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pie do a Bo up Scary xl Geese ceo Re Un ees Pee cee ie Me eM t ee MS O eke eMC Con Com eer oem ete Succ Reonn Cunecu er ean Cerne cel Sue emt u eist Rec mu ck Reger Mune a ee Cee iar eene hemes oe cnc emen Pee eee ure ete et eee oun Coe echt hen choke ike cours a Core A nen Oe ne Meena tere etn a Teer ene racer seacoast nanny ee Ree eee CR uae an tivos, habitar um territério, afinar a atencao, deslocar pontos dr vista e praticar a escrita, sempre levando em conta a produit Cone Koken on Seesmic on Wori-ro ees em oF ole pesquisa-interven¢ Pe een ae Reng Fe , e produgao de subjetividade + rian nce ue tin Universidace Federal Fluminense DNRC eerste ee Cee cee eet et Tea eRe ac Cree nc Canad Bee aca Neco Bice Setar ec cer n, potencializadas p ene Pe ey eee re ee De ce caterers Cte) eat Perv ee erence cl ntes individua eer Coron ito de yee Mear a ewer ease eee Mato ree Cea Mt ei Pee! madas. Como em Germinal, de Emile Zola, um livro pel Cree? Senet nn oh Oe eee neue aoc) Seek tae eee ca} Oona sat duzida pela bus (Ome utes Teme Sree CEC On Mula ean ae isnt gts ale foe meee ees ONS eet aetna UNCC cc sce PISTAS DO METODO DA CARTOGRAFIA Pesquisa-intervencao € producao de subjetividade orate ConsetHo Epiroria do livro Pistas do método da cartogratia Maria Elizabeth Barros de Barros Universidade Federal do Espirito Santo, Departamento de Psicologia, Programa de Pés-Graduagéo em Psicologia institucional Mauricio Mangueira Universidade Federal de Seripe, Departamento de Psicologia, Programa de Pés-Graduagao em Psicologia Social Sérgio Carvalho Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Medicina Preventva, Programa de Pés-Graduagao em Sadie Coletva Tania Galli Fonseca Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programas de P6s-Graduago em Psicologia Social eInsttucional de Informética na Educagéo, Apolo’ uff Urs, UFR! Universidade Federal Fluminense PISTAS DO METODO DA CARTOGRAFIA Pesquisa-intervencao e produgao de subjetividade Orgs. Eduardo Passos Virginia Kastrup Liliana da Escéssia R Editora Sulina © Autores, 2009 Capa: Aleandre de Frets, sobre itegafia de Angelo Marzano Projet Gri: FOSFOROGRAFIOO/Cio Sberdlato Edtoracio: Cl Statecto Revsio Patricia Aragio Ector Luis Gomes Dados Inimacionas de Cates na Publicar (CP) Biltatriaresponsdvel Denise Mari de Ana Soura CRB 10/960 B79. Pistas do métoo da cartogata:Pesquise-intarvengaoe produvdo esubjtividade orgs. Eduard Passos, Virginia Kastup © Liliana da Eso6ssia, Porto Mere: Sulina, 2008, 2p. ISBN: 978-88-205-0580-4 1, Psicologia. 2, Pscandise. 3. Filosofia, Passos, Eduard, I. Kastrup, Vga, Escéssi, Liliana da op: 180 Cp: 101 1599 199.9642 Tades os drs desta eto reservados & EDITORAERIDIONAL OA, ‘Ay, Osvalda Aranha, 40 — con. 10L (CER, 90035-190 — Porto Alege —RS Tel: G1) 3311-4082 Fax: (1) 3264-4194 sulina@ xitoresulina.com.br ‘wiv edtorsulina.com. br Setembro / 2008 Impresso no Brasil / Printed in Brail SUMARIO Apresentagao / 7 Eduardo Passos, Virginia Kestrup e Liliana da Escdssia Pista 1 A cartografia como métoco de pesquisa-intervengéo. / 17 Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros Pista 2 Cfuncionamenta da atengéo no trabalho do cartégrafo / 32 Virginia Kastrup Pista 3 Cartogratar & acompenhar processes /. 52 Laura Pozzana de Barros e Virginia Kastrup Pista 4 Movimentos-fungdes do dispositivo na pratica da cartografia / 76 Virginia Kastrup @ Regina Benevides de Barros Pista 5 O coltiva de forgas como plano de experéncia cartogrfica / 92 Liliana da Esodssia e Sivia Tedesco Pista 6 Cartogyata como dissolugéo do ponto de vista do observador / 109 Eduardo Passos e André do Eirado Pista 7 Cartogyatar € habitar um territéro exstencial / 131 Johnny Alvarez e Eduardo Passos Pista 8 Por uma poltca da narratvidade / 150 Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros Diario de bordo de uma viagem-intervengéo / 172 Regina Benevides de Barros ¢ Eduardo Passos Postécio Sobre a formagdo do cart6grafo eo problema das polticas cognitivas’ / 201 Ealuardo Passos, Vighia Kastrup¢ Liliana da Escéssia Sobre os autores / 206 APRESENTACAO Nos anos 2005 a 2007 um grupo de professores e pesqui- sadores se reuniu uma vez por més no Departamento de Psico- logia da Universidade Federal Fluminense e no Instituto de Psico- logia da Universidade Federal do Rio de Janeiro em semindrios de pesquisa cujo objetivo foi a elaboracao das pistas do método da cartografia. Unidos pela afinidade teérica com 0 pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari e por inquietagdes relativas & me- todologia de pesquisa, Eduardo Passos, Virginia Kastrup, Silvia Tedesco, André do Eirado, Regina Benevides, Autetives Maciel, Liliana da Escéssia, Maria Helena Vasconcelos, Johnny Alvarez ¢ Laura Pozzana, bem como diversos alunos de graduagdo € pos graduaco apresentaram e discutiram ideias, criaram duplas de trabalho, escreveram textos e, num ambiente de parceria, realiza- ram um fecundo exerefcio de construgio coletiva do conhecimento, Definimos inicialmente que a cada encontro nos dedicarfamos a uma de dez pistas do método da cartografia — 0 que chamavamos de “decdlogo do método da cartografia”. Foram trés anos de tr balho, Em 2005 realizamos a primeira rodada de discussfo. A cada ‘encontro uma dupla apresentava as ideias disparadoras do debate, visando a coletivizagao do esforgo de sistematizacao do método. m 2006 cada dupla apresentou um texto a ser discutido no gru- po. Muitos comentarios, criticas e ajustes propostos. Em 2007 houve nova rodada de discussao, agora jé trabalhando com os tex- tos revisados. As discussdes versavam sobre questdes tedrico- conceituais, buscavam a formulagio adequada dos problemas metodolégicos, envolveram a eliminacao e o acréscimo de pistas concorreram para o desenho final que este livro assumiu’. ' Uma primeira versio das pistas do método da cartografia foi apresentada no texto de Virginia Kastrup: “O método da cartografiae os quatro niveis da Investigando processos de produgio de subjetividade, en- travamos em um debate metodolégico que tradicionalmente se organiza prioritariamente a partir da oposi¢ao entre métodos de pesquisa quantitativa e qualitativa, Os impasses metodolégicos sio muitas vezes atribuidos & natureza da pesquisa qualitativa, que retine grande parte das investigagdes no campo dos estudos da subjetividade. Argumenta-se que se a pesquisa quantitativa se ade ‘qua bem a frames e scripts preexistentes, como testes € questio- nirios padronizados, além de contar com métodos estatisticos € softwares de tiltima geragao que dio a tranquilizadora imagem de sofisticagao e exatidao cientifica, o mesmo nao ocorre com a pesquisa qualitativa. Esta requer procedimentos mais abertos © a0 mesmo tempo mais inyentivos. Por outro lado, a distingdo entre pesquisa quantitativa e qualitativa, embora pertinente, sur- ge ainda insuficiente, j4 que os processos de produgdo da rea- lidade se expressam de miltiplas maneiras, cabendo a incluso de dados quantitativos ¢ qualitativos. Pesquisas quantitativas qualitativas podem constituir préticas cartogréficas, desde que se proponham ao acompanhamento de processos. Para além da distingdo quantitativa-qualitativa restam em aberto impasses relativos & adequagao entre a natureza do problema investigado € as exigéncias do método. A questtio é como investigar proces- sos sem deixé-los escapar por entre os dedos. Com esse desafio a frente, nos movfamos inicialmente por entre questées disparadoras: como estudar processos acompanhan- ‘do movimentos, mais do que apreendendo estruturas e estados de coisas? Investigando processos, como langar mao de um método igualmente processual? Como assegurar, no plano dos processos, a sintonia entre objeto e método? Desde 0 infcio estévamos cien- tes de que a elaboragdo do método da cartografia ndo poderia evar a formulagao de regras ou protocolos. Percebfamos também ppesquisa-intervengao”, publicado em Lifcia Rabello de Castroe Vera Besset (Orgs.), Pesquisa-intervencdo na infaincia¢ juventude (Rio de Janeiro, Nau, 2008). que nossas inquietagdes estavam presentes na pritica didria de myitos de nossos colegas. Pesquisadores que investigam processos nas éreas de satide, educagio, cognigao, clfnica, grupos ¢ instituigdes, dentre outros, enfrentam muitas vezes, na eserita de seus projetos, dif culdades em dar conta do item consagrado ao método. Como no- ‘mear as estratégias empregadas na pesquisa, quando elas no se enquadram bem no modelo da ciéneia moderna, que recomenda métodos de representagiio de objetos preexistentes? Como encon- trar um método de investigacdo que esteja em sintonia com o carter processual da investigagio? No que conceme & chamada coleta de dados, tal dificuldade & muitas vezes contornada pelo apelo & nogio de observacao participante e as entrevistas semies- truturadas. Embora em certa medida conveniente, © vocabulétio importado da pesquisa etnogréfica e das pesquisas qualitativas em psicologia e nas ciéncias humanas em geral parece, todavia, muito genérico e longe de ser satisfatsrio. Buscamos referéncias no conceito de cartografia que & apresentado por Gilles Deleuze e Félix Guattari na Introdugaio de Mil Platos (Paris: Minuit, 1980; Rio de Janeiro: Editora 34, 1995). Na abertura do livro, os autores definem o projeto desta escrita a dois: texto-agenciamento, livro-multiplicidade feito de diferentes datas e velocidades. Qual € a coeréncia do livro? Qual é a sua unidade? Hé uma clara recusa & organizago que ¢ prépria de um “livro-raiz”, livro que se estrutura como se fizesse o decalque do «que quer tratar; que se aprofunda para desvelar a esséneia do que iga; que trata da realidade de “seu objeto” como se s6 pu- Livro-raiz. que se inocenta de qualquer com- promisso com a génese da realidade, com o Alibi de representé-la (ou re-apresenti-la) de maneira clara ¢ formal. Mil Platés nao se quer como “imagem do mundo”. A diversidade que € matéria do pensamento e carne do texto é descrita, entzio, como linhas que se condensam em estratos mais os menos duros, mais ou inenos segmentados e em constante rearranjo ~ como os abalos sfsmicos pela movimentagdo das placas tect6nicas que compdem a Terra, Os mil plats se mantém lado a lado sem hierarquia e sem totalizagao. Tal geologia filos6fico-politica convoca a uma deci- io metodolégica, ou melhor, a uma atitude (ethos da pesquisa) que opera no por unificagdo/totalizago, mas por “subtragio do ‘énico”, como na formula do n-1. Menos o Uno. Menos 0 Todo, de tal maneira que a realidade se apresenta como plano de composi- iio de elementos heterogéneos e de func heterogenética: plano de diferengas ¢ plano do diferir frente ao qual 0 pensamento & chamado menos a representar do que a acompanhar 0 engendra~ ‘mento daquilo que ele pensa. Eis, entio, 0 sentido da cartografia: acompanhamento de percursos, implicagdo em processos de pro- dugio, conexo de redes ou rizomas. assim que Deleuze e Guattari designam sua Introdugo: Rizoma. A cartografia surge como um prinefpio do rizoma que atesta, no pensamento, sua forca performética, sua pragmética: principio “inteiramente voltado para uma experimentagiio ancora- da no real” (Deleuze ¢ Guattari, 1995, p.21). Nesse mapa, justa- mente porque nele nada se decalea, ndo hd um tinico sentido para 4 sua experimentago nem uma mesma entrada, Sdo miltiplas as entradas em uma cartografia. A realidade cartografada se apre- senta como mapa mével, de tal maneira que tudo aquilo que tem aparéncia de “o mesmo” nao passa de um concentrado de signifi- cagiio, de saber e de poder, que pode por vezes ter a pretensio ilegitima de ser centro de organizacdo do rizoma. Entretanto, 0 rizoma nao tem centro. Em um sistema acéntrico, como conceber a diregi0 me= todolégica? A metodologia, quando se imp6e como palavra de ordem, define-se por regras previamente estabelecidas. Dai o sen= tido tradicional de metodologia que esti impresso na propria etimologia da palavra: metd-hédos, Com essa direco, a pesquisa € definida como um caminho (/iddos) predeterminado pelas metas dadas de partida. Por sua vez, a cartografia propde uma reversio metodol6gica: transformar 0 meté-hddos em hédos-merd. Essa reversdo consiste numa aposta na experimentagao do pensamento — um método nfo para ser aplicado, mas para ser experimentado e 10 assumido como atitude. Com isso nao se abre mio do rigor, mas esse € ressignificado. O rigor do caminho, sua preciso, esté mais proximo dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo, de que fala Canguilhem. A preciso no € tomada como exatidio, ‘mas como compromisso e interesse, como implicagdo na reali- dade, como intervengao. Em 1982 Suely Rolnik agencia a vinda de Félix Guattari a0 Brasil. Essa visita foi a ocasido para um importante exercicio cartogrifico, Os dois cartégrafos apontaram diferentes linhas de composigao da experiéneia macro e micropolitica brasileira, Nio indicaram apenas os impasses e perigos que viviamos naqueles anos de finalizagao da ditadura e de antincio do processo de de- mocratizacéo institucional, tendo como pano de fundo a onda neoliberal e a globalizago capitalistica. Privilegiaram, sobretudo, as linhas flexiveis e de fuga que indicavam germens potenciais para a mudanca: os movimentos negro, feminista, gay, a Reforma siquiatra brasileira, as m{dias alternativas, a autonomizagio do partido dos trabalhadores. O mapa que foi tragado a partir das ‘andangas de Guattari pelo Brasil indicava menos 0 que era do que © que estava em vias de ser. © mapa cartografaya nossas mo- vimentagées micropoliticas e dava pistas de como acompanhar esses processos de aciio minoritéria. O livro-rizoma que dai resul- tou (Micropolitica. Cartografias do desejo. Petrspolis: Vozes, 1986) impactou verdadeiramente os que estavam ali participando da tecedura daquelas redes. Btambém no fim dos anos 1980 que Suely Rolnik apresen- (a 24 “figuras-tipo do feminino” que dao pistas ao cart6grafo que quer acompanhar as mutag6es do capitalismo em sua relago com as politicas de subjetivagao. Suely faz uma Cartografia Sentimen- tal do mundo em que vivemos, tomando as “noivinhas” como personagens conceituais que em sua deriva histériea ~ dos anos 1950 aos 1980 ~ expressam movimentos de mudanga, alteragSes dos regimes de afetabilidade, reconfiguragdes micropoliti¢as do desejo. O trabalho de Suely Rolnik junto a Peter Pelbart ¢ Luiz Orlandi garantiram ao Nicleo de Estudos e Pesquisas da Subje- u tividade do Programa de Estudos Pés-Graduados em Psicologia da PUCYSP grande importancia na formulacdo das diregdes do método cartogrifico, No sul do Brasil, a pesquisa cartogréfica encontra impor- tante laborat6rio. A condigao de extremo sul deve ter favorecido as experimentacdes que desde 0 I Férum Social Mundial em Porto Alegre (2001) anunciaram o lema de uma nova esquerda internacional: T6 Forum, Lé também Tania Galli tem conduzido a grupalizagdo de pesquisadores interessados no modo de fazer da cartografia. O livro Cartografia e devires. A construgao do pre- sente (Porto Alegre: UFRGS, 2003) afirmou problemas cruciais, para 0 campo da pesquisa nas ciéncias humanas: a) impossi- bilidade da transparéncia do olhar do pesquisador e afirmacZo do perspectivismo; b) eritica da separacao entre sujeito e objeto ¢ articulagao do conhecimento com o desejo e implicagao; c) recusa da atitude demonstrativa em nome do construtivismo en- tendido como experimentagao de conceitos e novos dispositivos de intervengao. Em Campinas, no Departamento de Medicina Preventiva da UNICAMP, Sérgio Carvalho e 0 grupo Conexdes tém con- tribuido para a ampliagdio do debate cartogréfico no campo de pesquisa das priticas de atengdo e gestdo em satide. O mesmo acontece em Sergipe, com 0 grupo Prosaico, do Departamento de Psicologia da UFS. © método da cartografia se apresenta, assim, como alternativa importante para acompanhar 0 movimento da reforma sanitéria brasileira e as lutas macro e micropoliticas para a produgao de politicas puiblicas no Brasil. Outros cartégrafos tm estendido esta aposta metodoldgica no campo da satide publica, Na Universidade Federal Fluminense € na Universidade Federal do Rio de Janeiro 0 grupo de pesquisa Cognigdo e Subje- tividade tomou o tema da cartogratia como problema metodols- 0, surgido frente aos impasses experimentados no campo dos estudos da cognicdo. Em nosso percurso, partimos do problema formulado no projeto de pesquisa “A nogo de subjetividade e a 2 superagao do modelo da representago” (CNPq, 95/96). Nesse momento, colocévamos em questo 0 pressuposto de que conhe- cer é representar ou reconhecer a realidade. Configurava-se para nés a importancia do binémio cognigdo/eriagao, o que nos exigiu investigar com mais detalhe a dimensdo temporal dos processos de producdo de conhecimento, Chegamos & definigdo do conceito de cognieao como criagZo, autopoiese (Humberto Maturana & Francisco Varela) ou enagao (Francisco Varela). De acordo com tal perspectiva os polos da relagiio cognoscente (sujeito e objeto) silo efeitos, € no condigao da atividade cognitiva. Com o alar- gamento do conceito de cognigtio e sua inseparabilidade da ideia de criagdo, a produgio de conhecimento nao encontra fundamentos num sujeito cognitivo prévio nem num suposto mundo dado, mas configura, de maneira pragmitica e recfproca, 0 si € 0 dominio cognitivo. Destituida de fundamentos invarian- tes, a pritica cognitiva engendra coneretamente subjetividades e mundos. A investigagao da cognigao criadora coloca entio 0 problema do compromisso ético do ato cognitivo com a realidade criada, Produgdo de conhecimento, produgao de subjetividade. Eis que surge o problema metodol6gico. Como estudar esse plano de produgio da realidade? Que método nos permite acompanhar esses processos de produgio? Em vez de regras para serem aplicadas, propusemos a ideia de pistas. Apresentamos pistas para nos guiar no trabalho dda pesquisa, sabendo que para acompanhar processos no pode- mos ter predeterminada de antemao a totalidade dos procedi- ‘mentos metodol6gicos. As pistas que guiam 0 cartégrafo sao como referencias que concorrem para a manutencao de uma atitude de abertura ao que vai se produzindo e de calibragem do caminhar no proprio percurso da pesquisa — 0 hédos-merd da pesquisa. Neste volume enumeramos oito pistas para a pritica do método da cartografia. Ha trinta anos, Guattari (O inconsciente maquinico. Ensaios de esquizoandlise. Campinas: Papirus, 1988 [1979}) propunha os “Oito princfpios” da esquizoanélise. Se o B primeiro princfpio foi “Nao impedir”, isto 6, nao atrapalhar os Processos em curso, o tiltimo recolocava as bases da enumeragiio proposta, dizendo: “Toda ideia de principio deve ser considerada suspeita”. Era a ideia de princpio que se dissolvia na contundén- cia da aposta metodolégica de Guattari, fazendo com que niio se pudesse esperar por uma garantia definitiva (tal como um funda- ‘mento) para o trabalho da andlise. Neste volume enumeramos oito pistas para a pritica do método da cartografia. Como destacou Regina Benevides, podemos dizer que mais do que a sintonia do mimero 8, as pistas que propomos agora nortearam-se por uma atitude atenta ao que ja em 1979 Guattari convocava. ‘A apresentagdio das pistas nfo corresponde a uma ordem hierdrquica. A leitura da primeira pista nao € pré-requisito para a Teitura da segunda e assim sucessivamente. A organizagtio do livro corresponde a um tizoma. O leitor pode iniciar pela pista que jul- ¢gar mais conveniente ou interessante e ler as outras na sequéncia que Ihe aprouver. Como nao poderia deixar de ser, elas remetem umas as outras. Ainda como um rizoma, as pistas aqui apresenta- das no formam uma totalidade, mas um conjunto de Tinhas em conexao e de referéncias, cujo objetivo € desenvolver e coletivizar a experiéncia do cartégrafo. A pista 1, “A cartografia como método de pesquisa-inter- vvengao”, € apresentada por Eduardo Passos e Regina Benevides. Baseada na contribuigao da andlise institucional, discute a indis- sociabilidade entre o conhecimento e a transformagéo, tanto