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A Funcio Social dos Bens Piblicos e 0 Mito da Imprescritibilidade Cristiana Fortini Doutora em Direito Administrativo pela UFMG. Diretora e Professora do Curso de Direito do Centro Universitario Izabela Hendrix. Diretora da Procuradoria Geral de Belo Horizonte, Professora dos Cursos de Pés-graduagio da INC, do Centro de Atualizac3o em Direito e da Escola Superior do Ministério Publico Sumério: 1 Introdugio - 2 O conceito de bens piiblicos no Cédigo Civil e na doutrina — consideragées- 8 Fungio social da propriedade - 4 As sangées disciplinadas no Estatuto da Cidade e os bens piblicos - 5 O mito da imprescritibilidade ¢ os bens “piiblicos” - 6 Conclusao - Bibliografia 1 Introducado O presente trabalho ndo pretende esgotar o estudo do tema. Objetiva t4o-somente lancar luzes sobre a fungio social dos bens publicos, a partir da investigacao dos instrumentos contemplados no Estatuto da Cidade e da disciplina fornecida pelo Cédigo Civil, a fim de, posteriormente, examinar o mito da imprescritibilidade dos bens que pertencem 4 Admi- nistragio Pablica. 20 conceito de bens publicos no Cédigo Civil ena doutrina—consideragées Hely Lopes Meirelles define bens piiblicos como “todas as coisas, corpéreas ou incorpéreas, imé6veis, méveis e semoventes, créditos, direitos e.ac6es, que pertencam, a qualquer tftulo, as entidades estatais, autarquicas, fundacionais e empresas governamentais”.’ ‘Apura-se, pois, que o autor engloba na categoria de bens piblicos todos os bens de propriedade das entidades da Administracéo Direta € Indireta, salientando, em passagem posterior, que os bens das estatais sao bens ptblicos “com destinagao especial ¢ administragao particular”? ‘José dos Santos Carvalho Filho assume posigéo mais restritiva, a0 consignar que sio bens publicos “todos aqueles que, de qualquer natureza ea qualquer titulo, pertencam as pessoas jurfdicas de direito piblico, TMEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29. ed. S80 Paulo: Malheiros, 2004. p. 493. 7 Op. cit,, p. 493. Rede Dir. mun, RDM, Belo Horizonte, ano, n. 12, p. 118-122, abr/jun. 2004 114 Grstiana Fortin sejam elas federativas, como a Unido, os Estados, o Distrito Federal e os Municfpios, sejam da Administraco descentralizada, como as autarquias € as fundagées de direito pablico”* Para o autor, os bens das empresas estatais devem ser considerados bens privados, aduzindo que o fator preponderante para distinguir os bens pablicos dos demais reside na personalidade jurfdica de seu titular.‘ Celso Anténio Bandeira de Mello, por sua vez, fornece nogio diversa, ao informar que so bens pablicos nao s6 aqueles que compéem o patriménio das pessoas juridicas de direito pablico como também os que, nao obstante nio pertencam a tais pessoas, estejam afetos & prestagao de servico piiblico.? O Novo Cédigo Civil (art. 98) atribuiu a condigao de bens pablicos aos que compéem o patriménio das pess6as juridicas de direito pablico, definindo que os bens formadores do arcabouco patrimonial das pessoas juridicas de direito privado nao sao merecedores do titulo. A formula encontrada pelo legislador, que procura apartar os bens pliblicos dos demais, empregando o critério formal, nao satisfaz porque valoriza rétulos e promove divisdo hermética entre as categorias de bens a -partir do regime jurfdico a que se submetem (ao menos precipuamente) as pessoas jurfdicas da Administragéo Pablica, sem contemplar a realidade. O critério formal adotado pelo atual Cédigo Civil, para o qual a distingdo entre os bens publicos e os nao pablicos perpassa apenas o exame de seu titular, homenageia indistintamente os bens das pessoas jurfdicas de direito pablico, independentemente de estarem dedicados ou no para o alcance do interesse ptiblico, enquanto sacrificam os bens das empresas estatais mesmo que estejam voltados a este propésito.