel da aldeia e do distrits durante a maior parte da segunda metade do século XIX) foi-se transformando regularmente na I6gica do na- cionalismo indiano, que adoptou a I6gica colonial de representatividade © a usou para anexar a ideia demoerética'de representagiio como repre- sentacdo de si. Assim, a contagem Qs corpos, que servira os propésitos do governo co- nos niveis inferiores na segunda metade do scculo XIX, foi-se trans- Loni 7 GOGO CEETEUUUt GB OEGBEAE ECOG GRenGe ARJUN APPADURAL forriando gradualmente na ideia de representago dos préprios Indianos (governo proprio) & medida que o nacionalismo se tomava um movimento de massas, Claro que, em retrospectiva, como Partha Chatterjee nos ajudou a ver, o nacionalismo sofreu por partilhar a temética de base do pensamento ’io podendo por isso gerar uma eritica plena do mesmo (Chat- terjee, 1986). Portanto, 2 politica dos niimeros, respeitante como estas identidades mais antigas se tornaram politizadas de uma forma radicalmente diferente de outras concepgdes locais da relagio entre a ordem dos jatis ¢ a l6gica do Estado, O processo que permitiu que identidades hin- dus e mugulmanas separadas se construfssem ao nfvel mais amplo, e que as transformou no apenas em comunidades imaginadas mas também em comunidades enumeradas, mais nio que a patologia mais vistvel da trans- feréncia da politica de representago numérica numa sociedade em que a representagio e a identidade de grupo nao tinham uma relago numérica es- pecial com a administragao. Mas poder-se-ia dizer que o governo colonial, fosse dos Ingleses na fndia ou de outros regimes europeus noutros pontos do mundo, nao foi o Uinico a getar comunidades enumeradas. Grandes estados extra-europeus, como os Otomanos, os Mogéis € varias dinastias chinesas, tiveram preo- cupagées numéricas. Onde esti a diferenca colonial? Para o Estado colo- nial avangado, os niimeros faziam parte de um imagindrio complexo no ismo fiscal no sistema mundi sta, a presenga-sombra das jas democraticas ocidentais de representagdo numérica e a passagem sificativa a outra numérica criaram 0 conjuntural nas dtimas tis décadas do século XIX ¢ nas primeiras duas do século XX. (© resultado liquido foi algo de fundamentalmente diferente de todos tos regimes podem ter tido preocupagées numéricas e podem 2: também classificativas. Mas as duas estiveram sempre separadas ¢ some 178 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACAO te na conjuntura complexa das varidveis que constituiu o projecto do Es- tado colonial avangado estas duas formas de nominalismo dindmpico se Juntaram para criar uma organizagdo centrada em tomo de comunidades enumeradas conscientes. Quando estas comunidades se integraram tam bént num discurso oficial mais amplo de espaco, tempo, recursos ¢ re ‘ges que era também extremamente rumérico, gerou-se uma ari politica colonial em que as actividades de essencializar e enumerar comu- nidades humanas se toraram no s6 concorrentes como inimaginaveis uma sem a outra, Esta aritmét a 6 uma parte importarte da biopolitica colonia} (pelo me- ‘nos em termos de Britanicos na fndia)-e no s6 por ter tido a ver com abs- tracgbes numéricas enquanto outros regimes estatais tinham objectivos nu- mméricos mais coneretos (como impos lares). © moderno izante do orientalisino com o discurso as. Neste processo, o corpo do silbdito colonial torna-se simultaneamente estranho e décil. A sua estranheza reside no facto de passat a ser visto como sede de praticas cruéis ¢ e de subjecti- vidades bizarras. Mas as contagens do corpo colonial criam no s6 tipos e classes (indo os primeiros no sentido das diferengas domesticadoras) como também corpos homogéneos (dentro de categorias) porque o nimero, pela sua natureza, aplana € cria limites em toro destes corpos ho- arente a sua extensio, Neste sentido, as estatisticas esto para os corpos e tigos sociais como os mapas para os territérios: aplanam e delimitam, O vinculo entre colonialismo e orientalis- ‘mo sai portanto muito reforgado, ndo nas sedes de classificagio e tipificago (como tantas vezes se tem sugerido), mas nas sedes de enumerago, onde ‘0s corpos sto contados, homogeneizados e cerceados na sua extensio. As- sim, 0 corpo rebelde do siibdito colonial (0 corpo do jejum, do festim, do faquirismo, das ablugées, das piras e das sangraduras) € recuperado através da linguagem dos niimeros que permite restituir esses mesmos corpos, jé contados iene, educacio, servigo Até aqui pode ler-se na minha tese que o projecto colonial de essen- 179 ARJUN APPADURAL cializagdo, enumeragio e apropriagao da paisagem social foi um completo sucesso, Mas na realidade no é assim e hd uma quantidade de fontes que ‘comprovam que 0s projectos do Estado colonial de modo algum foram completamente eficazes, em especial no que respeita & colonizagio da consciéncia indiana. Em vérios tipos de revolta camponesa-e urbana, em varios tipos de escrita autobiogritica e ficcional, em muitos tipos diferen- tes de formagiio e expresso doméstica ¢ em varios modes de pritica cor- poral e religiosa, os indianos de muitas classes prosseguiram préticas e re~ produziram entendimentos altamente predadores do governo colonial ‘Além disso, indianos e indianas remodelam deliberadamente as suas con- cepgdes do corpo, da sociedade, do pafs ¢ do destino em movimentos de protesto, de critica interna e clara revolta contra as autoridades coloniais. Na verdade, é a estas varias fontes que @ resisténcia local vai buscar ener- zgias — energias e espagos (que vo desde os grupos de oragio e associa~ cas as ordens ascéticas,e mercantis) para constituir a base social do movimento nacionalista. Estas energias permitiram a uma pessoa como Gandhi e a-muitas outras figuras menos conhecidas reconquistar a base social e moral aos Ingleses (e ao discurso do préprio orientalismo). Estas reflexes trazem-nos de volta a um problema jé levantado, a saber, 0 do sibdito colonial relativamente aos projectos enumerativos ¢ classificati- vos do Estado. Claro que nio se pode fazer uma generalizagio fécil do grau em que o esforgo de organizar o projecto colonial em toro da ideia de comu- nidades essencializadas e enumeradas abriu caminho & consciéncia pratica dos sibditos coloniais na india. Mas é bastante facil dizer que os resultados devem ter variado conforme as diversas dimens6es da posigio do stibdito colonial: o seu sexo, a sua proximidade ou distancia do olhar colonial, o seu énvolvimento ou desinteresse pela politica co- lonial, a sua participagdo ou distanciamento do préprio aparelho buro- crético. E também verdade que varias pessoas ¢ grupos indianos per- maneceram (na meméria, quando nio na realidade empirica) ligadés & localidade, seja o que for que a visio global via ou dizia. Por isso, em- bora certas componentes do Estado colonial fossem propagadores ac- 180 DIMENSOES CULTURAIS'DA GLOBALIZACAO tivos dos discursos da identidade de grupo, outras, como as relativas a educagio, direito e reforma moral, foram responséveis pela criagio do que se pode chamar um siibdito colonial burgués, concebido como individuo. Este problema nio se pode resolver aqui, mas € preciso re- gisté-lo como uma questo importante que toda a interpretagio das co- munidades enumeradas acabard por ter que enfrentar. Mesmo nos vérios espagos da pandptica colonial que permaneceram livres (fossem sob a acedo dos stibditos coloniais resistentes ou das inca- pacidades e contradigdes do fanatismo colonial), € um facto que o olhar Colonial as técnicas a ele associadas deixaram uma marca indelével na consciéncia politica indiana. Parte desta heranga indelével vé-s¢ na ques- tio dos ntimeros. E a enumeragio, associada @ novas formas de categori- zag0, que cria o vinculo entre o esforgo orientalizante do Estado britini- co, que via a fndia como um museu ou jardim 20 da diferenga e as diferengas, ¢ 0 projecto de reforma que implicava a limpeza dos cor- pos nativos preguigosos, indolentes, frégeis, femininos, obsequiosos, para fazer deles compos viris, musculados, morais ¢ leais que fosse possfvel des- locar para as subjectividades proprias co colonialismo (Amold, 1988). Com Gandhi, temos uma revolta do corpo indiano, um redespertar do eu indiano e uma reconstituigdo do corpo lzal no corpo rebelde ¢ leitor de sinais do protesto nacionalista de massas (Amin, 1984; Bondurant, 1958 Mas o facto de Gandhi ter que morrer depois de ter visto queimar e tar-se mutuamente corpos definidos como «hindu e «mugulmano» recor- da-nos que 0 seu éxito contra o projecto colonial de enumerago e a ideia de corpo politico nio foi e nao esta completado. O corpo queimado de Roop Kanwar (associado a renascente cons- cineia rajput dos homens urbanos nas pequenas povoagSes do Rajas- Go), a auto-Imolagdes de homens e mulheres jovens da classe média “apés o Relatério da Comisstio Mandal revitalizaram-se e 0s corpos dos kar sewaks em Ayodhya e de mugulmanos em Lucknow e noutros lu- gares sugerem que as ideias indfgenas de diferenca se transformaram uma politica mortal de comunidade, processo com muitas fontes his- tricas. $6 que este rastilho cultural e histérico nao arderia com a inten- 1st ARJUN APPADURAL ¥ sidade que hoje vemos se no fosse © contacto com as téenicas do Es- 3 tado-nagio moderno, em especial as que tém a ver com o nimero. O tipo 3 de subjectividade que os Indianos devem as contradigdes do coloni ‘mo permanece, pois, obscuro € perigoso. TERCEIRA PARTE Locais pés-nacionais ce o S GeeGaGce y 182 GOH8R OE 7 A vida depois do primordialismo étnica léncia!, J4 ndo serve ver a nia apenas como mais um principio de ientidade de grupo, mais um dis- positivo cultural para a prossecugdo dos interesses de grupo ou uma com- binagio dialéctica das duas coisas. Precisamos de explicar a etnicidade que explora a sua modernidade’. Talvez o indicador mais claro da e' dade modera seja o facto de ela reunir os grupos que, por mera espacial e forga numérica, sio mui Fuso ‘mais vastos do que os grupos étnicos da antropologia tradicional. Tamiles, Sérvios, Siques, Malaios, Bascos € outr todos so grupos muito grandes, todos reivindicam categoria na- jonal e todos se encontram envolvidos em confrontos violentos com es- ruturas estatais existentes ¢ outros grandes agrupamentos étnicos. Esta atriz — grandes dimens6es, aspirago nacional teriza estas novas etnicidades. E a essa matriz, para agrupamentos mais pequenos, menos voléteis e organizados mais instrumentalmente. 185 180 COGTEO GUT CU CEU UC ECCI SEHEHGt oe ARJUN APPADURAL A caixa negra do primordialismo [A tese primordialista, sob quase todas as suas formas (Apter 1975; Shils, 1957), de pouco serve para explicar as etnicidades do século XX, Esta tese distrai-nos de certos factos importantes, espec te 0s relativos as novas etnicidades da Asia e da Europa na década de oi- tenta, Para descarnar esta afirmagdo, proponho o esqueleto de uma nova abordagem dos movimentos étnicos, em particular nos seus momé violentos e destrutivos. Sem deixar de defender que a tese primordi tem falhas profundas e vendo na etnia uma forma historicamente const normalmente mal entendida e naturalizada como motor primordial da vida social, parto de um importante trabalho anterior de antropologia (Comaroff e Comaroff, 19926; Barth, 1969; Geertz, 1963)° primeiro passo a dar é enunciar a tese primordial te, diz 0 seguinte: todos os sentimentos de grupo q sentido de identidade de grupo, o sentido nds, suscitam esses lagos que uunem as pequenas colectividades fntimas, normalmente baseadas no pa- rentesco ou nas suas extensdes. As ideias de identidade colectiva baseadas na afirmasao do sangue, do solo ou da Ifngua ret de sentimentos que cegam os grupos pequenos. Esta tese enganosamente simples tem certas qualidades especiais que merecem ser notadas. Costu- ‘ma ser citada para explicar certos aspectos da politica, nomeadamente os que mostram os grupos apostados em determinadas formas de comporta- mento que, nos termos do modelo, so consideradas irracionais. ‘Temos aqui o colapso de dois pélos de irracionalidade muito diferentes. ‘Um polo, o que mais apela ao nosso bom-senso, € 0 pélo da violéncia de gru- po, do etnacidio e do terror. O outro pélo é constitufdo pelas formas de com- portamento que parecem antimodernas, quer se trate de uma participagao in- ie nas eleigGes, de corrupgao na burocracia, de resisténcia as modernas genicas de educaciio ou da recusa em acatar medidas do Estado moderno, @ksde 0 controlo de nascimentos ao monolinguismo. A teoria da moder- Essencialmen- am um forte 186 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO nizagdo, em especial quando aplicada as novas nag&es pés-coloniais pelos polit6logos americanos, é em grande medida responsdvel pela definigo des- te sintoma antimoderno de primordialismo, Nos esforgos recentes para expli- car a violéncia étnica, os dois alvos explicativos da teoria primordialista fun- de modo que ¢ primordialismo da resisténcia & modemizacio e o primordialismo da violéncia étnica'se acharam vagamente identificados. A ligagdo dé certos fundementalismos religiosos a actos de violéneia politica emprestou renovada credibilidade a estes dois sintomas tio diferentes de primordialismo. As bombas no World Trade Center, em Nova Torque, despoletaram com toda a forga virias formas populares de teorizagio primordialista, A perspectiva primordi associa ideias ontogens ta sobre questbes de mobilizagdo de grupo s € filogenéticas do desenvolvimento humano. Ou seja, assim como a psicologia ocidental considera que o individuo traz no fundo de si um nicleo afectivo que raramente se transforma e pode sempre inflamar-se, também as colectividades sociais possuiriam uma conscigncia colectiva cujas rafzes histéricas se encontram num passado distante ¢ nio mudam facilmente, estando potencialmente abertas’2 igni- go por novas contingéncias histéricas e se faga muito calmamente esta ligagdo da infancia dos individuos e da imaturidade dos grupos as nagdes do mundo extra-ocidental, embora 2 ex- ploso dos conflitos étnicos na Europa de Leste (e até no ocidente euro- peu) esteja a esbater a linha que separa o Ocidente na tese primordialista, ( facto de a velha linguagem da modemizagdo ter sido substituida por um novo discurso sobre 0s obstéculos & sociedade civil e & democracia sus- tentada nio deve obscurecer a persisténcia da tese primordialista. A répida procura de palavras como tribo e tribalismo na imprensa americana pée onto final no assunto, Que tem de errado a tese primordialista? Um dos problemas é ¢ jaz enterrado nos pressupostos universalistas do primordi particular nas suas formas mais radicais, derivadas do todas as sociedades e nagdes sto compostas por unidades mais pequenas baseadas em vinculos primordiais e se hd animosidades étnicas enterra- 187 ARJUN APPADURAI das em todas as esferas nacionais, porque é que somente algumas ex- plodem em fuiria primordialista explicita? E uma pergunta comparativa ¢ grande parte da literatura de politica comparativa das trés gltimas dé- ‘cadas tentou responder-Ihe, ums vezes reportando-se a factores estru- turais, outras a factores culturais. Estas respostas tém-se revelado geral- mente falhadas porque é cada vez mais visivel que 0 problema ¢ a solugZo so desconfortavelmente ciimplices. Sejamos mais concretos: hi cada vez mais indicios de que os modelos ocidentais de participagaio politica, educacio, mobilizago e crescimento econémico, calculados para distanciar as novas nagdes dos seus mais retrSgrados primordialis- mos, tiveram precisamente o efeito oposto. Sao remédios que cada vez mais parecem criar distirbios iatrogénicos. Este argumento, que tem todo 0 mérito, assumiu algumas formas moderadas (Brass, 1994; Tam- biah, 1986), mas também formas radicais (Kothari, 1989c; Nandy, 19894). Mas, por mais que queiramos culpar 0 contexto politico das fa- Ihas do que jé se chamou desenvolvimento politico (isto é, maturagio longe dos perigos do primordialismo), ha demasiados indicios de que é 1 desagregar a cura-da doenga. O melhor exemplo disso talvez seja a maneira como as forcas drmadas em todo 0 Terceiro Mundo so bru- tais, corruptas, incivis e em constante expansio. Para os tedricos afectos (ainda que implicitamente) & tese primordia- lista, uma maneira de sair deste embarago € a teoria do periodo-de-dureza (defendida por varios economistas americanos durante a primeira vaga de liberalizago da antiga Unio Soviética). E também evidente no discurso que Véclav Havel pronunciou no fim do primeiro ano da sua presidéncia da entio Checoslovéquia, em que se sugeria que as sociedades da Europa de Leste terdo que passar por um doloroso perfodo de desintoxicagio que pode trazer a recorréncia das febres primordialistas. Esta afirmagio com- porta curiosas afinidades com as posigdes marxistas sobre a ditadura do proletariado, o perfodo anterior & dissolugdo do Estado, passado 0 qual a humanidade socialista passa a governar-se a si pr6pria. A tese compara- tivistayambém encontra dificuldades, porque as explosdes étnicas carac- terizani hoje toda uma série,de comunidades, por exemplo, India, Checos- 188 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACAO lovaquia, Indonésia, Franga, Estados Unidos, Egipto, Africa do Sul. Que teoria comparativa nos mostrard o que ha de comum a tio diferentes casos de turbuléncia étnica? Uma variante da resposta comparativista é historica e adequa-se a0 es- forgo desenvolvimentista da causa primordialista. Esta versio da tese diz que 0s paises que tiveram tempo para processar o projécto iluminista de participagio politica — baseado na ideia do individuo instruido, pés-é- nico, previdente, a viver em fungio do mercado livre e participando numa -genuina sociedade civil — sto realmente capazes de prevenir os males do primoidialismo. Sio, par excellance, as sociedades que desbravaram mais profundamente e durante mais tempo diferentes versdes do modelo da so- ciedade civil, as sociedades da Europa Ocidental (sociedades da OTAN anteriores a 1989) e os Estados Unidos. Membros potenciais deste clube sio as sociedades agressivamente pré-capitalistas da Asia e da América Latina, como o Japio, Singapura, Taiwan, Coreia, Chile, Argentina, Brasil © umas quantas mais. Claro que uma mirada répida a este grupo nas duas imas décadas do século XX sugere que a experiéncia dificilmente saiu sa do envolvimento activo dos Estados Unidos:em varias formas de subsidio econémico, politica e ideolégico a essas sociedades, de modo que as suas experiéncias de superacdo do primordialismo nao podem con- siderar-se um sucesso da vitalidade endégena do programa iluminista. Seja como for, em muitas destas sociecades parece haver a necessidade de uma forte dose de autoritarismo estatal (segundo a famosa e subtil dis- tingdo de Jeanne Kirkpatrick entre Estacos autoritérios e Estados tot rios). Assim, se no for possivel instruir as sociedades para sairem do pri- mordialismo, poder-se-4 sempre tirar-Iho a forga. Neste ponto, o caminho para a democracia fica pejado de corpos de democratas. Nao podemos apresentar os Estados duos pars mustiuirio do Gaminko que vai do pri- mordialismo para a modemidade. Mesmo as sociedades que atravessaram os mais longos periodos de tranquila harmonia étnica, ou, por outras palavras, que conseguiram o plu- smo cultural, parece que, de uma maneira ou de outra, abriram pelas costuras: considere-se a fndia, a ex-Unido Soviética, o Sri Lanka, o Reino 189 eocooGees ec eoqoocec © oo) UEEUeEweEe ow BE BOlEEEGE @€ ARJUN APPADURAL Unido ¢ 0 Egipto. Sao sociedades que diferem em muitos aspectos. Cada ‘uma delas tem gravadas linhas de clivagem étnica, mas todas se encon- tram hoje fracturadas, ndo apenas ao longo destas linhas previsiveis mas também ao longo de outras. Em Inglaterra, os esforgos para promover 0 ‘multiculturalismo e melhorar as chamadas relagdes de raga falharam cla- ramente, em parte no contexto do que hoje parece uma caricatura de uma ‘economia do Terceiro Mundo. Na {ndia, a divisio hindu-mugulmana é agora um dos varios movimentos étnicos e separatistas, atravessado pelos ‘maiores conflitos de casta jamais vistos na histéria do subcontinente e que foram desencadeados pelo Relatério da Comisszo Mandal nos primeiros anos da década de 1990. No Sri Lanka, os conflitos entre Tamiles e Cin- galeses vio produzindo uma colheita crescente de outras linhas de cliva- gem entre porta-vozes cingaleses e timiles que parecem gerar novos pri- mordialismos (mouriscos, crioulos, budistas ¢ outros). No momento em que termino este livro, monges budistas de todo o Sri Lanka desfilam pe- las ruas de Colombo em protesto contra os novos € ousados planos de des- centralizago do novo presidente do pais, Chandrika Kumaratunga, De tudo isto restam umas quantas democracias capitalistas europeias (como a Alemanha e a Franga), 0s Estados Unidos ¢ 0 Japao como Estados ‘que parecem no estar ameagados por conflitos étnicos, Contudo, mesmo estes casos, as perspectivas nio sio claras: veja-se o problema dos co- reanos no Jap, dos afto-americanos e hispano-americanos nos Estados Unidos, dos iranianos, turcos outras populages de trabalhadores con- vidados em Franga e na Alemanha. Isto sugere que mesmo as mais estan- ‘ques democracias capitalistas nao estio eteramente a salvo do que pode considerar-se 0 virus primordialista. Movimentos racistas, fascistas e fun- damentalistas de direita na Europa ¢ nos Estados Unidos por certo se afi- guram mais primordiais nos seus comportamentos do que as minorias ra- ciais que abertamente abominam. De qualquer modo, os Estados Unidos, a Alemanha, o Japio e a Franga diferem enormemente na sua historia de Estados-nagdes modemos ¢ no. seu empenho pela pluralidade politica como prinefpio fundamental da participagao politica. Estes factos tornam crucial que se identifiquem os limites da abordagem primordialista 20 190 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACKO conflito étnico, pois a tese assenta basiccmente em considerar infantis cer- tas populagdes ¢ comunidades e baseia-se.implicitamente numa espécie de teoria bacteriana do conflito ético nas democracias ocidentais, Ou seja, considera-se que estas democracies sto fundamentalmente adultas, mas se encontram agora emt risco porque acolheram populagdes (normal. mente do Terceiro Mundo) portadoras do virus primordial — isto é, 0 vi- rus que as liga a formas infantis de parentesco, lingua, religifo e meméria € as toma dadas & violéncia e mal equizadas para a participagdo em so- ciedades civicas adultas. Resumamos o principal escolho da perspectiva primordialista. Dada a adesio. generalizada & ideia de democracia num grande nimero de soci dades depois da Segunda Guerra Mundial, incluindo as do bloco social ta, que dao grande relevo ab projecto da modemidade (tecnologia, ciéncia moderna, participagdo das massas na politica, investimentos macigos na ‘educagio superior e imensa propaganda is novas ideias de cidadania, tan- to nos regimes capitalistas como socialistas), porque estio os primor- dialismos étnicos mais vivos hoje do que nunca? A parte dizermos que a operagtio foi um sucesso mas o paciente morreu, parece que a tese primor- dialista no € capaz de explicar a intensificacao e difusio do sentimento Etnico num mundo entregue as diversas versées do projecto das Luzes. Restam-nos duas opgdes: culpar os receptores da teoria (que a receberam com as roupagens de uma série de discursos nacionais e intemnacionais de desenvolvimento e modemizagio, em geral agressivamente apoiados pe- los aparelhos do Estado-nagio moderno) ou repensar a prépria perspectiva primordialista, Espero que 0 que disse até aqui justifique a segunda pro- posta. A politica do afecto Subjacentes 4 maioria dos modelos primordialistas no estio ap. 6s pressupostos que enunciei atrés, mas também uma teoria do afecto que temos hoje varias excelentes razdes para por em causa. O primeiro con- 191 ARJUN APPADURAL junto de razdes, que j4 expus'e ndo irei aqui desenvolver demoradamente, tem sido identificado por muitos criticos marxistas ¢ nacionalistas do de- senvolvimento capitalista. Consiste em considerar que 0 projecto de de- senvolvimento tal como foi imposto ao mundo extra-ocidental tem nor- malmente suscitado a criagio de novas elites e novos fossos entre castas e classes que poderiam nio ter surgido, & parte 0s virios projectos neo- colonialistas nos novos Estados: A modemizagio ¢ tida por responsével das varias friegdes nas expectativas emergentes ¢ das contradigées bésicas entre participagio econémica e politica, Estas contradiges alimentam a frustragio das massas, que facilmente é traduzida por demagogos de toda a espécie em discurso e acco etnicizados. De uma mancira geral, subs- ‘revo este argumento, embora pense que no tem a finura suficiente para explicar as conjunturas especificas que fazem eclodir a violéncia étnica em determinadas sociedades. Além de que estas teorias nao estio inteira- mente livres da ideia de que ha sempre um substrato réal de afecto pri- mordialista que é um rastilho perpetuamente & espera de ser explorado pe- los interesses politicos especificos num dado momento da histéria de qualquer Estado-nagio. O segundo conjunto de razdes para duvidar da perspectiva primordia- lista sobre o papel do afecto na politica vem de um vasto corpo de litera- tura derivado da teoria politica continental e de algumas das suas variantes americanas nas duas iltimas décadas. Trata-Se da literatura que versa no © funcionamento mec&nico do homiinculo primordial que dita a politica de grupo, especialmente no Terceiro Mundo, mas a tendéncia da teoria so- ¢ politica que salienta o papel da imaginagio em politica. Esta ten- déncia, largamente associada & obra de Benedict Anderson (1983), tem as suas rafzes também na venerivel tradigdio das obras que destacam a auto- nomia da ideologia na vida politica (remontando a outra das tendéncias do pensamento proteiforme de Max Weber por oposigio as suas ideias evolucionistas, primordialistas). Est também associada ao trabalho de Cornelius Castoriadis sobre 0 imaginério (1987), de Claude Lefort sobre ideologia (1986), de Emesto Laclau € Chantal Mouffe sobre hegemonia (4985). Estes trabalhos, por sua vez, vio beber as obras de Antonio 192 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO Gramsci, Raymond Williams e outros que se interessaram pela transfor- magio das ideologias em senso pritico, e complicam-nas. Destaquei’e va- lot desta perspectiva e a minha confianga nela no capitulo 1. Salientando anegociagio e a contestagio em todas as organizagbes socials complexas, estes pensadores (bem como os seus pares da Escola de Birmingham, em Inglaterra, ea escola subalterna de historiadores na fndia) mostraram-nos uma nova via para a conseiéncia subalterna, Nesta perspectiva, enrique- cida por trabalhos recentes sobre as estratégias do quotidiano (De Certeau, 1984), demonstra-se que a conscincia popular nfo é tanto um sintoma re- flexo de ideologias da identidade enterradas e semiconscientes, como uma estratégia conscientemente elaborada de ironia ede sitira capaz de criticar a ordem estabelecida sem deixar de ensuiarestilos de politica identtéria Hebdige, 1979). ‘Ao mesmo tempo, a obra algo diferente de James Scott (1985) sobre as «armas dos fracos», que vai beber & obra anterior de economia moral de E. P, Thompson e outros, comegou a mostrar que essas ordens e agru- Pamentos sociais, aparentemente vitimes’passivas de forgas maiores de controlo e dominagio, foram nio obstante capazes de formas subtis de re- éncia e de «saida» (nos iermos de Albert Hirschman [1970]) que apa- rentavam ser, de todo o modo, primordialistas. Comum a muitos destes trabalhos, que divergem noutros aspectos,é a ideia de que as concepgSes do futuro desempenham um papel muito maior do que as ideias do pas- sado nas actus politicas de grupo, embora as projecgSes primordialistas para o passado ndo sejam irrelevantes para a politica contempordnea da imaginagao. Reconhecendo que imaginaco e acgio sio muito mais vitais para a mobilizagao de grupo do que até agora imaginévamos, mais facilmente podemos interpor a invengio da tradisio critica de Erie Hobsbawm e Te- rence Ranger (1983), que meteu mais um prego no caixdo da perspectiva primordialista. Embora tenha havido erticas sérias a esta influente tese (sobretudo & tendéncia para tomar certastradigdes por «auténticas» e ou- tras por «inventadas»), ela alertou-nos para a ideia de que, entre o pano- rama de discursos sobre tradigio e as sensibilidades e motivagies dos ac- 193 rPOHBSCOECOSECEOCECOGCEHEGOSEEE WY We We VwEUUUL YUE’ 3@6 G & 2668 ee ARJUN APPADURAI tores individuais esté um discurso hist6rico que ndo sai das profundezas do psiquismo individual ou das brumas venerandas da tradigdo, mas'sim do jogo especifico, historicamente situado, das opinides pablica e de gru- po acerca do pasado, Um contributo importante deste trabalho € apontar 6 facto de muitos dos grupos nacionais e politicos no mundo contempo- rineo terem a ver no com o mecanismo do sentimento primordial, mas com o que venho chamando «a obra da imaginagdo». Voltarei adiante a0 tema da imaginagio. A grande ironia de muito deste trabalho & que mostra, sem sombra de dil- vida, que muitas’vezes a criagio de sentimentos primordiais, longe de cconstituir um obstéculo a0 Estado modernizador, esté bem perto do amago de um projecto de Estado-naco modermo. Assim, muitos fundamentalis- ‘mos raciais,religiosos e culturais so deliberadamente fomentados por vé- rios Estados-nagdes, ou seus partidos, num esforgo para suprimir dissen- ges internas, para formar sibditos homogéneos do Estado e para maximizar a vigilincia e 0 controlo das diversas populagSes sob a sua al- gada. Neste contexto, os Estados-nagées modernos inspiram-se muitas ve- 22s nos aparelhos classificativos e disciplinares que herdaram dos dirigen- tes coloniais e que, no contexto pés-colonial, ém efeitos substancialmente inflamatérios. Um exemplo excelente disto mesmo é a politica do némero na india coloni a de casta na recente controvérsia sobre o Re- lat6rio da Comisséo Mandal na {ndia (ver cap. 6). Do mesmo modo, tra- bathos recentes sobre politica cultural no Japdo (Kelly, 1990; Ivy, 1995) mostram que o Estado e os grandes interesses comerciais muito fizeram por construir e potenciar um discurso de niponidade e de tradigio (furu- ‘sato), num esforgo para explorar a ideia de um Japdo repositério de uma forma Gnica, homogénea, de diferenga cultural. Em Inglaterra, a indistria sucesséria tern trabalhado no sentido de criar uma paisagem de heranca, de conservagio, dos monumentos do espaco hist6rico inglés & medida que 0 papel britinico de poténcia mundial se desvanecia consideravel- mente, Este discurso da britanidade & apenas a fase mais recente do «co- lonialismo interno» (Hechter, 1975) que serviu para criar uma ideia he~ ica de britanidade. Esta ideia, ainda reinante, tora o discurso do DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACAO multiculturalismo em Inglaterra estranhamente oco e sustenta os racismos. implicitos ¢ explicitos que Margaret Thatcher pode encenar nas Maldivas, John Major na Guerra do Golfo, bem como os grupos de édio fascista racista em Inglaterra. Foi este tipo de mobilizagao que caracterizei no capitulo 1 como cul- turalista, isto é que envolve etnicidades mobilizadas por, ou em relagdo com, priticas do Estado-nagdo moderne. Culturalismo sugere algo mais (que etnicidade ou cultura, termos que partilham um mesmo sentido do na- tural, do inconsciente'e do ticito na identidade de grupo. Mas quando se produzem num campo de classificago, de mediatizagéo de massas, de ‘mobilizagio e de legitimidade dominado pela politica ao niveF do Esta- do-nagio, as identidades adoptam as diferengas culturais como seu objec- to consciente. Estes movimentos podem assumir varias formas: podem di- rigit-se prioritariamente para a expresso, autonomia e esforgos de sobrevivéncia cultural ou podem ter forma principalmente negativa, ca- acterizada em grande medida pelo édio, pelo racismo e pelo desejo de dominar ou eliminar outros grupos. E uma distingiio fundamental, porque 08 movimentos culturalistas pela autoncmia e pela dignidade que impli- cam grupos muito tempo dominados (como os afro-americanos nos Esta- dos Unidos e os dalitas na india) usam muitas vezes as mesmas cores da paleta daqueles a que se opdem, pois sio de certo modo racistas ou anti- democriticos. Embora a etnicidade modema seja, neste sentido, culturalista e esteja intimamente ligada as préticas do Estado-nagio, vale também a pena notar que um importante grupo de movimentos culturalistas & hoje transnacio- nal, dado que muitas etnias nacionais, por causa das migragdes interna- cionais, operam fora dos confins de um s6 Estado-nacio, Estes movimen- tos culturalistas transnacionais esto int:mamente ligados ao que chamo esferas piblicas da didspora. O tiltimo e talvez menos Sbvio dos desenvolvimentos récentes que tor~ na dificil defender a tese primordialista aplicada & politica étnica é a no- 40, muito desenvolvida na passada déSkda pela antropologia cultural, de que as emogies no so materiais pré-culturais em bruto que constituem 195 ARJUN APPADURAT «um substrato universal, trans-social. Embora ndo seja posstvel, dentro-do Ambito deste capitulo, definir os contornos desta posigao, o seu Angulo principal € que o afecto é, em muitos ¢ importantes aspectos, aprendido: © que entristece ou alegra, como exprimi-lo em diferentes contextos € se a expresso dos afectos € ou ndo um simples escoamento de sentimentos {ntimos (muitas vezes tidos por universais), so tudo questdes que foram ricamente problematizadas (Lutz e Abu-Lughod, 1990). Este corpo de tra- balhos foi longe na demonstracao de que as emogées so culturalmente construfdas e socialmente situadas e que os aspectos universais do‘afecto no.nos dizem nada-de muito revelador. Este labor assenta muito bem numa outra tendéncia que opera na re- cente antropologia cultural (Asad, 1983; Van der Veer, 1989) e que mos- tra que vérias formas de experiéncia sensorial e de técnica corporal emergem integradas em regimes de conhecimento ¢ poder historicamen- te constituidos. Esta tendéncia, que também foi influenciada pelas opi- 1s de Michel Foucault sobre as relagdes historicamente constituidas entre conhecimento e poder, bascia-se na obra classica de Marcel Mauss (1973) sobre as técnicas do corpo e nas sugestées de Pierre Bourdiew (1977) e outros sobre a experiéncia corporizada e sua emergéncia dentro de estruturas culturais especificas de habito e exper O que este trabalho propde € que, longe de representarem a projecgio dos estados € experiéncias corporais sobre grandes telas de acgdo e representaco, as tgenicas corporais e as disposigdes afectivas representam precisamen- te 0 oposto, a saber, a inscrigao nos habitos e disciplinas fisicos do au- tocontrolo e priticas de disciplina de grupo, muitas vezes ligadas a0 Es- tado e seus interesses. A andlise do crfquete indiano no capitulo 5 cabe directamente nesta tradicao. Por outro lado, este trabalho recebe apoio nao apenas das perspectivas de Foucault e outros sobre 0 processo histérico através do qual o corpo & transformado, apropriado e mobilizado, mas também da obra de Norbert Elias e seus discipulos, que mostra que certos € poderosos sentidés do comportamento fisico e da civilidade so produto directo das ideias cor- teses e burguesas de dignidade e distingdo. Esta orientagio geral nao é de 196 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO todo isenta de problemas: a questo de saber como os esquemas culturais e politicos se inserem na experiéneia fisica, motivando assim fortemente 0s sujeitos, esté ainda em estudo, O que parece claro é que é pouco'com- pensador separar 0 mundo da emogao ¢ do afecto do mundo da linguagem € da representagdo de si ¢ que estes, pelo contrério, feagem notoriamente a macroconcepgdes de civilidade e dignidade enquanto construfdas por in- teresses & idedlogos que exercem o peder sobre ordens sociais inteiras. ‘A cadeia Causal, se ndo fica inverti¢a, fica pelo menos problematizada, Em vez de seguir de sentimentos intimos para demonstragdes externas que se agregam um nivel acima em formas de acco e representagaig mais vas- tas, este conjunto de trabalhos opera de cima para baixo, ou de macro para micro, sugerindo que o poder é em grande medida uma questio de incutir ivilidade, dignidade e controlo corporal em larga escala no timo dos sujeitos corporalizados. A literatura antropol6gica, em- bora ainda nao seja conclusiva e nao esteja de modo algum livre de pro- blemas, sugere que os sentimentos e percepedes dos sujeitos actuantes s6 sdo plenamente compreensiveis dentro de estruturas culturais especificas de significado e estilo e quadros histéricos mais vastos de poder e plina. Poe portanto seriamente em questo a ideia de uma camada de sen- timentos primordiais que estivesse & espreita abaixo da superficie das for- ‘mas culturais, das ordens sociais e dos momentos hist6ricos. Contudo, as multiddes e os individuos que as constituem por certo pa- recem apresentar o paradoxo da ira espontinea e da pontaria coordenada contra as vitimas. A mistura de combustibilidade e coordenago é o cere do mistério das multiddes e da revolta e tem desafiado os observadores jd desde Gustave Le Bon. £ obviamente um aspecto fundamental da vio- lencia étnica. Nos textos que parecem estar por trés de muita violéncia ét- nica (pois raramente essa violéncia é inteiramente cadtica) nota-se clara- mente uma espécie-de ordem que seria demasiado fécil atribuir a contingéncia de planos secretos, agentes externos e cdlculos ocultos sub- jacentes ao frenesim de grupo (Tambiah,4990). O desafio é captar o fre~ nesim da violéncia étnica sem a reduzir a nlidleo banal e universal dos sen- timentos intimos primordiis. Precisaios de manter um sentido da raiva ogoooecooe00goe00es g aoe ¢ € > 3 3 . we GE EWS Swe ARIUN APPADURAT psiquica e corpotalizada, bem como da intuigdo de que os sentimentos de violéncia étnica (como quaisquer outros sentimentos) s6 fazem sentido dentro de grandes formagSes de ideologia, imaginagao e disciplina, Parece ‘uma misso impossfvel, mas na secgio seguinte sugiro que o tropo da im- plosdo é uma tentativa de sair da ratocira primordialista, Implosoes étnicas Jé que a perspectiva primordialista é tantas vezes enganadora, ser im- portante encontrar uma perspectiva igualmente geral que nos permita ir para além dela, A alternativa é um modelo de implosio étnica, um tropo delibe- radamente proposto contra as conotagdes de explosio, tantas vezes associa- da A posi¢do primordialista. Tanto quanto sei, a ideia de implosao s6 recen- temente esté a ser usada no contexto dos movimentos sociais, um tanto cripticamente, no contexto da violéncia de Estado e das formagdes de refu- giados nos Estados fracos (Zolberg et al., 1989, pp. 256-257). Ligando ideias de James Scott ¢ Albert Hirschman, Aristide Zolberg e colegas afir- mam que os camponeses que tentam abrigar-se das acgdes predatérias do Estado podem ver-se encurralados pelo Estado e assim forgados 8 vi «Deste modo, a retirada do Estado pode desencadear uma violenta implo- sio, uma divisio entre governantes € governados que dé origem a grupos de solidariedade priméria competindo entre si numa busca desesperada de seguranga> (p. 257). Este uso criptico da imagem da implosao é sugestivo e relaciona-se com a utilizacdo mais deliberada que farei do termo. Antes de passar a especificar com preciso como & que 0 modelo da implosio proporciona uma abordagem mais ttil dos confrontos étnicos do que o modelo primordialista, tenho que montar mais amplamente 0 cendrio para esta abordagem. No geral, aceito a ideia de que o mundo ‘em que hoje vivemos é global e transnacional num sentido nao previsto pelos modelos anteriores de estudo da politica internacional, como jéres- clareci na primeira parte deste livro. Nao sé estou convencido das vit- tudes do neo-realismo de Robert Keohane e outros e da sua cr fica enér- 198 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO | gica das anteriores posigées realistas centradas no Estado (Keohane, 1986), como também o estou de que mesmo as posigdes neo-realistas ‘no vo to longe que possam abranger os muitos processos, eventos e estruturas que parecem operar quase sempre fora das interacsées estra- tégicas dos Estados-nagGes. Por isso simpatizo com a abordagem arejada de James Rosenau (1990), que apela a uma visio inteiramente nova da politica global e destaca a imagem da turbuléncia, em esp desenvolvida por al a que foi -08 € mateméticos. Com base na ideia de bifurca- gio e nas ideias correlatas de complexidade, caos e turbuléncia nos’sis- temas complexos, Rosenau defende que a dindmica da politica mundial contempordnea s6 se explica se virmos que hé na moderna politica mun- dial dois sistemas em jogo bifurcado: o sistema multicéntrico e o sistema estatocéntrico, A grande mensagem de Rosenau € cue estrutura e processo na poli tica actual sdo artefactos da interacgio turbulenta destes doi | bifurcados, cada um dos quais afecta o outro de muitas maneiras, a m tos niveis e de formas que tornam os acontecimentos extremamente ficeis de prever. Para explicar as estruturas eventualistas no mundo mul- ticéntrico de que fala, Rosenau sugere que substituamos a ideia de evento pela imagem da «cascata», sequincias de ac¢o no mundo mul- ticéntrico que «criam aceleragdo, paragem, inversio de marcha e nova acelerago quando as suas repercussGes alastram a todo o sistema e aos subsistemas» (p. 299). A lista de cascatas que Rosenau identifica é uma componente crucial do que poderfamos chamar estrutura das exteriori- dades, em parte responsdveis pela forma e data de determinadas confla- gragdes étnicas. Como nem todos os micro-eventos.associados a vida quotidiana em localidades etnicamente sensfveis levam a violéncia ét- \ nica, 0 conceito de cascata torna-se util para compreendermos porque € “que certo acto de profanagio religiosa, certo atentado terrorista, certo discitrso inflamatério acende a violéncia étnica em larga escala. A ideia de turbuléncia global como modelo da politica mundial parece também ‘aequar-se a uma série de outros modelos, como a ideia de Lash e Urry de «capitalismo desorzanizado» (Lash e Urry, 1987), os recentes ensaios 199 ARJUN APPADURAT de Robertson e Amasén sobre globalizagio (Robertson, 1990; Arnason, 1990) ¢ os meus prdprios esforgos para re-situar a politica da diferenca cultural num quadro de disjurituras dentro da economia cultural global (ver éap. 2), Mas parece longa a jornada, desde as ideias de turbuléncia global e de imagens de cascata e fluxo até & actualidade.da violencia étnica a & bru- idade humana conereta. Para encurtar essa distineia, vou buscat dois temios recentemente propostos por Tambiah (1990) num esforgo para ntificar a dindmica do comportamento das multiddes no contexto da violéncia étnica: focalicagdo ¢ reavaliagdo. Tambiah desenvolveu estes termos no contexto de uma Ieitura atenta dos motins de Carachi, em 1985, entre pataries ¢ mohajires (Biaris), sendo estes iltimos paquistaneses emi- grados oriundos da india Oriental: Por focalizagio entendo 0 processo de progressivo desnudamento de incidentes e disputas locais na sua especificidade