da realidade quanto do pesquisador, A pista 2 € trabalhada por Virginia Kastrup no texto “O funcionamento da atengdo no trabalho do cartégrafo”. Criando uma interlocugao entre Freud, Bergson e a pragmét nol6gica, sao definidos os quatro gestos da atengio cartogriifica: 0 rastreio, © toque, 0 pouso ¢ 0 reconhecimento atento. Na pista 3 Laura Pozzana e Virginia Kastrup discutem a ideia de que “Cartografar é acompanhar processos”. Baseado numa pesquisa sobre oficinas de leitura com criangas, texto analisa a 4 distingdo entre a proposta da ciéncia moderna de representar obje- {os e a proposta da cartografia de acompanhar processos, além de apresentar um exercfcio da (re)invengdo metodolégica nas entre- vistas com eriangas. A pista 4 vem apresentada no texto de Virginia Kastrup € Regina Benevides “Movimentos-fungdes do dispositivo no mé- todo da cartografia”. As ideias de Foucault ¢ Deleuze surgem mescladas com exemplos coneretos extraidos do campo da clini ca e da pesquisa com deficientes visuais. S40 propostos trés mo- vimentos-fungdes: de referéncia, de explicitagdo e de produgio e transformacdo da realidade, A pista 5 foi escrita por Liliana da Escéssia e Silvia ‘Tedesco, No texto “O coletivo de forgas como plano da experién- cia cartografica” as autoras apontam, apoiadas sobretudo em Gilbert Simondon e Gilles Deleuze, que ao lado dos contomnos estéveis do que denominamos formas, objetos ou sujeitos, coe- xiste o plano coletivo das foreas que os produzem, além de defi- nirem a cartografia como pritica de construgao desse plano. A pista 6 é apresentada por Eduardo Passos e André do Eirado no texto “Cartografia como dissolugao do ponto de vista do observador”. O texto revela a preocupagao em apontar que a recusa do objetivismo positivista ndo deve conduzir & afirmagaio a participagdo de interesses, crengas e juizos do pesquisador, concluindo que objetivismo subjetivismo sio duas faces da mesma moeda. A pista 7, “Cartografar € habitar um territ6rio existen- cial”, & apresentada por Johnny Alvarez e Eduardo Passos. Por meio do relato de uma pesquisa sobre 0 aprendizado da capoeira, © texto traz & cena a importancia da imerstio do cartégrafo no territ6rio e seus signos, A pista 8 aborda o tema da escrita de textos de pesquisa. Eduardo Passos e Regina Benevides apresentam em “Por uma polt- tica de narratividade” a ideia de que a alteragao metodol6gica pro- posta pela cartografia exige uma mudanga das préticas de narrar. Is Encerrando a coletinea, 0 texto “Disrio de bordo de uma viagem-intervengaio” de Regina Benevides e Eduardo Passos apre- senta um exemplo vivo da construgao coletiva de uma pesquisa. Usando uma troca de correspondéncia durante uma viagem de pesquisa-intervencao, discutem a utilizacdo do hors-texte ‘Como um balango final do livro, um Posfécio discute a for magio do cart6grafo e as politicas cognitivas do pesquisador, além de abrir novos problemas que continuam desafiando o pensamen- to € atentam para o rigor da pesquisa cartogrsfica, Eduardo Passos, Virginia Kastrup © Liliana da Escéssia Pista 1 A CARTOGRAFIA COMO METODO DE PESQUISA-INTERVENCAO Eduardo Passos © Regina Benevides de Barros A Cartografia como método de pesquisa-intervencao pres- supde uma orientacdo do trabalho do pesquisador que ndo se faz de modo preseritivo, por regras j4 prontas nem com objetivos previamente estabelecidos, No entanto, nio se trata de uma ago sem diregdo, ja que a cartografia reverte 0 sentido tradicional de método sem abrir mao da orientagdo do percurso da pesquisa. O desafio € 0 de realizar uma reversiio do sentido tradicional de método ~ nao mais um caminhar para alcangar metas pré-fixadas (metd-hddos), mas 0 primado do caminhar que traga, no percurso, suas metas', A reversdo, entdo, afirma um hédos-metd. A diretriz. cartogrfica se faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre 0 objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados. Das pistas do método cartogrifico queremos, neste texto, discutir a inseparabilidade entre conhecer e fazer, entre pesquisar e intervir: toda pesquisa ¢ intervengao. Mas, se assim afirmamos precisamos ainda dar outro passo, pois a intervengio sempre se realiza por um mergulho na experiéncia que agencia sujeito e objeto, teoria e prética, num mesmo plano de produgao ou de coemergéncia — 0 que podemos designar como plano da expe- riéncia. A cartografia como método de pesquisa € o tragado desse ‘Metd (reflexio, raciocinio, verdade) + hddos (caminbo, direga0). Dicibnétio Etimol6gico http://www prandiano.com.br/html/fr_dic.htm (acesso em Janeiro/2009), 7 plano da experiéncia, acompanhando os efeitos (sobre 0 objeto, 0 Pesquisador e a produgaio do conhecimento) do proprio percurso da investigagio, Considerando que objeto, sujeito e conhecimento sao efei- tos coemergentes do processo de pesquisar, nao se pode orientar a pesquisa pelo que se suporia saber de antemao acerca da reali- dade: o know what da pesquisa. Mergulhados na experiéncia do pesquisar, no havendo nenhuma garantia ou ponto de referéncia exterior a esse plano, apoiamos a investigagio no seu modo de fazer: o know how da pesquisa. © ponto de apoio é a experiéneia entendida como um saber-fazer, isto é, um saber que vem, que ‘emerge do fazer, Tal primado da experiéncia direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber na experiéncia A experiéncia do saber. Eis af o “caminho” metodolégico. Essa também ¢ a dirego indicada pelo movimento insti- tucionalista quando afirma que se trata de transformar para co- nhecer € ndo de conhecer para transformar a realidade. O que tem primado € o plano da experiencia enquanto intervengiio, em que esto sempre encarnadas as ferramentas conceituais ou os ope- radores analiticos com os quais se trabalha. O institucionalismo, tal como formulado na Franga, acentua a dimensao politica da pesquisa, seja quando trata do tema da produgdo de conhecimen- 10 (as instituigées da pesquisa, da escola, da ciéncia), seja quando se volta para a clinica (as instituigdes do manicOmio, da psiq ttia, da psicandlise, do grupo). René Lourau e Felix Guattari de- dicam-se, cada qual, a uma dessas inflexdes institucionalistas, mantendo em comum a dirego da intervencao, Lourau e a intervengao como método Lourau, no texto “Campo socioanalitico”, primeiro capitu- lo do livro Intervencdes socioanaliticas de 1996 (Lourau, 20042), afirma que a questo do método coloca para a Andlise Institucional (AD 08 temas da intervengao e do campo que por ela é aberto: 0 campo da interyengdo. Pensar esse campo exige para o autor a definigdo do que ele designa de “paradigma dos trés Is” que, tal ‘como os trés mosqueteiros, sio quatro: Instituigdo, Institucio- 18 nalizaedo, Implicagdo e o iiltimo, Intervengio, sendo este 0 a Artagnan, ja que € ele que delimita o campo de ago ou o plano da experiéncia, como preferimos. Lourau diz que campo é “um conceito metaférico tomado de empréstimo” (Lourau, 2004b, p.218) através do qual a Al vai definir suas priticas enquanto campo de intervengao e campo de anilise. © primeiro diz respeito ao espago-tempo acessfvel aos interventores em fungio de uma encomenda inicial as modi ficagdes deste espago-tempo face & anélise da encomenda no processo de intervengdo. O trabalho da andlise vai modificando o campo, seguindo esta dirego: da formulagao de uma encomenda a definigo de uma demanda de anilise. Quem encomenda um trabalho de andlise institucional nfo é necessariamente quem emuncia essa demanda, O trabalho vai modulando 0 campo de intervengao onde todos estio incluidos (quem encomenda, quem demanda, quem e 0 que analisa) Kurt Lewin designava de pesquisa-agio 0 trabalho de/so- bre o campo onde todos estavam inclufdos. Lourau segue esse curso de problematizagio das priticas de pesquisa e produgao de se distingue, mas no se separa do campo de intervencio, sendo o sistema de referéncia teérico que se tora operat6rio em uma pesquisa-ago e, consequentemente, sempre encarnado em uma situaeo social concreta. A andlise aqui se faz sem distanciamento, j4 que esté mergulhada na experiéncia coletiva em que tudo ¢ todos esto implicados. E essa constatagdo que forga o institucionalismo a colocar em questo os ideais de objetividade, neutralidade, imparcialidade do conhecimento. Todo conhecimento se produz em um campo de implicagGes cruzadas, estando necessariamente determinado neste jogo de forgas: valo- res, interesses, expectativas, compromissos, desejos, crengas etc. A interveneo como método indica 0 trabalho da andlise das implicagdes coletivas, sempre locais e concretas. A andlise das implicagdes de todos que integram um campo de interveneo per- mite acessar, nas instituigdes, os processos de institucionalizagao, (© que Lourau designa de implicagao diz respeito menos vontade consciente ou inteneao dos individuos do que as forgas incons- conhecimento. O campo de ané 19 cientes (0 inconsciente institucional) que se atravessam consti- tuindo valores, interesses, expectativas, compromissos, desejos, crengas, isto é, as formas que se instituem como dada realidade. A anilise é, entio, o trabalho de quebra dessas formas institufdas ara dar expresstio ao processo de institucionalizacio. Seo método € 0 da interveneao, orientando um trabalho de Pesquisa que diremos pesquisa-intervencdo (ja que é insuficiente Para nés a nogo lewiniana de pesquisa-agdo), a diregao de que se trata nesse método € aquela que busca aceder aos processos, a0 que se passa entre os estados ou formas instituidas, ao que esti cheio de energia potencial. Logo, na direcao do método cartogré- fico, preferimos dizer que é em um plano e nflo em um campo que a intervengio se dé (Passos e Benevides, 2000) trabalho da anélise/intervencao desestabiliza a propria nogio de campo, ja que modula seus limites ¢ configuragées. Essa desestabilizagao vai ficar mais evidente quando Lourau, na década de 90, se aproxima do pensamento de Gilbert Simondon, definindo 0 campo de intervengao por sua metaestabilidade ou pelo modo como nele as oposigdes ~ seja esta entre sujeito e obje- to, entre local e global, entre eu ¢ 0 outro, individuo e 0 grupo, etc ~ se apresentam como uma dindmica transductiva, isto é, uma dinamica de devir que “potencializa resisténcias atuais e atualiza existéncias potenciais” (Lourau, 2004b, p.213). René Lourau, nesse momento, faz modular o pensamento da anilise institucional. Em especial, 0 conceito de implicagio repensado em sua relagdo com 0 conceito de transducgao pro- posto por Simondon. O conceito de implicagio jé tomara o lugar dos conceitos de “transferéncia e contratransferéncia institu- cionais”, radicalizando a critica & neutralidade analitica e ao obje- tivismo cientificista. Nao hé neutralidade do conhecimento, pois toda pesquisa intervém sobre a realidade mais do que apenas a representa ou constata em um discurso cioso das evidéncias. No processo de produgo de conhecimento ha que se colocar em an: lise os atravessamentos que compdem um “campo” de pesquisa. Estas forgas que se atravessam foram inicialmente designadas pelo institucionalismo de transferéncia e contratransferéncia ins 20 lucionais, sendo em seguida pensadas como implicagoes. Como diz, Lourau em 1973 (Lourau, 2004c, p.85), “o importante para 0 investigador nao €, essencialmente, o objeto que ‘ele mesmo se da? (segundo a formula do idealismo matemstico), mas sim tudo ‘0 que the € dado por sua posigdo nas relagGes sociais, na rede institucional”. © observador esta sempre implicado no campo de observagao e a intervengao modifica 0 objeto (Principio de Heisenberg). No campo, a intervened nao se di em um tinico sentido. E essa ampliagao dos sentidos da intervengaio que vai ‘aumentando quando se considera agora uma dindmica transduc- {iva a partir da qual as existéncias se atualizam, as instituigdes se organizam e as formas de resisténcia se impdem contra os regimes de assujeitamento e as paralisias sintomaticas. E na década de 50 que podemos acompanhar, em tomo dos grupos do hospital St. Alban e da clinica La Borde, as condi- ges de emergéncia da virada do movimento institucionalista a partir da problematizacao da dimensdo inconsciente da institui- cdo. Segundo Hess e Savoye (1993, p.13) “é ento que se entra verdadeiramente na Andlise Institucional”. A dinamica do pro- cesso primério das instituigées € destacada. No mesmo perfodo, aparecem na Franga os primeiros eseritos que se autointitulam socioanalfticos e que propiem uma abordagem psicanalitica dos grupos. Em 1962, no Coléquio de Royaumont, G. Lapassade redi- g€ 0 que seria 0 primeiro trabalho socioanalitico de uma tradigao ‘que toma em questo as instituigdes, os grupos e as organizagbes visando os processos de autogestdo. E nessa tradi¢ao que Lourau vai imprimindo uma progressiva intensificagdo dessa dimensio inconsciente das instituigdes, chegando finalmente a amplid-la, na década de 90, com o conceito de transducgo proposto por G. Simondon em sua tese de 1958. Pistas metodolégicas entre Lourau e Simondon Gilbert Simondon (1989), em seu estudo sobre os proces- sos de individuagdo, faz uma critica & tradi¢ao do pensamento filos6fico que pressupds um prinefpio de individuago anterior € 21 orientador do processo de individuagio. A forma de argumenta- Zo tradicional que esse autor denuncia € a que toma como ponto de partida ¢ dé privilégio ontolégico ao individuo constituido, buscando suas condigdes de existéncia, elas mesmas ndo menos individuais, 0 que fica evidente na nogao de principio. Como nos diz 0 autor: anogao de principio de individuacdo udvém, numa certa ‘medida, de uma génese a contrapelo de uma ontogénese revertida: para dar conta da génese do individuo com seus caracteres definitivos & preciso supor a existéncia de um termo primeiro, principio, que traz nele mesmo isso que explicaré que o individuo seja individuo e dar conta de sua heeceidade (Simondon, 1989, p.10) Simondon defende que a individuagio nao produz so- ‘mente individuo, o que nos obriga a ser cautelosos evitando pas- sar de maneira répida pelas “etapas de individuagio” (prinefpio/ ‘operagdo de indivi Vindividuo). E preciso aprender a onto- génese em sua realidade de maneira a “conhecer 0 individuo através da individuagio antes que a individuagao a partir do ind viduo” (p.12). O individuo 6, entao, uma fase do ser que supde uma realidade pré-individual que 0 acompanha. O individuo, mesmo apés a individuagdo, no existe s6, j4 que seu processo de individuagao no esgota os potenciais da realidade pré-individual, assim como a individuago ndo faz aparecer como seu efeito somente o individuo, mas um par individuo-meio. ‘A individuagao deve ser considerada como resolugao parcial e relativa que se manifesta em um sistema com- portando potenciais e guardando certa incompatibi- lidade em relagio a ele mesmo, incompatibilidade feita de forgas de tensao, assim como da impossibilidade de ‘uma interago de termos de dimensdes extremas (p.12). A ontogénese é, para Simondon, o processo a partir do qual © ser se torna uma realidade individuada num processo de devir do ser na dupla acepeio desse “do ser”: devir que acontece ao ser 2 ce devir de que consiste 0 ser. O devir é entendido como dimensao do ser ou a capacidade de se “defasar por relagio a ele mesmo, de se resolver em se defasando” (p.13). O que 0 autor nos faz enten- der € que 0 ser em processo de individuago € aquele no qual uma resolugdo aparece pela sua reparticdo em fases, isto é, a partir de uma “incompatibilidade inicial rica em potenciais”. Mas, como pensar 0 primado da individuagao ou uma individuacao sem principio predefinido? Segundo Simondon, foi necessirio esperar por certos conceitos para que se pudesse entender o processo de individuagdo sem a peticdo de principio pelo autor denunciada. E 0 conceito de metaestabilidade, em contraste com aquele de equilfbrio estavel, que garante esse avango. Enquanto 0 equilfbtio ~ que é 0 mais baixo nivel de ener- gia potencial — exclui o devir, a metaestabilidade indica uma dindmica de devir que s6 se resolve em continua transformacao. Essa nogdo de metaestabilidade ganha um sentido especial quan- do tratamos de sistemas vivos nos quais o proceso de individua- go nao culmina, mantendo o devir em constante processualidade. Segundo Simondon o “vivo conserva nele uma atividade de individuagdo permanente, ele ndo € s6 resultado de individuacao como 0 cristal e a molécula, mas teatro de individuaga0” (p.16). Sempre comportando energias potenciais, o individuo vivo &, segundo a férmula do autor, menos e mais do que a unidade, ja que se caracteriza por uma problemitica interior e por um jogo de ressondncias internas que o langa para problemiticas mais vastas, sendo ele mesmo elemento em uma individuagao futura a ele. E nesse sentido que a individuagdo biolégica se resolve no no individuo, mas numa outra individuagao. A individuagao psfquica advém quando a problematica interior do vivo 0 obriga a posi- cionar-se como elemento do problema através de sua ago, sendo essa a condigdo que Ihe confere a posigdo de sujeito. Mas, se 0 processo ¢ ininterrupto, o ser psiquico nao resolve, ele mesmo, a sua problemdtica, sendo forgado a ultrapassar os seus pro- prios limites, agora numa individuagao do coletivo. O individuo psfquico se associa ao grupo pela realidade pré-individual que 2B © habita, Individua-se agora uma “unidade coletiva. Segundo © autor as duas individuagdes psiquica e coletiva sio recipro: ‘cas, uma por relagdo outra; elas permitem definir uma categoria do transindividual que tende a dar conta da Lunidade sistematica da individuagiio interior (psiquico) e da individuagao exterior (coletivo). © mundo psicos- social do transindividual ndo é nem 0 social bruto nem © interindividual; ele supie uma verdadeira operagio de individuagdo a partir de uma realidade pré-indi- vidual... (p.19), A obra de Simondon nos convoca a pensar qualquer rea- lidade individuada a partir desse fundo pré-individual em que se opera a criagio, No vivo, no psfquico e no coletivo esse fundo per- manece em laténcia no individuo, obrigado a resolver a sua pro- blemdtica existencial em individuagdes sucessivas. Hé, portanto, um plano comum de imanéncia que une, num mesmo phillum de individuagdo, a realidade viva, psiquica e coletiva. Para construir essa tese 0 autor langa mao de um método. Simondon indica trés caracteristicas metodolégicas para a pesquisa do processo de indi- viduago que nos ajudam a entender 0 método da cartografia: 1) tomar a relagio como interna ao ser ou contempordnea aos ter- mos; 2) recusar os prine{pios do terceiro excluido e da identidade; 3) afirmar a dindmica de individuagao como transduccao. Queremos aqui nos deter na terceira caracteristica meto- dolégica. A transduccio € a operaciio fisica, biolégica, mental ou social pela qual uma atividade se propaga de parte em parte, estruturando um dominio. A partir de um sistema em rede ampli- ficante, um gérmen se propaga em vérias diregdes, de tal maneira que cada camada constitu(da serve de base estruturante a uma camada em formagao. Tal dindmica transductiva é tomada por Lourau para repensar 0 conceito de implicagao. O trabalho de Pesquisa, assim como 0 trabalho de interveneao socioanalitic: pressupde uma forma de relaedo entre os termos que af interagem (sujeito-objeto, analista-cliente,teoria-prética), Os institucionalistas 24 cada vez menos tomario essa relagio como o jogo interpessoal caracterfstico da dinfmica da transferéncia e da contratransferéncia, Sabemos que a anélise institucional toma de empréstimo, inicialmente, 0 conceito de contratransferéncia para pensar uma dindmica coletiva-institucional na qual toda a realidade em que os atores estdo imersos se coloca como vetores determinantes na cena de andlise: sexo, idade, raga, posigdo socioeconémica, significa- ges socioculturais que atravessam seja 0 analista, seja 0 analisan- do. Com 0 conceito de contratransferéncia institucional toda uma rede de afecgdes é ativada. No entanto, esse conceito sera aban- donado quando Lourau propde em seu lugar o de