* Hi bens que, embora integrem a estrutura patrimonial de autarquias (por exemplo), ndo guardam qualquer relagao com o servico ptiblico por elas oferecido. A geladeira que guarnece a sala de determinado dirigente de autarquia ndo pode ser considerada bem publico (salvo pelo critério formal) por inexistir qualquer relagéo entre esta e a atividade fim desempenhada pela autarquia. A auséncia de geladeira poder trazer desconforto, mas CARVALHO FILHO, J0s6 dos Santos. Manual de Direito Administrative. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004, p. 907. Op. cit, p. 908. 5 MELLO, Celso Anténio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. S40 Paulo: Malheiros, 2003, «Yale lembcar que a Ut 8.987295, que dspe sobre o regime de concesio perisito de servos ppblicos, em seu art. 7°, Vi, confere aos bens relacionados & prestacio de servigos publicos o status de ‘bens publicos. Pode-se afirmar que os bens da concessiondria assumem tal condicéo quando destinados A execuco do servigo publico objeto da avenca. R. de Dir: mun. - RDM, Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 113-122, abréjun. 2004 A Fungo Social dos Bens Publicos eo Mito da imprescritibilidade 115 jamais impediré a prestacio da atividade publica, razio pela qual néo se Ihe pode atribuir o tratamento que recair4 sobre bens sem os quais é invidvel o desenvolvimento da atividade estatal. O argumento acima bastaria, a nosso ver, para que a critica ao atual Cédigo Civil se faca merecedora. Todavia, outra alegacio se soma ao primeiro registro, no escopo de sustentar a discordancia com o critério utilizado. As empresas estatais prestam-se 4 prestagao de servigos pablicos ou exploracdo de atividade econémica. Ao se destinarem a prestagio de servigos publicos realizam atividade tipicamente estatal, conferida a tais entidades no desiderato de proporcionar maior celeridade, j4 que o regime juridico a que se submetem’ é, em tese, capaz de proporcionar maior leveza e agilidade. ‘Todavia, empresas estatais hd cujo intuito é diverso. S40 empresas que invadem campo notadamente privado, em que a atuagao competiria, em um primeiro plano, a protagonistas particulares, mas cuja participagéo estatal, no entanto, se faz necessria, diante do interesse puiblico. Ao decidir pela necessidade de explorar atividade econémica, porque presente um dos requisitos previstos no art. 173 da Constituigio da Repablica,* o Estado volta-se para a concretizacdo do interesse piiblico. Mesmo que nao se trate de atividade tipicamente estatal, o ingresso do Estado nessa seara nao pode refletir escolha desarrazoada. Ao contririo, sobredita exploragao, em situagao excepcional, ocorre em prol da coletividade, seja pela auséncia de atores privados, seja porque h4 monopélio ou oligopélios prejudiciais para a coletividade® Assim, quando hé a criagio de empresa estatal destinada a prestacdo de servigos pablicos ou a exploragio de atividade econdmica, nao se pode perder de vista que se trata de conduta reclamada para a consecugaéo do interesse pablico. Vale dizer: ainda que a exploragao de atividade econdmica pelo Estado reflita insergao anémala em segmento privado presume-se consen- t4nea com o interesse ptiblico a criagdo de estatal com este mister. 70 inesquecivel Professor Paulo Neves de Carvalho. em suas aulas. costumava asseverar que as empresas estatais, a despeito de submetidas ao regime juridico de direito privado, so pigmentadas por normas de Direito Publico. Esta caracteristica induz alguns juristas a concluso de que o regime juridico que permeia tais pessoas juridicas é hibrido, "De acordo com o art. 173 da Constituicdo da Republica, a exploracao direta de atividade ecoriémica pelo Estado s6 sera permitida quando necessaria aos imperativos da seguranca nacional ou a relevante interesse coletivo. * Ngo se pretende, por Sbvio, esgotar as situagies que ensejam a exploracéo de atividade econdmica pelo Estado. R-de Dir. mun,- RDM, Belo Horizonte, ano8,n. 12, 119-122, abr un. 2004 116 Cristiana Fortini Se assim é, devem ser considerados bens piiblicos aqueles que, pertencentes a estatais exploradoras de atividade econémica, esto rela- cionados com sua atividade fim. Conclusdo diversa alicercaria o argumento de que tais bens nao estdo revestidos com o manto protetor