de contexto, agregando-os ¢ assim estreitan- oa sua riqueza concreta, Reavaliagio refere-se ao processo paralelo de asi especificidades a uma causa ou interesse mais lato, colectivo, mais re tanto menos preso ao contexto. Os processos de focalizagio e reavaliagzo contsi- ‘buem portanto para uma progressiva polarizagio e dicotomizagio das questbes e dos, militantes, de forma que os actos extremos de violéncia de grupos e bandos se tor ‘nam em pouco tempo manifestagSes fechadas, encamagGes ¢ reencamasées de visdes alegadamente iresoliveis entre patanes e biars, siques e hindus, cingaleses timiles ou malaios e chineses (Tambiah, 1990, p. 750). Os processos de focalizagio ¢ reavaliagio que Tambiah identifica so ainda mais reveladores quando colocados dentro do que podemos consi- derar as cascatas de eventos (no sentido de Rosenau) que ligavam Carachi € 0s seus arrabaldes a desenvolvimentos da politica regional e nacional 1no Paquistdo e na politica mundial tal como os Paquistaneses a entendiam: Entre essas cascatas inclui-se a vit6ria de Benazir Bhutto nas eleicdes para como uma vit6ria do Sinde sobre o Punjab em politica region G0, por vérios partidos pré-Zia, da fraqueza de Bhutto como mulher € a projec 200 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO descendente corrupta do seu pai ¢ a emergéncia paralela do MQM (Mo- hajir Qaumi Movement) como principal partido da formagao da identida- de mohajir. Estas leituras, por sua vez, puderam inflamar a forga social e econémica patane em Carachi e alimenter uma hostilidade crescente con- | ta 0 partido de Bhutto na cidade, especialmente entre aqueles que, como + 08 Patanes, nao dispunham de uma voz politica forte na politica regional do Sinde. Assim, a delicada e mortal interpretagao (¢ interpenctragio) de eventos nas ruas de Carachi, que se desenrolou num drama rapidamente lido em termos empolados, poderia nfo ‘er tido as varias feigdes que as- | __sumiu se no fossem os efeitos implosivos de sequéncias de acco mais | vastas na politica de rua de Carachi. Claro que estes mesmos evbatos tera everberagGes para fora e para cima, através de outras cascatas de acon- | _tecimentos que criaram a sensagdo de Bhutto ser incapaz de manter a or- | dem civil. Esta percepedo, mobilizada juntamente com outras imagens e manipulagdes politicas, foi uma das razSes da sua posterior queda, 1990, queda essa associada a grandes alterag&es na politica do subconti- nente ¢ na percepedo da India e dos Estaiios Unidos, no perfodo a seguir & Guerra do Golfo. Claro que este ¢ um retrato simplificado em que gostarfamos de intro- uzir muitas outras exterioridades, como o tom estridente anti-indiano ¢ anti-hindu que Bhutto adoptou nos seus discursos sobre a Zona Livre de Caxemira, num esforgo para desfazer a sua imagem de mulher fraca e pes- soa que tinha sido branda com os Mohajices no contexto dos motins de Carachi de 1985. A situagto em Carachi foi-se tornando mais contida e mais implosiva no perfodo posterior a 1985 e, em 1995, Carachi 6 um ce- nario de guerra civil e violéncia étnica como Mogadiscio, a Beirute dos ‘anos oitenta, a um passo da Cabul dos anes noventa. Bhutto voltou 20 po- der depois de ter sido derrotada em eleigées anteriores e enfrenta uma vez mais uma Carachi volitil e um mandate nacional altamente inseguro, as coisas aconteceram em Carachi desde 1985 e uma série de violen- tas batalhas entre as forgas do Estado e a juventude armada do MQM cus- tou a'Rprte, em Carachi, a mais de oitocentas pessoas entre Janeiro e Ju- tho de 1995. 201 eGoeococse eoeGeoooeoeooegoeeoocoe’t ARJUN APPADURAI Muito se poderia dizer sobre a hist6ria de violencia em Carachi nessa década com relevancia para as teses gerais deste livro e os interesses es- pecificos deste capitulo, Como cidade, Carachi é um exemplo tremenda- mente deprimente do tipo de conflito urbano de que falo no capitulo 9, que produz localidade em condig6es de terror ¢ luta armada quotidianos. Desde os meados dos anos de 1980 que 0 MQM, que comegou por ser fruto do sentimento de ofensa partilhado pelos emigrantes vindos do Pa- quistio para a india Oriental, tem estado profundamente dividido ¢ a sua direcgao funciona agora no exilio, em Inglaterra. E portanto um excelente exemplo de um movimento de digspora, transnacional ¢ anti-Estado que ro exige autonomia nacional. A propria Benazir Bhutto usou da lingua- gem do terrorismo e da jihad contra o MQM, esfumando assim a fronteira entre a politica subcontinental (o MQM é muitas vezes considerado ligado a India, terra natal dos Mohajires) e a politica nacional do Paquistdo. Todos os lados do conflito — o Estado, as diferentes facgies do MQM © 0 partido no poder, 0 Partido Popular Paquistanés — passaram do uso das pequenas armas para o de langa-morteiros, tanques ninhos de me- twalhadoras. Nao hi indicagZo mais clara da implosio da politica global e nacional no mundo urbano de Carachi do que esta citagdo de um senhor da guerra local, dirigente de uma facedo dissidente do MQM no bairro de Landhi: «Bles que fagam uma provincia ou um pafs separado, ou 0 que quiserem. Esta zona continuard a ser 0 meu Estado» (Hanif, 1995, p. 40) A guerra urbana de Carachi esti ligada d politica regional, estatal, na- ional e global através do tréfico de droga, da politica criminosa, dos es- forgos estatais para enumerar as grandes populages étnicas (ver cap. 6) edo meio milhdo de-emigrantes que todos os anos chegam a esta cidade J4 sobrepovoada por doze milhdes de almas. Mas este nio é 0 lugar para um estudo pormenorizado da violéncia ét- nica em Carachi. O principal € que a focalizacio ¢ a reavaliagdo vio bus- car a sua energia aos macro-eventos e processos (cascatas) que ligam a politica global & micropolitica das ruas e dos bairros. Sincronicamente,.es- tas cascatas fomecem o material para ligar os processos de focalizagio e Jo. Ou seja, fornecem material & imaginaga¥ de agentes a virios DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO niveis para a leitura de significados gerais em eventos locais e contingen- tes, assim como fornecem o alibi para a inscrigdo em manipulagdes étni- cas e conspirages, de enredos de longa data tirados de acontecimentos de rua aparentemente triviais. Mas esta ligagdo tem também uma dimensdo diacrénica. Afinal, a perspectiva primordialista era a mais forte (embora a mais errénea) para explicar a politica do afecto, logo, a violanta intensidade dos confrontas Einicos. Uma nova perspectiva do tipo que aqui propomos hi-de propor- cionar uma etiologia altemativa do que Raymond Williams chamaria «es- trutura do sentimento» na violéncia étnica Os macro-eventos, ou cascatas, penetram em estruturas altamente localizadas de sentimentos por serem arrastados para 0 discurso e para as narrativas da localidade em conversas casuais e comentérios & boca pequena do tipo que muitas vezes acompa- nha a leitura'colectiva de jornais em muitos bairros € em muitas soleiras de porta do mundo, Ao mesmo tempo, as narrativas e enredos locais em cujos termos a vida corrente e os seus conflitos sio lidos e interpretados sio atravessadas por um subtexto de possibilidades interpretativas que & produto directo do trabalho de imaginar localmente eventos maiores, re- gionais, nacionais e globais. problema destas leituras locais é que sio muitas vezes silenciosas € literalmente inobservaveis, excepto nos minimos comentérios de passa- gem sobre acontecimentos mundiais ou racionais que ocorrem nas con- versas de casas de cha, cinemas e locais urbanos de reunizo. Integram 0 incessante murmirio do discurso politico urbano e as suas cadéncias cons- tantes © monétonas. Mas as pessoas e os grupos a este nivel muito local _geram esas estruturas de sentimento que, com o tempo, fornecem 0 cam- po discursivo de que se apoderam os rumores explosivos, os dramas e os discursos da revolta, Esta perspectiva no requer um pressuposto primordialista para ex; car a5 estruturas locais de sentimentos que conferem aos motins étnicos € 2 acgdo colectiva a sua forga brutal e inexplicdvel. Estes sentimentos lo- cais so produto de interaccSes, a longo prazo, de cascatas dos aconteci- mentos locais e globais que erguem estrituras de sentimentos sociais € 203 ARJUN APPADURAT histéricos e que fazem parte do ambiente em que, gradualmente, se torna possivel encarar um vizinho como inimigo, um lojista como traidor es- trangeiro e um comerciante local como explorador capitalista sem escri- pulos. Uma vez activada esta antologia de imagens, 0 processo de que fala Tambiah avanca e podemos ter a certeza de que haver4 novos epis6dios de recordagio, interpretagao e sofrimento que, depois de aplacada a re- volta, abrirdo de novo o caminho para novas estruturas locais de sentimen- tos. ‘Mas niio se pode negar que conceitos como cascata, reavaliagio, fo- calizago e implosio parecem demasiado abstractos, demasiado mecani- cistas, demasiado gerais para captarem a contingéncia bruta, a violéncia cua, a sede electrizante de sangue, o instinto para a degradago que pa- recem acompanhar 0 terror étnico em lugares como o Ruanda e a Bésnia, Carachi e Colombo. Quando a violacdo, a tortura, o canibalismo e 0 uso brutal de sangue, fezes e partes do corpo entram para o cendrio da limpeza Ginica, defrontamo-nos com os limites no apenas da ciéncia social mas da propria linguagem. Sera possivel dizer algo de util sobre este género de violéncia no mundo globalizado que este livro descreve? Avento uma hipétese contra a minha prépria paralisia interpretativa quando posto perante a horrenda violencia de grupo das guerras étnicas actuais*. O pior tipo de violéncia nestas guerras parece ter algo a ver com a relagio distorcida entre as relagGes quotidianas cara a cara e as identi- dades em larga escala produzidas pelos Estados-nagBes modemnos ¢ com- plicadas pelas grandes diésporas. Mais exactamente, 0 que ha de mais hor- rivel nas violagdes, degradacio, tortura ¢ morticfnio das novas guerras Ginicas € que ocorrem, em muitos casos, entre sujeitos que se conheciam, ou julgavam conhecer-se. O nosso horror € suscitado pela mera intimidade que frequentemente enquadra a nova violencia étnica. E horror perante © vizinho que se tornou assassino/torciondrio/violador. Que tem esta intimi- dade a ver com os meios de comunicayio, a politica estatal € us macro -eventos globais? A raiva dos que matam, mutilam e violam parece anday ligada a uma profunda sensagio de traigdo que aponta para as vitimast esta traigzo 204 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO esté ligada a relacdo entre aparéncia ¢ realidade. Quando 0 vizinho co- merciante revela ser, no seu corago, um croata, quando o mestre-escola afinal € simpatizante dos Hutus, quando se descobre que o melhor amigo afinal é mugulmano e nao sérvio, quando o vizinho do meu tio até é um latifundidrio odiado, 0 que daf decorre parece ser uma sensagdo de pro- fundo embuste categorial, isto é, a mentira sobre a identidade de grapo tal como a definem os Estados, os ceasos, os meios de comunicagao e outras grandes forgas. No fundo, esta sensagio de traigdo gira em tomo da idéntidade trocada num mundo em que a aposta associada a estas identidades é extyemamente alta, A raiva que essa trai¢do parece inspirar pode, evidentemente, esten- der-se a multidées de pessoas que podem nao ter sido fntimas e assim se vai tomnando cada vez mais mecdnica e impessoal, mas eu diria que se man- tém animada por um sentimento de violago da ideia de ter conhecido 0 Ou- tro ¢ de raiva contra quem ele revela realmente ser. A sensaco de mentira, ou de traigdo, logo, de confianga violada, raiva e dio, tem tudo a ver com ‘um mundo em que as identidades em larga escala forgosamente entram na imaginagdo local e se tornam locutoras dominantes nos tramites da vida cor- rente. A literatura primédria mais proxima dos mais brutais episGdios da vio- lencia étnica contemporinea é emitida na lingua do impostor, do agente se- ereto, da pessoa falsa. Este discurso traz consigo a incerteza quanto as categorias e & intimidade entre as pessoas — caracteristica fundamental da nova violéncia, Hé muitos exemplos de violencia politica contempornea que confir- ‘mam este ponto de vista, Tem a sua genealogia nos casos famosos da mar- cago dos judeus alemies como impostores pelos nazis (Anderson, 1983, p. 149). Se examinarmos os dados dos momentos reais de maior brutali- dade nos episddios recentes de violénzia de grupo (Das, 1995; Malki, 1995; Sutton, 1995), vemos que a revelaco das cdiadas e odiosas iden- tidades oficiais para além das mascaras fisicas das pessoas reais (e conhe- cidas) parece crucial para a perpetracio das piores formas de mutilagao ¢ ‘maus tratos. Inversamente, a exposigae dos nomes, hist6rias e memérias individuais de pessoas espectficas por trés dos cadaveres das vitimas de 205 ¢ eeee c ecoee ww Ww ARJUN APPADURAL categorizagdo adversa é usada para provocar os mais fortes sentimentos. Estes processos reciprocos — expor impostores ¢ restituir as pessoas reais, através de comemoracbes personalizadas — parecem estar no cerne da violéncia fisica das batalhas étnicas actuais. Recordar e esquecer € vital para o nacionalismo (Anderson, 1983), mas.ainda mais vital para a sua brutal politica corporalizada. Esta visio da peculiar e espantosa brutali- dade da guerra étnica e racial nfo exclui outros factores que normalmente figuram nas teorias da violéncia étnica: frustragao econémica, manipula io pelos politicos, receios de mudanca religiosa, aspiragdes a autodeter- minagdo étnica, bodes expiat6rios para tempos de crise similares. Todos estes Factores por certo explicam a dindmica geral do conflito étnico em muitos cendrios sociais ¢ hist6ricos. Mas parecem incapazes de explicar a pura brutalidade do etnocfdio e da guerra étnica modernos ¢ 0 seu sen- tido contingencial de fuga. Esta hipétese sobre violéncia relacionada com mentira, intimidade e identidade pretende explicar a transformagio de pessoas comuns em assassinos, torciondrios e violadores ¢ a representagio de amigos, vizinhos ¢ colegas de trabalho como objectos do mais fundo 6dio e raiva. Se a hipétese da mentira é plausivel, ela tem muito a ver com as iden- tidades em larga escala criadas, transformadas e reificadas pelos moder- nos aparelhos de Estado (muitas vezes num campo transnacional de diés- pora) e difundidas pelos meios de comunicagao. Quando estas identidades sto convincentemente retratadas como lealdades primérias (em boa ver- dade primordiais) por politicos, chefes religiosos e meios de comunica- ‘80, entio a gente comum toma o gosto por agir como se apenas este tipo de identidade interessasse e estivessem rodeados por um'mundo de fingi- dores. Estas representagoes da identidade (¢ da identificago) parecem ainda mais plausiveis num mundo de migrantes ¢ meios de comunicagio de massas capaz de subverter as certezas de todos 0s dias que vém do co- nhecimento pessoal do Outro étnico”, ‘Nem todos os movimentos culturalistas levam a violéncia entre grupos Etnicos, mas o cultyralismo — na medida em que envolve identidades mo- bilizadas a0 nivel do Estado-nagio — est sujeito &s exterioridades da mi- 206 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO gragdo ¢ dos meios de comunicagio de massas. Essas exterioridades nao ‘aumentam necessariamente 0 potencial de violéncia. Excepto por mais uma contradigio que afecta todos os Estados-nagdes em principid e a maior parte deles na prética, Trata-se da contradigio entre a ideia de que cada Estado-nagio pode verdadeiramente representar apenas uma etnia € a realidade que os Estados-nagGes historicamente implicam, que é-uma amélgama de muitas identidades. Mesmo quando as identidades de longa data foram esquecidas ou entertadas, a combinagao entre migragdes e me- izagdo de massas assegura a sua reconstrugdo numa nova escala e em niveis mais alargados. J4 agora, é por issc que a politica de recordar e es- quecer (logo, da histéria © da historiografia)€ tao importante pard os con- flitos étnicos ligados ao nacionalismo (Van der Veer, 1994). Os movimen- tos culturalistas entre minorias e grupos historicamente dominados tendem a entrar num didlogo consciente com os culturalismos das maio- rias numéricas. Quando competem por um bocado da nago (e dos recur- 80s do Estado), estes culturalismos entram inevitavelmente no espago da violéncia potencial Esta proposta difere fundamentalmente da perspectiva primordialista, Nio vé 0 substrato de sentimento étnico como o alicerce da explicagdo das explosdes étnicas, Pelo contrério, sugere que as estruturas do senti- mento étnico so elas proprias produtos complexos da imaginago local (mediatizando uma variedade fascinante ds cascatas globais & medida que se deslocam pela localidade). Os episédios de violéncia étnica podem por- tanto ser considerados implosivos em dois sentidos: no sentido estrutural, representando a retracgdo para politicas locais de pressio e agitagio de arenas politicas cada vez maiores; e no sentido hist6rico, em que'a ima- ginagio politica local esté cada vez mais sujeita ao fluxo de grandes acon- «tecimentos (cascatas) ao longo do tempo, acontecimentos que influenciam erpretacdo das ocorréncias mundanas ® vo criando gradualmente um repert6rio de sentimentos étnicos adversos. Estes sentimentos podem pa- recer primordiais & primeira vista, mas so por certo produto de processos de ac¢o, comunicagdo, interpretagdo € comentério de hd muito tempo. Uma vez ocorridos estes eventos, é inuito mais fécil ver as suas dimensdes 207 sc caenicantat itis REE ARJUN APPADURAL explosivas & medida que’se expandem, inflamando outros sectores e ar~ rastando outras questdes para o vértice da firia étnica. Mas esta dimensio explosiva, potenciada e potericiadora dos processos de focalizagio € rea~ valiagdo, nao deve ocultar-nos as suas condigdes iniciais. Estas condigbes explicam-se melhor nos termos da ideia de implosio proposta neste capf- tulo do que pelas muitas versbes da perspectiva primordialista que satis- fazem a nosia sede de explicagdes definitivas, a-histéricas, em especial do comportamento aparentemente irracional. Etnicidade moderna Quero sublinhar, ainda que cripticamente, o que hd de moderno (na minha acepsio, de culturalista) nestes movimentos étnicos contempo- raneos. Os grandes movimentos étnicos actuais, muitas vezes violen- tos, requerem uma nova compreensio das relagées entre historia e ac- 40, afecto e politica, factores de largo espectro © factores locais. Venho sugerindo ao longo deste capitulo que uma maneira de satisfa- zer estes requisitos é resistir a dialéctica exterior-interior que a manei- ra de pensar primordialista nos impée e pensar antes em termos de uma dialéctica da implosdo ¢ da explosdo no tempo como chave da dina- mica peculiar da etnicidade moderna. Vistos deste ngulo, os movimentos étnicos modernos (culturalismos) podem ser relacionados com a crise do Estado-nagio através de toda uma série de interessantes pontos de contacto. Primeiro, todos os Estados-na- ges modernos adoptaram ¢ conceberam a ideia de que uma organizagao social legitima tem que ser resultante de afinidades naturais de algum tipo. Assim, no momento em que muitos Estados-nagdes entram numa crise de legitimacao e enfrentam as exigéncias de grupos migrantes, elas conti- nuam a operar no quadro de um legado em que a autodeterminagao na- cional tem que assentar numa qualquer tradigdo de afinidades naturais. Em segundo lugar, os projectos espectficos (por mais resultantes) do Es- tado-nagio moderno, vio da satide pablica aos censos, do planeamen- 208 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO to familiar a0 controlo sanitério e do controlo da imigragio a politica da gua, ligaram préticas corporais ccncretas (fala, higiene, movimento, satide) a identidades de grupo em grande escala, aumentando assim 0 al- cance potencial das experiéncias corporalizadas de afinidade de grupo. Fi- nalmente, tanto nos quadros estatais democréticos como nos no demo- créticos, a linguagem dos direitos e garantias, na generalidade, ficou ada inextricavelmente a estas identidades em larga escala. Os projectos étnicos actuais definem-se cada vez mais por estas trés caracteristicas da cultura do Estado-naco moderno. Os grupos étnicos podem imaginar 0 seu futuro, mas mesmo aqui (como nas observagdes de Marx sobre as pes- soas serem autoras da sua propria hist6ria) podem ndo fazer exactamente ‘© que thes apetece. Os Estados perdem o seu monopélio sobre a ideia de nagio e € compreensivel que toda a espécie de grupos tendam a usar a I6- gica da.nagdo para captar algum ou todo o Estado, algumas ou todas as garantias que o Estado dé. Esta ldgica ganha a sua méxima forga mobili- zadora quando o corpo encontra o Estado, isto é, nos projectos a que cha- ‘mamos étnicos e muitas vezes tomamos erradamente por atavisticos. 20 8 O patriotismo e os seus futuros Precisamos de nos pensar para além da naco!, Isto nfio € sugerir que 36 0 pensamento nos levard para além da nacdo ou que a nagdo é em grande medida uma coisa pensada ou imaginada. Pelo contrétio, & su- gerir que o papel das préticas intelectuais é identificar a corrente crise da nagio e, identificando-a, providenciar parte do aparetho de reconhe- cimento para formas sociais pds-nacionais. Embora a ideia de estarmos a entrar num mundo pés-nacional parega ter recebido o seu primeiro alento dos estudos literérios, é agora um tema recorrente (embora hesi- tante) nos estudos de pés-colonialismo, de politica global e de politica providencialista internacional. Mas a maior parte dos autores que afir- ‘maram ou advogaram que precisamos de pensar pés-nacionalmente no perguntaram exactamente quais as formas sociais emergentes que nos \. obrigam a fiz@-lo ou de que maneira. Esta tiltima tarefa & o ponto prin- cipal deste capitulo. 