implicagio. Apenas uma troca de palavras? Na verdade identificamos af um esforgo de nao somente se desvencilhar do subjetivismo inerente a0 jogo transferencial, como também a necessidade de dar conta de uma dindmica de relacao na qual posigdes bem localizadas nao ‘ém mais lugar, Se na dinamica da transferéncia e da contratrans- feréncia é ainda a relacdo dual que toma o centro da cena, mar- cando a distingdo dos Ingares do analista e do analisando, com 0 conceito de implicago o trans e 0 contra se dissolvem. O campo implicacional indica, entdo, esse sentido mais entre forcas do que entre formas, no qual a dindmica se faz nao por projecao, decisao, propésito ou vontade de alguém, mas por contagio ou propaga- Glo, como prefere Simondon, Interessa a Lourau exatamente essa dindmica que podemos chamar instituinte Todo trabalho de intervengao na socioandlise visa essa dimenstio inconsciente das instituigdes de tal maneira que podemos afirmar, no plano da ex- periéncia, uma inseparabilidade entre andlise das implicagdes e interveneaio. Intervir, entZo, é fazer esse mergulho no plano impli- cacional em que as posi¢Ges de quem conhece e do que € conhe- cido, de quem analisa e do que é analisado se dissolvem na dina- mica de propagagdo das forgas instituintes caracteristica dos processos de institucionalizagao. , portanto, no plano do conereto da experiéncia que estamos sempre implicados. © tema da implicagao define uma diregio clinico-politica ao trabalho de pesquisa-intervencao. A cartografia deve ser entendida como um método segundo 0 qual 25 toda pesquisa tem uma dirego clinico-politica e toda a prética clinica é, por sua vez, intervengao geradora de conhecimento. Esta relago que o método cartogrifico estabelece entre pesquisa, in- tervengio, clinica e politica jé ganhava expresso nos conceitos da Al que, desde os anos 50, forgavam um interessante hibridismo centre psicandlise e politica, a andlise do sintoma e a das institui- goes, tomando o problema da implicagao como pedra de toque para todo 0 trabalho de interveneao, A intervengao é sempre clinico-politica: a contribuigao metodolégica de Félix Guattari Guattari em 1964, seguindo a mesma diregao, propde o conceito de transversalidade para problematizar os limites do setting clinico, definindo esse conceito como um aumento dos quanta comunicacionais intra e intergrupos em uma instituigio. Fazer anilise €, cada vez mais, 0 trabalho de desestabilizagao do que se apresenta tendo a unidade de uma forma ou de um campo: © instituido, o individuo, 0 social. Do uno ao coletivo, esta é a direcdo da andlise, Diregio a qué? Nao ao agrupamento, ao con- junto de individuos nem & unidade do diverso, mas a0 coletivo como dinimica de contdgio em um plano hiperconectivo ou de méxima comunicagio, Na clinica, por exemplo, a operagdo de transversalizagao se apresenta num duplo registro: (1) o que a cl{nica acolhe é, por ‘um lado, um sujeito com sua histéria, sua forma identitédria, suas verdades e meméria, mas no s6 isso. Acolhe também, por outro Jado, um proceso de subjetivago em curso que vai se realizan- do pelas frestas das formas, Id onde o intempestivo se apresenta, impulsionando & criagio, Nesse sentido, ha sempre um quantum de transversalizagao com que se pode contar, jé que a forma defi- nitiva (a identidade, a individualidade, a verdade, o fato histérico acabado) é apenas uma idealidade ou meta a ser aleangada; (2) a clinica, por sua vez, é ela mesma um caso de transversalizagiio, isto é, seu trabalho se dé justamente desta maneira, A intervengao clinica deve ser entendida como uma operagiio de transversali- 26 Zagiio que se realiza na zona de vizinhanga ou de indefinigao entre dois processos ~ 08 processos de suibjetivagdo que se passam na relago analista-analisando e aqueles que se passam na relago ente a clinica e 0 nao elinico: a clinica e a politica, a clinica ea arte, a clinica ¢ a filosofia ete (a transdisciplinaridade da clinica), Falar, portanto, de coeficientes de transversalizagio da clinica € intensificar/apostar mais, ou menos, nos devires que esto sempre presentes em diferentes graus de abertura e poténcias variadas de criagio. Com 0 coneeito de transversalidade, Guattari prepara a defi- nigio do método cartogrfico segundo o qual o trabalho da anilise a um 86 tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-subjetivi- dade. B importante notar que o conceito de transversalidade se apresenta também — tal qual o de implicagao ~ como uma amplifi- cagiio perturbadora do conceito de transferéncia em Freud Como ja dissemos, a transferéncia, tradicionalmente, des- creve a dinémica bidimensional ou intersubjetiva em que afetos e representagdes atravessam de um pélo subjetivo a outro, num movimento de rebatimento, O movimento institucionalista pro- Ge um sentido coletivo ou institucional para o coneeito de trans- feréncia, descrevendo outra dinémica, Guattari, em suas interven- .g0es clfnico-institucionais, identificou esta dinamica coletiva como ade um grupo sujeito cuja comunicacdo se dé de modo multidi- mensional. Operar na transversalidade é considerar esse plano em que a realidade toda se comunica. A cartografia € 0 acompanha- ‘mento do tragado desse plano ou das inhas que o compaem. A tecedura desse plano ni se faz de maneira s6 vertical e horizon- tal, mas também transversalmente. tema da transversalidade se desdobra no tema das redes que, neste primeito momento, Guattari deserevia como redes co- ‘munieacionais, No entanto, € pela importincia que assume esta dimensao reticular na experiéncia clinico-politica que a definigao do método vai modulando, Guattari desdobra a anélise da dinami- ca comunicacional nas instituigGes colocando, lado a lado, o que € distinto, tornando grupo sujeito e grupo sujeitado como dindmicas que diferem, mas nao se separam. O que interessa € o que se passa a entre os grupos, nos grupos, no que esté para além ¢ aquém da forma dos grupos, entre as formas ou no atravessamento delas. A rede conecta termos, dando consisténcia ao espaco intermediatio. Os grupos, as instituicdes e as organizagdes io redes de inter-rela- GGes, isto 6, relagdes entre relagdes. O método 6, entio, a carto- grafia do intermediscio. O método da cartografia tem como diregao clinico-politica © aumento do coeficiente de transversalidade, garantindo uma comunicagdo que nao se esgota nos dois eixos hegembnicos de organizagio do socius: 0 eixo vertical que organiza a diferenca hierarquicamente € 0 eixo horizontal que organiza os iguais de maneira corporativa, A natureza politica do método cartogritico diz respeito a0 modo como se intervém sobre a operagao de orga- nizagdo da realidade a partir dos eixos vertical e horizontal. Grosso modo, podemos dizer que a operaco de organizagaio hegem@nica/ majoritéria do socius se dé na forma da conexio entre varidveis, menores em oposigdo a varidveis maiores. Por outro lado, hi outra ‘operagdo, dita operacdo transversal, que conecta devires minoritrios. Esses dois modos de operar (majoritério e minoritério) po- dem ser pensados a partir da distingdo entre um sistema de coorde- nadas que organizam a realidade segundo um metro-padrao e uma ‘operagao de transversalizagio que cria a diferenciagdo do socius. O diagrama a seguir nos ajuda a tragar as duas operagdes: traysversaizasto~Speracao de diferenciago ou devir minortirio sistema de ebatimento para construglo do metro-padio 8 ‘A operacdo de organizagao hegeménica do socius se faz, pela oposic2o entre os eixos vertical e horizontal (coordenadas hegeménicas), realizando o sistema de rebatimento ou de super- posigdo das varidveis maiores para a constituigdo de um metro- padrdo que equaliza a realidade. Assim, por essa operaco, ha uma equivaléncia funcional entre homem, adulto, heterossexual, branco, rico, varidveis maiores (dispostas no eixo vertical) que se rebatem umas sobre as outras, gerando uma existéncia ideal em oposigio a qual se define mulher, crianga, homossexual, negro, pobre, varidveis menores (eixo horizontal), Nesse sistema de reba- timento, € uma mesma operacHo que se realiza, Essa operacdo hierarquiza opondo as diferengas (homem x mulher, adulto x crian- ¢a, branco x negro, heterossexual x homosexual, rico x pobre) € homogeneiza, seja criando um ideal pelo rebatimento das varid- veis maiores entre si (homem-adulto-branco-heterossexual-rico), seja pela identificacao e sujeigdo dos “diferentes” do ideal (mu- Iher submetida ao homem, crianga ao adulto, negro ao branco, homossexual ao heterossexual, pobre ao rico). Por outro lado, 05 fragmentos do socius (as varidveis) po- dem se conectar gerando um desarranjo do sistema de organiza Jo da realidade, Nesse caso, as varidveis menores se tornam 0 meio (0 medium) de um devir minoritério dotado de poténcia heterogentica ou de diferenciaedo (o que Simondon designou de energia potencial). No lugar do rebatimento ou da equalizagao, um dos fragmentos do socius se apresenta, na situagao, como um velor de caotizago que gera novos arranjos da realidade, Guattari chamou estes movimentos de caosmose: desarranjos € novos arranjos de produgio da realidade. Essas duas operagdes ~ de rebatimento e de caotizagao — no entanto, guardam algo em comum que € 0 seu funcionamento em rede de conexdes. Mas é preciso distinguir as redes quentes das redes frias. A nogo de rede nessa sua dupla inscrigao no contempordneo — rede fria e rede quente — nos forga a refletir so- bre a operagio de uma rede fria, de cima para baixo, isto é, rede que, apesar de funcionar por hiperconectividade ¢ integtagao, possuil centro vazio identificado, seja ao capital enquanto regime 29 de homogeneizacdo ou equivaléncia universal, seja a0 metro- padrao resultante do jogo de rebatimento e de sujeigao carac~ teristico da organizagao hegeménica do socius (Passos & Bene~ vides, 2004). Do ponto de vista clinico-politico, a intervengao s6 € possivel nos momentos quentes da rede, quando o sistema de rebatimento se desarranja, permitindo devires minoritérios através das varidveis menores. ‘A intervengao como caminho Defender que toda pesquisa é intervengdo exige do car t6grafo um mergulho no plano da experiéncia, ld onde conhecer e fazer se tornam inseparaveis, impedindo qualquer pretensao & neutralidade ou mesmo suposi¢do de um sujeito e de um objeto cognoscentes prévios & relago que os liga. Langados num plano implicacional, os termos da relagao de produgdo de conhecimento, mais do que articulados, af se constituem. Conhecer é, portanto, fazer, criar uma realidade de si e do mundo, o que tem conse- quéncias politicas. Quando j nao nos contentamos com a mera representagdo do objeto, quando apostamos que todo conhecimento € uma transformagao da realidade, o processo de pesquisar ganha uma complexidade que nos obriga a forgar os limites de nossos procedimentos metodolégicos. O método, assim, reverte seu sen- tido, dando primado ao caminho que vai sendo tragado sem deter- minagGes ou prescrigdes de antemiio dadas. Restam sempre pistas metodolégicas ¢ a direcdo ético-politica que avalia os efeitos da experiéncia (do conhecer, do pesquisar, do clinicar ete.) para daf extrair 08 desvios necessdrios ao proceso de criagao. Tal processo se da por uma dinamica de propagagao da forga potencial que certos fragmentos da realidade trazem consi- 20. Propagar é ampliar a forga desses germens potenciais numa desestabilizagtio do padriio. Nesse sentido, conhecer a realidade acompanhar seu processo de constituigdo*, 0 que no pode se * Cf-L. Pozzana e V. Kastrup, “Cartografar € acompanhar processos”, nesta coletinea, 30 realizar sem uma imersio no plano da experiéncia, Conhecer 0 caminho de constituigio de dado objeto equivale a caminhar com esse objeto, constituir esse proprio caminho, constituir-se no caminho. Esse € 0 caminho da pesquisa-intervencio. Referéncias HESS, H & SAVOYE, A. L’Analyse Intituonnelle. Paris: PUF, 1993 LOURAU, R. “Campo socioanalitico”. In: ALTOE, S. (org.). René Lourau, Analista em tempo integral. Campinas: Hucitec, 20048, p. 224-245. M mplicagdo-transduceo”. In: ALTOE, S. (org). René Lourau, Analisia em tempo integral. Campinas: Hucitec, 2004, p.186-198.. ‘Objeto e método da Andlise Institucional”. In: ALTOE, S. (ore) René Lourau, Analista em tempo integral. Campinas: Hucitec, 200, 9.686. PASSOS, F & BENEVIDES, R. A construgio do plano da elnica e 0 conceito de transisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Ja- ‘Abr 2000, vo. 16,1, 1, p.71-79. __. etinica, politica e as modulagées do captalismo. Lugar Co- imam, n. 19-20, jan-jun, 2004, p.159-171 SIMONDON, G. L'individuation prychigue et colletve. Pais: Aubiet, 1989, 31 Pista 2 O FUNCIONAMENTO DA ATENCAO NO TRABALHO DO CARTOGRAFO Virginia Kastrup* A cartografia é um método formulado por Gilles Deleuze € Felix Guattari (1995) que visa acompanhar um processo, endo representar um objeto. Em linhas gerais, trata-se sempre de inves- tigar um processo de produgao, De safda, a ideia de desenvolver 0 método cartogréfico para utilizagdo em pesquisas de campo no estudo da subjetividade se afasta do objetivo de definir um con- Junto de regras abstratas para serem aplicadas, Nao se busca esta- belecer um caminho linear para atingir um fim. A cartografia é sempre um método ad hoc. Todavia, sua construgo caso a caso ndo impede que se procurem estabelecer algumas pistas que tém em vista descrever, discutir e, sobretudo, coletivizar a experiéncia do cartégrafo. A pista que tomamos aqui diz respeito ao funcionamento da atengo durante 0 trabalho de campo. Nao se trata de buscar uma teoria geral da atengdo, A ideia é que, na base da construgo de conhecimento através de um método dessa natureza, ha um tipo de funcionamento da atenco que foi em parte descrito por S. Freud (1912/1969) com o conceito de atengao flutuante e por H. Bergson (1897/1990) com 0 conceito de reconhecimento atento. Através do recurso a esses conceitos, bem como a referéncias ex- * Agraclego 20s companheiros do grupo de pesquisa Cognigio e Subjetividade {eem especial aos amigos André do Birado ¢ Eduardo Passos, pelas discusses €esugestées que acompanharam aelaboracio deste texto, O texto é resultado do projeto de pesquisa Atencio. invenga0 na produgao coletiva de imagens, apoiado pelo CNPq, trafdas do campo das ciéncias cognitivas contemporineas, 0 obje~ tivo é analisar a etapa inicial de uma pesquisa, tradicionalmente denominada “coleta de dados”. Ocorre que, do ponto de vista dos recentes estudos acerca da cognicdo numa petspectiva constru- tivista, nao ha coleta de dados, mas, desde o inicio, uma produgao dos dados da pesquisa. A formulagdo paradoxal de uma “produ- do dos dados” visa ressaltar que hé uma real produgdo, mas do que, em alguma medida, ja estava lé de modo virtual’ HA dois pontos a serem examinados. O primeiro diz. res- peito a prépria fungio da atengdo, que nao & de simples selegao de informagées. Seu funcionamento ndo se identifica a atos de focalizagao para preparar a representagao das formas de abjetos, mas se faz através da deteccao de signos e forcas circulantes, ou seja, de pontas do processo em curso. A detecedo ¢ a apreensao de material, em principio desconexo e fragmentado, de cenas e dis- cursos, requerem uma concentragdo sem focalizacao, indicada por Gilles Deleuze no seu Abécédaire através da ideia de uma aten- Gao a espreita, cujo funcionamento vamos procurar elucidar. O segundo ponto é que a atengdo, enquanto processo complexo, pode assumir diferentes funcionamentos: seletivo ou flutuante, focado ou desfocado, concentrado ou disperso, voluntério ou involuntério, em varias combinagdes como selecdo voluntétia, flutuaeao invo- luntéria, concentragao desfocada, focalizagao dispersa, etc. Em- bora as variedades atencionais coexistam de direito, elas ganham onganizagaes e proporgdes distintas na configuracao de diferentes politicas cognitivas (Kastrup, 2005). Chamamos de politica cognitiva um tipo de atitude ou de relagdo encarnada, no sentido de que ndo é consciente, que se " Occonceito de virtual 6empregado ain sentido que lhe confereH. Bergson (1897/1950; 1919/1990).0 virtual se aula segundo um processo deer {foe de dferenciagdo, Ness sentido, istngve-se do posivl, que se realiza ttravés de um process de imtagioe de semelhanga, Par. distngio det, thadaente vsta-aulepossve-ealf. Deleuze (1966) Um bom exempa da atalizagto de umn virualidade ~como produg de algo que jf estava 1a 6 a produ das mlos de um pianist através de reptids teins, 3 estabelece com o conhecimento, com 0 mundo e consigo mesmo. ‘Tomar o mundo como fornecendo informagées prontas para serem apreendidas é uma politica cognitiva realista; tomé-lo como uma invengdo, como engendrado conjuntamente com 0 agente do conhecimento, é um outro tipo de politica, que denominamos construtivista. Nesse sentido, realismo e construtivismo nao so apenas posigdes epistemoldgicas abstratas, mas constituem ati- tudes investigativas diversas, reveladas, conforme veremos, em diferentes atitudes atencionais. Trata-se aqui de ressaltar que a tengo cartogréfica ~ ao mesmo tempo flutuante, concentrada aberta ~ ¢ habitualmente inibida pela preponderdncia da atencio seletiva. O problema do aprendizado da atencao do cartégrafo € também um caso de criagio do que ja estava Ié, tal como aparece nanogao de aprendizado por cultivo, formulada por Depraz, Varela e Vermersch (2003). Nos estudos sobre atengo realizados por W. James (1890/ 1945), que sio até hoje referéncia nessa drea de investigagio, a seleedo € considerada sua fungdo por exceléncia. A selego ope- rada pela atengo é movida pelo interesse e concorre para a ago cficaz. Esse modo de compreender a atengio, como possuindo ‘uma fungio seletiva orientada pelo interesse e aplicada na agio, foi assimilado pela grande maioria das abordagens psicol6gicas, incidindo ainda hoje sobre os recentes estudos sobre o TDA = trans- tomo de déficit de atengdo. Na atualidade, o exerefcio da forca da vontade evocado para 0 tratamento de tais quadros cognitivos que, no contexto de certas técnicas terapéuticas e, aliado a medi- ‘camentos, configura o que vem sendo chamado de biologia moral da atengio (Caliman, 2006; Lima, 2004). Todavia, a questio da atengiio do cartégrafo coloca um outro problema, que diz respeito a um funcionamento nao recoberto pela fungdo seletiva, O pré- prio James reconheceu a flutuagio da conseiéneia ¢ da atengao ao propor 0 conceito de fluxo do pensamento. James comparou o fluxo do pensamento a0 vo de um passaro que desenha 0 céu com seus movimentos continuos, pousando de tempos em tempos em certo lugar. Voos e pousos diferem quanto & velocidade da ‘mudanga que trazem consigo (James, 1890/1945, p.231). O pouso 34 nao deve ser entendido como uma parada do movimento, mas como ‘uma parada no movimento, Voos € pousos conferem um ritmo a0 Pensamento, e a tengo desempenha af um papel essencial A entrada do aprendiz de cartgrafo no campo da pesquisa coloca imediatamente a questio de onde pousar sua atengdo. Em geral ele se pergunta como selecionar 0 elemento ao qual prestar atengio, dentre aqueles miltiplos e variados que Ihe atingem os sentidos e o pensamento. A pergunta, que diz respeito ao momen- to que precede a selegao, seria melhor formulada se evidenciasse © problema da prépria configuracdo do territério de observagao, {J que, conforme apontou M. Merleau-Ponty (1945/1999), a aten- Go nao seleciona elementos num campo perceptivo dado, mas configura o proprio campo perceptivo. Uma outra questao diz res- peito a como prossegue 0 funcionamento atencional apés o ato seletivo. As duas perguntas — que incidem sobre 0 antes e o depois da selegao — indicam a complexidade e a densidade da chamada “coleta de dados”, sublinhando a dimensao temporal da atengao do cartégrafo, a produgiio dos dados da pesquisa e o alcance de uma pesquisa construtivista. Dentre as contribuigdes te6ricas sobre variedades atencio- nais envolvidas no estudo da subjetividade, destaca-se ade S. Freud sobre @ atengdo flutuante, apresentada no conjunto de seus “estu- dos sobre técnica”. No