que acoberta os bens ptblicos, justificando os pedidos de penhora de bens relacionados a tal atividade, o que, em iltima andlise, traduziria 6bice ao regular funcionamento da empresa estatal e, por conseqiiéncia, alijamento do interesse ptblico. Por esta razio, advoga-se neste trabalho a idéia de que os bens que compéem o patriménio estatal, ainda que nao relacionados a prestacdo de servigo ptiblico, merecem a chancela de bens publicos se relacionados ao cumprimento de atividade estatal (mesmo que atfpica), a fim de que reste salvaguardado o interesse publico. Logo, os bens das empresas estatais devem ser considerados bens publicos caso estejam jungidos ao implemento de medida de interesse publico, ainda que tal tarefa seja a exploragio de atividade econémica. Isto posto, importa abordar a questdo principal a que se destina o presente trabalho, sem, conforme explanado inicialmente, pretender, como num toque de Midas, expurgar todas as davidas que possam acompanhar a discussao. 3 Fungao social da propriedade A Constituicéo da Repiblica de 1988 elevou a funcio social da propriedade & categoria de princfpio constitucional ao abordé-la no art. 5°.!° ‘Tal fato reflete a opgao do legislador constituinte por que a funcdo social nio fosse considerada como comando generalista, sem aplicagdo pratica. ‘Trata-se, ao contrario, de norma juridica que deve orientar a interpretacdo das demais normas que formam o arcabougo constitucional. N§o se desconsidera a auséncia de definigao, no texto constitucional, do que € fungio social da propriedade urbana. O legislador constituinte decidiu nao apresentar regra tinica que pudesse engessar todos os Muni- cfpios, preferindo atribuir tal tarefa aos agentes pblicos municipais,"' a fim de privilegiar as peculiaridades de cada localidade. 0 art. 5 incisos XX e XXIll garante © direito de propriedade, exigindo, contudo, 0 cumprimento de fungSo social. De acordo com o art. 182 §2°, a propriedade urbana cumpre fungéo social quando atende as exigéncias expressas no Plano Diretor. R. de Dir. mun, -RDM, Belo Horizonte, ano 5, n, 12, p. 118-122, abejjun, 2004 ‘AFungio Social dos Bens Piblicos ¢0 Mito da imprescritibilidade | 117 A eventual critica'® que se possa tecer sobre a opcio constitucional nfo autoriza a defesa de que 0 conceito de fungio social da propriedade traduz imenso vazio a abarcar qualquer contetido. Mais grave seria argu- mentar a impossibilidade de se apurar o cumprimento de tal principio diante de sua fluidez. O fato de a Constituigio no definir a fungao social da propriedade urbana apenas demonstra que nao se pretendeu enquadrar realidades distintas, forgando encaixes em nada satisfat6rios. Atribuir aos Municfpios a delimitacao do que é funcdo social da propriedade urbana significa nao desconhecer que a realidade e a comunidade devem informar a elaboragéo legislativa, a fim de que 0 Plano Diretor nao se transforme em mais um volume na estante da Administragio Pablica. Ultrapassada a discussio, divida ndo ha de que toda e qualquer propriedade deve voltar-se para o cumprimento de fungio social. ‘A Constituigao da Repéblica nao isenta os bens piblicos do dever de cumprir fungio social. Portanto, qualquer interpretacéo que se distancie do propésito da norma constitucional nao encontra guarida. Nao bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentavel conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens piblicos de tal mister. Aos bens ptiblicos, com maior razio de ser, impée-se 0 dever inexordvel de atender a funcio social. 