2u ARJUN APPADURAL Coldnias pés-discursivas Para aqueles de nés que se criaram vardes nos sectores de elite do mundo pés-colonial, 0 nacionalismo foi a nossa razio e principal justifi- cagio das.nossas ambicbes, estratégias e sentido de bem-estar moral. Ago- ra, quase meio século depois de muitas novas nagdes terem aleangado a independéncia, a forma nago € atacada, e de muitos pontos de ¥i Como alibi ideolégico do Estado territo1 tarismo étnico. Em criticas importantes do pés-colonialismo (Mbembe, 1992), o discurso revela-se profundamente implicado nos discursos do proprio colonialismo. Tem servido muitas vezes de vefculo para as divi- das encenadas dos herGis das novas nagdes — Sukarno, Jomo Kenyatta, Jawaharlal Nehru, Gainal Abdel Nasser — que brincavam aos naciona- lismos enquanto a esfera piblica das suas sociedades comecava a arder. Portanto, para intelectuais pés-coloniais como eu, a questdo é: 0 patrio- tismo tem futuro? E a que ragas € sexos pertence esse futuro? Responder a esta pergunta no exige somente um compromisso com a problemética da forma nago, da comunidade imaginada (Anderson, 1991), da produgio de povo (Balibar, 1991), da narratividade das nagdes, (Bhabha, 1990) e da l6gica colonial do discurso nacionalista (Chatterjee, 1986). Requer também um exame atento dos discursos do Estado e dos discursos contidos no hifen que liga Estado a nagao (cap. 2; Mbembe et 1992). O que se segue € uma exploragio de uma das dimensdes deste hifen. Hé hoje no Ocidente académico uma perturbadora tendéncia para di- vorciar 0 estudo das formas discursivas do estudo de outras formas insti- tucionais e 0 estudo dos discursos literdrios dos discursos mundanos das burvctacias, eagicitus, empresas privadas organizagées nio governa- zmentais. Este capitulo pugna, de certo modo, pelo alargamento do campo dos estudos do discurso: se a formagdo pés-colonial é em parte uma for- magio discursiva, é também verdade que a discursividade se tornou de- masiado exclusivamente o signo e 0 espago da col6nia ¢ da pés-colénia nos estudos culturais contemporineos. Alargar o sentido do que conta DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO como discurso requer um alargamento’correspondente da esfera da pés- -col6nia, estendendo-a para além dos espagos geogrificos do anterior mundo colonial. Ao levantar a questiio do pés-nacional, pretendo sugerir que a viagem do espago da antiga colénia (um espago colorido, um espago de cor) para o espago da pés-coldnia é uma viagem que nos leva a0 co- rago da branquitude. Ou seja, leva-nos sara a Ainérica, um espago pés- nacional marcado pela sua branquitude, mas marcado também pelo com- promisso incémodo com os povos da difspora, as tecnologias méveis as nacionalidades extravagantes. O tropo da tribo A despeito das provas em contrério, os tempos vo maus para o pa- triotismo. Corpos mutilados ¢ arame farpado na Europa de Leste, violén- cia xen6foba em Franga, acenar de bandeiras nos rituais politicos dos anos de eleigdes aqui, nos Estados Unidos — tudo isso parece sugerir que a Vontade de morrer pela patria ainda é umamoda global. Mas o patriotismo € um sentimento instavel que s6 avanga ao nivel do Estado-naco. Abaixo desse nivel é facilmente suplantado por lealdades mais intimas, acima des- se nivel dé origem a palavras de ordem vazias, raras vezes confirmadas pelo desejo de se sacrificar ou de matar. Portanto, para pensarmos o futuro do patriotismo temos que indsgar primeiro da satide do Estado-nagio. ‘As minhas davidas sobre patriotismo esto ligadas & biografia do meu pai, em que patriotismo ¢ nacionalismo eram jé termos divergentes. Como correspondente de guerra da Reuters em Banguecoque, em 1940, conhe- ceu um nacionalista indiano exilado, Subhas Chandra Bose, que cindiu de seen @ Nehru por causa da questo da violéncia. Bosc escapara a vigi Mancia britinica na India com 0 apoio activo dos Japoneses e fundara, no Sueste Asidtico, um governo-no-exiio, O exército que Bose formou com oficiais ¢ recrutas indianos que os Japoneses tinham feito prisioneiros cha- mava-se Exército Nacional Indiano. Este exército indiano foi redonda- mente desfeiteado pelo Exército Britinics da india em Assam (em solo 213 eeGGSGOCCSE ARJUN APPADURAL indiano, como o meu pai nunca se cansava de notar),em 1944 ¢ 6 governo provis6rio da Azad Hind ({ndia Livre) em que o meu pai foi ministro da jidade e Propaganda em brevé ruiu com a derrota das poténcias do Quando 0 meu pai regressou a india em 1945, ele ¢ 0s seus camaradas, parentes pobres da hist6ria da luta nacionalista pela independéncia india- na, no foram herdis bem-vindos. Eram patriotas, mas 0 sentimento ai britanico de Bose e as suas ligagdes as poténcias do Eixo tornaram-no em- baragoso, tanto para a no-violéncia de Gandhi como para a anglofilia fabiana de Nehru. No final das suas vidas, 0 meu pai e 0s seus camaradas foram pattiotas pirias, nacionalistas reles. A minha irm@, irmdos ¢ eu cres- cemos em Bombaim entalados entre 0 antigo patriotismo, estilo Bose, € o nacionalismo burgués, estilo Nehru. A nossa India, com as suas ligagdes Japonesas e os seus modos antiocidentais, tinha o aroma inominavel da traigdo relativamente & confortavel alianga dos Nehru com os Mouintbat- ten e ao acordo burgués entre a ndo-violéncia gandhiana e 0 soc nehruviano, A desconfianga que © meu pai votava a dinastia Nehru pre- dispés-nos a imaginar uma estranha india desterritorializada, inventada em Taiwan ¢ Singapura, Banguecoque ¢ Kuala Lumpur, assaz inde- pendente de Nova Deli e dos Nehru, do Partido do Congreso e dos na- cionalismos em voga. Por isso tem para mim um atractivo especial a hi- potese de o casamento entre nagdes € Estados ter sido sempre um casamento de conveniéncia e de o patriotismo precisar de encontrar novos abjectos de desejo. Um facto importante que explica as tenses da unigo entre nagao e Es- tado & que a indole nacionalista, que nunca cabe bem no gargalo do Estado territorial, esti hoje também em didspora. Transportada nos repert6rios de populacdes de refugiados, turistas, trabalhadores convidados, intelectuais transnacionais, cientistas ¢ estrangeiros ilegais com crescente mobilidade, cada vez mais se liberta das ideias de fronteira espacial e soberania terti- torial. Esta revolugdo dos fundamentos do nacionalismo entrou em nds praticamente sem darmos por isso, Onde o solo e 0 lugar foram a chave da ligagdo ent filiagdo territorial e monopélio do Estado sobre os meios aid N\ DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGO da violencia, as identidades e identificagdes fundamentais giram agora apenas parcialmente em tomo das realidades e das imagens de lugar. Na reivindicagdo sique do Calisto, nos seatimentos franco-canadianos pelo Quebeque, na exigéncia palestianiana de autodeterminagao, as imagens da terra natal sdo apenas uma parte da ret6rica da soberania popular'e nao reflectem necessariamente uma meta territorial. A violéncia e o terror que rodeiam 0 colapso de muitos Estados-nagdes existentes nao sio sinais da inversdo de algo de biolégico ou inato, obscuro ou primordial (Comaroff © Comaroff, 19926). Que faremos entio desta renovada sede de sangue em nome da nagio? Os nacionalismos modernos implicam comunidades de cidadaos no Estado-nagio definido territorialmente, que partilham a experiéncia colec~ tiva, ndo' do contacto cara a cara ou da subordinagdo comum a um mo- narca, mas da leitura em conjunto de livros, panfletos, jornais, mapas € outros textos modemos (Habermas, 1989; Calhoun, 1992). Dentro e atra~ vés destas experiéncias colectivas do que Benedict Anderson (1991) cha- ‘ma «capitalismo impresso» € qué outros véem cada vez mais como «ca- pitalismo electrénico», como a televisdo e o cinema (Wamer, 1992; Lee, 1993), os cidadaos imaginam que pertencem a uma sociedade nacional. Nesta perspectiva, 0 Estado-nagdo modemo no nasce de factos naturais — como lingua, sangue, solo e raga —; mas sim de um produto cultural essencial, um produto da imaginagdo colectiva: Esta perspectiva distan- cia-se, mas no o'suficiente, da teoria dominante do nacionalismo, das de J.G. Herder ¢ Giuseppe Mazzini e, assim sendo, de toda a espécie de na- cionalismos de direita que véem nas nagdes produtos do destino natural dos povos, quer radiquem na lingua, na raga, no solo ou na reli muitas destas teorias da nagdo imaginada hd sempre a sugestio de que 0 sangue, 0 parentesco, a raga e 0 solo sdo de certo modo menos imaginados € mais naturats do que a imaginagdo de interesse colectivo ou da solida- riedade. O tropo da tribo reactiva este biologismo oculto, em grande me- dida porque falta ainda articular alternativas forgosas parg ele. As conjun- turas historicas relativas & leitura e 3 publicidade, ad textos e suas mediagdes linguisticas, as nagGes e suas narrativas s6 agora estilo a ser jus- ais ARJUN APPADURAT tapostas para formular 0 diacritico especial e especifico do imaginério na ional e das suas esferas piiblicas (Lee, 1993). s dirigentes das novas nagdes que se formaram na Asia ¢ na Africa apés a Segunda Guerra Mundial — Nasser, Nehru, Sukarmo — ficariam muito desgostosos se vissem com que frequéncia as ideias de tribalismo ¢ nacionalismo surgem juntas no discurso piblico recente do Ocidente. Estes dirigentes gastaram grande parte da sua energia ret6rica instando os seus siibditos a que abandonassem 0 que consideravam lealdades primor- diais — 3 familia, tribo, casta e regitio — no interesse de frégeis abstrac- ‘ges a que chamavam «Egipto», «{ndia» ¢ «indonésia», Compreenderam que as novas nagdes precisavam de subverter e anexar as lealdades pri- mirias ligadas a colectividades mais intimas. Assentaram as suas ideias sobre novas.nagdes no fio de um paradoxo, o de que as nagdes modemas se destinam a ser de algum modo abertas, universais e emancipadoras em virtude do seu empenho especial nas virtudes civicas, sendo as suas na- ‘ges, ndo obstante, e em aspectos essenciais, diferentes e até melhores que outras nagdes. Em muitas coisas estes dirigentes sabiam 0 que tendemos a esquecer, isto é, que as nagdes, em especial as de quadro multiétnico, sio projectos colectivos ténues, nao factos naturais eternos. Contudo, con- tribuiram também para criar uma falsa divisdo entre a artificialidade da nagio ¢ os factos que falsamente projectaram como primordiais: tribo, fa- milia, regido. Na sua preocupagdo de controlo, classificagio e vigilincia dos stib- ditos, 0 Estado-nag20 muitas vezes criou, revitalizou ou fracturou iden- tidades étnicas que antes eram fluidas, negocidveis ou nascentes. Claro que os termos usados para mobilizar a violéncia étnica hoje podem ter ‘uma longa histéria. Mas as realidades a que se referer — lingua servo- -croata, costumes bascos, cozinha lituana — foram sobretudo cristaliza- das no século XIX € princfpio do século XX. Nacionalismo e etnicidade alimentam-se portanto mutuamente quando os nacionalistas constroem categorias étnicas que, por sua vez, Ievam outros a construir contra-et- nicidades e entio, em tempos de crise politica, estas requerem contra~ -Estados baseados nos contranacionalismos acabados de descobrir. Por 216 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACAO um subproduto reactivo. . Se a violéncia em nome de sérvios # molucanos, khmeres e lituanos, alemaes ¢ judeus nos leva a pensar que todas essas identidades correm fundo nas trevas, basta-nos voltar-nos para os recentes motins na india ocasionados pelo felatério de uma comissdo governamental que recomen- dava que se reservasse uma giande pe-centagem de empregos piiblicos para certas castas definidas pelo censo e pela constituigdo como «atrasa- das». Houve agitagio e camnificina ¢ no poucas mortes € suicidios no Norte da india por causa de r6tulos como «mais uma casta atrasada» saf- dos das distingSes terminolégicas do cerso indiano e seus protocolos ¢ es- caldes especializados. E espantoso que alguém morra ou mate por titulos associados a ser membro de mais uma casta atrasada, Contudo, este caso no é uma excepgio: na sua macabra baralidade burocritica, mostra como as necessidades técnicas dos censos e da legislago da Seguranga Social, combinadas com as técticas cfnicas da politica eleitoral, podem arrastar 8 grupos para idemtficagdes e medos quase raciais, A questo no é to diferente como possa parecer para rétulos aparentemente tio naturais como judeu, arabe, alemio ¢ hindu, todcs ligados a pessoas que escolhem estes rétulos, a outras que so forgadas ales e a outras ainda que, através da sua erudigdo filolégica, mantém de pé a histéria destes nomes ou ar- ranjam maneiras hdbeis de branquear problemas turvos de lingua e histé- ria, raga ¢ crenga, Claro que nem todos os Estados-nagdes silo hegeméni- cos, nem todas as formas subalternas de acgdo impotentes para resistir a estas pressdes e sedugdes. Mas parece justo afirmar que hd poucas formas de consciéncia popular e acco subalterna isentas, face & mobilizagio ét- nica, de formas pensadas ¢ campos politicos produzidos pelas acces ¢ discursos dos Estados-nagoes. Por isso as minorias, em muitas partes do mundo, so tio artificiais como as maiorias que parecem ameacadas por elas. Os brancos nos Esta- dos Unidos, os hindus na fndia. os ingleses na Gri-Bretanhay— tudo exemplos de como 0 qualificativo politico e administrativo de Hinorias dado a alguris grupos (negros e hispinicos nos Estados Unidos, celtas 217 ARJUN APPADURAL paquistaneses no Reino Unido,’ mugulmanos ¢ cristéos na {ndia) serve para empurrar as maiorias (silenciosas ou vocais) ao abrigo de rétulos com ida curta mas hist6ria longa. Muitas vezes, as novas etnias nio stio mais velhas do que os Estados-nagdes a que comegaram a resistir. Os mugul- ‘manos da Bésnia estio a ser relutantemente guetizados, embora tanto sér- vios como croatas temam a possibilidade de um Estado islamico na Eu- ropa. Muitas vezes as minorias fazem-se & nascenga. Os movimentos étnicos recentes envolvem milhares, por vezes mi- InGes de pessoas espalhadas por vastos territ6rios'e com frequéncia se- paradas por grandes distancias. Quer consideremos os vinculos dos sér- vvios divididos por grandes porgdes da Bésnia-Herzegovina, ou os curdos dispersos pelo Irdo, Iraque e Turquia, ou os siques espalhados por Lon- dres, Vancouver e Califérnia, bem como no Punjab indiano,-os novos etnonacionalismos sio acgdes de mobilizagdo complexas, em grande es- cala, altamente coordenadas, com base em novos fluxos logisticos € em propaganda que passa as fronteiras dos Estados. Néo podem ser consi- derados tribais se por tal entendermos que sZo levantamentos esponti- neos de grupos fortemente coesos, espacialmente segregados, natural- mente aliados. No caso que hoje mais nos assusta, 0. que poderia chamar-se tribalismo sérvio no é uma coisa nada simples, dado que hé pelo menos 2,8 milhes de famflias jugoslavas que produziram cerca de 1,4 milhdes de casamentos mistos entre sérvios e croatas (Hobsbawm, 1992). A que tribo se pode dizer que pertencem estas familias? Na nossa preocupasio horrorizada perante as tropas de choque do etnonacionalis- ‘mo, perdemos de vista os sentimentos confusos dos civis, as lealdades rompidas das familias que tém dentro da mesma casa membros de gru- pos antagonistas e os anseios dos que sustentam que no hd inimizade de base entre sérvios, mugulmanos e croatas na Bésnia-Herzegovina. E mais dificil explicar como & que os principios de fitiagdo étnica, por mais duvidosa que seja a sua proveniéncia e frégil a sua genealogia, po- dem rapidamente mobilizar grandes grupos para a acgo violenta. ( que parece claro é que o modelo tribal, na medida em que sugere paixdes preconcebidas & espera de explodir, dé uma bofetada na cara das 218 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO contingéncias que incendeiam a paixdo étnica. Os siques, até hé pouco tempo baluarte do exéreito indiano e, historicamente, a arma com,que a {india hindu combateu o regime mugulmano, sentem-se hoje ameacados pelo hindufsmo e parecem querer aceitar auxflio e socorro do Paquistio. Os mugulmanos da Bésnia-Herzegovina foram relutantemente forgados a revitalizar’as suas filiagdes islamicas. Longe de activarem sentimentos tribais de longa data, os mugulmanos bésnios esto divididos entre a concepedo de muculmanos europeus (expressio recentemente usada por Ejub Ganic, vice-presidente da Bésnia) 2 uma ideia de'si como parte in- tegrante de um islio transnacional, jé activamente envolvido na guerra bésnia. Os bdsnios ricos que vivem no estrangeiro, em pafses como a Turquia, andam ja a comprar armas para a defesa dos muculmanos da Bosnia. Pard nos libertarmos do tropo da tribo como fonte primordial desses nacionalismos que nés, nos Estados Unidos, achamos menos ci- vvicos do que 0 nosso, precisamos de construir uma teoria da mobilizago étnica em larga escala que reconhega explicitamente e interprete as suas propriedades pés-nacionais. Formagées pés-nacionais Muitos etnonacionalismos recentes e violentos so mais implosivos do que explosivos. Ou seja, em vez de radicarem no substrato ou afecto pri- ‘mordial que hd no fundo de cada um de nds e que € trazido & superficis para entrar em compromissos sociais e acces de grupo de major alcance, (© que se passa é muitas vezes o inverso. Os efeitos das interacgdes em larga escala entre € no seio dos Estados-nagdes, muitas vezes estimulados _ Por noticias de eventos em locais ainda mais distantes, serve para desen- cadear em cascata (Rosenau, 1990) as complexidades da politica regional, local e de bairro até estas potenciarem questées locais e implodirem em vrias formas de violéneja incluindo as ais brutais. O que antes era iden- tidade étnica fria (sique Shindu, arménia ¢ azerbeijd, sérvia e croata) tor- rna-se quente quando as localidades implodem sob a pressio de aconteci- 219 ARJUN APPADURAL mentos e processos distantes,-no espago ¢ no tempo, do sitio da implosio, Entre os mugulmanos da Bésnia, a temperatura destas identidades muda a nossa vista quando eles se véem afastados de uma ideia de si secular, ceuropefsta, para uma postura mais fundamentalista. Sao empurrados nao 86 pelas ameucas sérvias & sua sobrevivencia, mas também pela pressio. de outros musulmanos na Ardbia Saudita, Egipto ¢ Sudo, que afirmam que os muculmanos da Bésnia esto agora a pagar o prego de terem re- nunciado & sua identidade islamica sob o dominio comunista. Os dirigen- tes dos mugulmanos da Bésnia comegaram por declarar explicitamente que, se n6 receberem rapidamente auxflio das poténcias ocidentais, po- dem ter que se voltar para os modelos palestinianos de terror e extremis- mo. Uma mancira importante de explicar os casos em que as identidaides frias aquecem e as implosdes num lugar geram explosdes noutros € recor dar que 0 Estado-nagio de modo algum é a tnica equipa em jogo no que se refere a Jealdades translocais. A violéncia que hoje rodeia a identidade politica em todo 0 mundo reflecte a ansiedade acesséria da busca de prin- cipios de solidariedade ndo territorial. Os movimentos que agora vemos na Sérvia e no Sri Lanka, nos montes Karavakh e na Namibia, no Punjab € no Quebeque, so 0 que poderfamos chamar «nacionalismos de Tréian. Estes nacionalismos contém na verdade ligagdes transnacionais, subna- cionais e, mais generalizadamente, identidades e aspiragdes no nacio- nais, Como sio muitas vezes produto da didspora, tanto forgada como vo- luntéria, de intelectuais com mobilidade e de trabalhadores, de diélogos com Estados inimigos e Estados de acolhimento, muito-poucos dos novos malismos podem separar-se da angiistia do destocamento, da nostal- io, das remessas de. fundos ou da brutalidade dos pedidos de ianos em Miami, tmiles em Boston, marroquinos em Franga, ‘molucanos na Holanda, so os portadores destas novas lealdades transna- cionais e pés-nacionai O nacionalismo territorial € 0 alibi destes movimentos € no necessa- riamente a sua motivagdo basica ou o seu objectivo final. Pelo contrério, estas motivagées e objectivos bésicos podem ser muito mais negros do 20 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO. que tudo o que tenha a ver com soberania nacional, como quando parecem motivados por razées de purificagdo étnica e genocidio; por exemplo, 0 nacionalismo sérvio parece operar no redo e no édio ao seu Outro étnico muito mais do que no sentido de um pat-iménio territorial sagrado. Ou po- dem ser simplesmente idiomas e simbolos em tomo dos quais muitos gru- os conseguem articular o seu desejo de fugir ao regime estatal especifico considerado ameacador para a sua sobrevivéncia, Os Palestinianos estio mais preocupados em tirar Israel de cima das costas do que com a especial magia geogréfica da Margem Ocidental. Embora haja no mundo actual muitos movimentos separatistas — bas- cos, tdmiles, quebequenses, sérvios — que parecem determinados a en- cerrar nagdo e Estado juntos sob a mesma rubrica étnica, mais impressio- nante ainda € 0 caso das muitas minorias oprimidas que sofreram 0 deslocamento e a didspora forgada sem articularem um desejo forte de um Estado-nagao seu: os arménios na Turquia, os réfugiados hutus do Burun- i que vive na Tanzania e os hindus de Caxemira no exilio em Deli sto tuns quantos exemplos de que o destocamento nem sempre gera a fantasia da construgio do Estado. Embora muitos movimentos anti-Estado girem em torno de imagens da terra, solo e lugar natal e do retorno do exilio, estas imagens reflectem a pobreza da sua (e nossa) linguagem politica, ‘mais do que a hegemonia do nacionalismo