texto “RecomendagGes aos médicos que exercem a Psicandlise”, Freud (1912/1969) aponta que a mais importante recomendago consiste em ndo dirigir a atengéo para algo especifico e em manter a atenco “uniformemente suspensa”. Freud argumenta que 0 grande perigo da escuta clinica é a selegao do material trazido pelo paciente, operada com base em expec- tativas e inclinagdes do analista, tanto de natureza pessoal quanto te6rica. Através da selegdo, fixa-se um ponto com clareza parti- culare negligenciam-se outros. A indesejdvel selegao envolve uma atengio consciente ¢ deliberadamente concentrada. Mas Freud observa com preciso que “ao efetuar a selecdo € seguir suas ex- pectativas, estard arriscado a nunca descobrir nada além do que ja sabe; , se seguir as inclinagdes, certamente falsificard o que possa perceber” (Freud, 1912/1969, p.150). Para Freud a atengao cons- 35 ciente, voluntéria e concentrada, € 0 grande obsticulo a descober- ta. Por outro lado, recomenda a utilizagdo de uma atengio onde a selegdo se encontra inicialmente suspensa, cuja definigio é “pre: tar igual atengio a tudo”. Essa atengdo aberta, sem focalizacio espeeifica, permite a captagdo no apenas dos elementos que for- mam um texto coerente e & disposi¢ao da consciéneia do analista, ‘mas também do material “desconexo e em desordem castica’” Em seu sentido mais conhecido, a atengao flutuante é a re~ gra técnica que, do lado do analista, corresponde & regra de asso- ciagio livre da parte do analisando, permitindo a comunicagao de inconsciente a inconsciente (Laplanche ¢ Pontalis, 1976). O uso da atengao flutuante significa que, durante a sessio, a atengio do ‘analista fica aparentemente adormecida, até que subitamente emer- ‘ge no discurso do analisando a fala inusitada do inconsciente, Em seu carter desconexo ou fragmentado, ela desperta a atengio do analista, Mesmo que nao seja capaz. de compreendé-la, 0 analista Janca tais fragmentos para sua propria meméria inconsciente até que, mais a frente, eles possam vir a compor com outros e ganhar algum sentido. Falando de um inconsciente receptor, a énfase do texto freudiano recai na atengao auditiva. Fazendo um balango acerca da contribuigio do conceito de atengdo flutuante para a discussto da atengio do cart6grafo, destaca-se a proximidade quanto & énfase na suspensio de incli- nagées expectativas do eu, que operariam uma selegio prévia, Jevando a um predominio da recognigao e consequente obtura- io dos elementos de surpresa presentes no processo observado. Além disso, a atengao seletiva cede lugar a uma atengao flutuan- te, que trabalha com fragmentos desconexos. Por outro lado, identifica-se um limite da formulagdo freudiana, que € voltada unicamente para a atengio auditiva. A utilizaeao pelo cartégrafo de outras modalidades sensoriais além da audigao, como é 0 caso da visio, exigiré explorar um desdobramento da contribuigio freudiana. Outro limite diz respeito ao aprendizado da atengio flutuante, que no recebe formulaciio especifica por parte de Freud e que se reveste de especial importincia para 0 avango do método cartogrifico. 36 estudo da atengao desenvolvido no campo das ciéneias cognitivas contemporiineas, mais especificamente nos estudos da consciéncia, também contribui para o entendimento da atengdio do cartégrafo. Seguindo uma abordagem fenomenolégica, Pierre Vermersch (20022; 2002b) destaca 0 carter de mobilidade da atengao, a qual é definida como o fundo de flutuagao da cognicao. E no estudo da atengaio que encontramos a possibilidade de pensar a modulagdo da intencionalidade. Segundo Vermersch a tengo opera mutagGes que modificam a estrutura intencional da consciéncia, O conceito de intencionalidade esta na base do enten- dimento da cogni¢o como relagao sujeito-objeto, mas 0 estudo da atengao revela uma nova faceta da consciéncia, nio como intencionalidade, mas como dominio de mutagées, inclusive da propria intencionalidade. interessante nessa formulagao € situar a flutuagaio como uma caracteristica da atengéo em geral, ¢ nao, como Freud, como um tipo espectfico de atengo ~ a flutuante. Pelo caminho das ciéncias cognitivas, a atengao, como flutuagio de base da cognigao, pode explicar as duas modalidades anterior mente citadas—a seletivae a flutuante. A partir de sua plasticidade e de sua capacidade de transformagao através do exercicio, € possivel abordar também 0 problema do aprendizado da atengio (Kastrup, 2004). conceito de suspensio foi formulado por E. Husserl no contexto do método da redugaio fenomenolégica, que significa a colocagio entre parénteses dos juizos sobre 0 mundo. A suspen- sfo constitui uma atitude de abandono, ainda que temporétio, da atitude recognitiva, dita natural pela fenomenologia. Trata-se de uma suspensdo da politica cognitiva realista, onde 0 conheci- mento se organiza a partir da relacdo sujeito-objeto. Depraz, Varela e Vermersch (2003) desenvolvem o que de- nominam de pragmética fenomenolégica. Sublinham que Husserl formulou teoricamente o método da redugdo, sem, contudo, ter se colocado o problema de suia implementagaio concreta. Os autores argumentam que é preciso desenvolver um verdadeiro métado de pesquisa da experiéncia e para isso descrevem e discutem algumas priticas como a meditago budista, a entrevista de explicit 4 Visio estereoscépica © a sessiio de psicandlise. Comentando a ‘iltima, observam que a suspensio 6 um gesto cognitive que re- freia 0 fluxo do pensamento do analista, para que este possa seguir © discurso do paciente. Realizada no inicio da sesso, a suspensio néio se mantém até o final, Durante a sessdo, reflexdes ou emogdes do analista emergem, atravessando 0 campo cognitivo e devem ser reiteradamente colocadas de lado durante 0 proceso de escu- ta, Outro elemento que interrompe a suspensio é a polarizacio dos pensamentos do analista por alguma formulaedo tedrica, que evocada pelo material trazido pelo analisando. Ressalta-se entio um movimento de vaivém, articulando os sucessivos gestos de suspensio ¢ as interrupgées subsequentes. Apesar de tais difi- culdades na prética conereta, a atengio flutuante fica colocada como um horizonte técnico. Outro ponto destacado é que a escuta clinica é situada, ¢ isso num duplo contexto: 0 microcontexto da sesstio € 0 macrocontexto do proceso analitico como um todo. No caso da pesquisa cartogréfica, pode-se situar 0 macrocontexto ‘como a dinémica de transformago do problema geral da pesquisa € 08 microcontextos como a autodefinigio de microproblemas ‘a0 longo das consecutivas visitas ao campo. Esses dois contextos funcionam de acordo com uma Idgica recursiva, engendrando-se de modo reciproco. Depraz, Varela e Vermersch apontam que o gesto de sus- pensiio desdobra-se em dois destinos da atencio. O primeiro indi- ca uma mudanga da direcdo da atenedo, Habitualmente voltada para o exterior, ela se volta para o interior. O segundo destino implica uma mudanga da qualidade ou da natureza da atengao, ‘que deixa de buscar informagdes para acolher o que Ihe acomete. A atengiio no busca algo definido, mas torna-se aberta ao encon- tro. Trata-se de um gesto de deixar vir (leiting go). Tanto a aten- Go a si quanto o gesto atencional de abertura e acolhimento ocor- rem a partir da suspensio, Sendo assim, a suspensio, a rediregZio € 0 deixar vir nao constituem trés momentos sucessivos, mas se encadeiam, se conservando e se entrelacando, No caso da cartografia, a mera presenga no campo da pesquisa expde 0 cartégrafo a imtimeros elementos salientes, que 38 parecem convocar a atengio. Muitos deles no passam, entretan- to, de meros elementos de dispersfio, no sentido em que produ- zem um sucessivo deslocamento do foco atencional. Portanto, hi que haver cuidado, pois, como afirmou Freud, a suspensao deve zgarantir que, no principio, tudo seja digno de atengo. Mas para Freud a atengio flutuante segue com o ajuste fino da sintonia inconsciente, Sio as manifestagdes do inconsciente que desper- tam a atengfio aberia do analista, suscitando o gesto de prestar atengio. A abertura da atengiio do cart6grafo também nao signifi- cca que ele deva prestar atengio a tudo o que Ihe acomete. A cha- mada reditegdo , nesse sentido, uma resisténcia aos dispersores. ‘Numa linguagem fenomenolégica, a suspensio é 0 ato de desmontagem da atitude natural, que é 0 regime cognitivo orgs nizado no par sujeito-objeto e que configura a politica cognitiva realista. E importante sublinhar que, quando sob suspensao, a aten- go que se volta para o interior acessa dados subjetivos, como Interesses prévios e saberes acumulados, ela deve descarté-los € entrar em sintonia com o problema que move a pesquisa. A aten- ef0 a si é, nesse sentido, concentragio sem focalizagio, abertura, configurando uma atitude que prepara para o acolhimento do inesperado, A atengio se desdohra na qualidade de encontro, de acolhimento, As experiéneias vao entio ocorrendo, muitas vezes fragmentadas ¢ sem sentido imediato. Pontas de presente, mo- vimentos emergentes, signos que indicam que algo acontece, que hh uma processualidade em curso. Algumas concorrem para ‘modular o préprio problema, tornando-o mais concreto © bem colocado, Assim, surge um encaminhamento de solugdo ou uma resposta ao problema; outras experiéneias se desdobram em microproblemas que exigirdo tratamento em separado, Signos so acolhidos numa atitude atencional de ativa, receptividade. Sao especialmente interessantes quando expoem um problema e forgam a pensar. Nesse caso, constituindo © que F. Varela (1995) chamou de breakdown, eles exigem que a tengo se detenha, produzindo uma desaceleragao de seu movi- mento. A atengio tateia, explora cuidadosamente 0 que Ihe afeta sem produzir compreensio ou aco imediata. Tais exploragdes 39 mobilizam a mem@ria e a imaginagio, 0 passado e o futuro numa mistura dificil de discernir. Todos esses aspectos caracterizam 0 funcionamento da atencao do cartégrafo durante a produgao dos dados numa pesquisa de campo. Um ponto nao abordado por Depraz, Varela e Vermersch (2003), e que também nao havia sido por Freud, diz respeito ao funcionamento da atengdo apés esse momento de acolhimento do elemento problemético. Conforme veremos, € no trabalho operado pela ateng’o que podemos iden- tificar mais incisivamente a produgo de dados de uma pesquisa e a dimensdo construtivista do conhecimento. Quatro variedades da atengao do cartégrafo: © rastreio, 0 toque, 0 pouso e o reconhecimento atento ‘Tomando como ponto de partida a ideia de uma concen- tragtio sem focalizagtio, parece ser possivel definir quatro varie~ dades do funcionamento atencional que fazem parte do trabalho do cartégrafo, Sio eles 0 rastreio, o toque, 0 pouso € 0 reconhe- cimento atento. rastreio € um gesto de varredura do campo, Pode-se dizer que a atengdo que rastreia visa uma espécie de meta ou alvo mével. Nesse sentido, praticar a cartografia envolve uma habili- dade para lidar com metas em variago continua, Em realidade, entra-se em campo sem conhecer o alvo a ser perseguido; ele sur- gird de modo mais ou menos imprevisivel, sem que saibamos bem de onde. Para 0 cartégrafo 0 importante € a localizagao de pistas, de signos de processualidade. Rastrear € também acompanhar mudancas de posigdo, de velocidade, de aceleracdo, de ritmo. O rastreio nao se identifica a uma busca de informagio, A atengio do cartégrafo é, em principio, aberta e sem foco, e a concentragio se explica por uma sintonia fina com © problema. Trata-se ai de uma atitude de concentragio pelo problema ¢ no problema, A tendéncia € a eliminagao da intermediacao do saber anterior e das inclinagdes pessoais. O objetivo ¢ atingir uma atengdo movente, imediata e rente ao objeto-processo, cujas caracteristicas se apro- ximam da percepeao héptica. 40 A percepgiio hiptica foi estudada no dominio do tato por G. Revesz (1950). O tato é uma modalidade sensorial cujos recep- tores esto espalhados por todo o corpo e que possui a qualidade de ser uma préximo-recepeao, sendo seu campo perceptivo equi- valente & zona de contato, Diferente da percepedo tétil passiva, em que a estimulagdo é limitada ao tamanho do estimulo, a per- cepgio haptica é formada por movimentos de exploragiio do ‘campo perceptivo tétil, que visam construir um conhecimento dos objetos. A percepsao haptica € entéo um bloco tatil-sinestésico que envolve uma construgdo a partir de fragmentos sequenciais, Ela mobiliza a atengdo e requer uma ampla memsria de trabalho para que, ao fim da exploracdo, haja uma sintese, cujo resultado € um conhecimento do objeto (Hatwell, Streri e Gentaz, 2000), Estendendo o aleance do conceito a outros dominios sen- soriais, Deleuze distingue a percepeao héptica da percepeao ética. ‘A percepgio dtica se caracteriza pela organizago do campo em figura e fundo. A segregacao autéctone faz. com que a forma salte do fondo e instala uma hierarquia, uma profundidade no campo. Além do dualismo figura-fundo, faz parte da percepeio Gtica a organizagio cognitiva no dualismo sujeito-objeto, que configura uma visio distanciada, caracterfstica da representa. O stico naio remete apenas ao dominio visual, mas este, em fungZo de suas caracteristicas, € af dominante. Jé a percepeio héptica é uma visio préxima, em que no vigora a organizacio figura-fundo. Os componentes se conectam lado a lado, se localizando num ‘mesmo plano igualmente préximo, O olho tateia, explora, rastreia, © mesmo podendo ocorrer com 0 ouvido ou outro érgtio. De todo modo, a distineZo mais importante aqui é entre percepeto haptica € percepeiio dtica, e nao entre os diferentes sentidos, como a vi- so, a audigdo e o tato. Para Deleuze, 0 movimento da percepgaio haptica se aproxima mais da exploragdo de uma ameba do que do deslocamento de um corpo no espago. O movimento da ameba regido por sensages diretas, por agdes de forgas invisiveis como presi, estiramento, dilataglo e contrago, Nao € 0 movimento que explica a sensago, mas, ao contrério, é a elasticidade da sen- sago que explica o movimento (Deleuze, 1981, p.30). Como uma 41 antena parabslica, a atengao do cart6grafo realiza uma exploragao assistematica do terreno, com movimentos mais ou menos alea- t6rios de passe e repasse, sem grande preacupacdo com possiveis redundancias. Tudo caminha até que a ateng%o, numa atitude de ativa receptividade, € tocada por algo. © toque € sentido como uma répida sensagiio, um pequeno vislumbre, que aciona em primeira mao o processo de seleco. A ideia de uma selego independente do interesse foi tematizada por E, Husserl no conceito de notar, que diz.respeito ao contato leve com tragos momentaneos ou com partes mais elementares que um objeto e que possuem forga de afetagao. O que € notado pode tor- nar-se fonte de dispersio, mas também de alerta®, Algo se des- taca e ganha relevo no conjunto, em princfpio homogéneo, de elementos observados. O relevo nao resulta da inclinagaio ow deli- beragao do cart6grafo, ndo sendo, portanto, de natureza subjetiva. ‘Também ndo é um mero estimulo distrator que convoca o foco e se traduz, num reconhecimento automatico. Algo acontece € exige atencdo. O ambiente perceptivo traz uma mudanga, evidenciando uma incongruéncia com a situacdo que € percebida até entao como ere eae atengdo renovadamente concentrada. O que se destaca nao é pro- priamente uma figura, mas uma rugosidade, um elemento hetero- géneo, Trata-se aqui de uma rugosidade de origem exégena, pois 0 elemento perturbador provém do ambiente. Segundo a distin- go estabelecida por Suely Rolnik (1999; 2006) a subjetividade do cartégrafo € afetada pelo mundo em sua dimensaio de matéria- forga e nao na dimensao de matéria-forma. A atengdo é tocada nesse nivel, havendo um acionamento no nivel das sensacdes, € niio no nivel das percepgGes ou representacdes de objetos ‘Numa linguagem anglo-saxonica, a psicologia cognitiva denomina mismatch 0 fendmeno de itrupeao de algo no campo perceptivo que instala uma situago de decalagem em relacdo a0 estado cognitivo anterior. A decalagem significa um desnfvel na * Para a classificaco dos gestos em Husserl, ef. Vermersch, 2002 e 2002 e E, Husserl, De la sinthése passive. Grenoble, JérSme Milon, 1998. 42 percepgiio presente. E o mismatch que esté na origem da captura reflexa, imediata e irrefletida, da atengio (Mialet, 1999). A aten- io do cart6grafo € capturada de modo involuntério, quase refle- Xo, mas nilo se sabe ainda do que se trata. Tem lugar uma reagio de orientago. Como observado nos animais, os receptores sen- soriais se voltam para a fonte da mudanga. B preciso ver 0 que est acontecendo. © toque pode levar tempo para acontecer e pode ter dife~ rentes graus de intensidade. Sua importancia no desenvolvimento de uma pesquisa de campo revela que esta possui méiltiplas entra~ das e nao segue um caminho unidirecional para chegar a um fim determinado. Através da atengo ao toque, a cartografia procura assegurar 0 rigor do método sem abrit mao da imprevisibilidade do processo de produgao do conhecimento, que constitui uma exigencia positiva do processo de investigacio ad hoc. gesto de pouso indica que a percepeZo, seja ela visual, auditiva ou outra, realiza uma parada e 0 campo se fecha, numa espécie de zoom. Um novo territério se forma, 0 campo de ob- servagio se reconfigura. A atengio muda de escala. Segundo ‘Vermersch (2002), mudamos de janela atencional. No ambito dos estudos da atengo, a nogao de janela atencional serve para marcar que existe sempre um certo quadro de apreensio. Ha um gesto que delimita um centro mais pregnante, em tomo do qual se organiza momentaneamente um campo, um horizonte, enfim, uma periferia, A janela constitui uma referencia espacial, mas nao se limita a isso. Significa, antes de tudo, uma referencia ao problema dos limites e das fronteiras da mobilidade da ateneao. A t6nica do conceito € a dindmica da atengao, visto que hé mobilidade no seio de cada janela e também passagem de uma janela para outras, {que coexistem com a primeira, embora com um modo diferente de presenca, Vermersch enumera cinco janelas-tipo, pautadas em suportes historicamente relacionados a préticas cognitivas, téeni- cas e culturais, Sao elas a joia, a pégina do livro, a sala, 0 patio ea paisagem. A primeira é uma janela micro, que funciona na escala da atividade do joalheiro, da bordadeira e do leitor minucioso. E ‘uma atengZo que se caracteriza por uma atividade eminentemente 4B focal. Sem se distribuir e percorrer outros espagos além daquele visado, ela aumenta a magnitude do enquadramento e inibe as bordas do campo perceptivo. Sua tradugdo comportamental 6 a cessacio dos movimentos. Um de seus tragos caracteristicos & que ela € capaz de produzir o fendmeno de cegueira atencional (Mack e Rock, 1998), que consiste na eliminagao absoluta do entorno, ou seja, do que esté fora do foco. A segunda ¢ a janela~ pagina, através da qual se faz. uma entrada no campo perceptivo, seguida de movimentos de orientagdo, comportando jé indicios de distribuigao da atengdo. A terceira é a janela-sala, que jé permite 4 atengio dividida. Comporta focalizagdo, mas também assimila ‘uma multiplicidade de partes com graus de nitidez diferenciados. Aparece como ponto novo 0 movimento da cabega e do proprio corpo no espago. A janela-patio € tipica das atividades de deslo- camento e orientagao. Envolve detecedo e € preponderante na atividade do cagador. A janela-paisagem & uma janela panoramica, capaz de detectar elementos préximos e distantes e conecté-los através de movimentos répidos. Cada janela cria um mundo e cada uma exclu momenta- neamente as outras, embora outros mundos continuem copre- sentes. Cada visada através de uma janela da lugar, em sua escala, aos diversos gestos atencionais, possibilitando também mudangas de nivel. Cabe sublinhar ainda que 0 movimento que chamamos de zoom niio deve ser confundido com um gesto de focalizagio. Apenas a janela-micro é uma janela eminentemente focal. Quan- do a atengao pousa em algo nessa escala, hd um trabalho fino preciso, no sentido de um acréscimo na magnitude a na intensi- dade, 0 que concorre para a