4 As sangoes disciplinadas no Estatuto da Cidade e os bens publicos Expostas as idéias de que apenas parte dos bens de que sao titulares as pessoas jurfdicas de direito piblico ¢ de direito privado sao bens pablicos e de que toda e qualquer propriedade é obrigada a cumprir fungéo social, resta apurar a possibilidade de se émpregar a tributagio progressiva e desapro- priagio punitiva sobre iméveis urbanos que, embora pertengam as entidades da Administracao Pablica Direta, autérquica e fundacional, nao estejam a cumprir fungio social e, via de conseqiiéncia, nao possam ser, em nosso entender, classificados como piblicos. Fernando ‘Menezes de Almeida argumenta que “Causa estranheza essa opgio do constituinte.", afirmando que seria perfeitamente cabivel, e mesmo recomendavel, que | houvesse uma definigo material de abrangéncia nacional quanto & funcéo social da propriedade urbana, com um enfoque geral que independesse das especificidades de cada Municipio.” MEDAUAR, Odete; ALMEIDA, Fernando Dias de Menezes de. Estatuto da Cidade, Lei n® 10.257, de 10.07.2001 Comentérios. S30 Paulo: Revista dos Tribunals, 2002, p. 42. Liana Portilho Mattos, por sua vez, aduz que “a no definicSo rigida de seu conceito permite que o intérprete_ {aga julzos de valor consoante as particularidades locas.” MATTOS, Lina Portiho. A Efetvidade da Fungéo Social Urbana & Luz do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p. 94. de Dir, mun. - RDM, Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 115-122, abrijun. 2004 118 Cristiana Fortini Ateor do art. 150, VI, da Constituigao da Repablica, € yedado aos entes politicos instituir impostos sobre patrimOnio, renda e servigos, uns dos outros. Tal proibigio alcanga as autarquias e as fundagées constitufdas pelo Poder Patblico com relagao ao patriménio vinculado a seus propésitos. ‘Talvez, com algum esforgo, fosse poss{vel argumentar que a imuni- dade tributéria nao resiste ao confronto com o principio da fungao social da propriedade, a ponto de se defendera exacao na hipétese de os bens dos entes politicos e das autarquias e fundag6es nao cumprirem funcao social. Justificaria tal entendimento o fato de que a imunidade tributaria nao é um fim em si mesma, mas, ao contrdrio, traduz um mecanismo para que a atividade piiblica seja realizada a‘tontento, sem atropelos. Portanto, se a pessoa juridica agraciada coma imunidade nao se faz merecedora (a0 menos quanto a determinado bem) porque parte de seu patriménio nao esti a cumprir fungio social, seria de se Ihe aplicar a tributagio progressiva. Obice, todavia, surgiria. Os Municfpios, ainda que pudessem instituir a tributagio progressiva sobre os bens das demais pessoas da federacio, das autarquias e fundagées, estaria, por raz6es Obvias, impossibilitado de se autotributar. Tal impedimento elevaria os Municfpios condigao de entes privi- legiados, promovendo distingio entre os entes da federacio desprovida de suporte juridico, até porque o interesse pblico no desenvolvimento satisfa~ torio dos Municipios (intuito primordial a justificar 0 cumprimento da fungao social) exige o esforco de todos os protagonistas, sem excegao. Por outro lado, pudessem ser afastados todos os argumentos, a tributagio progressiva nao encerra o proceso de incentivo ao cumprimento da fungio social da propriedade urbana. ‘A desapropriagéo com cardter de sangio € a derradeira conseqiéncia do inadimplemento do dever de cumprir fungéo social, imposta ao proprietirio de bem im6vel urbano que, néo obstante atingido pela imposicio de IPTU progressivo ao longo de, pelo menos, cinco anos, se omite em diligenciar no sentido de adequar o uso do bem as exigéncias contidas no Plano Diretor."* Dispée o §2° do art. 2° do Decreto-Lei n° 3.365/41, conhecido como “Lei geral de desapropriagio” que os bens dos entes politicos “menores” ‘Tem outa oportunidade, defendemos o entendimento de que o Plano Diretor nfo ¢ o dco instrumento capaz de esclarecer se a propriedade imével urbana esta a cumprir fungéo social (Revista de Direito Municipal, v.11, p27-34) Trata-ze se instrumento bésico, mas nBo Gnico, razdo pela qual sua auséncia pao elimina a possibilidade de controle do dever constitucionalmente imposto aos titulares de bens de Dir. mun, - RDM, Belo Horizonte, ano, n. 12, p. 118-122, abrjun. 