territorial. Por outras palavras, ‘ndo emergit ainda um idioma que capte os interesses colectivos de muitos grupos em solidariedades translocais, mobilizagdes transfronteiricas e mobilizagdes pOs-nacionais. Esses interesses so muitos e tém voz, mas estio ainda presos no imaginério linguistico do Estado territorial. E éssa incapacidade de muitos grupos destertitorializados para pensarem numa maneira de sair do imagindrio do Estado-nagdo é por si s6 a causa de muita \ violéncia global, porque muitos movinentos de emancipagio e identidade sto forgados, na sua luta contra os Estados-nacdes existentes, a adoptar precisamente aquele imaginério a que procuram fugir. Os movimentos és-nacionais e nZo nacionais.so forgados, pela propria I6gica dos Esta- dos-nagdes efectivamente existehtes, a tornar-se antinacionais ow anti-Es- tado e assim inspirar o préprio poder de Estado que os forca a responder 22L ARJUN APPADURAL ina Lingua do contranacionalismo. A este cfrculo vicioso s6 se escapa quan- do for encontrada uma linguagem que capte as formas de fidelidade com- plexas, nao territoriais, p6s-nacionais. Muito se’tem dito em anos recentes sobre a velocidade com que @ in- formagio viaja pelo mundo, a intensidade com que as noticias de uma ci- dade brilham nos ecras de televisio de uma outra, 0 modo como as ma- nipulagées financeiras numa bolsa afectam os ministros das Finangas de outro continente. Muito se tem dito também sobre a necessidade de atacar 5 problemas globais como a sida, a poluigdo e 0 terrorismo com formas concertadas de accdo internacional. A vaga democritica e a pandemia da sida so em certa medida causadas pelo mesmo tipo de contacto interso- cietal e de trdfego humano transnacional. Da perspectiva da Guerra Fria, 0 mundo pode ter-se tornado Mas também se tomou multicéntrico, para usar a expresso de James Ro- senau (1990). Adaptando metéforas da teoria do caos, Rosenau demons- trou que a legitimidade dos Estados-nagdes tem vindo a decrescer, que as “organizagées internacionais e transnacionais de todos os tipos tém proli- ferado ¢ que as politicas locais e os processos globais se afectam recipro- camente de um modo ca6tico mas nido imprevisivel, muitas vezes fora das interacgdes dos Estados-nagoes, Para apreciar estas complexidades, precisamos de fazer mais do que lo que em ciéncias sociais se chama comparagio, pondo um pafs ou cultura a0 lado do outro como se tivessem vida e pensamento inde- pendentes*. Precisamos de langar um novo olhar a toda uma série de or- ganizagées, movimentos, ideologias e redes de que a multinacional clés- sica € apenas um. exemplo. Consideremos movimentos filantrépicos transnacionais como 0 Habitat for Humanity (cujos voluntérios procuram. construir novos ambientes com outros voluntirios em locais muito distan- (es). Tomemos as virias organizagdes terroristas intemacionais que mo- m homens (e por vezes mulheres), dinheiro, equipamentos, campos de tino e paixo num desconcertante cruzamento de combinagdes ideo- dgicas e étnicas. Veja-se a moda intemacional, que ndo é apenas uma questio de mercados globais e canibalismo de estilos internacionais, mas ola, DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGKO cada vez mais uma questo de linhas de produgao sisteméticas transna- cionais, de transferéncia de gostos, pregos e exposigio. Tome-se a-varie- dade de movimentos verdes que comegaram a organizar-se transnacional- ‘mente em tomo de biopoliticas especificas. Considere-se o mundo dos refugiados. Durante muito tempo tommos as questdes e organizagées de refugiados como parte da babugem e dos destrogos da vida politica, flu- tuando entre as certezas € as estabilidades dos Estados-nagées. Portanto, © que niio somos capazes de ver € que 0s campos de refugiados, a buro- cracia dos refugiddos, os movimentos de auxilio a refugiados, os servigos de refugiados dos Estados-nagdes e as filentropias transnaciongjs para re- fugiados, tudo isso faz parte da estrutura permanente da ordem emergente pés-nacional. Outro excelente exemplo, mais perto de nés, talvez, € 0 grande ntimero de organizagdes, movimentos e redes de filantropia cris- Gs, como a World Vision, que hd muito apagaram as fronteiras entre as, fungées evangélicas, de desenvolvimento e de manutengio da paz em muitas partes do mundo. Talvez o mais estudado destes exemplos seja ‘© movimento olimpico, por certo o mais importante caso moderno de um movimento nascido no contexto das preocupagdes europeias pela paz mundial na Gltima parte do século XIX. Este movimento, com a sua forma peculiar de jogo dialéctico entre fidelidcdes nacionais ¢ transnacionais (Macaloon, 1981; Kang, MacAloon e DaMatta, 1988) representa apenas co mais espectacular de uma série de sedes ¢ formagdes em que ser vertido 0 futuro incerto do Estado-nagio. Em todos estes casos, o que vemos nao sto apeas slogans internacio- nais, ou grupos de interesses, ou transferéncia de imagens. Assistimos a0 nascimento de uma série de formagdes sociais complexas, p6s-nacionais. Estas formagées estio agora organizadas em torno de principios de finan- damentalmente pés-nacionais e nio apenas multinacionais ou internacio- nais. A modema empresa multinacional cléssica € um exemplo algo enganoso do que € mais importante nestas formas novas, precisamente porque assenta furdamentalmente na organizagao juridica, fiscal, ambien- tal e humana do Estado-nag3o ao mesmo tempo que maximiza as possi- 23 ARJUN APPADURAI lidades de operar dentro e. através de estruturas nacionais, explorando sempre a sua legitimidade. As novas formas de organizagzo stio mais di- versificadas, mais fluidas, mais ad hoc, mais provisérias, menos coeren- tes, menos organizadas e simplesmente menos implicadas nas vantagens relativas do Estado-nagio. Muitas delas constituiram-se explicitamente para monitorizar as actividades do Estado-nagio: a Amnistia Internacional um exemplo excelente. Outras, em geral associadas as Nagdes Unidas, trabalham para conter os excessos dos Estados-nagées, por exemplo, pres- tando assisténcia aos refugiados, vigiando acordos de paz, organizando programas contra a fome e realizando o desagradével trabalho associado ‘0s oceanos e as tarifas, & satide publica ¢ ao trabalho. Outras ainda, como a Oxfam, so exemplos de organizagées globais que operam fora da rede para-oficial-das Nagdes Unidas e dependem do crescimento das organizagées no governamentais (ONG) em muitos pon- tos do mundo desenvolvido. Estas ONG,.a operar numa série de reas que vio da tecnologia e ambiente até & satide e as artes, passaram de menos de duzentas em 1909 para mais de duas mil nos primeiros anos setenta. Constituem muitas vezes importantes alfobres de auto-ajuda que crescem a partir de um sentido da limitada capacidade dos governos nacionais para garantir as coisas bdsicas da vida em sociedades como a {ndia, ao mesmo tempo que contribuem para formar essa mesma percepgao. E outras organizacdes hé, a que costumamos chamar fundamentalistas, como a Fraternidade Muculmana no Médio Oriente, a Igreja da Unifica- gio e toda uma série de organizagoes cristas, hindus e mugulmanas, que constituem movimentos globais para todo o servigo com o fito de aliviar 0 sofrimento para além das fronteiras nacionais, ao mesmo tempo que mo- bilizam lealdades de primeira ordem para além das fronteiras do Estado. Alguns destes movimentos evangélicos (como 0 grupo radical hindu co- nhecido como Ananda Marg, que foi tido por responsiivel do assassinato de diplomatas indianos no estrangeito) opdem-se agressivamente a deter- minados Estados-nagdes e so muitas vezes tratados como sediciosos. Ou- tos, como a Igreja da Unificagdo, limitam-se a trabalhar em redor do Es- tado-nagio sem porem directamente em questio a sua jurisdigio. Estes, 224 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO exemplos, que continuamos a ver como formas de organizagio excepcio- nais ou parias, sdo simultaneamente exemplos e incubadoras de uma or- dem global pés-nacional. © coragao das alvas A expresso pés-nacional, usada até aqui sem comentétios, tem di- versas implicagdes que podem agora ser examinadas mais atentamiente. A primeira é temporal e historica e sugere que estamos em vias de avan- scar para uma ordem global em que o Estado-nagio se tomou obsoleto & outras formagbes de lealdade & identidade tomaram o seu lugar. A se- gunda € a ideia de que o que esti a emergir sio formas altemativas fortes para a organizagdo do trifego global de recursos, imagens e ideias — formas que ou contestam activamente o Estado-nago, ou constituem al- temativas pacificas de lealdades politicas em larga escala. A terceira im- plicagio é a possibilidade de que, enquanto as nagdes puderem continuar ‘exist, a erosio regular das capacidades do Estado-nagdo para monop- olizar a lealdade estimula a difusio de formas nacionais plenamente di- vorciadas dos Estados territoriais. So sentidos relevantes do termo pés- -nacional, mas nenhum deles implica que o Estado-nagdo na sua forma territorial cléssica esta jd fora de jogo. E certo que esti em crise e que parte desta crise é uma relago cada vez mais violenta entre o Estado- =nagdo e os Outros pés-nacionais, Os Estados Unidos sto um lugar pariicularmente not6rio para consi- derarmos estas afirmagdes porquanto, perante os factos, conseguiram ranter com grande sucesso a imagem de uma ordem nacional que é si- multaneamente civil, plural e prOspera, Parecem nutrir um conjunto vi- brante © complexo de esferas putblicas, entre as quais algumas que foram 4qualificadas como piblicos «altemativos», «parciais» ou «contra» (Ber- te Freeman, 1992; Fraser, 1992; Hansen, 1993; Robbins, 1993; Co- “ctivo Black Public Sphere, 1995). Continuam a ser imensamente ricos pelos padres globais e, embora as suas formas de violéncia piblica se- 25 ARIUN APPADURAL jam muitas e preocupantes, o seu aparelho de Estado nio é, na genera- lade, dependente de formas de tortura, prisio ¢ repressio violenta. Acrescentando o facto de, nos Estados Unidos, 0 multiculturalismo pa- recer assumir formas predominantemente nao violentas, estamos perante uma grande poténcia incontestada que domina a nova ordem mundi que recebe imigrantes aos millrares e que surge como um exemplo triun- fante de Estado-nagio territorial cléssico. Qualquer andlise da emergén- cia de uma ordem global pés-nacional teré que contemplar a sua maior falsificagdo aparente: os Estados Unidos. Esta tltima secgio langa as ba- ses para essa reflexao. [Até ha poucos anos, gostava de viver nesse espago particular conce- dido aos «westrangeiros», em especial angl6fonos, instrufdos, como eu pré- prio, com leves vestigios de prontincia britanica. Como uma vez me disse abonatoriamente uma negra numa paragem de autocarro em Chicago, eu era das Indias Orientais. Foi em 1972, Mas desde essa boa conversa de hé trs décadas, foi-se-me tormando cada vez mais dificil considerar-me, armado com 0 meu passaporte indiano € os meus modos angléfonos, de certo modo imune a politica de identidade racial dos Estados Unidos. Ape- sar de quase tr@s décadas de estrangeiro residente nos Estados Unidos, ca~ sado com uma americana anglo-saxénica e pai de um adolescente bicul- tural, o mew passaporte indiano afigura-se um cartio de identidade um tanto frouxo, A rede das politicas.raciais estende-se agora mais longe do que nunca nos Estados Unidos urbanos. cor da minha pele e o seu papel na politica das minorias, bem como encontros de rua com 0 édio raci 1 prepararam-me para reabrir os lagos ire América e os Estados Unidos, entre biculturalismo e patriotismo, en- tre as identidades da dispora e as (in)stabilidades decorrentes dos passa- portes e cartas verdes. As lealdades pds-nacionais no sZo irrelevantes para o problema da diversidade dos Estados Unidos. Com efeito, se est a formar-se uma ordem pés-nacional e a americanidade muda de sentido, todo 0 problema da diversidade da vida americana terd que ser repensado. No ¢ apenas a forga de certas dedugdes dque me suscita esta recomen- dagio. Enquanto oscilo entre o distanciamento de uma identidade pés-co- 226 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGEO lonial, académica e de digspora (com a vantagem do perfil do exilio e do espago de deslocamento) ¢ as feias realidades de ser racializado, minori- tarizado e tibalizado nos meus encontros quotidianos, a teoria colide com a pratica. Um livro recentemente publicado pela Random House Tribes: How Race, Religion, and Identity Determine Success in the New Global Eco- nomy (Kotkin, 1993). Escrito por Joel Kotkin, «autoridade intémacional- mente reconhecida em tendéncias globais, econémicas, politicas € so- ciais», como proclama a sobrecapa, traga as conexées entre etnia e sucesso nos negécios. As cinco tribos de Kotkin — judeus, chineses, japoneses, ingleses ¢ indianos — séo um estranho grupo, mas representam o primor- dialismo com rosto high-tech. Sao os capitalistas périas de Max Weber na corrida transnacional do fim do século XX. Livros como este recordam que 6s naturais das Indias Orientais ainda so uma tribo, como os judeus e ou- twos, a explorar o fildo-primordial para abrirem caminho para a dominagZo global. Portanto, o tropo da tribo pode alterar as suas premissas e podemos ter grandes tribos globais, uma imagem que procura abarcar os dois lados, a intimidade primordial e as estratégias da alta tecnologia. Por mais diés- poras que passem, como passaram os judeus, os sul-asidticos estio con- denados a permanecer uma tribo, para sempre fornecedores e negociantes num mundo de mercados abertos, contratos justos e oportunidades para todos. Para aqueles de nés que se mudaram das antigas col6nias para a «fan- tasia nacional» (Berlant, 1991) da América hd portanto a sedugdo da dupla pertenga, de nos tornarmos americanos sem deixarmos de pertencer a didspora, de uma ligagio expansiva a um espago ilimitado de fantasia. Mas, se podemos consiruir a nossa identidade, nao podemos porém fazé- \ clo exactamente como nos convém. A medida que muitos de nés vo sen- do racializados, biologizados, minoritarizados é tribalizados, de algum modo reduzidos em vez de capacitados pelo nosso corpo ¢ pela nossa his- {6ria, 0 nosso particular diacritico tomna-se a nossa prisio ¢ 0 tropo da tribo separa-nos de uma outra América inespecifica, longe do clamor da tribo, pudica, civica ¢ branca, uma terra onde no somos bem-vindos. 27 ARJUN APPADURAL E assim estamos de volta ao idioma e & imagem absorvente do triba- lismo, Aplicado a Nova Iorque, Los Angeles (por oposigio a Sa- rajevo, Soweto ou Colombo), 0 tropo do tribalismo esconde e propicia um racismo difuso para com esses Outros (por exemplo, hispiinicos, iranianos e afro-americanos) que se insinuaram no corpo politico da América. Per- mite-nos manter a ideia de uma americanidade que precede (¢ subsiste, apesar de tudo) os entre americanos éribais (0s negros, morenos € amarelos) e outros ameri- canos. Este tropo facilita a fantasia de que a sociedade ci Unidos tem um destino especial no que toca ao multicu wuralismo inteligente para nds, etnicidade sanguindria ou tri- balismo acéfalo para eles. Desenvolveu-se um conjunto especial de lagos entre democracia, div dade e prosperidade no pensamento social american. Com base num com- plexo didlogo entre ciéncia politica (a tinica ciéncia social genuinamente made in America sem contrapartidas ou antecedentes europeus dbvios) € constitucionalismo vernéculo, estabeleceu-se um confortével equilforio entre as ideias de diversidade cultural e uma ou outra versio do melting pot. Osci- lando entre a dade revelou-se notavelmente duradoura e gratificante. Alberga, por vezes nna mesma pagina e na mesma respiragdo, um sentido de que a pluralidade é a indole americana e que hd uma americanidade que de certo modo contém € transcende a pluralidade. Este segundo acordo pés-Guerra Civil com a dife- renga est agora nas iltimas e o debate sobre mul lismo do politica- ‘mente correcto é o seu peculiar Waterloo de pacotilha. De pacotilha porque recusa insistentemente reconhecer que 0 desafio do pluralismo da didspora € agora global que as solugSes americanas ndo podem ser tidas por isoladas. lismo estd agora inteiramente integrada no nacionalismo extra- territorial de populagdes que amam a América, mas ndo estio necessaria- mente ligadas 20s Estados Unidos. A verdade crua & que nem o pensamiento Popular nem o pensamento académico deste pats aceRgu a diferenga entre ser rra de imigrantes e ser um né da rede pos-nacional de didsporas. DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO No mundo pés-nacional que vemos emergir, a diéspora vai a favor, nao gente tem parentes a trabalhar fora. Muitas pessoas encontram e: sequer se mexerem para muito longe — croatas na Bésni xemira, mugulmanos na {ndia, Mas outros vém-se inscritos em padrées de migracdo repetida. Os indianos que foram para a Africa Orient XIXe princfpio do século Xx viram-se expulsos do Uganda, Quénia e Tan- zania na década de 1980, foram encontrar novos empregos e novas pos- sibilidades em Inglaterra e nos Estados Unidos e esto agora a reconside- rar a hipétese de voltar A Africa Oriental. Do mesmo modo, os;chineses de Hong Kong que esto a comprar propriedades em Vancouver, 0s co- merciantes gujarates do Uganda que abrem motéis em Nova Jérsia e ques de jornais em Nova-Torque e os motoristas de téxi siques de Chicago e Filadélfia, so todos exemplos de um novo mundo em que a iéspora € a ordem das coisas e é dificil encontrar Vidas assentes. Os Es- tados Unidos, que continuam a conside-ar-se uma terra de imigranies, véem-se varridos por estas didsporas globais, deixaram de ser um espago fechado onde o melting pot opere a sua magia, so mais uma encruzilhada da diéspora. As pessoas vém para ed em busca de fortuna, mas jd no gos- tam de deixar a sua terra. A febre da democracia global e a queda do im- Pério soviético parte dos grupos que desejam re- negociar os seus lagos com a identidade da diéspora a partir das suas posigdes americanas so agora livres de o fazer: por isso os judeus ame- ricanos de origem polaca fazem excursdes Europa de Leste subordinadas ao tema do Holocausto, os médicos india1os do Michigan abrem elfnicas, de oftalmologia em Nova Deli, os palestinianos de Detroit participam na politica da Margem Ocidental A forma da transnagéo A formula da canos e afro-am fenizagdo (como em ftalo-americano: ico-ameri- anos) est a chegar a0 ponto de saturacdo e o lado di- 29 eoecec ow & we Ener EU © we ww we ARJUN APPADURAI reito do hifen tem dificuldade em conter a rebeldia do lado esquerdo. Num ‘momento em que a legitimidade dos Estados-nagdes no seu préprio con- texto territorial esté cada vez mais ameacada, a ideia de nagio floresce transnacionalmente. A salvo das depredagGes dos seus Estados natais, as comunidades da didspora tornam-se duplamente leais as suas nagdes de _ origem, logo, ambivalentes quanto & sua lealdade & América. A politica de identidade éinica dos Estados Unidos est inseparavelmente ligada & ifusio global de identidades nacionais originariamente locais. Para cada Estado-nagio que exportou um nlimero significativo dos seus nacionais para os Estados Unidos como refugiados, turistas ou estudantes, hé uma transnacdo deslocalizada que retém um vinculo ideolégico especial com um lugar de origem putativo, mas que por outro lado pertence colectiva- mente a diéspora?, Nenhuma concepgio de americanidade é capaz de con- ter esta grande variedade de transnagGes. Neste cenario, o americano hifenizado pode passar a ser duas vezes hi- fenizado (asidtico-americano-japonés ou nativo-americano-iroqués, ou afro-americano-jamaicano, o¥ hispano-americano-boliviano) & medida que as identidades da didspora ganham mobilidade e se tormam mais pro- teiformes. Ou talvez seja preciso inverter os lados do hifen e passemos a uma federagdo de digsporas: americano-italianos, americano-haitianos, americano-irlandeses, americano-africanos. A dupla cidadania pode au- mentar se as sociedades de onde viemos permanecerem abertas ou se se abrirem mais. Podemos reconhecer que a diversidade da didspora coloca efectivamente a lealdade a uma transnago nfo territorial em primero, embora reconhega que hi uma maneira americana especial de se relacio- nar com estas didsporas globais. Enquanto espagé cultural, a América no precisaré de competir com toda uma série de identidades globais e leal- dades da diispora. Pode chegar a ser vista como um madela de disposigo de um dado locus territorial (entre outros) de cruzamento de comunidades da didspora. Neste sentido, 0 problema americano assemelha-se 20 de ou- tras democracias industrais ricas, como a Suécia, a Alemanha, a Holanda ea Frangax todas enfrentam o desafio de enquadrar os universalismos do Iuminism’'e o pluralismo da didspora. 