redugao do grau de ambiguidade da percepeao. De todo modo, é preciso ressaltar que em cada mo- mento na dinamica atencional ¢ todo o territério de observagao que se reconfigura, © reconhecimento atento é 0 quarto gesto ou variedade atencional. O que fazemos quando somos atraidos por algo que obriga 0 pouso da atengio e exige a reconfiguracdo do territério da observaedo? Se perguntamos “o que € isto?” saimos da suspen- sio e retornamos ao regime da recognigao. A atitude investigativa 44 do cartégrafo seria mais adequadamente formulada como um “vamos ver 0 que esté acontecendo”, pois 0 que esta em jogo € acompanhar um proceso, ¢ nao representar um objeto. E preciso entio calibrar novamente o funcionamento da atengZo, repetindo mais uma vez:o gesto de suspensio. © que visamos com esta parada e como fica 0 funciona~ mento da atengiio neste momento? H. Bergson (1897/1990) colo- cou essa questi, quando de sua discussdo sobre 0 estudo da tengo promovido por T. Ribot’. A atengo havia entio sido defi- nida como um movimento de detengo, mas Bergson argumenta ue isso ndo soluciona o problema de seu funcionamento, mas apenas 0 coloca, pois cabe entdo explicar 0 trabalho do espitito correspondente, ou seja, como a atengo funciona quando ela se ddetém (Bergson, 1897/1990, p.80). Nessa direcdo, propde a dis- tingdo entre 0 reconhecimento automético e o reconhecimento atento. O reconhecimento automstico tem como base ¢ como alvo a ago, Reconhecer um objeto ¢ saber servir-se dele. Os mo- vimentos prolongam a percepgo para obter efeitos iteis © nos afastam da propria pereepgio do objeto. Um exemplo é transitar por uma cidade que conhecemos, onde nos deslocamos com efi- cigncia sem prestar atengiio ao caminho percorrido. Ora, no caso do cart6grafo, € nitido que nao pode se tratar de reconhecimento automatico, pois 0 objetivo € justamente cartografar um territ6- rio que, em principio, nao se habitava. Nao se trata de se destocar numa cidade conhecida, mas de produzir conhecimento ao longo de um percurso de pesquisa, o que envolve a atengao e, com ela, a pr6pria criagio do territério de observacaio. Bergson afirma que 0 reconhecimento atento tem como caracteristica nos reconduzir ao objeto para destacar seus contor- nos singulares. A percepedo € lancada para imagens do passado conservadas na meméria, ao contririo do que ocorre no reconhe- cimento automético, em que ela é langada para a ado futura. Bergson comenta sobre o reconhecimento atento: “enguanto no > Theodor Ribot La Psychologie de l'attention. Paris: Alcan, 1889, 45 reconhecimento automstico nossos movimentos prolongam nossa pereepedio para obter efeitos titeis e nos afastam assim do objeto percebido, aqui, ao contrédrio, eles nos reconduzem ao objeto para sublinhar seus contomos. Daf o papel preponderante, ¢ nao mais, acessério, que as lembrangas-imagens adquirem” (Bergson, 1897/ 1990, p.78). Bergson afirma que sempre que 0 equilibrio sens6- rio-motor é perturbado, ha uma exaltagiio da meméria involun- téria. Constantemente inibida pela consciéncia pritica e util do momento presente, isto é, pelo equilibrio sensério-motor, essa meméria aguarda simplesmente que uma fissura se manifeste entre a impressao atual € 0 movimento concomitante para fazer passar suas imagens (Bergson, 1897/1990, p.75). O interessante E que 0 conceito de reconhecimento atento desmonta a nogo tra- dicional de reconhecimento, pautada na ideia do rebatimento da percepedo numa imagem prévia ou esquema correspondente. A originalidade da anélise bergsoniana € apontar que 0 proceso de reconhecimento nao se dé de forma linear, como um trajeto tinico ou uma marcha em linha reta. Nao se faz através do encadea- mento de percepgdes ou de associagiio cumulativa de ideias. O reconhecimento atento ocorre na forma de circuitos. De modo geral o fendmeno do reconhecimento é enten- dido como uma espécie de ponto de intersegdo entre a percepcao © a memGria, O presente vira passado, 0 conhecimento, reco- nhecimento, No caso do reconhecimento atento, a conexio sen- sério-motora ¢ inibida, Meméria e percepgio passam enti a tra- bathar em conjunto, numa referéncia de mio dupla, sem a inter- feréneia dos compromissos da agao. Para Bergson a meméria no conserva a percepeo, mas a duplica. A cada experién: com um objeto se formam dois registras: a imagem perceptiva e a imagem mnésica virtual. Quando do reconhecimento atento, a meméria dirige a percepgio imagens que se assemelham a ela. Se essas nfo a recobrem totalmente, novo apelo é langado a regides mais afastadas da mem@ria ¢ a operacio pode prosseguir inde- finidamente. grafico do reconhecimento atento (Bergson, 1897/1990, p.83) se articula em torno do objeto percebido ¢ sua imagem- 46 Jembranga, virtual e correspondente’, A partir desses dois pontos io desenhados circuitos sucessivos, cada vez mais amplos, for- jando uma ideia de irradiago progressiva da atencao. O circuit ‘mais amplo corresponde ao sonho. Segundo Bergson nos cir- cuitos acionados no reconhecimento atento “todos os elementos, inclusive o préprio objeto percebido, mantém-se em estado de tenso métua como num circuito elétrico, de sorte que nenhum estimulo partido do objeto € capaz de deter sua marcha nas pro- fundezas do espirito: deve sempre retomar a0 proprio objeto” (Bergson, 1897/1990, p. 83). A percepedo nao segue um caminho associativo operando por adigGes sucessivas e lineares, Através da atengdo, ela aciona circuitos, se afastando do presente em busca de imagens e sendo novamente relangada & imagem atual, que progressivamente se transforma. O tecido da meméria comporta ‘um folheado, assim como o do objeto, que se refaz a cada instante. Ha milltiplos niveis ou planos que tem como efeito desmontar 0 ‘esquema do reconhecimento baseado no principio de correspon- déncia, Atigado pela perturbagdo que opera uma fissura no domi- nio sens6rio-motor, o reconhecimento atento realiza um trabalho de construcao, Percorrendo miiltiplos circuitos em sucessivos re- lances, sempre incompletos, realiza diferentes construgdes, cujo resultado é um reconhecimento sem modelo mnésico preexistente. Enfim o importante do reconhecimento atento, tal como descrito por Bergson, é a revelacdo da construgio da percepeao através do ‘acionamento dos circuitos e da expansio da cogni¢do. A percep- cio se amplia, viaja percorrendo circuitos, flutwa num campo gravitacional, desliza com firmeza, sobrevoa ¢ muda de plano, produzindo dados que, enfim, jé estavam 14, A atengao atinge algo “yirtualmente dado” (Bergson, 1897/1990, p.84), construindo proprio objeto através dos circuitos que a atenedo percorre. «Num texto posterior “Le souvenir du présent et la fausse reconnaissance” & referéncia a0 objeto desaparece. A experiéncia dé lugar a uma bifureagao centre presente e passado, percepcio e meméria, que passam a coexistir. CE H, Bergson L'énergie spiritelle. Paris, PUF, 1990, ry) ‘A atencdo cartografica e a politica cognitiva construtivista A ativagdo de uma atengdo a espreita — flutuante, concen- trada ¢ aberta ~ € um aspecio que se destaca na formagio do cart6grafo. Ativar esse tipo de atenedo significa desativar ou inibir a alengdo seletiva, que habitualmente domina nosso funcionamen- to cognitivo. A nogo de aprendizagem por cultivo, proposta por Depraz, Varela e Vermersch (2003), indica uma nogao de apren- dizagem que nio implica a criago de uma nova habilidade ou competéneia. Trata-se, af também, de ativar uma virtualidade, de potencializar algo que “jé estava 14”. A ateneZo € entendida como um miisculo que se exercita e sua abertura precisa sempre ser reativada, sem jamais estar garantida, O cultivo da atengdo pelo aprendiz de cartégrafo € a busca reiterada de um t6nus atencional, que evita dois extremos: o relaxamento passivo e a rigidez. con- trolada, E nessa mesma direg4o que Deleuze e Guattari (1995) sublinham que a cartografia ndo é uma competéncia, mas uma performance. Ela precisa ser desenvolvida como uma politica cognitiva do cartégrafo. Procuramos demonstrat que a producao dos dados ocorre desde a etapa inicial da pesquisa de campo, que perde assim 0 caréter de uma simples coleta de dados. E preciso sublinhar que esse processo continua com as etapas posteriores, atravessando as analises subsequentes dos dados e a eserita dos textos, continuan- do ainda com a publicacdo dos resultados. Para sermos bastante precisos seria necessério incluir também a circulaeao do material escrito e a propria leitura do mesmo pelos interessados, tudo isso sem falar na contribuicao dos participantes da pesquisa na pro- dugio coletiva do conhecimento, Quisemos, entretanto, apenas discutir, nos limites deste trabalho, que a construgio ocorre desde © momento em que o cart6grafo chega ao campo. Naquele mo- mento ele nao apenas est desprovido de regras metodolégicas, para serem aplicadas, mas faz ativamente um trabalho preparat6- rio. Informagoes, saberes ¢ expectativas precisam ser deixados na porta de entrada, e 0 cartégrafo deve pautar-se sobretudo numa 48 alengio sensivel, para que possa, enfim, encontrar © que no conhecia, embora ja estivesse ali, como virtualidade. Através da descrigao da dindmica atencional, procuramos apontar que a cartografia constitui um método que assume uma perspectiva construtivista do conhecimento, evitando tanto o objetivismo quanto o subjetivismo. Objetivismo e o subjetivismo siio duas faces de uma mesma politica de pesquisa, 0 realismo cognitivo. Além de uma posigio epistemoldgica, o realismo é uma politica cognitiva corporificada em muitos pesquisadores, que por esse motivo parece uma “atitude natural”. A atitude de selecionar informagdes por critérios supostamente objetivos ou subjetivos situa-se nesse contexto, Por sua vez, adotando uma politica construtivista, a atengdo do cartégrafo acessa elementos, processuais provenientes do territ6rio ~ matérias fluidas, forgas, tendenciais, linhas em movimento — bem como fragmentos dis- persos nos circuitos folheados da meméria. Tudo isto entra na composigiio de cartografias, onde 0 conhecimento que se produz, ndio resulta da representacao de uma realidade preexistente. Mas, também ndo se trata de uma posicdo relativista, pautada em interpretagdes subjetivas, realizadas do ponto de vista do pesqui sador, Como defende Bruno Latour (2003) trata-se de um cons- trutivismo que toma a sétio 0s limites do saber e os constrangi mentos da matéria. O cartégrafo é, nesse sentido, guiado pelas diregdes indicadas por qualidades inesperadas e pela virtualidade dos materiais. A construgdo do conhecimento se distingue de um progressivo dominio do campo de investigagio e dos materiais que nele circulam. Trata-se, em certa medida, de obedecer as exigéncias da matéria e de se deixar atentamente guiar, acatando © ritmo e acompanhando a dinamica do processo em questo. Nesta politica cognitiva a matéria nao € mero suporte passivo de um movimento de produgdo por parte do pesquisador. Ela nfo se submete ao dominio, mas expde veios que devem ser seguidos & oferece resisténcia 4 agao humana. Mais que dominio, 0 conhe- cimento surge como composigao. Enfim, 0 método cartogréfico faz do conhecimento un tra- balho de invengio, tal como indica a etimologia latina do termo invenire — compor com restos arqueolégicos. A invencao se dé atra- 49 ‘és do cartégrafo, mas nio por ele, pois ndo hé agente da inven- io. Ocorre que, a0 final, realizando o que Bergson (1934/1979) denominou de movimento retrégrado do pensamento, costuma- ‘mos esquecer 0 lento € laborioso processo de construgio do co- nhecimento, chegando a acreditar que ele nao existiu e, se existiu, foi sem importancia para os resultados a que se chegou. Trata-se de uma ilusio da inteligéncia, que devemos procurar apagar, bem como a ilusio de uma suposta atitude natural. Em seu lugar, pode ser cultivada a atengo cartogréfica que, através da criacao de um territ6rio de observacio, faz emergir um mundo que jé existia como virtualidade e que, enfim, ganha existéncia ao se atualizar. Referéncias BERGSON, H. Matéria e meméria. So Paulo: Martins Fontes, 1990. 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Originalmente publicado em Psicologia & Sociedade, v.19 n.1 Porto Alegre jan./ abr. 2007, p.15-22 ‘ st Pista 3 CARTOGRAFAR E ACOMPANHAR PROCESSOS Laura Pozzana de Barros € Virginia Kastrup A caminho do morro Santa Marta, recebi uma ligagao avisando que minha companheira de entrevista ndo iria, mas que uma colega que tem experiéncia com grupos estaria 14 conosco. Ao me aproximar da escadaria, lugar marcado com todos que iriam participar da entrevista, encontrei ou- tros quatro colegas. Eles estavam vindo da creche e a pi meira frase que disseram foi: Falamos de vocé e vocé apa- receu. Risos e alegria no encontro. Fomos subindo 0 morro pelas vielas do Santa Marta. Gilson estava com um avental colorido que tinha um bolso com livros e a palavra “dinam zador” escrita nas costas. Usava bermuda, chinelo e meia. Levando uma mala de livros, ia falando com alguns com ‘quem cruzava ao longo do caminho. Interessante como era ele que chamava os outros ¢ os cumprimentava, Num certo momento, alguém brincou com ele: Vai viajar? Ele respon- deu algo como: Sim, com a imaginacdo! Foi legal e espiri- ‘ttioso aquele gesto do Gilson, sempre sorrindo e se fazendo ver. Em outro momento: Vai para 0 Circo du Soleil? Ele respondeu: Estou quase ld! Esse modo de fazer carregava ‘uma presenga e anunciava uma prética. Havia uma propa- -gacdo, um contigo no ar, atragdes de atengGes. Logo chega- ‘mos & Biblioteca Comunitéria Sol Nascente e encontramos a Selma com algumas criangas, Fomos para a salinha de dentro, nos sentamos no chao e comegamos a entrevista. "Pessoa que trabalha diretamente com as criangas na biblioteca comunitéria 52 relato anterior desereve a ida a campo de uma pesqui- sadora do projeto Elos na Rede para entrevistar um grupo de dinamizadores das atividades que acontecem nas bibliotecas comunitétias do morro Santa Marta do morro da Mangueira de Botafogo, no Rio de Janeiro. O projeto foi realizado pelo CIESPI = Centro Internacional de Estudos ¢ Pesquisas sobre a Infancia, em 2007-20082, Trata-se de um desdobramento do projeto Rede Brincar e Aprender’, para investigar 0 que vem sendo produzido, em termos de elos, nas priticas realizadas com as criangas em bibliotecas e brinquedotecas comunitérias. Buscamos verificar como o ler e 0 brinear, com as priéticas que os cercam, so dis positivos* na criagdo de elos — elos entre crianga-familia, crianga- escola, crianga-comunidade, crianga-crianga, crianga-leitura, crianga-brincadeira e também elos da crianga consigo mesma, Consideramos também relevantes os elos que vém sendo criados entre comunidade, escola, cultura, dinamizadores, parceiros e fami- lias, em torno do desenvolvimento e do cuidado com eriangas € adolescentes. Esse projeto de pesquisa € trazido & baila neste texto para fazer corpo com uma das pistas para a prética do método da cartografia: a pesquisa cartogréfica consiste no acompanhamento de processos, endo na representagio de objetos. Ao compartilhar aqui o caminhar do pesquisar elos na rede acreditamos que a ago de acompanhar processos seri detectada pelo leitor. Representar objetos — uma paixao da ciéncia moderna A concepgio de uma pesquisa como representagiio de ‘um objeto remonta ao surgimento da ciéneia moderna. Confor- ‘me aponta Isabelle Stengers (1993), a ciéncia moderna emerge * Agradecemos ao CIESPI e em especial Profa, rene Rizzini pelarealizaga0 dda pesquisa e pela oportunidade de compartilhar 0 material produzido, (© Projeto Rede Brincar e Aprender acontece desde 2002. & coordenado por Carla Daniel Sartor, Isabella Massa e Nathercia Lacerda, no CIESPI. + Cf. V. Kastrup e R. Benevides, “As fungdes-movimentos do dispositive na pritica da cartografia”, nesta coletanea. 33 como uma invengdo singular, configurando-se de determinada maneira e portando como uma de suas principais caracteristicas a separucio entre 0 objeto cientifico e 0 cientista. O que confere singularidade & ciéncia moderna é uma prética ciemtifica que se confunde, em grande parte, com a invengao do dispositivo experi- mental, ¢ remonta a Galileu. Através desse dispositivo o cientista busca separar 0 sujeito © 0 objeto do conhecimento. Stengers enfatiza que a experimentago, enquanto prética singular, nfo pressupde, mas cria a diferenga entre sujeito e objeto. Trata-se entao de uma distingdo pritica, € nao filosGfica. Sujeito e objeto nao so categorias transcendentais, mas configuragdes historicas. dispositivo experimental aparece como possibilidade de colo- cago a prova das hipéteses, ou seja, das invengdes ou fiegbes do cientista. Apresentando-se como testemunha fidedigna, ele & ca- paz de provar que tais invengdes ndo so invengdes quaisquer, ‘mas verdadeiras descobertas, A invencio cientifica surge entio como um ato arriscado, visto que pode ser desmentida pelo di positivo. Fica marcado, assim, que € proprio da ciéncia expor-se ativamente ao mundo, a prova dos fatos, ao risco. No contexto da ciéncia moderna, a distingdo entre sujeito e objeto existe para garantir que 0 saber produzido possa ser validado de modo cole- tivo, pela comunidade cientifica, Dois pontos que destacamos na anélise de Stengers: 0 primeiro € que 0 conhecimento dito “abstrato” da ciéncia é na realidade o resultado de praticas concretas. O trabalho com obje- tos purificados através de priticas controladas, a investigagao de lum objeto independente de sta hist6ria e das intimeras conexdes que 0 ligam ao mundo, depende de préticas concretas de isola~ mento de varidveis, essenciais para a reprodugao do fendme- no em laboratério. O segundo ponto é que, num ato irrecusavel- ‘mente politico, a ciéneia acaba por dobrar o poder da invencio contra 0 arbitrério da invengdo. Dito de outra forma, a ciéncia inventa um dispositivo capaz. de, segundo seu ponto de vista, ope- rar a triagem entre a invenedo e o que “nao passa de invengio”. A ciéncia moderna inventa priticas de produgao do conheci- s mento capazes de fazer desaparecer sua origem inventiva sob 0 manto da descoberta cientifica. O dispositivo experimental, con- cebido para realizar a separagdo entre sujeito ¢ objeto, surge como dispositive politico, operando a hierarquizagao das inyengdes, ou, antes, convertendo uma delas na tinica representagdo legitima do fendmeno em questio. O que Stengers faz ver é “a atividade apaixonada dos cien- istas”, “a paixio de fazer hist6ria, de tornar ‘verdadeiramente vverdadeiros’, descobertos, € nio inventados, os seres cujo teste- munho fidedigno 0 laboratério produz” (Stengers, 2000, p.111). ‘Nao se trata de denunciar, mas de sublinhar a invengdo da ciéncia moderna, 0 que permite tirar algumas conclusdes. Uma delas € que ha uma inventividade dispersa, continua e incessante de toda prética cientifica. A hist6ria da ciéncia € marcada por pontos de bifurcagio, por zonas de indeterminagao, por pequenas quebras, {que nos fazem perceber uma espécie de rizoma. Esta imagem se poe a imagem da ciéncia que se faz por trajet6rias e rupturas, tal ‘como apresenta a hist6ria epistemol6gica. Nesse sentido, 0 tra- balho de Stengers se aproxima do de Thomas Kuhn (1978), para quem a ciéneia no é resultado de uma ascese, de uma operagio do pensamento abstrato ou da razio matemética. Para Kuhn o paradigma ¢ um modelo teérico dominante, mas também, e, sobretudo, um conjunto de priticas de constituigao dos enuncia- dos cientificos e da prépria cognigao cientifica. E um conjunto ‘complexo de conceitos, préticas, atitudes ¢ valores que produzem ‘enunciados e também a propria racionalidade. Por fim, seu caré- ter compartilhado identifica a ciéncia como uma pratica histérica € social de construgio do conhecimento. ‘A pair de tais colocagdes insinua-se que a inventividade da cigncia nfo é marcada pela raridade ou pela falta de solugio para um problema, mas € abundante e positiva. O caréter inventivo coloca a ciéncia em constante movimento de transformacao, nao apenas refazendo seus enunciados, mas eriando novos problemas