2004 ‘AFungio Socididos Bens Piblicos eo Mito da tmprescritibildade 119 podem ser desapropriados por entes politicos “maiores”, vedando-se, entretanto, a desapropriagao no sentido inverso. Assim, Municfpios podem ter seus bens desapropriados pela Unido e pelos Estados mas no podem figurar como sujeito ativo na situagao oposta. Fabio Konder Comparato" defende o entendimento segundo o qual tal dispositivo estaria implicitamente revogado com o restabelecimento pleno da federacdo, diante da imperiosidade de coexisténcia harménica entre as varias unidades polfticas. Todavia, prevalece a tese contréria, que se apéia no “principio da predominancia do interesse”, afirmando, pois, que o interesse “maior” deve se sobrepor ao interesse “menor”, Pudéssemos desconsiderar a posicao majoritaria, permaneceria impossivel a aplicagao da desapropriagio punitiva pelo Municfpio sobre bens da Unido e Estados.'® © Municipio nao teria como se autodesapropriar. Se 0 Municipio estaria protegido contra a desapropriacéo punitiva, regulamentada pelo Estatuto da Cidade, seria de se estender a mesma protec4o aos demais entes da federagio. A solugio, portanto, para o descumprimento da fungao social dos bens piiblicos nao est4 no Estatuto. Nem mesmo a concessio de uso especial, contemplada na Medida Proviséria n° 2.220/01, consegue solucionar o problema, visto que se trata de medida cujos efeitos atingem apenas fatos pretéritos.'® 5 O mito da imprescritibilidade e os bens “publicos” No prolongamento da discussio, poder-se-ia debater acerca da imprescritibilidade dos bens ditos publicos. AConstituigao da Republica, ao afastar a possibilidade de usucapiao de bens piblicos,!” pretendeu acautelar os bens materialmente publicos, * Antigo publicado na Revista dos Tbunais, v. 723, p. 111. " A desapropriacSo de bens das entidades descentralizadas estaduais e federais pelos Municipio também encontra relativa resisténcia no disposto no art. 2° §3° do Decreto-lei n° 3.365/41. Nos termos do art. 1° da Medida Proviséria n° 2.20/01 “Aquele que, até 30 de junho de 2201, possuiu interruptamente e sem oposicio, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imével piblico situado em érea urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua familia, tem o direito a concesséo de uso especial para fins de moradia em relacSo ao bem objeto da posse, desde que ndo sea roprietirio ou concessionério, a qualquer titulo, de outro imével urbano ou rural" A concesséo especial Coletiva, prevista no art. 2° do mesmo diploma, igualmente se refere a situagbes anteriores & entrada em vigor da norma, Tal retroatividade foi objeto de exame em nosso artigo publicado na Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, nmero 4, ano 2002. Nos termos do art. 183 § 3° da ConstituigSo da Repiblica ~ Os iméveis piblicos no sero adquiridos por uusucapiso” R. de Dir. mun, - RDM, Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 115-122, abrfun. 2004 120 _ Cristiana Fortini ou seja, aqueles que, pela fungi a que se destinam, exijam protecio, sob pena de sacrificar o interesse piblico, Interpretagao diversa se distancia da correta exegese da Constituicgo da Repdblica porque implica a mitigagdo da exigéncia constitucional de que a propriedade piblica e a privada cumpram fungio social. Logo, presentes os pressupostos ensejadores do pedido de reconheci- mento da prescrigao aquisitiva, obstéculo nao pode haver para que a usucapiao seja reconhecida mesmo que os bens alcangados sejam de titularidade das entidades da Administracao Piblica. Merecedora de aplausos a brilhante exposi¢ao de Nelson Rosenvald, para quem: a absoluta impossibilidade de usucapido sobre bens piiblicos € equivocada, por ofensa ao principio constitucional da fungio social da propriedade e, em {iltima anflise, 20 préprio princfpio da proporcionalidade. Os bens piblicos poderiam ser divididos em bens materialmente e formalmente piblicos. Estes seriam aqueles registrados em nome da pessoa juridica de Direito Pablico, porém excluidos de qualquer forma de ocupacio, seja para moradia ou exercicio de atividade produtiva. J4 os bens materialmente pablicos seriam aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, posto dotados de alguma fangao social."