230 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAQ. A questio é: pode construir-se uma politica pés-nacional em'torno des- te facto cultural? Muitas sociedades enfrentam agora influxos de imigran- tes e refugiados, desejados e indesejados. Outras expulsam grupos em ac- gSes de limpeza étnica destinadas a produzir os préprios povos cuja preexisténcia a nagdo deveria ratificar. Mas a América pode ser a tnica'a ter-se organizado em tomo de uma ideologia politica modema em que o pluralismo é fundamental para’a condugao da vida democritica. Por uma outra via da sua experiéncia, esta sociedade gerou também uma poderosa fabula de si como terra de imigrantes. No mundo da digspora pés-nacional de hoje, a América é convidada a fundir estas duas doutrinas, aienfrentar a5 necessidades do pluralismo e da imigragio, a construir a sociedade em torno da diversidade da digspora. Mas imagens como mosaico, arco-iris, manta de retalhos e outros tro- pos da complexidade-na-diversidade nao dao os recursos imaginativos. para esta tarefa, em especial se se multiplicam os receios de tribalismo, As tribos no fazem mantas de retalhos, embora por vezes fagam confe- deragies. Na discussio, seja ela sobre imigragio, educagio bilingue, none académico ou desfavorecidos, estas imagens liberais procuraram conter a tensdo entre o impulso centripet» da americanidade e o impulso centrifugo da diversidade da diaspora na vida americana. O combate pela discriminagdo positiva, quotas, Seguranga Social e aborto na América de hoje sugere que a metéfora do mosaico é incapaz de conter a contradigdo entre identidades de grupo que os Americanos tolerarao (até certo ponto) na Vida cultural e as identidades individvais que continuam a ser o prin- nao negocidvel subjacente as ideias americanas de sucesso, mobili- dade e justiga, Que fazer? Poderd haver um lugar especial para a América na’ riova ‘ordem pés-nacional, um lugar que no parta do isolacionismo nem da do minago global como base altemativa. Os Estados Unidos t&m todas as condigdes para serem uma espécie de laboratério e uma zona de comércio livre de geragao, circulagdo, importacdo ¢ experimentagio de materiais para um mundo organizado em tomo da diversidade da difspora, Em certo sentido, uma experiéncia que estd ja a decorrer. Os Estados Unidos siio 231 ARJUN APPADURAI jd. uma enorme e fascinante feira da ladra para o resto do mundo, Dao aos Japoneses férias de golfe e imobilidrio; ideologias e técnicas de gestio & Europa e & {ndia; ideias para telenovelas ao Brasil e a0 Médio Oriente; primeiros-ministros & Jugoslivia; economias do lado da oferta & PolGnia, Raissia e a quem mais quiser tentar, fundamentalismo cristo & Coreia; e arquitectura pés-moderna a Hong Kong, Fornecendo também um conjun- to de imagens — Rambo no Afeganistio, «We Are the World», George Bernard Shaw em Bagdade, Coke goes to Barcelona, Perot goes to Wash- ington — que ligam direitos humanos, consumismo, antiestatismo € Vi bilidade medidtica, podemos dizer que os Estados Unidos sao em parte responsdveis pelas idiossincrasias que servem lutas por autodeterminacio em muitas e diferentes partes do mundo. Por isso é que uma camisola da Universidade do Iowa nao é apenas um sfmbolo pateta nas selvas de Mo- ambique ou nas barricadas de Beirute: é que ela capta um anseio de viver A americana que paira no ar, mesmo nos mais intensos contextos de opo- sigio aos Estados Unidos. A politica cultural da nacionalidade, extrava- gante é um exemplo deste anseio contraditério nos Estados Unidos (Ber- lant e Freeman, 192). O resto deste anseio é provocado por politicas estatais autoritérias, por grandes inddstrias de armamento, pelo otho in- sistentemente esfomeado da comunicacdo electrénica e pelo desespero das economias falidas. Claro que estes produtos ¢ ideias nao sio concepgdes imaculadas de um misterioso saber americano, so justamente o resultado de um am- biente complexo em que ideias e intelectuais se encontram numa série de cendrios especiais (como laboratérios, bibliotecas, salas de aula, es- tidios de misica, seminérios de gestio e campanhas politicas) para ge- rar, reformular e por de novo em circulagao formas culturais de diéspora fundamentalmente pés-nacionais. O papel dos miisicos, estidios de som produtoras discogréficas americanos na criagio do ritmo para o mundo é um excelente exemplo deste tipo de mentalidade empresarial de sede doméstica e vocagao exterior. Os Americanos detestam admitir esta ma- neira parcelar, pigmética,aleatéria, flexivel e oportunista como os pro- dutos e reprodutos americanos circulam por todo o mundo. Os Ameri- 232 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACAO canos gostam de pensar que 0s Chineses simplesmente compraram.as virtudes da livre-iniciativa; os Polacos, a economia do lado da oferta; 0 Haitianos e Filipinos, a democracia; e toda a gente, os direitos huma- nos. Raramente prestamos atengdo aos complicados termos, tradigdes € cstilos culturais em que estas ideias sto vertidas e depois transformadas até se tornarem irreconhectveis. Por isso, durante os acontecimentos his- \6ricos da Praga Tiananmen, em 1989, quando pareceu que os Chineses se tinham tornado democréticos da noite para o dia, nfo faltaram provas de que na China os diferentes grupos compreendiam que os seus pro- bblemas eram internamente variados e ligados a diversas especificidades da hist6ria e do estilo cultural chinés. Quando os Americanos véem transformagdes e compl do seu vocabulério e estilo demoeritico, se por acaso as notam, ficam aborrecidos, desiludidos. Como léem mal 0 modo como outros tratam © que para nés continua a ser a receita nacional do sucesso, os Americanos cometem mais um acto de distorgdo narcisista: imaginamos que estas in- vengées peculiarmente americanas (democracia, capitalismo, livre-inicia- tiva, direitos humanos) esto automitica e instrinsecamente interligadas € que a nossa saga nacional detém a chave do segredo. Na migragio das nossas palavras vemos a vit6ria dos nossos mitos. Cremos na conversio terminal. ‘A ovit6ria» americana na Guerra Fria nfo tem necessariamente que se tomar pirrénica. O facto € que 08 Estados Unidos, de um ponto de vista cultural, so jé uma vasta zona de comérvio livre, cheia de ideias, tecno- logias, estilos e idiomas (da McDonald’s & Harvard Business School, & Dream Team e & anticrese) que 0 resto do mundo acha fascinantes. Esta zona de comércio livre assenta numa économia voldtil; as principais ci- dades da faixa fronteiriga americana (Los Angeles, Miami, Nova Torque, Detroit) esto agora fortemente militarizadas. Mas estes factos tém pouca relevancia para os que chegam, por breve ou muito tempo, a esta zona de comércio livre. Alguns, vém em fuga de muito maior violéncia urbana, perseguigdes do Estado e dificuldades econémicas, vem como migrantes definitivos, legais ou ilegais. Outros vém por pouco tempo, comprar ves- 233 ARJUN APPADURAT tudrio, entretenimento, empréstimos, armas ou ligdes répidas de economia de mercado livre ou de administragdo da sociedade civil. A propria rebel- dia, a basica imprevisibilidade, a inventiva dindmica, a mera vitalidade cultural desta zona de comércio livre € 0 que atrai aos Estados Unidos toda a espécie de didsporas. Para os Estados Unidos, desempenhar um papel de relevo na pol cultural de um mundo pés-nacional tem escolhos internos muito comple- x0s. Pode significar dar espago a legitimidade dos direitos culturais reitos para manter a diferenga cultural com protecgao e garantias oficiais Pode significar uma dolorosa cistio com uma concepgo da economia americana fundamentalmente fordiana, industrial, como sabemos que sio 08 agentes da informagio global, os fornecedores de servigos, os médicos da moda. Pode significar adoptar e integrar na vida pessoal o que até aqui se confinava ao mundo da Broadway, de Hollywood e da Disneylindi a importagao de experiéncias, a produgdo de fantasias, o fabrico de iden- tidades, a exportagdo de modas, a cunhagem de pluralidades. Pode signi- ficar distinguir a nossa ligagdo 4 América da nossa vontade de morrer pe- os Estados Unidos. Esta ideia converge com a seguinte proposta de Lauren Berlant: 0 individuo que quiser evitar a loucura melancélica da abstracgio de si que € a cidadania e resistir& tentagio de vencer sozinho o contexto politico material ‘em que vive tem que desenvolver ticticas de recusa da sua interarticulagao, velha jf de quatrocentos anos, entre os Estados Unidos ¢ a América, a nagio ¢ a utopia (1991, p. 217), Ou seja, pode ser tempo de repensar monopatriotismo, 0 patriotis- mo dirigido exclusivamente ao hifen entre nado e Estado, e per que op problemas materials que eufteutanus — défice, ambiente, abor- to, racismo, drogas e emprego — definam os grupos sociais e ideias pe- las quais estamos dispostos a viver — e a morrer. A nagdo extravagante pode ser apenas o primeiro de uma série de novos patriotismos de que outros podem ser os reformados, os desempregados e os deficientes, DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO bem como os cientistas; as mulheres, ¢ os hispinicos. Alguns de nés continuarSo ainda a querer viver — e morrer — pelos Estados Unidos. Mas muitas destas novas soberanias séo intrinsecamente pés-nacionais. E certo que representam: mais motivos humanos de filiagdo do.que a fi- liagdo estatal, ou partidéria, e bases de debate e interaliangas mais inte- ressantes. Os voluntérios de Ross Perot, em 1992, deram-nos um breve € inténso vislumbre da forga do patriotismo totalmente divorciado de partidos, governo ou Estado. A América ainda pode construir outra nar- rativa de significado duradouro, uma rarrativa dos usos da lealdade de- pois do fim do Estado-nagZo. Nesta narrativa, 0s territ6rios delimitados poderiam dar lugar a redes de didspora, as nagdes a transnagdes, € 0 pro- prio patriotismo poderia tornar-se plural, serial, contextual e mével. Te- mos aqui uma direcgio para o futuro do patriotismo num mundo pés- -colonial. Nao € provavel que 0 patriotismo — como a hist6ria — acabe, mas 0 sett objecto pode ser susceptivel de transformago, em teoriae na pritica. Resta agora perguntar o que € que transnagGes e transnacionalismo tém aver com a p6s-nacionalidade e as suas possibilidades. Esta relagio exige, por diceito préprio, um tratamento minucioso, mas impOem-se umas quan- tas observacdes. Quando as populagGes so destertitorializadas e incom- pletamente nacionalizadas, quando as nag6es cindem e voltam a combi- nar-se, quando os Estados enfrentam dificuldades insuperaveis na tarefa de produzir «0 povo», as transnagdes sio os mais importantes palcos so- cisis para encenar a crise do patriotismo. Os resultados so seguramente cortradit6rios: Deslocamento e exi- lio, migragdo e terror criam fortes apegos a ideias de terra natal que pa- recem mais territoriais do que. nunca, Mas também é possfvel detectar em muitas déssas transnagGes (umas éinicas, outras religiosas, umas fi- lantrépicas, outras militaristas) os elementos de um imagindrio pés-na- cional. Estes elementos, para quem quiser apressar a feléncia do Esta- do-naco, com todas as suas contradigdes, requerem estimulo e critica Deste modo, as formas sociais transnicionais podem seios pés-nacionais como dar existéncia a mi 10 $6 gerar an- ‘imentos, organizacdes, 235 ARJUN APPADURAT espagos, pés-nacionais. Nestes espagos pés-nacionais, a incapacidade do Estado-nago para tolerar a diversidade (pois procura a homogeneidade dos seus cidadaos, a simultancidade da sua presenga, a consensualidade da sua narrativa e a estabilidade dos seus cidadaos) talvez possa ser ven- 236 9 A produgiio de localidade Este capitulo trata de algumas interrogagdes que surgiram durante a elaboragio de uma série de textos sobre fluxos culturais globais. Co- mego por trés dessas perguntas. Qual o lugar da localidade nos esque- ‘mas em torno dos fluxos culturais globais? A antropologia detém al- gum privilégio retérico especial num mundo em que a localidade parece ter perdido as suas amarras ontolégicas? Pode a relagio mutua- mente constitutiva entre antropologia e localidade sobreviver num mundo extremamente deslocalizado? A minha posigtio nao radica di- rectamente num interesse'pela produgio do espaco (Lefebvre, 1991) ou pelas ansiedades disciplinares da antropologia enquanto tal, embora ambas as coisas informem grandemente a minha resposta a estas per- guntas. Prefiro travar um debate continuado sobre o futuro do Estadi ~nago (cap. 8). O que pretendo saber & 0 que pode significar loca dade numa situagao em que o Estado-nacio enfrente determinado tipo de desestabilizagao transnacional. Considero a localidade mais relaciozal e contextual do que escalar ou espacial. Vejo-a como uma qualidade Zenomenolégica complexa consti- 237 ARJUN APPADURAT tuida por uma série de vinculos entre o sentido da imediatidade social, a tecnologia da interactividade e a relatividade dos contextos. Esta qualida- de fenomenolégica, que se exprime em certos tipos de acco, socialidade lade, € o principal predicado da localidade como categoria (ou objecto) que procuro explorar. Pelo contrétio, uso o termo bairro para referi as formas sociais efectivamente existentes em que a localidade en- quanto dimenso ou valor se realiza de varios modos. Os bairros, nesta acepgio, siio comunidades situadas caracterizadas pela sua re: ou virtual, € pelo seu potencial para a reprodugio soci No ambito desta reflex, fago mais duas perguntas: como € que a lo- cilidade, enquanto aspecto da vida soci quanto formas sociais substantivas? Terd a histéria recente, e em especial a crise global do Estado-nagao, alterado substancialmente a relago da lo- calidade com os bairros? Um modo mais simples de caracterizar estes miiltiplos objectivos € perguntar: que pode significar a localidade num mundo em que a localizagdo espacial, a interaccao quotidiana-e a escala social nem sempre séo isomérficas? laciona com os bairros en- Locatizar 0 sujeito Um dos grandes clichés da teoria social (que remonta a Tonnies, We- ber e Durkheim) € que, nas sociedades moderas, a localidade enquanto propriedade ou diacritico da vida social estd sitiada. Mas a localidade € uum facto social intrinsecamente frail. Mesmo nas situages mais f espacialmente confinadas, geograficamente isoladas, a localidade tem que ser mantida com cuidado contra diversos tipos de riscos. Estes riscos tém sido conceptualizados de formas diferentes conforme as épocas e os In- garés, Em muitas sociedades, as fronteiras so zonas de perigo que reque- rem particular manutengo ritual; noutras sociedades, as relagdes sociais sio intrinsecamente fisseis, criando uma tendéncia persistente para a dis- solucdo dos bairros, Noutras situagdes ainda, a ecologia e a tecnologia tam que as casas e 0s espagos habitados estejam sempre a mudar, contri- DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO buindo assim para o sentimento endémizo de ansiedade ¢ instabilidade da vida social. . Muito do chamado registo etnogrifico pode ser reescrito ¢ relido des- te ponto de vista. No primeiro caso, uma grande parte dos chamados ri- tos de passagem esté relacionada com a producdo do que poderemos chamar sujeitos locais, agentes que’ pe-tencem efectivamente a uma co- munidade situada de parentes, vizinhos, amigos e inimigos. As cerimé- nias de baptismo e tonsura, sacrificio e segregagdo, circuncisio e priva- go so téenicas sociais complexas para a inscrigZo da localidade nos corpos. Vendo-as de maneira um tanto diferente, sio modos de incor- porar a localidade, bem como de localizar os corpos em comunidades definidas social e espacialmente. © simbolismo espacial dos ritos.de passagem tem talvez recebido menos atengio do que o seu simbolismo fisico e social. Esses ritos ndo so simples técnicas mecinicas de agre~ gagio social, sio técnicas sociais de produgio de «nativos», categoria que analisei noutra sede (Appadurai, 1988). O que € verdade para.a produgio de sujeitos locais no registo etnogrifico 6-0 para 0 processo que produz materialmente a localidade. A construgdo de casas, a organizagdo de caminhos e passagens, a feitura e refeitura de campos e hortas, a cartografia e negociagio de espagos trans-humanos ¢ ter- renos de caca-recolecgio é a preocupagio incessante, muitas vezes mond- tona, de muitas pequenas comunidades estudadas pelos antropélogos. Estas técnicas de produgio espacial de localidade esto copiosamente documen- tadas. Mas normalmente ndo so consideradas casos de produgio de loca- lidade, quer como propriedade geral da vida social, quer como validagio particular dessa propriedade. Divididos descritivamente em tecnologias de construgdo de habitago, horticultura e similares, estes resultados materiais, ‘ém sido tomados como fins em si e no como momentos de uma tecnologia (€ teleologia) geral de localizagao. A produgdo de localidade nas sociedades historicamente estudadas pelos antropélogos (em ilhas ¢ florestas, aldeias agrcaese terrenos de caga) no 6 simplesmente uma questo de produzi: sujeitosocais, bem como 0s prd~ prios bairros que contextualizam estas subjectividades. Como amplamente 239 ARIUN APPADURAL tufda por uma série de vinculos entre o sentido da imediatidade social, a tecnologia da interactividade e a relatividade dos contextos. Esta qualida- de fenomenolégica, que se.exprime em certos tipos de acgdo, socialidade reprodutibilidade, € o principal predicado da localidade como categoria (ou objecto) que procuro explorar, Pelo contrério, uso 0 termo bairro para referir as formas sociais efectivamente existentes em que a localidade en- quanto dimensio ou valor se realiza de -virios modos. Os bairros, nesta acepeio, so comunidades situadas caracterizadas pela sua re: pacial ou virtual, e pelo seu potencial para a reprodugio social!. No Ambito desta reflexa6, fago mais duas perguntas: como € que calidadé, enquanto aspecto da vida social, se relaciona com os bairros en- quanto formas sociais substantivas? Terd a histéria recente, e em especial acrise global do Estado-nacao, alterado substancialmente a relago da lo- calidade com os baitros? Um modo mais simples de caracterizar estes los objectivos é perguntar: que pode significar a localidade num ‘mundo em que a localizagdo espacial, a interacco quotidiana e a escala social nem sempre sto isomérficas? Localizar 0 sujeito Um dos granides clichés da teoria social (que remonta a Tonnies, We- ber e Durkheim) é que, nas sociedades modemas, a localidade enquanto propriedade ou diacritico da vida social esté sitiada. tum facto social intrinsecamente frdgil. Mesmo nas situagées mais intimas; te confinadas, geograficamente isoladas, a localidade tem que ida com cuidado contra diversos tipos de riscos. Estes riscos tm intrinsecamente fisseis, criando uma tendéncia persistente para a dis- Igo dos bairros. Noutras situagdes ainda, a ecologia e a tecnologia di- dos estejam sempre a mudar, contri- DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO buindo assim para o sentimento endémico de ansiedade e instabilidade da vida social. - Muito do chamado registo etnogrifico pode ser reescrito relido des- te ponto de vista, No primeiro caso, uma grande parte dos chamados ri- tos de passagem esté relacionada com a produgdo do que poderemos chamar sujeitos locais, agentes que pertencem efectivamente a uma co- munidade situada de parentes, vizinhos, emigos ¢ inimigos. As cerimé- nias de baptismo e tonsura, sacrificio e segregagio, circuncisio e priva- 40 sto técnicas sociais complexas para a inscrigao da localidade nos corpos. Vendo-as de maneira um tanto diferente, sio modos de incor- porar a localidade, bem como de localizar os corpos em comunidades definidas social e espacialmente. © simbolismo espacial dos ritos de passagem tem talvez recebido menos atengdo do que o seu simbolismo fisico e social. Esses ritos nao sao simples técnicas mecéinicas de agre~ gagio social, sio técnicas sociais de produgdo de «nativos», categoria que analisei noutra sede (Appadurai, 1988). O que é verdade para a produgao de sujeitos locais no registo etnogrfico 6-0 para 0 processo que produz materialmente a localidade. A construgdo de casas, a organizagio de caminhos e passagens, a feitura e refeitura de campos e hortas, a cartografia e negociacio de espagos trans-humanos e ter- renos de caca-recolecgio é a preocupagio incessante, muitas vezes moné~ tona, de muitas pequenas comunidades estudadas pelos antropélogos. Estas téenicas de produgio espacial de localidade esto copiosamente documen- tadas. Mas normalmente no so consideradas casos de produgio de loca- lidade, quer como propriedade geral da vida social, quer como validacao particular dessa propriedade. Divididos descritivamente em tecnologias de construso de habitagdo, horticultura ¢ similares, estes resultados materiais, ‘tm sido tomados como fins em sie no como momentos de uma tecnologia, (€ teleologia) geral de localizagio. ‘A produgdo de localidade nas sociedades historicamente estudadas pelos antropélogos (em ilhas ¢ florestas, aldeias agrcales e terrenos de caga) no € simplesmente uma questio de produzir sujeitosocais, bem como os pré= prios bairros que contextualizam estas subjectividades. Como amplamiente 239 ARJUN APPADURAL de, logo, a etnografia tem sido involuntariamente ctimplice desta acti- vidade. £ uma coisa que se refere a saber e representagio ¢ no a culpa ou violéncia. © projecto etnogrifico € peculiarmente isomérfico dos proprios saberes que procura descobrir e documentar, pois tanto 0 pro- jecto etnogrifico como os projectos sociais que procura deserever tem ‘a produgio de localidade como seu fim orientador”. Nao reconhecer {que este facto em ambos as projectos implica apenas acgbes ¢ cenérios mais monétonos e discretos (construgio de habitagdo, baptismo de criangas, rituais de balizagem, rituais de saudago, purificagio espiri- tual) € no reconhecer constitutivamente as garantias de adequagao es- pecial da etnografia a determinados tipos de descrigdo ¢ sua peculiar falta de reflexividade como projecto de conhecimento e reprodusio, Arrastadas para a propria localizagdo que procuram documéntar, a maior parte das descrigées etnogréficas tomaram a localidade como base, ndio como figura, sem reconhecerem a sua fragilidade ou a sua &tica como propriedade da vida social. Surge assim uma colaboragio no problematizada com a sensago de inércia em que a localidade, como estrutura de sentimento, sobretudo assenta valor de conceber de novo a etnografia (¢ de reler a etnogratfia an- terior) desta perspectiva é triplo: (1) a historia da etnografia deixa de ser tima hist6ria dos bairros e passa a ser uma hist6ria das técnicas de produ- «glo de localidade; (2) abre uma nova maneira de pensar a complexa co- -produgio de categorias ind{genas por intelectuais, administradores, lin- guistas, missiondrios e etnélogos organicos que rodeia grandes pores da histéria monogréfica da antropologia; (3) permite que a etnografia do mo- demo e da producdo de localidade em condigdes modemnas faga parte do contributo mais geral do registo etnografico tout court. Juntos, estes trés efeitos poderio proteger do uso fécil de varios tropos antagénicos (outrora e hoje, antes e depois, pequeno e grande, confinado ou no continado, es- tavel e fluido, quente e frio) que implicitamente opGem etnografias do no presente a etnografias do e no passado. 