e exigindo praticas originais de investigagao. E nesse contexto que surge a proposta do método da cartografia, que tem como desafio 38 desenvolver priticas de acompanhamento de processos inventivos © de producao de subjetividades. Acompanhar processos — a aposta da cartografia Sempre que o cartégrafo entra em campo hi processos em curso. A pesquisa de campo requer a habitagao de um territério que, em prinefpio, ele nfo habita, Nesta medida, a cartografia se aproxima da pesquisa etnogréfica © langa mio da observacio participante, © pesquisador mantém-se no campo em contato di- relo com as pessoas e seu territério existencial, Conforme aponta Aaron Cicourel (1980), além de observar, o etndgrafo participa, em certa medida, da vida delas, ao mesmo tempo modificando ¢ sendo modificado pela experiéncia etnogrifica. O tipo de atividade © o grau de envolvimento do pesquisador variam, dependendo do grupo, podendo ir da observagiio participante & participagao observante, Segundo Janice Caiafa (2007) uma caracteristica cen- tral da etografia é o fato do pesquisador se incluir, de uma forma problemética, na pesquisa. Isto envolve, além de um nivel de con- vivéncia, 0 problema do tipo de posicao assumida e da relacio que estabelece com os participantes, A ida a campo envolve algum grav de afastamento do meio familiar, © etnd- srafo busca experimentar um esranhamento. E preciso introduzir uma irregularidade na continuidade fami liar, ht uma interrupeo do fio regular do pensamento da vida. A situagio da pesquisa caracteristicamente ofeece arto, ¢€ esse arto que impulsiona © pensa- mento, que tz novidade, Essa € a difculdade que esta em jogo no tabatho de campo ~ ndo necessariamente as agruras figuradas nos predmbulos convencionais (Caiafa, 2007, p48), Afirma ainda: “€ preciso estar disponivel para a exposi ‘edo 2 novidade, quer se a encontre longe ou na vizinhanga, Trata- se de uma atitude que se constréi no trabalho de campo. E que 0 estranhamento nao esta dado, € algo que se atinge, é um processo 56 do trabatho de campo” (p.149). Caiafa sublinha adiante que a relagao com os participantes deve ser de agenciamento, de com- posico entre heterogéneos (Deleuze ¢ Guattari, 1977; Deleuze ¢ Pamet, 1977). O agenciamento é uma telagdo de cofunciona- mento, descrita como um tipo de simpatia. A simpatia no € um mero sentimento de estima, mas uma composi¢&o de corpos en- volvendo afecgtio miitua, Para Caiafa, € essa simpatia que per- mite ao etnégrafo entrar em relago com os heterogéneos que o cercam, agir com eles, escrever com eles. Sio essas também a proposta ¢ a aposta da cartografia. Diferente do método da ciéneia modema, a cartografia nao visa isolar 0 objeto de suas articulagdes histéricas nem de suas conexdes com o mundo. Ao contrério, o objetivo da cartografia é _justamente desenhar a rede de forgas a qual o objeto ou fenémeno em questo se encontra conectado, dando conta de suas modula- ges e de seu movimento permanente, Para isso € preciso, num certo nivel, se deixar levar por esse campo coletivo de forgast Nao se trata de mera falta de controle de varidveis. A auséneia do controle purificador da ciéncia experimental nao significa uma atitude de relaxamento, de “deixar rolar”. A atengdo mobilizada pelo cartégrafo no trabalho de campo pode ser uma via para 0 entendimento dessa atitude cognitiva até certo ponto paradoxal, ‘onde hé uma concentragao sem focalizagiio. O desafio € evitar que predomine a busca de informagio para que entao 0 cartégrafo possa abrir-se ao encontro®, Nesse sentido, usando as palavras de Suely Rolnik, do cart6grafo se espera que ele mergulhe nas inten- sidades do presente para “dar lingua para afetos que pedem passa- gem (Rolnik, 2007, p.23)”, Essa atitude, que nem sempre € facil no inicio, s6 pode ser produzida através da prética continuada do método da cartografia e nao pode ser aprendida nos livros. + L.daEscéssineS. Tedesco, “O coletivadeforgs como plano de experdncia cartogréfca”, nesta coletinea ; © V. Kasirup, “0 funcionamento da stengao no trabalho do cartgrafo” eB. Passos e A, do Eirado,“Cartografia como dissolugao do ponto de vista do observador” nest coletines 7 Os estudos sobre os processos de produgio de subjetivi- dade tém enfrentado cotidianamente esse desafio, Estudos sobre ‘os movimentos do desejo (Rolnik, 2007), a cognigao inventiva (Kastrup, 2002), a construgio coletiva de politicas publicas de satide (Barros e Passos, 2005a; Barros ¢ Passos, 2005b, Escdssia, 2009), 0 uso da arte em projetos sociais ¢ na reinvengdio existen- cial de pessoas com deficiéncia visual (Kastrup, 2007¢; 2008a), praticas corporais de cuidado de si (Pozzana de Barros, 2008), © aprendizado da capoeira (Alvarez, 2007), entre outros, Falar em investigago de processos exige que se faga uma adverténcia, pois a palavra processo possti dois sentidos muito distintos. © primeiro remete a ideia de processamento, o segundo 4 ideia de processualidade, A nogio de processamento evoca a concepgiio de conhecimento pautada na teoria da informacdo. Nesta perspectiva, a pesquisa é entendida e praticada como coleta € andlise de informagées. Os inputs devem ser processados a partir de regras I6gieas, que so, em tiltima andlise, as regras do método. A cognigio cientifica surge af como um conjunto de competéncias ¢ habilidades, que configuram a ldgica da pesquisa. Segundo as diretrizes do modelo computacional, que representa bem o cientista cognitivista, cabe colocar entre parénteses os fatores ditos extracognitivos, que abarcam tudo que o fenémeno possui de relagdo com a hist6ria, o socius e 0 plano dos afetos, Se, ao contrério, entendemos o proceso como processtia- Tidade, estamos no coragdo da cartografia. Quando tem inicio uma pesquisa cujo objetivo é a investigacdo de processos de produgao de subjetividade, j4 h4, na maioria das vezes, um processo em curso, Nessa medida, 0 cartégrafo se encontra sempre na situagio, paradoxal de comecar pelo meio, entre pulsaces. Isso acontece no apenas porque o momento presente carrega uma histéria anterior, mas também porque o prprio territério presente € por- tador de uma espessura processual. A espessura processual é tudo aquilo que impede que o tertitério seja um meio ambiente com- posto de formas a serem representadas ou de informagdes a serem coletadas. Fm outras palavras, o territ6rio espesso contrasta com © meio informacional raso. 58 No contexto da ciéncia moderna, as etapas da pesquisa — coleta, andlise € discussao de dados — constituem uma série sucessiva de momentos separados. Terminada uma tarefa passa- sea proxima, Diferentemente, o caminho da pesquisa cartogréfica 6 constituido de passos que se sucedem sem se separar, Como © préprio ato de caminhar, onde um passo segue 0 outro num movimento continuo, cada momento da pesquisa traz consigo 0 anterior e se prolonga nos momentos seguintes. © objeto-proces- so requer uma pesquisa igualmente processual e a processuali- dade estd presente em todos os momentos ~ na coleta, na andl za discuss dos dados e também, como veremos, na escrita dos textos, Dentre os passos da pesquisa, examinaremos neste texto a produgo de dados ¢ a escrita do texto. No primeiro caso, fala~ remos de producio de dados e nfo de coleta de dados. Nao se trata de uma mera mudanga de palavras, de apenas evitar 0 vo- cabulério tradicional, mas de propor uma mudanga conceitual, visando nomear, de modo mais claro literal, priticas de pes- quisa que se distinguem daquelas da ciéncia modema cognitivista. Abordaremos também um momento habitualmente ausente dos compéndios de metodologia de pesquisa, que € a escrita do texto com os resultados da investigacdo. Em ambos os momentos destacaremos o carter construtivista da atividade cartogrifica, procurando apontar a dimensao coletiva desta construcio. Para isso retomamos aqui a experiéncia de uma das autoras, que pra- ticou a cartografia no contexto de um projeto que investigou os efeitos da leitura ¢ do brincar em quatro comunidades de baixa renda na zona sul do Rio de Janeiro’. Comegando pelo meio Na primeira reuniao com a equipe do projeto foi colocado que necessitavam de uma pessoa de fora para o desenvolvimento 7 Este projeta foi concluido com a elahorago do relatério Flos na Rede, disponivel no site: www.ciespi.org.br 59 da pesquisa, Ser nova ali indicava a possibilidade de fazer ver € conhecer 0 que ja se fazia, mas no se traduzira ainda numa investigagio sistemética. Nao se partia do zero, mas tudo era ainda vago e abstrato, Tratava-se de conhecer um projeto com cinco anos de vida, povoado por muitas ideias, agdes e pessoas. Ja naquele primeiro contato emergia a necessidade de acompa- har um processo, conhecer aquilo que o produzira e 0 movia até hoje. Formulava algumas questdes, buscava situagdes concre- (as, a investigagiio estava comegando. © que acontece no campo a ser pesquisado? Lé-se e brin- ca-se, principalmente. Mas, para o projeto se desenvolver muitas ages colaboram, Que agGes so estas? Que referenciais tedricos podem ser instrumentos nesta pesquisa? Que autores e conceitos podem nos ajudar na reflexao e na construgao de um texto? Como encaminhar a pesquisa? Respostas foram se esbogando: conhe- cendo 0 que se faz através do modo que ¢ feito, acompanhando de perto as atividades do Rede, lendo o material produzido pela equipe responsdvel, fazendo visitas aos diferentes locais, assim como entrevistas individuais ¢ em grupo. Enfim, produzindo junto um material - fazendo cartografia. O que gera a pritica do Rede Brincar ¢ Aprender em termos de clos? Esse é 0 tema, O que a pesquisa pode dizer? Tsso $6 podemos indicar aps 0 cami- nhar, a partir do presente, Mas, vamos contar do passado? Tam- bem. Um pasado em movimento, que nos atravessa e transforma © futuro a cada instante. Como politica de ag4o, sempre se procurou compartilhar as decisGes © os processos em curso. Assim, além de conhecer 0 projeto através do material produzido nos tiltimos anos (DVDs, relatérios, fotos, etc.) foi combinado um encontro com os parcei- 10s comunitérios ¢ dinamizadores das atividades. Nesse encontro, apresentamos a pesquisa ¢ a nova configuracdo da equipe que faria parte desse processo ~ sempre num clima acolhedor e des- contraido, © tema da pesquisa foi debatido abertamente. O que & “elo” para cada um? E. como podemos fazer para investigi-lo? Qual a melhor forma de fazer a pesquisa de campo e as entrevis- 60 tas? Como organizar as idas a campo? A indicagao de uma parcei- a que trabalhava em uma das comunidades atendidas foi acolhi- da: fazer conversas em grupo, o que poderia evitar uma possivel inibigdo, além de conhecer os espagos e suas hist6rias. Era preciso estar no campo, visitar as diferentes comunidades e ser afetado por aquilo que as afeta, Era preciso “softer dos mesmos sofrimen- tos”, como disse um parceiro da comunidade do Santa Marta, 20 se referir 4 importancia com que pessoas que trabalham nas bi- bliotecas e brinquedotecas sejam da comunidade. Gostariamos de fazer falar aquilo que ainda ndo se encontrava na esfera do ja sabido, acessar a experiéncia de cada um, fazer conexdes, des- cobrir a leitura, a brincadeira, os elos e tudo que vive no eruza- ‘mento € nas franjas desses territérios existenciais, Precisarfamos estar no mesmo plano intensivo. Como cartégrafos, nos aproximamos do campo como estrangeiros visitantes de um territ6rio que nfo habitamos. O territério vai sendo explorado por olhares, escutas, pela s dade aos odores, gostos e ritmos. Foram marcadas as visitas com os parceiros € os dinamizadores locais. Foram passeios longos, guiados pelas coordenadoras e pelos préprios moradores. Os espagos de trabalho foram apresentados em seus contextos € a comunidade ia sendo apresentada & pesquisa no mesmo movi mento que a pesquisa se fazia presente. Essas visitas nao procura- ram por nada especifico, pelo contririo, se faziam numa espécie de atengiio concentrada e aberta. Como coloca Suely Rolnik (2007), 0 cart6grafo se define por um tipo de sensibilidade: “enten- der, para o cartégrafo, no tem nada a ver com explicar € muito ‘menos com revelat. Para ele nao ha nada em cima ~ céus da transcendéncia ~, nem embaixo — brumas da esséncia. © que ha em cima, embaixo e por todos os lados sto intensidades buscando expresso” (p.66), Em resumo, fomos a campo para estar junto © participar daquilo que acontece naquela comunidade; para conhe- cet com a cognigdo ampliada, isto é, aberta ao plano dos afetos. ansibili- ol Pesquisar com criangas No momento da produgao de dados, o método de pesquisa Precisou ser inventivo para poder trocar com as eriangas ¢ tocd-las de algum modo. Desde a primeira vez. que buscamos entrevistar as criangas, nos deparamos com uma dificuldade: elas nao leva- ‘vam muito a sério aquele encontro, respondiam a primeira coisa que Ihes passava pela cabeca e as criangas seguintes repetiain “como papagaios”. Ao serem entrevistadas, muitas se envergo- nhavam e outras nem ligavam, falavam quase sem pensar. Era facil que se distraissem com brincadeiras e conversas com os amigos. Assim, tivemos que pesquisar brincando, brineando de pesquisar: Além do mais, cada campo onde o projeto estava pre- sente possufa caracterfsticas préprias, modos de funcionar que imprimiam um certo ritmo e uma determinada maneira de estar. Esses elementos foram integrados no momento dos encontros, ndo 's6 com as criangas, mas com todos os demais participantes. As vezes faziamos um lanche, outras vezes uma brincadeira, outras escutvamos uma histéria ou passedvamos juntos. Cada canto lum encanto. A seguir apresentamos quatro relatos de como foram esses encontros com as criancas e de como os elos — tema da pes- quisa — foram aparecendo no processo de pesquisar 1) A primeira entrevista aconteceu na comunidade da Rocinha. Estava tudo organizado. A dinamizadora nos recebeu com calor, as criangas gostaram da nossa presenga, Em roda, fomos puxando a conversa. Nada. Nos apresentamos e ali percebi que gravar a entrevista seria complicado, pois muitos falavam a0 mesmo tempo. Ao perguntar o que eles gostavam da brinquedoteca, uvimos: ivro, livro, boneca, boneca, boneca, futebol, bola, dama, dama, boneca, boneca. Depois, a pergunta: Como eles tinham che- gado Id? Minha mae, mae, mae, irmi, silencio, silencio, silencio, Aos poucos as criangas foram parando de responder e comeca- mos a ouvir bolinhas de gude rolando. Um certo burburinho de brincadeira rolando. Como fazer? Com muita preciso, Nathercia, uma coordenadora presente, inventou uma brincadeira onde cada um ficava com uma bolinha de gude, que ia rolando pelas frestas 2 entre os azulejos. Cada um era uma bolinha e todos reunidos brincavam de responder perguntas na hora que as bolinhas se encontrayam. Assim funcionou, eles se auto-organizaram. Bastou comegar para 0 jogo pegar. As criangas se apresentavam, pergun- tayam umas para as outras como tinham chegado ali, 0 que gosta- vam de fazer naquele espago, do que lembravam quando estavam em casa, ete. Uma hora depois, entrevistando as criangas maiores, fo- ‘mos para o lado de fora da sala. Conversamos com as criancas com 0 acordo de brincarmos depois de padeiro-padeira. Assim foi. A brincadeira performatizava a ideia de elos, cada um ia se ligando aos outros, formando uma corrente, Cantivamos uma miisica e inclufamos mais uma crianga na rede. Ao final, ela arrebentava € todos ficavam soltos. Antes de irmos embora, as criangas que tinham sido entrevistadas antes vieram até n6s, di- zendo que tinham uma surpresa. A sala, antes bagungada, estava arrumadissima. Podfamos ver 0 amor delas por aquele espago. Um elo-territorial se fazia presente. 2) No morro Santa Marta, a combinagao era outra. Irfamos, fazer a entrevista no meio de uma programagao de leitura e pintu- ra, Para entrar na roda, levei uma historia, um livro que gostava ‘muito e que gostaria de ler. Uma Pena Uma Saudade, de Francisca Nobrega, hist6ria de amor entre uma menina e um colibri. Apés lida a hist6ria, silencio, Alguns comentaram ter gostado, outros ficaram mudos. Depois, as criangas se distribuiram pelas duas salas do espaco e comegaram a pintar e desenhar, algumas com lépis, outras com pincel e outras com as maos. Fui de um em um fazer perguntas e conversar um pouco. Perguntava nome, idade, como a crianga tinha chegado ali e ficado. Depois ia me interes- sando pelo gostar da crianga, pelo que contava do espago e pelas Jembrangas marcantes. As vezes um livro se fazia presente, um livro lido, levado para casa, ou mesmo um livro criado coletiva- ‘mente. Outras vezes era o passeio o que mais tocava a crianga. O contato com as pessoas também era explicitado. A atengaio que recebia do dinamizador, a amizade e a alegria compartilhada. No 6B primeiro momento, compartilhamos uma pritica comum alli: let. E toda a atmosfera participava do pesquisar. Depois, todos em roda, tomamos um lanche e alguns pediram para serem entrevii tados, Bebel, uma das meninas que frequenta a biblioteca, ficou grande parte do tempo ao meu lado, a entrevistadora do dia. Qua- se sem ser notada, desenhou uma borboleta em sua mio, pegou minha mio ¢ apertou uma contra a outra. Como um carimbo, a borboleta ficou impressa na minha méo, que fiquei muito emo- cionada ao sentir a singeleza daquele gesto. Um elo nascia, com aquela borboleta, entre Laura, Bebel e a biblioteca 3) Na comunidade da Mangueira de Botafogo, no morro Tabajaras, fui até a biblioteca para me fazer conhecer ~ ficar um ouco por li e conversar com as criangas antes da entrevista Cheguei as 14h, como combinado, mas estava todo mundo um pouco atrasado, Uma companheira estava a caminho, a outra havia feito uma faxina no espaco e estava indo tomar um banko. Tudo bem. Entrei no espago da biblioteca, dei umas voltas e sentei & mesa para esperar. Havia um mogo por Id, ajudando na arru- magiio, Logo que me sentei e silenciosamente peguei um livro para ler, ele me perguntou se eu era escritora, Estranhei a pergun- ta, mas gostei de ser chamada para conversar. Falei que nao, que escrevo ¢ Ieio, mas como pesquisadora ¢ leitora. Falei que era psicéloga. Perguntei sobre ele € ele se disse voluntério na biblio- teca. Falou dar uma ajuda quando € preciso e que ali ele era professor de danca para criangas (acho que para adultos também), Ele contou gostar muito da troca que acontecia ali. Acha grati- ficante 0 trabalho e, sobretudo 0 carinho das eriangas. Disse: “Quando as criangas me veem na nua ¢ correm para me abragar, dizendo “Tio!!!” ~ € a parte boa da historia”. Gostei desse papo com o Wilson (acho que seu nome é esse). Isabella, uma das coordenadoras, chegou quase as 15h. Deixou as coisas para o lanche no andar de cima e desceu para nos encontrar. Trouxe consigo as ilustragées para montar uma expo- sigao de desenhos de autores latino-americanos. Lindas. Como 0 tempo era curto e nao tinhamos programado como expé-las, resol- 64 ‘vemos selecionar as em preto e branco e deixar as coloridas para um outro dia, Botamos as ilustragbes escolhidas expostas sobre a mesa. Gabriela, responsavel pela dindmica dali, falow ter chama- do as criangas, fazendo também um pequeno cartaz que estava na porta do prédio do centro comunitério, anunciando trés coisas: uma exposi¢ao, um lanche e um enigma ~ Quem é Laura? Achei curiosa aquela formulagao e fiquei atenta com o que viria a seguir. ‘Aos poucos, as criangas foram chegando ¢ se colocando na sala de fora, ao lado da biblioteca comunitéria. Comegamos a reunir os presentes numa grande roda, sentados em cadeiras. Eram aproximadamente 25 pessoas, contando conosco, criangas mais velhas e criangas bem pequenas. Comegamos o papo, falan- do um pouco dos tltimos encontros, recontando a historia dali € lembrando que eu j4 havia estado com alguns deles. Depois, surgiu a pergunta de se alguém sabia quem eu era, o que eu fazia. Foi reforgado 0 enigma: Quem é Laura? Algumas criangas come- garam a falar: escritora, ilustradora... Lembrei do mogo que havia perguntado se eu era escritora. Foi dada uma dica: ela cuida de gente e também daquilo que as pessoas falam. Alguns falaram: médica, escritora, bidloga, professora. Havia certa bagunca a0 fazerem comentarios sobre quem cu era. Mas havia concentracao também, Com mais algumas dicas chegaram: eu era psicéloga. Falei um pouco sobre isso e que eu também era pesquisadora, Ia perguntar sobre o que eles faziam naquele espaco, para poder escrever sobre 0 trabalho. As ilustragées foram sendo apresen- tadas. A proposta era ir & sala ao lado, em duplas, escolher uma ilustragio, olhé-la ¢ depois contar um pouco sobre ela, fazendo uma leitura do desenho, Houve certa timidez no infcio, mas depois seguiu bem. Depois de uma rodada de histérias, em que cada um fa- lou da ilustragao escolhida, fomos trazendo o lanche. Eu tinha um compromisso com hora marcada em Copacabana e precisei sair meio correndo. Pena! Na hora que dei tchau, gostei de ouvi-los falar juntos com ritmo e em alto e bom tom meu nome: Lau-rat tan tan tan! Lau-ra! tan tan tan! Deu uma forte impressao que eles tinham me conhecido um pouco. Rolou um elo entre nds. Penso. 