* Oautor argumenta, ainda, que os bens privados “tém” fangio social, enquanto os bens piblicos “so” fungio social." Importa considerar que a usucapiao exige inércia, descompromisso do proprietério com seu patriménio. Se a inércia e 0 descompromisso do proprietério privado so devidamente punidos, quer, via obliqua, com 0 reconhecimento de que novo € 0 titular do bem, configurada a hipétese da usucapido, quer com a aplicacao das penas, hoje devidamente delineadas no Estatuto da Cidade, insustentavel defender que a Administragio Piiblica possa negar a vocagio dos bens que formam seu patriménio, deixando de Ihes atribuir a destinagao consentanea com o clamor social. Deve ser destacado, novamente, que a configuracdo de usucapiaio nio se opera num estalar de dedos. A omisséo administrativa hd de se prolongar por tempo. considerdvel, a fim de que a usucapio possa ser identificada. ‘Também importa anotar que a usucapido que se vislumbra posstvel 6a que se destina a reduzir o problema do deficit habitacional. Ou seja, a ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 60. Op. cit, p. 60. R.de Dit. mun,- RDM, Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 118-122, abrjjun, 2004 AFungio Social dos Bens Piblicos eo Mito da Imprescrtibilidade | 121 usucapio que atingiria o patriménio pablico do qual nao se extraf fungéo social estaria respaldada se o bem tiver sido empregado para fins de moradia. 6 Conclusdo Apés as consideragées j4 expostas, entendemos possivel afirmar, sem | a pretensdo de esgotar a discussao: Z a) que a opgao do Cédigo Civil de catalogar como bens piblicos aqueles de que sio titulares as pessoas juridicas de direito publico nao leva em considerago a existéncia de bens que devem merecer igual chancela a despeito de pertencerem a pessoas juridicas de direito privado. O critério formal, adotado pelo Cédigo Civil, por outro lado, enobrece bens que, por estarem desvinculados do cumprimento de fungao social, nao devem pertencer a categoria de bens publicos, mesmo que formem o patriménio de pessoas juridicas de direito pablico; b)toda e qualquer propriedade deve cumprir fungio social. Nao se autoriza tratamento diferenciado entre a propriedade pertencente a particulares'e aquela de que s4o titulares as entidades da Admi- nistragéo Pablica; c)a despeito de se impor aos bens pertencentes 2 Administracéo 1 P&blica o dever de cumprir fungio social, as sangdes delineadas no Estatuto da Cidade nao atingem os entes politicos. Além dos argumentos tradicionais, #inviabilidade decorre da impossibilidade de se consagrar tratamento diferenciado entre os membros da fede- rago. Se os Municfpios ndo podem aplicar sangées sobre si mesmos (tributagio progressiva ¢ desapropriacao punitiva), nao ha como hes atribuir poder-dever de punir os Estados e a Unio, caso seus bens nao estejam a cumprir fungao social; d)a interpretagao mais consentanea com o interesse ptiblico conduz a conclusio de que a Constituicao da Reptblica veda apenas a usucapido sobre bens materialmente piblicos, ou seja, sobre bens que estejam afetos 4 atividade estatal e, assim, cumprem fungio social. Ride Dir. mun, - DM, Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 118-122, abr,jun. 2004 122 _ Cristiana Fortini Bibliografia CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrative. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade (comentarios a Lei Federal n® 10.257/2001). Sao Paulo: Malheiros, 2002. MATTOS, Liana Portilho. A Efetividade da Fungo Social da Propriedade Urbana @ Luz do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003. MEDAUAR, Odete e Almeida, Fernando Dias de Menezes de. Estatuto da Cidade, Lei n° 10.257, de 10.07.2001 Comentarios. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrative Brasileiro. 29. ed. Séo Paulo: Malheiros, 2004. MELLO, Celso Anténio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. Sao Paulo: Malheiros, 2008. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004. SALLES, José Carlos Moraes. A Desapropriagao @ Lux da Doutrina e da Jurisprudéncia. 4. ed. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. R.de Dit. mun,- RDM, Belo Horizonte, ano 5,1. 12, p. 118-122, abrjun. 2004

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