242 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO Os contextos da localidade Foquei até agora a localidade como propriedade fenomenolégica da vida social, uma estrutura de sentiments produzida por determinadas for- mas de actividade intencional e que produz certos tipos de efeito material. Mas este aspecto dimensional da localidade no se pode separar dos ce- ndrios reais onde e através dos quais a vida social se reproduz. Para fazer 2 ligagio entre localidade como propriedade da vida social e os bairros como formas sociais, temos que fazer uma exposi¢ao mais cuidadosa do problema do contexto. A produgio de bairros tem sempre base hist6rica © por isso contextual. Ou seja, os bairtos sdo intrinsecamente 0 que sio Porque se opdem a outra coisa e derivam de outros bairros ja produzidos. Na consciéncia prética de muitas comunidades humanas, essa outra coisa € muitas vezes conceptualizada ecologicamente como floresta ou estepe, ‘oceano ou deserto, pintano ou rio, Estes sinais ecolégicos marcam muitas vezes limites que ao mesmo tempo assinalam 0 comego das forgas ¢ ca- tegorias no humanas ou das forgas que se reconhece como humanas mas si barbaras ou demonfacas. Estes contextos, contra os quais se produzem e se figuram os bairros, so frequentemente considerados terrenos ecolé- gicos, sociais e cosmolégicos. Serd indicado dar aqui uma nota sobre o lado social do contexto dos bairros — ou seja, a existéncia de outres bairros — que evoca a ideia de emopaisageri (cap. 3), termo que usei para afastar a ideia de que as iden- tidades de grupo implicam necessariamente que as culturas tém que ser consideradas formas espacialmente delimitadas, historicamente inocentes ou etnicamente homogéneas. Na acepeio que empreguei estava implicita a ideia de que a etnopaisagem ganha destaque especialmente no fim do século XX, quando 0 movimento humano, a volatilidade das imagens e a identidade consciente produtora de actividades dos Estados-nagdes em- prestam uma caracterfstica fundamentalmente instivel e perspectivada vida social. E no entantos bairos sto sempre, em certa medida, etnopaisazens, porquaanto implicam os projectos étnicos de Outros e a consciéncia desses 243 ARJUN APPADURAI . Ou seja, determinaios bairros reconhecem por vezes que a sua ‘ica geral com que Outros constroem também vidas-mun- dos reconheciveis, sociais, humanas, situadas. Este saber pode codificar- -se na pragmitica dos rituais associados a limpeza de matas, ao arranjo de hortas, & cons sentido da teleologia da construgio de localidade, Em sociedades mais complexas que geralmente associamos a literacia, classes sacerdotais e or- dens superiores de cdntrolo e disseminagdo de ideias fortes, esses conhe- ccimentos estio codificados, como no caso do ritual associado & coloniza- do de novas aldeias pelos brimanes na {ndia pré-colonial. A construso de localidade tem sempre um momento de colonizagio, um momento histérico e cronotfpico em que hé um reconhecimento for- mal de que a produgio de um bairro requer acgao deliberada, arriscada, até violenta, relativamente 20 solo, as florestas, aos animais ¢ aos outros seres humanos. Muita da violéncia associada aos rituais de. fundagio (Bloch, 1986) é o reconhecimento da forga necesséria para arrancar uma localidade a povos e lugares anteriormente descontrolados. Por outras pa- lavras (De Certeau, 1984), a transformagio dos espagos em lugares requer um momento consciente que pode depois ser recordado como relativa- ‘mente rotineiro, A produgdo de bairros ¢ intrinsecamente colonizadora, no sentido em que implica a afirmacdo do poder socialmente (muitas vezes ritualmente) organizado sobre os lugares e cenérios considerados poten- cialmente casticos ou rebeldes. A ansiedade que caracteriza muitos rituais de habitag0, ocupagio ou instalago é um reconhecimento da violéncia implicita nesses actos de colonizacdo. Alguma desta ansiedade perdura na Zo ritual desses momentos muito depois do evento fundador de co- Ionizagao. Neste sentido, a produgdo de um bairro € intrinsecamente um exercicio de poder sobre um qualquer ambiente hostil ou recalcitrante, que pode assumir a forma de um outro bairro. Muito do material narrativo descoberto por etndgrafos a trabalhar em pequenas comunidades, e muito das suas descrigGes de rituais de agricul- tura, construgio de casas e transigo social, salienta a pura fragilidade ma- terial que acompanha a produc e manutengio de localidade. No obs- ae DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGKO ‘ante, por mais fundo que vé nas particularidades do lugar, solo e técnica ritual, a descrigdo invariavelmente contém ou implica uma teoria do con- texto — uma teoria, por outras palavras, daquilo que, contra qué, apesar do entre bairro € contexto requer muito mais atengio do que aqui podemos Gar-lhe. Passo a esbogar as dimensées gerais deste problema. O principal dilema é que os bairros so contextos e 20 mesmo tempo requerem e pro- duzem contextos. Os bairros sto contextos no sentido em que fornecem © quadro ou cenario onde varias formas de acgio humana (produtiva, re- /as requerem padres € reprodutiveis, so como textos ¢ por isso exigem um (ou muitos contextos. De um outro ponto de vista, um bairro é um contexto, ou um conjunto de contextos, em que uma acgao s ignificativa pode ser gerada e interpretada, Neste sentido, os bairros siio contextos e os con- {textos sto bairros. Um bairro é um centro de interpretagio multiplice. Na medida em que os bairros so imaginados, produzidos e mantidos contra uma qualquer base (social, material, ambiental), requerem e pro- duzem também contextos contra os quais toma forma a sua inteligibilida- de. A dimensio geradora de contextos dos bairros é uma questao impor- tante porque, permite arrancar com uma perspectiva teorética sobre a relagdo entre realidades locais ¢ globais. Como? A maneira como os bair- : 10s ¢ reproduzidos requer a construgdo continua, tanto prd- tica como discursiva, de uma etnopaisagem (necessariamente no local) fem que se imagina que decorrem as praticas ¢ os projectos: Em uma dimensdo, em um momento ¢ de uma perspectiva, os bair- 0s, enquanto contextos existentes, sfio pressupostos para a produgio de \, sujeitos.locais. Ou seja, sto necessérios lugares ¢ espagos existentes dentro de um bairro espaciotemporal historicamente produzido e com uma série de rituais, categorias sociais, profissionais qualificados e pi- blicos informados lgcalizados para que os novos membros (bebés, es- tranhos, escravos, prioneiros, convidados, parentes afins) sejam temporiria ou permanentemente sujeitos locais. Vemos aqui a localida- 245 € emi relagio a que se produz um bairro. O problema da relagio ARJUN APPADURAL de na sua dimensio de dado, de normalidade, de habito. Nesta dimensio, um bairro parece ser simplesmente um conjunto de contextos hist. mente récebidos, materialmente integrados, socialmente apropriados, naturalmente sem problemas: os pais dio filhos, as hortas do legumes, bruxedo dé doenga, caga dé care, mulheres dio bebés, sangue dé sé- ‘mei, xamas, dio visdes, e por af fora. Estes contextos concertados pare- cem fornecer & produgao técnica de sujeitos locais um cendrio sem pro- blemas de um modo regular e regulado. Mas & medida que estes sujeitos locais entram nas actividades sociais, de producio, representagao e reprodugio (bem como na obra da cultura), contribuem, em geral involuntariamente, para a criagio de contextos que podem exceder os limites materiais e conceptuais existentes no bairro. As aspiragGes de afinidade estendém as redes matrimoniais a novas aldeias; as expedigdes de pesca produzem melhoramentos do que é entendido como dguas navegaveis ¢ ricas em peixe, as expedicdes de caga alargam 0 sentido de floresta como quadro ecol6gico reactivo; os conflitos sociais forgam novas estratégias de saida e recolonizacao, as actividades de co- mércio produzem novos mundos-mercadoria, logo, novas parcerias com agrupamentos regionais ainda desconhecidos; a guerra traz novas aliangas diplomaticas com vizinhos anteriormente hostis. E todas estas possibili- dades contribuem para subtis alteragGes de lingua, visio do mundo, pré- tica ritual e ideia de si colectiva. Resumindo: & medida que os sujeitos lo- ‘cais vio desenvolvendo a tarefa continuada de reproduzir o seu bairro, as, contingéncias da hist6ria, ambiente e imaginacao contém o potencial de novos .contextos (materials, sociais e imaginativos) a produzir. Deste modo, através dos caprichos da acco social dos sujeitos locais, o bairro enquanto contexto produz 0 contexto de bairro. Com o tempo, esta dia~ Ietica altera as condigbes de produg3o da localidade enquanto tal. Por ou- tras palavras, é assim que os sujeitos da hist6ria se tornam sujeitos hist6- ricos para que nenhuma comunidade humana, por mais estavel, estética, confinada ou isolada na aparéncia, possa ser proveitosamente considerada, histéria fria ou marginal. Esta observacdo converge com a opiniat de ins sobre a dinamica da mudanca conjuntural (1985). DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACAO Considere-se a relagio geral entre varios grupos de Ianomamis das flo- restas hiimidas do Brasil e Venezuela. A relagio entre povoages;altera- ‘ses populacionais, guerra predatéria e competi¢ao sexual pode ser vista como um processo em que determinadas aldeias ianomamis (bairros), nas « pelas suas acgSes, preocupagbes e estratégias, produzem efectivamente tum conjunto mais vasto de contextos pera si e para outros. Cria-se assim tum territ6rio geral de movimento, interacgao ¢ colonizagdo ianomami em que determinada aldeia reage a um contexto material mais amplo do que ela propria, ao mesmo tempo que contribui para a criagio desse céntexto mais vasto. Numa perspectiva de larga'escala, a rede geral de espago ¢ tempo em que os Ianomémis produzem e geram contextos reciprocos para actos especificos de localizagtio (construgdo de aldeias) produz também alguns dos contextos em que 0 conjunto dos Ianomdmis enfrenta os Es- tados-nagGes Brasil e Venezuela. Neste sentido, as actividades ianomanis de produgo de localidade so ndo apenas determinadas pelo contexto como geradoras de contexto. E isto aplica-se a todas as actividades de pro- dugio de localidade. Portanto, os bairtos parecem paradoxais porque tanto constituem como requerem contextos. Enquanto etnopaisagens, os bairros implicam inevita- velmente uma consciéncia relacional de outros bairros, mas ao mesmo tem- po actuam como bairros com autonomis de interpretagio, valor e pritica material. Assim, a localidade enquanto facto relacional no é 0 mesmo que a localidade como valor prético na producdo quotidiana de sujeitos e na co- lonizagao do espago. A produgio de localidade é inevitavelmente e até certo ponto geradora de contexto, O que define esta medida é muito substancial- mente uma questdo de relagdes entre os contextos que os bairros ctiam e 0s que encontram. E uma questio de poder social e das diferentes escalas Ue orgunizugdo e controlo em que se integram determinados espacos (e lu- ares), Embora as préticas e projectos dos Ianomimis sejam produtoras de contexto para o Estado brasileiro, é ainda mais verdade que estas priticas do Estado-nagio brasileiro implicam forgas de intervengio militar duras, esmagadoras, mesmo, exploragdo ambiental em larga escala e migraslo 287 ARJUN APPADURAT e colonizagdo promovidas pelo Estado com que os Ianomamis se confron- tam em termos de enorme desigualdade. Neste sentido, a que voltarei na secgdo seguinte sobre as condigdes da produgio de localidade na era do Estado-nagdo, os Ianomamis estilo a ser regularmente localizados no sen- tido de fixados, explorados, talvez mesmo depurados no contexto da or- ganizagdo social brasileira. Assim, enquanto ainda esto em posigio de gerar contextos & medida que produzem e reproduzem os seus préprios bairros, so cada vez mais prisioneiros das actividades produtoras de con- texto do Estado-nagio, que vai fazendo com que os seus esforsos por pro- duzit localidade parecam débeis ou mesmo condenados. Este exemplo tem aplicabilidade geral. A capacidade dos bairros para produzirem contextos (dentro dos quais as suas actividades localizadoras adquirem significado e potencial histético) ¢ de produzir sujeitos locais € profundamente afectada pelas capacidades produtoras de localidade das formagdes sociais de maior escala (Estados-nagbes, reinos, impérios mis- sionérios e cartéis comerciais) de determinar a forma geral de todos os bairros ao alcance do seu poder. Assim, 0 poder é sempre uma caracte~ ristica-chave das relagdes contextuais dos bairros, ¢ mesmo o «primeiro contacto» implica sempre narrativas diferentes de pioneirismo para os dois lados envolvidos, ‘A economia politica que liga os bairros aos contextos é portanto me- todolégica e historicamente complexa. As nossas ideias de contexto de- rivam em.grande medida da lingufstica. Até ha pouco tempo, 0 contexto era definido de um modo oportunista para dar sentido a determinadas frases, rituais, actuagGes € outros tipos de texto. Embora a produgio de textos tenha sido cuidadosamente estudada de diferentes pontos de vista (Bauman e Briggs, 1990; Hanks, 1989), a estrutura e morfologia dos contextos 56 ultimamente se tomnou alvo de umu wlenyau sistemética (Duranti ¢ Goodwin, 1992). Para além da linguistica antropoldgica, 0 contexto continua a ser uma ideia mal definida, um conceito inerte in- dicador de um ambiente inerte. Quando os antropélogos sociais apelam ‘20 contexto, é geralmente num sentido mal compreendido do quadro so- cial em que é possivel entender plenamente acgdes ou representagbes es- DIMENSGES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO pecificas. Os sociolinguistas, especialmente os que vém da etnografia da fala (Hymes, 1974), so a melhor fonte para esta abordagem geral. A estrutura do contexto nao pode nem deve ser tirada inteiramente da ldgica e da morfologia dos textos. A produgio de texto e a produgio de contexto tém légicas diferentes e caracteristicas metapragmaticas. Os contextos sio produzidos na imbricago complexa das priticas discur- sivas e néo discursivas e, por isso, 0 sentido em que contextos implicam outros contextos, de forma a que cada um deles implique uma rede glo- bal de contextos, é'diferente do sentido em que os textos implicam ou- tros textos e por fim todos os textos. Nio é provavel que as felagSes in- tertextuais, de que sabemos jé bastante, aperem do mesmo modo que as relagdes intercontestuais. Por fim, e para nosso temor, prevé-se que te- Temos que encontrar maneiras de ligar as teorias da intertextualidade as teorias de intercontextualidade. Uma teoria da globalizagdo forte, de um Ponto de vista sociocultural, talvez exija uma coisa que de certeza no temos: uma teoria das relagdes intercontextuais que integram 0 nosso sentido actual dos intertextos. Mas esse & verdadeiramente outro projec- to. A relagio entre bairro como contexto ¢ o contexto de bairro, mediati- zada pelas acgbes dos sujeitos locais hist6ricos, exige novas complexida- des no tipo de mundo em que agora vivemos. Neste novo tipo de mundo, a produgio de bairros ocorre cada vez mais em condigdes em que o tema dos Estados-nagdes ¢ a charneira normativa para a produgio de ac- tividades locais ¢ translocais. Esta situagio, em que as relagdes de poder gue afectam a produgio de-localidade so fundamentalmente translocais, 0 tema central da pr6xima seccao. A produgdo global de localidade Tudo o que analisdmos até agora como conjunto de problemas estru- turais (localidade e bairros, texto € contexto, etnopaisagens e vidas-mun- dos) tem que ser agora explicitamente historicizado. Indiquei ja que 2 re- 249 co e@ecnc ace ARIUN APPADURAL lagdo de localidade (e de bairro) com os contextos é hist6rica ¢ dialéctica e que a dimensio geradora de contextos dos lugares (na sua qualidade de gens) € di s provedoras de contexto (na sua qualidade de bairros). Como é que estas afirmagées ajudam a com- preender 0 que acontece & produgo de localidade no'mundo contempo- rane? entendimento contempordneo da globalizacdo (Balibar e Wallerstein, 199 + Robertson, parece indicar a passagem do realce dado as viagens globais da maneira de pensar e da organizacdo do capitalismo para algo diferente, a difustio da for- Bhabha, 1990; Chatterjee, 1986, 1993; Gellner, 1983; Hobsbawm, 1990). Na realidade, s6 0 tempo dird se as nossas preocupagdes actuais com 0 Estado-nagdo se justificam, mas os primérdios de um tratamento antropo- I6gico desta questo sio evidentes no contributo crescente dado pelos an- tropélogos & problemética do Estado-nagdo (Borneman, 1992; Moore, 1982; Kapferer, 1988; Tambiah, 1986; Ur- 1994), Alguns destes trabalhos consi- (Hannerz, 1992; Basch et al., 1994; Foster, 1991; Friedman, 1990; Gupta, ¢ Ferguson, 1992; Rouse, 1991; Sahlins, 1992). Mas falta ainda aparecer uma estrutura que relacione o global €0 local. Nesta secgio, espero alargar as minhas ideias sobre sujeitos locais ¢ contextos localizados e esbogar os contornos de uma tese sobre os pro- blemas especiais que assaltam a produgZo de localidade num mundo de didspora, desterritorializado e transnacional (Deleuze e Gusttari, 1987). E um mundo em que a comunicagdo electronica esté a transformar as ages entre informagio e mediatizagdo e em que os Estados-nagoes Jutam por manter 0 controlo sobre as suas populagdes perante uma série de movimentos e organizacdes silfnacionais ¢ transnacionais. Um bom exame dos desafios & produgio de jocalidade neste mundo exi ia um 250 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO tratamento alargado que esté para além do Ambito deste capitulo: Mas podemos delinear alguns elemeritos de uma abordagem a este problema, Em termos simples, a tarefa de procuzir localidade (como uma estru- tura de sentimento, uma propriedade da vida social uma ideologia de co- munidade situada) é cada vez mais uma luta. E uma luta com muitas di- 1) 0 aumento regular dos esforgos do it todos os bairros gob o signo das suas formas de lealdade ¢ filiagao; (2) a crescente disjuntura entre territério, subjectividade e movimento social colectivo; e (3) a progressiva erosio, devida principalmente 2 forga e forma da mediatizacao elegtrénica, da relagdo entre bairros espaciais e virtuais. Para tomar as coisas ainda mais complexas, estas trés dimensdes so por sua vez O Estado-nagdo assenta a sua legitimidade na senga significativa num corpo continuo de territério delimitado. Opera po- liciando as fronteiras, produzindo povo (Balibar, 1991), construindo cida- dios, definindo capitais, monumentos, cidades, 4guas e solos e construindo 08 seus locais de meméria e comemoragéo, como cemitérios e cenotafios, mausoléus e museus. O Estado-nagao leva a todo 0 seu territério o projecto bizarramente contradit6rio de criar um espago liso, contiguo e homogéneo sbes, quartéis, aeroportos, estagbes de rédio, repartigdes piblicas, parques, paradas, vias processionais) calculados para criar distingbes e divis6es in- tado, Estes so também os espagos e lugares que criam e perpetuam as dis- tingdes entre governantes e governados. criminosos € agentes da ordem, multides e lideres, actores e observadores. Mediante aparelhos tio diversos como museus e centros de satide, cor- \,_ reios e esquadras, cabinas de portagem ¢ de telofone, o Estado-nagio eria uma vasta rede de téonicas formais e informais de nacionalizaco de todo © espaco considerado sob 2 sta autoridade soberana. Claro que os Estados variam quanto & forma de penetrar nos recessos da vida quotidiana. Sub- a cia, por vezes escatol6gica (Mbembe, 1992), ou- tras irénica (Comaroff e Comaroff, 19924), outras clandestinas 251 ARJUN APPADURAL (Scott, 1990), umas vezes espontineas ¢ outras planeadas, sio muito cor- rentes. Com efeito, a incapacidade do Estado-nagio para conter ¢ definir as vidas dos seus cidadios esti escrita a letras gordas no crescimento das ‘economias paralelas, nos exércitos e policias privados ¢ semiprivados, nos nacionalismos secessionistas e numa série de organizagées niio governa- mentais que proporcionam alternativas ao controlo nacional dos meios de subsisténcia e justiga (Os Estados variam também quanto & natureza ¢ a extenso dos seus interesses na vida local e nas formas culturais em que investem as suas, mais profundas parandias de soberania e controlo, Cuspir na rua € muito perigoso em Singapura e na Papua-Nova Guiné; os ajuntamentos so um problema no Haiti e nos Camarées; desrespeitar 0 imperador no é bom no Japio; e incitar sentimentos pré-mugulmanos é mal visto na India con- temporinea, A lista poderia continuar: os Estados-nagées tm 0s seus lo- cais préprios de sacralidade, os seus testes especiais de lealdade ¢ traigtio, as suas medidas especiais de submissio e desordem. Estdo ligados a pro- blemas reais e detectados de ilegatidade, de