65 Duas semanas depois voltei I4 para fazer as entrevistas. Organizamos uma atividade com ilustragBes coloridas. Logo em seguida, formou-se voluntariamente o primeiro grupo para a entre~ vista, com quatro criangas. As outras foram lanchar, Em segui- da, um outro grupo se apresentava € segufamos entrevistando. As ctiangas estavam esperando para conversar, queriam contar de si © daquilo que gostavam na biblioteca comunitéria, Podia-se per- ceber entusiasmo de estar ali participar daquele tervitorio. Um elo com a pritica. Com um gravador, fomos brincar de repérter ~ assim nos colocamos. Ao perguntar, fazfamos uma certa cena, dando importancia ao momento. As criangas falavam com serie- dade ¢ atengdo as perguntas, respeitando a hora do outro falar. Fizemos perguntas mais objetivas, para conhecer nomes, idades © como eles haviam chegado naqueles espagos. Mas famos inves- tigando o gosto por aquele trabalho na biblioteca, com perguntas que despertavam a meméria ¢ os afetos, como: Se voces fossem daqui para outro lugar, 0 que voces levariam? Como voce conta- ria para um amigo 0 que tem nesse espago? Foi surpreendente a fala de um menino de 10 anos, quando foi perguntado sobre o que mais gostava. “Ler, quero ler todos os livros daqui. Se eu pudesse levaria a estante toda para a minha casa”, E um outro: “O que mais gosto € conhecer gente, gosto dos dias de passeio e quando temos visitas”. O elo com a dinamizadora e com as outras crian- as era verbalizado o tempo todo, falando de amizade e atencao. ‘Ao final, era notével como gostaram do momento-entrevista. 4) Na comunidade do Horto, a primeira combinacao para encontrar as criangas ndo havia dado certo, Chegamos as 10 horas na ladeira da Margarida, que havia sido 0 local combinado, mas nenhuma crianga aparece. Conseguimos falar com a Joana, ex-dinamizadora do trabalho do Rede, mas que segue em contato com as criangas, por ser vizinha, ser referéncia para as eriangas e, sobretudo, por gostar desses momentos. Soubemos que muitos foram dormir tarde ¢ outros nao estavam por 1. Ficamos um pouco frustrados com o “furo”, mas nos demos conta de que naquela prética com criangas os tratos precisam ser flexiveis © evar em conta os acasos do dia a dia. As criangas se encontram 66 porque querem, porque gostam, porque preferem isto a outra coisa, como, por exemplo, ver TV ou ficar em casa. Na segunda tentativa fomos a tarde e conseguimos entrevisté-las. Vicente, da equipe do Rede, participou desse encontro. Levou para cada crianga um exemplar de um livro feito por ele com as hist6rias ¢ as brincadeiras da ladeira da Margarida, Sentamos numa mesa que foi montada na hora, ao ar livre, comemos pipoca e tomamos suco de maracujé. Ali, comecamos a conversar anunciando que irfa~ ‘mos fazer uma entrevista com eles, que seria como brincar de repérter, Nos apresentamos uns para os outros, dizendo a idade, de onde era e onde estudava. Todos eram dali e tinham de 7 a 13 anos. Como a comunidade esté no meio do verde, o forte é a brin- cadeira na rua, Perguntamos como eles se organizam € do que mais gostam de fazer com a Joana, O quente era sempre estar junto e brincar. Mas foi interessante notar como a presenga de ‘uma pessoa adulta fazia diferenga para eles, que comentavam bri gar menos ¢ aprender com ela. No meio dessa conversa fizemos ‘uma negociacdo: terminada a entrevista irfamos todos brinear de pique-esconde. Para nds, pesquisadoras, a brincadeira foi uma maneira de conhecé-los, saber um pouco como se moviam naque- le espago, em que velocidades e, mais ainda, que nomes tinham. Brincar de pique-esconde se dé com um pegador que, num local escolhido, fecha os olhos € conta até 100. Depois, sai a procura dos outros que se esconderam. Ao encontrar alguém, anuncia seu nome: por exemplo, pique-um-dois-trés-Guilherme! Assim, com todos, até o tiltimo, que pode ser pego ou libertar os que foram vyistos antes dele: pique-um-dois-trés-salve-todos! Como 0 jogo $6 termina depois que todos aparecem, 0 jogo foi uma maneira divertida de sabermos uns dos outros. E, mais, de sentir na pele © que é ficar horas naquele territ6rio. Na pesquisa Elos na Rede foram entrevistadas diferentes categorias que colaboram no desenvolvimento das priticas em toro das bibliotecas e brinquedotecas comunitérias: dinamiza- dores, familiares, criangas, parceiros comunitarios e a equipe que toca e coordena 0 projeto. A maioria das entrevistas foi em grupo ¢ algumas foram individuais. Aproximadamente 100 pessoas fo- o7 ram entrevistadas. As conversas foram gravadas e posteriormente transeritas. Como era de se esperar, apés todos os encontros eram centenas de paginas com informagées muitas imagens, momen- tos, hist6rias, memérias e expresses, por onde os elos transi- tavam. Somando a isso os relatos das pesquisadoras apés cada visita a campo, havia muito material produzido, que nio existia anteriormente. © primeiro passo foi ler tudo, quase que desinte- ressadamente, sem querer nada, apenas aprender com o proprio caminhar. Rememorar e dar-se conta, Algumas falas, alguns instantes descritos em palavras sobressaiam, se faziam ver com forgae intensidade. As vezes era uma tinica cena, como foi o caso da menina que desenhou em sua mio uma borboleta e a carim- bou na miio da pesquisadora. Ou ainda, um menino que ao ser perguntado sobre o que dali era necessério para ele, responde solenemente: “A atengdo que recebo”. Outras vezes, os temas se fazem presentes pela recorréncia, Por exemplo, as criangas.res- saltam que gostam dos passeios. A importincia dos passeios também é destacada pelos dinamizadores, parceiros ¢ familia res, Muito material. Como cruzar tantas falas, reflexdes tedricas © 08 problemas da pesquisa? A leitura atenta de todo © material deixou um rastro, abriu um campo de ressoniincias, angustiou e atigou o pensamento. Tinhamos n6s para serem desatados, Como seguir? Como dar continuidade ao processo? Buscamos uma safa no coletivo, fazendo uma reunio com 4 equipe para construirmos juntos diretrizes de andlise. Propuse- ‘mos uma roda de movimento com a ideia inicial de fazer com que cada um estivesse acordado, em conexao, nos elos na rede. O movimento corporal era intercalado com as perguntas, visando fazer falar. Palavras foram surgindo do contato com afetos desta hist6ria que se faz. Muitas falas e sensagdes se apresentaram no processo, Algumas se fizeram presentes ¢ reverberaram com 0 ‘material produzido, outras pareciam niio fazer sentido. As con- siderag6es despertadas € trocadas em roda com a equipe contti- * CEL. Pozzana de Barros O Corpo em Conexao: Sistema Rio Aberto, BAUFF, Niter6i, 2008 68 bufram na formul adores para a andlise das entrevis- tas, Intensivamente, esse momento compartilhado contribuiu para a detecgaio de linhas, de forgas que perpassavam 0 coletivo. De volta & leitura do material produzido (entrevistas € relatos de campo), percebemos novas articulagdes naquelas falas e deseri- ges. Navegavamos com mais sentido, mesmo sem saber exata- ‘mente onde famos chegar. Nesse caso, a roda foi uma estratégia de producdo de critérios de andlise®, A tiltima reunido da pesquisa Elos na Rede aconteceu no Santa Marta, Na reunigo com os integrantes da equipe e parceiros comunitérios, foram apresentados, para serem compartilhados, alguns pontos de andlise e como estava sendo entendida a nocZo de “elos”. Sénia, que € moradora do Santa Marta que tem um belo trabalho de customizagio e confecgdo de roupas chamado Costurando Ideais, gentilmente abrigava a reunido em seu atelié de trabalho, No inicio expos as roupas que tinha & venda, vendeu algumas pegas e se pos na roda, no canto da sala, e costurou 0 tempo todo. Ia calmamente tecendo fios, permeada pelas palavras e pelos afetos que estavam circulando naquele momento. Gosta- ram muito quando pontuamos que ndo se tratava de uma rede onde precisamos nos inserir € nos adaptar. Se viram dentro de uma rede que jé acontece, uma rede abundante, forte e viva, que segue criando. Os textos da pesquisa: relatos e produgao coletiva HA uma pritica preciosa para a cartografia que é a escrita efou o desenho em um disrio de campo ou cadero de anotagdes. Os cadernos so como os hipomnemata, que Michel Foucault (1992) discute ao apresentar as priticas de si dos gregos. Com © objetivo administrativo de reunir 0 logos ftagmentado, os ° Métodos como anilise de conteddo e anise do discurso sdo também compa tiveis eom o métod da cartogratia, desde que nao lever auum congelamento ‘dos dados ou ocasionem a perda da dimensio de transformacao do processo {que esté sendo investigado, hipomnemata “constitufam uma meméria material das coisas das, ouvidas ou pensadas [...] Formavam também uma maté ria-prima para a redagdo de tratados mais sistemsiticos” (p.135). Podemos dizer que para a cartografia essas anotagdes colaboram na producto de dados de uma pesquisa e tém a fungio de trans- formar observagées e frases captadas na experiéncia de campo em conhecimento € modos de fazer. Hi transformagio de expe- riéncia em conhecimento e de conhecimento em experiéncia, numa circularidade aberta a0 tempo que passa. HA coproducdo. As observacées anotadas siio como um material para ter & mao, “nio apenas no sentido de poderem ser trazidos & consciéncia, ‘mas no sentido de que se deve poder utilizé-los, logo que neces- séio, na agao” (p.136). Para a pesquisa cartogréfica so feitos relatos regulares, apés as visitas e as atividades, que retinem tanto informagdes objetivas quanto impresses que emergem no encontro com 0 ‘campo. Os relatos contém informagdes precisas ~ 0 dia da ati- vyidade, qual foi ela, quem estava presente, quem era responsavel, comportando também uma descrigao mais ou menos detalhada — € contém também impresses e informagées menos nitidas, que vém a ser precisadas e explicitadas posteriormente. Esses relatos io se baseiam em opinides, interpretagdes ou andlises objetivas, mas buscam, sobretudo, captar e descrever aquilo que se dé no plano intensivo das forgas e dos afetos. Podem conter associagdes que ocorrem ao pesquisador durante a observacio ou no mo- mento em que relato est sendo elaborado. E interessante res- saltar que © momento da preparagtio do relato funciona muitas vezes como um momento de explicitagdio de experiéneias que foram vividas pelo cartégrafo, mas que permaneciam até entio num nivel implicito, inconsciente e pré-refletido (Vermersch, 2000). Por esse motivo, a escrita do relato nfo deve ser um mero registro de informagées que se julga importantes. Longe de ser um momento burocrético, sua elaboragao requer até mesmo um certo recolhimento, cujo objetivo € possibilitar um retorno a experiéncia do campo, para que se possa entiio falar de dentro 70 da experiéneia e no de fora, ou seja, sobre a experiéncia. Hé uma processualidade na propria escrita. Um proceso aparen- temente individual ganha uma dimensao claramente coletiva quando o texto traz & cena falas e diélogos que emergem nas sess6es ou visitas ao campo. Quando hé uma equipe que traba- Iha junto, apés ser elaborado por um membro, o relato é apre- sentado ao grupo em reunides, ganhando a contribuigio dos demais participantes. didtio de campo é um elemento importante para a ela- boracdo dos textos que apresentardo os resultados da pesquisa. ‘A polifonia do texto (Bahktin, 1990; 2003) é sempre um objetivo ¢ também um desafio, comparecendo de diferentes modos. A multiplicidade de vozes, onde participantes e autores de textos te6ricos entram em agenciamento coletivo de enunciagio (Deleuze Guattari, 1977), 6 uma delas. No campo da antropologia, James Clifford (2002) adverte quanto ao cuidado de nao representar os “outros” de maneira geral e abstrata: “os nativos” (no nosso caso, “as criangas”, “os jovens”, “a comunidade”, “os moradores do morro”), Aponta ainda para o perigo da filtragem dos fatos ¢ de tomar invisivel a observagio participante. Daf a importancia da adogo de procedimentos de escrita que deem visibilidade ao processo de construgao coletiva do conhecimento, que se ex- pressa num texto polifOnico, Nesta diregdo Clifford defende a ‘manutengao e sustentagao da alteridade no préprio texto. A apre- sentagiio de dislogos literais € um caminho fecundo, mas © mais importante é que os escritos devem guardar 0 cardter de totali- dades nao homogéneas. Nesta mesma diregio, Janice Caiafa aponta que a pes- quisa etnogréfica envolve “a confecgio de um relato muito es- pecial, onde é preciso transmitir 0 que se observou na pesquisa, Nesse relato o etnégrafo deverd dar conta nao s6 do que viu ¢ viven, falando em seu préprio nome, mas também do que ouviu no campo, do que Ihe contaram, dos relatos dos outros sobre a sua propria experiéncia” (Caiafa, 2007, p.138). E muitas vezes tentador para o pesquisador introduzir, através da interpretagio, n ‘uma coeréncia, mesmo que iluséria, aparando as arestas quando a pesquisa no fecha suas conclusdes num todo homogéneo. Numa outra diregdo, Caiafa aposta num método-pensamento, em que a experiéneia singular com os outros no se separe da experimentagdo com a prépria escritura. A interpretacdo nio deve se sobrepor a alteridade e & novidade trazida pelos eventos do campo. A experiéncia de campo, com todas as suas arestas e es- tranhezas deve trabalhar contra as tendéncias generalizantes, sim- plificadoras e redutoras. Nao se trata de opor a empiria segura a teoria generalizante, Quando a interpretagao sobrecodifica a experiéncia de campo nao estamos frente & “teoria”, mas a um certo uso da teoria, a um certo uso dos conceitos, que geralmente acompanha uma certa maneira de viver 0 trabalho de campo. “Quando a experiéncia de campo inspira a teoria, é possivel con- seguir uma inteligibilidade dos fendmenos que pouco tem de interpretagio, ¢ antes mais uma forma de experimentagtio, agora com 0 pensamento € a escritura” (Caiafa, 2007, p.140). Nesse sentido a politica da escrita é sintonizada e coerente com a politica de pesquisa e de produgdo de dados no campo. A politica de nao fazer dos participantes meros objetos da pesquisa e da construgdo coletiva do conhecimento revela-se af com toda a sua forga. A politica da escrita deve incluir as contradigdes, os conflitos, os enigmas e os problemas que restam em aberto. Nao & necessério que as conclusdes constituam todos fechados ¢ homo- ‘geneos, nem é desejdvel que estas sejam meras confirmagies de modelos teoricos preexistentes. As aberturas de um trabalho de pesquisa abrem linhas de continuidade, que podem ser seguidas pelo proprio pesquisador, ou por outros que sejam afetados pelos problemas que ele levanta. Em sintese, a expansio do campo problemético de uma pesquisa ocorre por suas conclusdes, mas também por suas inconclusdes. E € através dos textos que um novo problema ou uma nova abordagem dos problemas pode se pro- pagar e produzir efeitos de intervengo num campo de pesquisa, transformando um estado de coisas (Kastrup, 20088). Quando lemos sentencas como: “pensamos em vocé e voc apareceu”, “quase sem ser notada, desenhou uma borbo- n eta em sua mao, pegou minha mao e apertou uma contra a outra”, “ler, quero ler todos 0s livros daqui” e “pique-um-dois- trés-salve-todos!”, somos transportados por afetos. Afetos proprios de um territ6rio, de um projeto, de um modo de fazer. ‘Assim, 0s relatos so exemplos de como a escrita, ancorada na experiéncia, performatizando os acontecimentos, pode contri- buir para a produgdo de dados numa pesquisa. Ao escrever detalhes do campo com expressdes, paisagens € sensagdes, 0 coletivo se faz presente no processo de produgdo de um texto. Nesse ponto, nio é mais um sujeito pesquisador a delimitar seu objeto. Sujeito e objeto se fazem juntos, emergem de um plano afetivo. O tema da pesquisa aparece com 0 pesquisar. Ele nao fica escondido, disfarcado ou apenas evocado. No encontro de leitura, nna brincadeira, na pintura, no Janche e nas conversas, como pes- quisadoras, atentas ao plano dos acontecimentos, famos sendo despertadas para os elos, nasciam elos em nés. Cada palavra, em conexio com o calor do que é experimentado, nasce dos elos na rede e em nés pesquisadoras. Cada palavra se faz viva e inventiva, Carrega uma vida. Podemos dizer que assim a pesquisa se faz em movimento, no acompanhamento de processos, que nos tocam, nos transformam ¢ produzem mundos. Abordando a pista “cartografar € acompanhar proces- $08” procuramos apontar que processualidade esté presente em ‘cada momento da pesquisa. A processtialidade se faz presente nos avangos e nas paradas, em campo, em letras e linhas, na escrita, em nés. A cartografia parte do reconhecimento de que, 0 tempo todo, estamos em processos, em obra. O acompanhamento de tais processos depende de uma atitude, de um ethos, e nao esté garan- tida de antemao. Ela requer aprendizado e atengio permanente, pois sempre podemos ser assaltados pela politica cognitiva do pesquisador cognitivista: aquele que se isola do objeto de estudo nna busca de solugdes, regras, invariantes, O acompanhamento dos processos exige também a produgdo coletiva do conhecimento. HA um coletivo se fazendo com a pesquisa, ha uma pesquisa se fazendo com o coletivo. A produgiio dos dados é processual e a B processualidade se prolonga no momento da anélise do material, que se faz também no tempo, com 0 tempo, em sintonia com 0 coletivo. Da mesma maneita, 0 texto que traz e faz circular os resultados da pesquisa é igualmente processual e coletivo, resul- tado dos muitos encontros. ‘Mesmo o cientista que trabalha isolando variéveis produz conhecimento e mundo. O cartégrafo, imerso no plano das inten- sidades, langado ao aprendizado dos afetos, se abre ao movimento de um territ6rio. No contato, varia, discerne variaveis de um Processo de produedo. Assim, detecta no trabalho de campo, no estudo e na escrita, varidveis em conexio, vidas que emergem criam uma prética coletiva, Referéncias BAKHTIN, M, Marxismo e filosofia da tinguagem. Sao Paulo: Hucitee, 1990. —. Estética da criacao verbal. Sio Paulo: Martins Fontes, 2003, BARROS, R. B.; PASSOS, E. Humanizaco na satide: um novo modis- ‘mo? Interface - Comunicagdo, Saiide, Educagdo, So Paulo, v.9,n.n.17, 2005b, p.389-394, A humanizagao como dimensio paiblica das politicas de satide. Giéncia e Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, 200Sa, p.561-571. CAIAFA, I. Aventura das cidades. Rio de Janeiro: Ed, FGV, 1007. CICOUREL, A. Teoria e método em pesquisa de campo. In: Alba Zaluar Guimaraes (selegao, introdugao e revisio técnica) Desvendando mésca- vas sociais. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1980. (CLIFFORD, J.A experiéncia etmogréfica. Rio de Janeito: Ed. UFRJ, 2002. DELBUZE, Ge GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. 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Issy-les-Molineaux: ESF, 2000. 