ideologias reinantes de libe- ralizagio ou o seu oposto, de compromisso relativo com a respeitabilidade internacional, de repulsas de profundidade varidvel pelos regimes anteces- sores imediatos e de certas hist6rias de antagonismo ou colaboragio étni- cos, No mundo posterior a 1989, seja ele como for, ndo parece haver lagos muito fidveis entre ideologias de Estado-providéncia, economia de mer- ado, poderio militar e pureza éinica. Contudo, quer pensemos nas turbu- Ientas sociedades pés-comunistas da Europa de Leste, nas agressivas ci- dades-Estados do Extremo Oriente (como Taiwan, Singapura ¢ Hong Kong), nas complexas organizagbes pés-militares da América Latina, nas economias de Estado falidas da maior parte da Africa Subsariana ou nos turbulentos Estados fundamentalistas de quase todo 0 Médio Oriente ¢ Sul da Asia, todos parecem levantar 0 mesmo tipo de desafios & produgio de bairros por sujeitos locas. ; Do ponto de vista do nacionalismo moderno, os bairros existem prin- cipalmente para incubar e reproduzir ciYadios nacionais — ¢ ndo para 2 produgio de sujeitos locais. Para o Estado-nagao modemno, a localida- 252 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACAO de é um sitio de nostalgias, celebragdes e comemoragées apropriadas na- cionalmente ou uma condigio necessiria da produgio de nacionais. Os bairros enquanto formagdes sociais representam ansiedade para os Es- tados-nagées, pois contém normalmente espagos grandes ou residuais onde as técnicas pré-nagtio (controlo de nascimentos, uniformidade guistica, disciplina econémica, eficiéncia nas comunicagdes e lealdade politica) sero provavelmente fracas cu contestadas. Ao mesmo tempo, 08 bairros sdo fonte de trabalhadores politicos e funcionérios de partido, professores e soldados, técnicos de televisio e produtores agricolas. Os bairros nio so dispenséveis, mesmo sendo potencialmente traigoeiros. Para 0 projecto do Estado-nacao, os bairros representam uma fonte pe- rene de entropia e vazio de poder. Tém que ser quase to bem policiados como as fronteiras. A tarefa de produzir baitros — vidas-mundos constituidas por associa- ‘s0es relativamente estéveis, por hist6rias relativamente conhecidas ¢ par- tilhadas e por espagos ¢ lugares colectivamente atravessados ¢ legiveis — vé-se muitas vezes a bragos com os projectos do Estado-nagao®, E isto em arte por causa de os compromissos e zpegos (por vezes incorrectamente classificados como «primordiais») que caracterizam as subjectividades lo- cais serem mais prementes, mais continuados e por vezes mais distracti- ‘vos do que o Estado-nagio pode permitir-se. E também porque as memé- rias e apegos que os sujeitos locais tém aos seus letreiros de loja e nomes de ruas, caminhos e enfiadas de ruas favoritos, tempos e lugares de ajun- tamento e fuga so muitas vezes incompativeis com as necessidades do Estado-nagio para a vida pablica regulamentada. Além disso, é inerente 4 natureza da vida local desenvolver-se de certo modo ao invés dos outros bairros, produzindo os seus prdprios contextos de alteridade (espacial, so- cial ¢ técnica), contextos que podem nio satisfazer as necessidades de es- tandardizacio espacial e social que so requisito prévio do cidadao nacio- nal disciplinado, Os bairros sio cenrios ideais para a sua propria reprodugio, processo fundamentalmente oposto a0 imaginéric do Estado-nagio em que os bair- ros se destinam a ser instincias e exemplares de um modo generalizivel 253 ARIUN APPADURAT de pertenga a um imagindrio territorial mais vasto. Os modos de localiza- ‘go mais proprios do Estado-nago tém caracteristicas disciplinares: na sate publica ¢ limpeza de ruas, nas prises e regeneragtio de bairros da lata, nos campos de refugiados e repartigdes de todo 0 tipo, o Estado-na- ‘gio localiza por ordem, por decreto ¢ por vezes com recurso 20 uso de- clarado da forca, Esta espécie de localizacao cria graves constrangimentos ou mesmo obstéculos directos a sobrevivéncia da localidade geradora de contexto € ndo & localidade determinada pelo contexto. Mas o isomorfismo de pessoas, territério e soberania legitima que constitui a carta normativa do Estado-nagdo modemo esté por sua vez ameagado pelas formas de circulagdo de pessoas caracteristicas do mundo contemporineo. E hoje geralmente aceite que 0 movimento humano, no mundo contemporineo, é mais vezes definidor da vida social do que ¢ ex- cepcional. O trabalho, tanto 0 mais sofisticado trabalho intelectual como mais humilde trabalho proletério, leva as pessoas a migrar, frequente- ‘mente mais que uma vez ao longo da vida. As medidas dos Estados-na- ges, particularmente as relativas « populagdes consideradas potencial- mente subversivas, criam uma méquina de movimento perpétuo em que 0s refugiados de uma nago se mudam para outra dando origem @ novas instabilidades que podem causar mais desassossego social e mais safdas. Assim, as necessidades de produgdo de povo de um Estado-nacao podem significar agitag2o étnica e social para os seus vizinhos, criando cfrculos intermindveis de limpeza étnica, migragdo forgada, xenofobia, parandia de Estado e nova limpeza étnica. A Europa de Leste em geral e a Bésnia- -Herzegovina em particular so talvez. 0s exemplos mais trégicos e com- plexos deste processo de dominé dos réfugiados estatais. Em muitos des- tes casos, pessoas e comunidades inteiras 0 metidas'em guetos, campos de refugiados, campos de eoncentragio ou reservas, por vezes sem que al- guém sequer se desloque. Outras formas de movimento humano sio as criadas pela realidade ou io da oportunidade econdmica, o que se aplica a muita da migragdo asié- ‘Xa para as zonas ricas em petrOleo do Médio Oriente. Mas outras formas a 10 so criadas por grupos permanentemente instiveis de traba- DIMENSOES CULTURAIS.DA GLOBALIZAGAO thadores especializados (soldados das Nagdes Unidas, tecndlogos do petré- co, especialistas em desenvolvimento ¢ trabalhadores agricolas). E ainda outras formas de movimento, particularmente na Africa Subsariana, impli- cam grandes secas e fomes, muitas vezes ligadas a aliangas desastrosas tre Estados corruptos e entidades intemacionais e globais oportunistas. Nou- tras comunidades ainda, « l6gica do movimento vem das industria do lazer, que criam sitios ¢ locais turisticos em todo o mundo. A etnografia destes locais turisticos comega agora a ser escrita com pormenor, mas 0 pouco que sabemos sugere que muitos desses locais criam condigdes complexas de produgio e reprodugdo de localidade em que lagos de casamento, trabalho, negécios ¢ lazer juntam varias populagSes circulantes com outras locais criando bairros que, em certo sentido, pertencem a determinados Estados- nagdes, mas siio de outro ponto de vista o que podemos chamar translo- calidades. O desafio de produzir um bairro nestes ambientes vem da ins- tabilidade inerente das relagdes sociais, da forte tendéncia para a propria subjectividade local ser mercantilizads e da tendéncia dos Estados-nag6es, que por vezes obtém importantes rendimentos desses sitios, para obliterar 1a dindmica interna local mediante modos de regulamentago, credenciagio € produgdo de imagens impostos de fora. Uma verso muito mais negra do problema de produzir um bairro ob- serva-se nos campos de refugiados quase permanentes que hoje caracte- rizam muitas zonas de conflito no mundo, como os Territérios Ocupados na Palestina, 05 campos na fronteira cambojano-tailandesa, os muitos campos organizados pelas Nagbes Unidas na Somilia e os campos de re- fugiados afegtios no Noroeste do Paquis‘io. Combinando as piores carac- teristicas dos bairros de lata urbanos, cempos de concentragio, prisdes € guetos, hd lugares onde, ndo obstante, se contratam e celebram casamen- tos, comegam e terminam vidas, se fazem honram contratos, se langam ¢ interrompem carreiras, se faz e gasta dinheiro, se produz e troca merca- doria, Esses campos de refugiados so os exemplos mais duros de condi- ‘ges de incerteza, pobreza, deslocamerto e desespero em que pode ser produzida localidade. Ha 0s exemplos extremos de bairros produzidos pelo contexto em vez de geradores de contexto. So bairros cujas v 255 ARJUN APPADURAT -mundos sio produzidas nas mais negras circunstancias, sendo as prisées © 08 campos de concentragdo os seus exemplos mais barbaros. ‘Mas mesmo estes exemplos brutais apenas levam ao extremo 0 moral quotidiano de muitas cidades. Nas condigdes de agitagao étnica e conflito urbano que caracterizani cidades como Belfast e Los Angeles, Ahmeda- bad e Sarajevo, Mogadiscio ¢ Joanesburgo, as zonas urbanas transfor- mam-se em campos armados e sio inteiramente determinadas por forgas implosivas (cap. 7) que introduzem nos bairros as mais violentas e pro- blematicas repercussdes dos processos regionais, nacionais ¢ globais mais vastos. Claro que hd muitas diferengas importantes entre estas cidades, as suas hist6rias, as suas populagdes e a sua cultura politica. Mas, juntas, re- presentam uma nova fase da vida das,cidades, onde a concentragio de po- pulagdes éticas, 0 acesso a armamento pesado e as condigées de sobre- populagiio na vida cfvica criam formas de guerra futuristas (que fazem lembrar filmes como Road Warrior, Blade Runner e muitos outros) ¢ onde ‘a desolagio geral da paisagem nacional e global transpOs muitas ¢ bizarras inimizades raciais, religiosas e linguisticas para cendrios de constante ter- ror humano. Estes novos conflitos urbanos estio em certa medida divorciados das suas ecologias regionais e nacionais e voltados para guerras com impulso proprio, implosivas, entre forgas criminosas, paramilitares, e milfcias civis com ligagdes obscuras a forgas transnacionais religiosas, econémicas € politicas, Ha, evidentemente, muitas causas para estas formas de colapso urbano no Primeiro e no Terceiro Mundo, mas elas devem-se em parte & erostio regular da capacidade dessas cidades para controlar os meios da sua propria reprodugdo. E dificil no associar uma parte significativa des- tes problemas & mera circulagdo de pessoas, muitas vezes em resultado de guerras, fome e limpeza éinica, que foi o que atirou essas pessoas para esas cidades, A producdo de localidade nestas formagSes urbanas enfren- ta. os respectivos problemas de populagdes deslocadas e desterritorializa- das, de politicas oficiais que restringem os bairros como produtores de contdxto de sujeitos locais que nfio podem ser outra coisa sendo cidadios nacionais. Nos casos mais severos, esses bairros quase nlio merecem 0 256 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACAO nome, pois no sio mais que palcos, quintas, sitios e casernas para popu- lagSes com um empenho perigosament: diminuto na produgo.de-locali- dade. Nao vé esta visio parecer demasiado negra, hé que notar que a prop natureza destes dramas urbanos desagradaveis leva individuos e grupos a locais mais pacfficos para onde desejam transportar a sua energia, habili- tages e paixdo pela paz. Os melhores momentos da vida urbana nos Es- tados Unidos ¢ na Europa devem-se aos migrantes que fogem de lugares muito piores do que Chicago, Detroit, Los Angeles e Miami. Contudo, sa- bemos que a produgiio de localidade na Los Angeles Sul e Centro, no lado ocidental de Chicago e em zonas semelhantes das grandes cidades ame- ricanas € um processo altamente conflituoso. terceiro e tiltimo factor a tratar aqui € 0 papel dos meios de comu- nicagdo de massas, especialmente na sua forma electrénica, na criagio de novos tipos de disjuntura entre bairros espaciais ¢ bairros virtuais. Esta disjuntura tem potencial ut6pico e dist6pico ¢ no hé uma maneira facil de dizer como vio actuar esses factores relativamente ao futuro da produgio de localidade. Com efeito, os préprios meios de comunicagio electronicos variam hoje intenamente e constituem uma familia com- plexa de-meios tecnolégicos de produgdo e disseminago de noticias e diversio. Os filmes tendem a ser dominados pelos grandes interesses co- merciais de uns poucos centros mundiais (Hollywood, Nova Iorque, Hong Kong, Bombaim), embora vo aparecendo em outras partes da Eu- ropa, Asia ¢ Africa (como Cidade do México, Banguecoque e Madrasta) grandes sedes secundiias de cinema comercial. O cinema de arte-e-en- saio (que assenta em parte numa rede transnacional em crescimento de festivais de cinema, exposigdes € leilbes comerciais) distribui-se a0 mesmo tempo mais e menos no mundo, mas os filmes mistos (como Caes Danados, Jogo de Lagrimas, ou ainda Salaam Bombay e El Ma- riachi) vio aumentando. A televisio, tanto na sua forma de difusdo tradicional como através das novas formas de redes por satélite, ocups cada vez mais os espagos de exi- bigio de cinema e entra por florestas de antenas, muitas vezes em bairros 257 ARJUN APPADURAT de barracas que so dos mais pobres do mundo, como os do Rio de Janeiro e Sdo Paulo. A relagdo entre ver cinema numa sala ¢ videocassetes no am- biente doméstico cria por Si s6 importantes mudangas, j& apontadas como sinal do fim do cinema como forma eléssica de espectéculo (Hansen, 1991). Ao mesmo tempo, o acesso de pequenas comunidades, por vezes no Quarto Mundo, a tecnologias de producdo de video tornou possivel a essas comunidades criar estratégias nacionais ¢ globais mais eficazes de auto-representacio ¢ sobrevivéncia cultural (Ginsburg, 1993; Turner, 1992). Maquinas de fax, correio electrénico e outras formas de comuni- cago mediatizada por computador criaram novas possibilidades para for- ‘mas transnacionais de comunicagio, pasando muitas vezes & margem da vigildncia intermédia do Estado-nagdo e de outros grandes conglomerados medidticos. Claro que cada um destes progressos interage com 0s outros, criando novas e complicadas conexses entre produtores, audiéncias e pi- blicos — locais e nacionais, na estabilidade e na didspora. £ impossivel singrar no meio desta confusa pletora de mudangas nos ambientes medisticos que rodeiam a produgio de bairros. Mas hi muitas formas novas de comunidade e de comunicacdo que hoje afectam a capa- cidade dos bairros para serem produtores de contexto em vez de predo- minantemente determinados pelo contexto. O muito falado impacto das noticias da CNN e de idénticas formas globais e instantineas de mediati- zago, bem como o papel das tecnologias de fax nos levantamentos de- ‘mocraticos na China, Europa de Leste ¢ Unido Soviética em 1989 (¢ de- pois), tornaram possivel aos dirigentes € aos Estados-nagdes, bem como as varias forcas de oposicio, comunicar muito rapidamente pelas linhas locais ¢ mesmo nacionais. A velocidade dessa comunicagio comp! ainda mais com as comunidades de painel electrénico, como as que a In- ternet possibilita e que permitem o debate, 0 didlogo e a construgio de re- lagGes entre varios individuos separados teritorialmente que, apesar dis- so, estio a formar comunidades de imaginagao e interesses dirigidos as posigdes e As vozes da didspora, Estas novas formas de comunicagio electronicamente mediatizada co- megam a criar bairros virtwais, j4 nao limitados por territ6rio, passape: 258 DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZACAO impostos, eleigdes outros diacriticos politicos convencionais, mas pelo acesso a0 software e ao hardware necessérios para ligar as grandes redes internacionais de computadores. Assim sendo, o acesso a estes bairros vir- -08) tende a confinar-se a membros da intelligentsia inter- nacional que, mediante 0 acesso a tecnologias de computador nas univer- sidades, laborat6rios e bibliotecas, podem basear os projectos sociais politicos em tecnologias construfdas para resolver problemas de fluxo de informagao. Informagao e opinido fluem concomitantemente através des- tes circuitos e, embora a morfologia social destes bairros electrOnicos seja dificil de classificar e a sua longevidade dificil de prever, so claramente comunidades que trocam informagio e vinculos construtivos que afectam muitas dreas da vida, da filantropia ao casamento. Estes bairros virtuais parecem representar, apesar de tudo, apenas a au- séncia de vinculos frontais, contiguidace espacial e interacgGes sociais miiltiplas que a ideia de bairro essencialmente implicaria, Mas nao deve- ‘mos apressar-nos a opor bairros altamente espacializados aos bairros vir- tuais da comunicagao electrénica intemacional. A relagZo entre estas duas formas de, bairro € consideravelmente mais complexa, Numa primeira fase, 0s bairros virtuais stio capazes de mobilizar ideias, opinides, capitais, ¢ lagos sociais que muitas vezes voltam aos bairros vividos sob a forma de fluxo monetério, armas para nacionalismos locais e apoio a virias po- sigdes em esferas pablicas altamente localizadas. Por exemplo, no con- texto da destruigtio do Babri Masid, em Ayodhya, por extremistas hindus, a 6 de Dezembro de 1992, houve uma intensa mobilizagio por computa- dor, fax e.redes electrénicas que muito rapidamente criou efrculos de de- bate e troca de informagdes entre pessocs interessadas nos Estados Uni- dos, Canadé, Inglaterra e varias partes da india, Estes cfrculos electrénicos «foram igualmente explorados por indianes nos Estados Unidos em defesa “dos dois lados do grande debate sobre fundamentalisino ¢ h munitéria na fndia contemporinea. ‘Ao mesmo tempo, prosseguindo como exemplo da comunidade ultra cnatina de indinos, tanto os gros progress, secularists, como suas contrapartidas do lado revivalista hindu (membros do Vishwa Hindu 259 ARJUN APPADURAL Parishad e simpatizantes dos partidos Bharatiya Janata e Bajrang Dal, por vezes referenciados como parivar ou familia Sangh), mot bairros virtuais no interesse de projectos p de Dezembro de 1992 j4 no podem ser vistos fora da mobilizagao elec- trénica da didspora indiana, cujos membros podem agora envolver-se di- rectamente nos acontecimentos da india por meios electrénicos. Nao se trata inteiramente de uma questo de nacionalismo a distancia do género Anderson (Anderson, 1994). Faz tudo parte das novas relagdes, tantas vezes conflituosas, entre bairros, fi- delidades translocais e a légica do Estado-nagio. Estes «novos patriotismos» (cap. 8) ndo so apenas um prolongamento !as por outros meios, embora a de nostalgia no relacio- namento dos exilados com o seu pais de origem. Envolvem também varias formas novas e confusas de ligagdo entre nacionalismos da didspora, co- dos de ambos os lados do processo da didspora Este dltimo factor reflecte © modo como as didsporas vio mudando & luz das formas novas da comunicagao electrSnica. Os indianos nos Estados Uni- dos esttio em contacto directo com acontecimentos na {ndia que implicam violéncia étnica, legitimidade do Estado e politica partidaria,e estes mesmos didlogos criam novas formas de associagdo, de conversa e de mobilizacio na politica «minoritiria» que eles prosseguem nos Estados Unidos. Assim, mui- tos daqueles que mais agressivamente vivem a politica indiana por meios electrénicos so também 05 que mais esforgos desenvolvem para reorganizar varios tipos de politicas de-diéspora nas cidades e regides dos Estados Uni- dos. Além disso, a mobilizagdo de mulheres indianas contra a violéncia do- méstica € a colaboragio de grupos indianos progressistas com os seus hom6- Jogos empenhados na Palestina e na Africa do Sul sugerem que estes bairros virtuais electrénicos oferecem aos indianos formas novas de participar‘na produgio de localidade nas cidades ¢ subiirbios onde residem como profes- sores, taxistas, engenheiros e empresétrios, americanos. 260 amigos e parentes indianos — Inglaterra, Africa, Hong Kong e Médi DIMENSOES CULTURAIS DA GLOBALIZAGAO Os indianos dos Estados Unidos estdo hoje empenhados de diversas maneiras na politica do multiculturalismo nos Estados Unidos (Bhatta- charjee, 1992). Este empenhamento é profundamente inflectido e afec- tado pelo seu envolvimento na politica incendidria nas suas casa: des e parentes na india e também noutros sitios onde vivem ¢ trabatham, Oriente. Por isso a politica da diaspora, pelo menos na década de foi decisivamente, afectada pelas transformagdes electrénicas globais. Mais do que simples oposi¢o entre bai-ros espaciais e virtuai emergiu foi um novo e significativo elemento da produgio de, localida- de. O fluxo global de imagens, noticias e opinigo piblica fornece parte da literacia cultural e po fe que as pessoas da didspora tra- zem para 0s seus bairros espaciais. Em certos aspectos, estes fluxos glo- bais potenciam a forga intensa e explosiva que produz os bairros espa- ‘Ao contririo das presses muito negativas que 0 Estado-nagio exerce sobre a produgio de contexto por sujeit nica da comunidade no mundo da didspora cria um sentido mais compli- cado, disjunto, hibrido da subjectividade local. Como estas comunidades electrénicas costumam integrar os membros mais cultos da elite das co- munidades de didspora, nao afectam directamente as preocupagées locais dos migrantes menos instrufdos e menos privilegiados. Migrantes menos favorecidos preocupam-se geralmente com os aspectos priticos do empre- go e da residéncia nos novos ambientes, mas ndo ficam isolados destes fluxos globais. Um motorista de taxi sique em Chicago pode ser incapaz, itica do Punjab via Internet, mas pode ouvir cassetes das fogosas cangdes e serm@des devotos pronunciados no Templo Doura- do, no Punjab. Os seus homélogos no Haiti, Paquistdo e Indio podem usar r de cassetes para ouvir o que quiserem escolher do imenso fluxo global de audiocassetes especialmerte dedicadas & mtisica e aos dis- cursos de cardcter popular ¢ devoto. Os diferentes grupos de indianos nos Estados Unidos ouvem também discursos e sermées de toda uma série de politicos, académicos, homens 261 ) 288.2

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