8 Pista 4 MOVIMENTOS-FUNGOES DO DISPOSITIVO NA PRATICA DA CARTOGRAFIA Virginia Kastrup ¢ Regina Benevides de Barros (Os fenOmenos de produgéo da subjetividade possuem como caracteristicas © movimento, a transformagao, a processualidade. Por tal natureza, a subjetividade € refrataria a um método de in- vestigagdo que vise representar um objeto e requer um método capaz de acompanhar 0 proceso em curso. As quesiées que se colocam so; como encontrar um método de investigacao que expresse 0 processo que esté em andamento? Como nio limitar nossa investigagdo aos produtos desse processo? Trabalhando com um objeto em movimento, como nao perdé-lo em categorias fixadas, que deixam fora da cena o fluxo processual no qual as subjetividades foram produzidas? Encontramos na cartografia, um método formulado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (Deleuze e Guattari, 199: i 1986), um caminho que nos ajuda no estudo da subjetividade dadas algumas de suas caracteristicas. Em primeiro lugar, a cartografia ‘no comparece como um método pronto, embora possamos encon- trar pistas para praticé-lo, Falamos em praticar a cartografia e nao em aplicar a cartografia, pois nao se trata de um método baseado em regras gerais que servem para casos particulares. A cartografia é tum procedimento ah hoc, a ser construfdo caso a caso. Temos sem- Pre, portanto, cartografias praticadas em dominios especificos Em segundo lugar, notamos que a proposta de Deleuze ¢ Guattari no é a de uma abordagem histérica ou longitudinal, e sim geogrdfica ¢ transversal. A opeo pelo método cartogréfico, 16 a0 revelar sua proximidade com a geografia, ratifica sua perti- néncia para acompanhar a processualidade dos processos de subjetivagao que ocorrem a partir de uma configuragao de ele- mentos, forgas ou linhas que atuam simultaneamente. As con- figuragdes subjetivas ndo apenas resultam de um proceso histérico que Ihes molda estratos, mas portam em si mesmas processwalidade, guardando a poténcia do movimento. Ao mesmo tempo, a cartografia é um método transversal porque funciona na desestabilizagdo daqueles eixos cartesianos (vertical/horizon- tal) onde as formas se apresentam previamente categorizadas. Assim, a operagdo de transversalizagdo consiste na captagao dos movimentos constituintes das formas € ndo do ja constituido dof no produto. © método vai se fazendo no acompanhamento dos movimentos das subjetividades e dos territ6rios. Trata-se, entdo, de um método processual, criado em sintonia com o domfnio igualmente processual que ele abarca. Nesse sentido, 0 método nao fornece um modelo de investigacao. Esta se faz através de pistas, estratégias e procedimentos concre- tos. A pista que nos ocupa é que a cartografia, enquanto método, sempre requer, para funcionar, procedimentos concretos encar- nados em dispositivos. Os dispositivos, como veremos, desem- penham fungées importantes e definidas nesse funcionamento, Michel Foucault (1979) nomeia dispositive “um conjunto decididamente heterogéneo que engloba discursos, instituigdes, organizagdes arquitetOnicas, decisdes regulamentares, leis, medi- das administrativas, enunciados cientificos, proposigdes filos6- ficas, morais, filantrépicas. Em suma, 0 dito e 0 nao dito sa0 os elementos do dispositivo. O dispositivo € a rede que se pode esta- belecer entre esses elementos” (p.244), Foucault afirma, ainda, ‘que a relacdo entre os elementos do dispositivo indica a existéncia de mudanga de posigdes © modificagdo de fungées. Para ele um dispositivo responde sempre a uma urgéncia, que se revela por sua fungio estratégica ou dominante ‘Comentando esse conceito de Foucault, Deleuze indica a composicao de qualquer dispositivo: ele “é de inicio um novelo, um conjunto multilinear. Ele € composto de linhas de natureza n diferente” (Deleuze, 1990). Destaca, assim, quatro tipos de linha: ade visibilidade, a de enunciagao, a de forga e a de subjetivacao. 5 dispositivos sao, por um lado, “méquinas que fazem ver e fa- lar”. Com isso Deleuze indica que em cada formacao hist6rica ha maneiras de sentir, perceber e dizer que conformam regides de visibilidade © campos de dizibilidade (linhas de visibilidade e de enuneiaedo). Isso quer dizer que em cada época, em cada estrato historico, existem camadas de coisas ¢ palavras. © método, por- tanto, nao consiste numa luminosidade geral capaz. de iluminar objetos preexistentes, assim como ndo existem enunciados que nao estejam enviados a linhas de enunciagio, elas mesmas com- pondo regimes que fazem nascer os enunciados. A realidade é feita de modos de iluminagao ¢ de regimes discursivos. O saber 6 a. combinagio dos visiveis e diziveis de um estrato, nao havendo nada antes dele, nada por debaixo dele. Trata-se, entdo, de extrait as variagdes que nao cessam de passar. Como ele nos diz.em outro texto “é preciso pegar as coisas para extrair delas as visibilidades. € necessério rachar as palavras ou as frases para delas extrair os enunciados” (Deleuze, 1992). Um dispositivo comporta, ainda, linhas de forga. Aqui se destaca a dimenstio do poder-saber. Essas linhas levam as pala- vras ¢ as coisas & luta incessante por sua afirmagao. Elas operam “no vai-e-vem do ver ao dizer e inversamente, ativo como as flechas que néo cessam de entrecruzar as coisas e as palavras sem cessar de levé-las & batalha” (Deleuze,1990). Essas linhas passam por todos os pontos do dispositive nos levam a estar em meio a elas 0 tempo todo. Mas, um dispositivo também € composto de linhas de subjetivagdo, linhas que inventam modos de existir. A dimensao do si nao est4, portanto, determinada a priori: “a linha de sub- jetivagdo € um proceso, uma produgao de subjetividade, num Aispositivo: ela deve se fazer, para que 0 dispositivo a deixe ou a lorne possfvel...” (Deleuze, 1990). Deleuze questiona se as linhas de subjetivagdo néo seriam a borda extrema de um dispo- sitivo, podendo vir a delinear a passagem de um dispositivo a outro. Nesse caso, a agiio do dispositive se apresenta em seu B maior grau de intensidade, franqueando limiares variados de desterritorializagdo nos modos dominantes de subjetivagao. Da filosofia dos dispositivos podemos tirar consequéncias, ‘como nos indica Deleuze. A primeira € o reptidio dos universais ¢ a segunda, no menos contundente, € a “mudanga de orientacdo, que se desloca do eterno para apreender 0 novo”. A indicacao parece-nos clara: 0 dispositivo alia-se aos processos de criagfo & © trabalho do pesquisador, do cart6grafo, se da no desembara- gamento das linhas que © compdem — linhas de visibilidade, de enunciagao, de forga, de subjetivagao. Trabalhar com dispositivos imptica-nos, portanto, com um processo de acompanhamento de seus efeitos, no bastando apenas pé-lo a funcionar, Pretendemos contribuir, neste texto, na problematizagao das fungdes do dispositivo na pritica cartogrifica de acompanha- mento dos processos de produco de subjetividade. Centraremos nossa andilise em dois dispositivos: a clinica e a oficina de praticas artisticas, Todavia, veremos que cada um desses dois dispositivos inventa concretamente outros dispositivos locais que possibilitam sua operagio, Trata-se, entiio, de dispositivos dentro de dispositi- ‘vos, como na série bonecas russas. Se dissemos série € exatamente para indicar a relagdo de ligagdo, de clo, entre os termos. Nesse caso, a série € de dispositivos-dispositivos, indicando o agencia- mento conereto que permite acompanhar seu funcionamento, seus efeitos. A clinica e a oficina, enquanto priticas de subjetivagao, ex- traem a fungdo de dispositivo de certos agenciamentos que revelam 1 poténcia de fazer falar, fazer ver e estabelecer relagées. Em nosso centendimento, a fungéio do dispositivo se faz através de trés movi- mentos, 0 que foma necessério falar de movimentos-fungdes. So cles: (1) movimento-fungo de referencia; (2) movimento-fungaio de explicitagao; (3) movimento-fungdo de transformagdio-producao. Procuraremos apontar que a pratica cartogréfica requer um dispositivo de funcionamento mais ov menos regular, em que se articulam a repetigo e a variagiio, que nomeamos movimento- funcdo de referencia (1). Além disso, apontaremos que o método da cartografia possui duas dimensdes indissociveis: a pesquisa e a intervengio. A clinica e a oficina oferecem-se como espacos- 9. tempos de visibilidade e enunciagio, enfim, um territério de pes- quisa a ser explorado, Essa exploragio corresponde, num primei- +o nivel, a um trabalho cujo movimento-fungdo é de explicitagaio das linhas que participam do processo de produgo em curso. (2) ‘Trata-se af de atualizar o que 14 operava de mancira implicita virtual. Por outro lado, a prética da cartografia cria condigées para a transformacdo das relagdes entre os elementos/linhas/vetores afetivos, cognitivos, institucionais, micro e macropoliticos, acio- nando movimentos e sustentando processos de producdo. Nesse sentido, a cartografia produz efeitos de producao e transformacio da realidade', que também devem ser analisados. (3) Indicaremos que, além de servir & pesquisa, a atividade de cartografar nao se faz sem a introdugao de modificagGes no estado de coisas e mes- mo sem interferir no processo em questio. Enfim, procuraremos examinar que através de trés movimentos-fungdes ~ de referén- cia, de explicitagdo das Tinhas e de produgdo-transformagio da realidade ~ 0 dispositivo cria condigdes concretas para a prética da cartogratia. O movimento-funcao de referéncia: 0 caso do caderno Ressaltamos 0 movimento-funcao de referéncia como aque~ Je que trabalha com @ mesma matéria do circuito claudicante da repeti¢do, Para enfrentar esta repeti¢do hd que se criarfusar/fazer funcionar 0 dispositivo com regularidade. Melhor dizendo, ha que extrair da regularidade do dispositivo, do modo regular com que ele pode ser apresentado, sua forga desviante de repetica0. A refe- réncia, aqui, menos do que apontar para uma pessoa-de-referén- cia se dé como um modo de funcionar, ou fazer funcionar uma igacdo. O que esta em questdo, portanto, é a qualidade desta liga- do, desse vinculo que permita experimentar a configuragao de "CE L. da Esodssia e S. Tedesco, “O coletivo de forgas como plano de cexperigncia cartogritica” e E. Passos e R. Benevides, “A cartografia como rmétodo de pesquisa-intervengo”, ambos nesta coletinca. 80 um novo territ6rio existencial. © movimento-funedo de referéncia, entio, resta como um indice que, acionado, estabelece ligacées no com a situago ou a pessoa em causa de uma suposta ou ima- gindria primeira ligagdo, mas com o regime assignificante de afec (Ges. Essa referéncia ajuda a criagaio de uma posigao subjetivadora, posigdo que faz a passage, dispositivo 6, dessa forma, sempre uma série de préticas e de funcionamentos que produzem efeitos. Tomar a clinica como um dispositivo forga-nos & investigagdo dos modos concretos com que os agenciamentos se estabelecem € como 0s territ6rios exis- tenciais se arranjam. Mas tal investigagao, temos insistido, se faz ‘num duplo movimento: inclinar-se e desviar (Passos e Benevides de Barros, 2001). Assim, a clinica € acolhimento daquele que chega, acompanhamento dos trajetos claudicantes que se repetem e experimentagiio dos limites das formas, forgando suas bordas, desviando-se das linhas e riscos de recodificagao. Nesse acompanhamento, em que acolher ¢ desviar se esta- belecem como tensiio-condigdo de subjetivacdo, a clinica como dispositivo funciona em série com outros dispositivos: 0 tempo (des)marcado, 0 (niio) lugar das sessdes/encontros entre terapeuta € paciente ou outro qualquer marcador que indique a referéncia, 0 que da contorno a experiéncia. Lembremos, em especial, que 0 dispositivo exige ligagdes sempre locais, encamadas/encharcadas de materialidade. Assim, é imperativo, para que a clinica funcio- ne, a criagiio de dispositivos coneretos ¢ locais. Mirio vai viajar. Ele tem medo. Nao sorri. A tensio cresce & medida que chega 0 dia de embarear. Vacila entre a alegria da conquista de ter sido convidado para participar de um seminario fora do Brasil e 0 medo de seu medo cres- cer, especialmente longe de seu territ6rio-casa, sua peque- na famflia-territ6rio. E frequente se olhar no espelho e no se reconhecer. Hé, segundo ele, uma distancia entre a ima- gem que nele vé projetada e a que tem de si mesmo. Esta muito mais nova, mais bonita. < O trabalho clinico jé acontece hé 3 anos e nele vimos experimentamos os limites que para ele sempre soam como, 81 2 ameagadores. A cada passagem do/no limiar temores/tre- mores/suores, medo. Sonha com sua casa ruindo, assaltan- tes a invadindo, Sente-se frequentemente ameagado, mas vai avs poucos se reconhecendo como capaz de criar. Esse 6 um ponto forte: ele é empreendedor, gosta de estar em equipe, agrega, tem propostas, executa-as. Gosta muito do que faz e parece ser um bom profissional. ‘A viagem vem como crescimento profissional. Ele quer ir, mas teme. Teme a solidao... 0 encontro consigo? E.0 que ele fard se for acometido daquelas angustias que s6 recen- temente ele comega a aprender a lidar? Estard s6. O que se passaré? Trabalhamos, colocamos em anélise seus movimentos, ‘Tentamos uma cartografia, Tomamos algumas linhas libe- radas na desterritorializacdo provocada pela viagem. A desterritorializagio desmarca 0 conhecimento-controlado do territ6rio e aparece um plano informe que assusta pelo que este porta de impessoal. Nos lancamos. Mergulha- ‘mos juntos neste plano informe do desterritorializado, mas mantemos a referéneia, um (in)eerto contorno. Naquele momento, a sesstio de anélise € referéncia, Mas... ele iria viajar... como fazer? Pensa em desistir, tinha medo. Ao mesmo tempo, queria ir. Como fazer? Arrisquei: “ Por que vocé nao leva um caderninho, uma espécie de didirio e escreve todas as vezes que tiver medo, que se angustiar?” Siléncio. Mario parecia nao ter sequer ouvido a proposta. Achei melhor calar... vai ver que tinha “errado na mao”, nao era hora... Nas prximas sessdes 0 tema volta: viagem-medo- solidao-angtistia-olho no espelho que estranha 0 que vé Falamos sobre modos de viver 0 desterritorializado, Silen- ciamos por vezes. Tateamos buscando encontrar novos contornos, referencias. A palavra, emergente do plano, parecia fulgurar. Era isto! Referéncia, pontos de territ6rio na desmontagem que se anunciava com a viagem, A pergunta que insistia era “como”, Como construir um projeto-referéncia? Ele arr ca: compra um caderno, passa a registrar 0 que acha importante ¢ 0 traz para as sessbes. Fm algumas delas, 16 ‘© que havia escrito, em outras apenas fica com 0 caderno nas mos ¢ fala sobre outras coisas. Um més depois, viaja. Leva e usa 0 cademo. Inicial- ‘mente, relata em seu retorno, como urgéncia. Gradativa- ‘mente usa-o com mais soltura, registrando impresses, deta- thes da viagem, curiosidades que seu olhar, mais atento, con- seguiia captar-reinventar, O tempo todo, como referéncia, Certamente 0 cademo nio deve ser tomado como receita, no € modelo, no € prescri¢Zo, ndo é uma pedagogia, O caderno- dispositivo teve fungo de referéncia, No cademo, as linhas escritas por Mario indicavam os mo- dos de ver e de dizer permitindo novos regimes de enunciagao e de subjetivagio. Movimento-funcao de explicitagao: entrevistas com os cegos A nogio de explicitagao € oriunda da fenomenologia designa o ato de trazer & consciéncia uma dimensio pré-reflexiva da ago. Segundo Pierre Vermersch (2000) toda ago se da jun- tamente com experiéncias que podem subsistir em nds de maneira implicita, Vermersch propde uma técnica de entrevista que tem 0 objetivo de explicité-las, possibilitando atos de devir-conseiente e a transformacao da ago. Utilizamos aqui a nogao de explicitagao de maneira ampliada, explorando a poténcia que os processos de devir-consciente possuem de produzir subjetividades. Numa pes- quisa desenvolvida numa oficina de cerdmica para pessoas com deficiéneia visual’, a entrevista de explicitagao funcionou como * A oficina acontece no Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, © ccoordenada pela ceramista Clara Fonseca, A pesquisa “Atengd0 e inivenga0 1a produgio coletiva de imagens” uiliza 0 método cartogréfico, vem sendo realizada desde 2004 e € apoiada pelo CNPq, 83 um dispositive dentro de outro dispositive. Outros territérios de pesquisa-intervengao, como a clinica, também podem se valer de ispositivos que se mostrem capazes de facilitar a explicitagdo das Tinhas em curso. As oficinas de préticas artisticas tém sido amplamente uti lizadas nos trabalhos comunitérios, na reforma psiquidtrica e na reinvengdo existencial de pessoas com deficiéncia. Oficinas lite- rérias, de cerdmica, teatro e mésica tém tido sua importancia reconhecida nas dreas da satide e da educagao, Sua fungo & por vezes entendida como de ocupagao do tempo, safda da ociosidade € capacitagao profissional. Todavia, tal entendimento nao toca ponto exsencial: seu movimento-fungio de explicitag3o de linhas que aciona processos de producio de subjetividade. © que caracteriza a oficina € ser um espago de aprendi- zagem, ndo apenas de téenicas artisticas, mas de aprendizagem inventiva, no sentido em que ali tém lugar processos de invengao de sie do mundo (Kastrup, 2007; 2008). Como espagos coleti- vos, sto territ6rios de fazer junto. O processo de aprendizagem inventiva se faz através do trabalho com materiais flexiveis, que se prestam a transformacao e a criagio. Os participantes da ofi- ina estabelecem com tais materiais agenciamentos, relagdes de dupla captura (Deleuze, 1998), criando e sendo criados, num movimento de coengendramento. Ao fazer e inventar coisas, se inyentam 20 mesmo tempo. Nas oficinas ocorrem relagdes com as pessoas, com 0 material e consigo mesmo, Na oficina de cerimica em questo acompanhamos 0 trabalho de pessoas que haviam perdido a visto e que esta- ‘vam aprendendo a reinventar suas vidas. O grupo era bas- tante heterogéneo, composto de pessoas oriundas de meios sociais distintos e com profissdes variadas: um cozinh uma professora de misica, um motorista de taxi, uma art ta plastica, um piloto de provas, uma designer de joias, um mecénico de caminhao e por af vai. Havia também muitas diferencas quanto natureza e ao grau de deficiéncia vi- sual, bem como ao tipo de relagao que as pessoas estabe- Iecem com a deficiéncia. 84 © método da cartografia exigiu a identificagao das linhas circulantes na oficina de cerdmica. Estavamos carto- grafando um territério que nao habitévamos e pergunta- mos: Que falas circulam no dispositivo? De safda, perce- bemos a forte presenga do vetor ceramica nas falas dos participantes. Frequentemente falavam da pega que se es- tavam fazendo, dos préximos projetos, das exposigdes que haviam visitado, muito mais do que de suas deficiéncias visuais. Isto se mostrou um dado interessante, indicando a abertura do territ6rio existencial daquelas pessoas ¢ a eria- go de novas conexdes com o mundo (j4 que nenhuma delas tinha ligagdo anterior com a ceramica).. O que © dispositivo-oficina faz ver? Ora, a pesquisa abria um dominio cognitivo marcado pela heterogeneidade, onde nés, videntes, deverfamos cartografar 0 funcionamento cognitive de pessoas sem visdo, O que eles percebem quando néo vem? Num territ6rio como o da oficina de ceramica, o tato logo ganhou im- portncia, bem como a qualidade da atengao mobilizada durante © processo de criacao, abrindo uma linha especifica de investiga- gio (Kastrup, 2007b; 2008). Métodos de primeira pessoa se reve- laram necessérios e foi nessa medida que recorremos a entrevista de explicitagdo. Através das falas dos participantes, ficou eviden- ciado que era necessério levar em consideragio sua insergao num mundo hegemonicamente fundamentado em parimetros visuais. Nas entrevistas surgiram com frequéncia situagdes de desenten- dimento ¢ atrito com videntes, bem como linhas de ignorncia e preconceito em relagiio & pessoa com deficiéncia visual. Um homem conta que enxergava normalmente e des- cobriu que era diabético aos trinta e poucos anos. A perda da visio acontecen de uma hora pra outra e teve um efeito devastador na sua vida, “Foi na hora, de repente. Afeu no vi mais. Entio eu fiquei muito tempo, fiquei uns quatro anos jogado no sofa. O sofé chegou a ficar com um buraco onde eu estava sentado. Eu me afastei dos meus amigos ¢ 85 das pessoas que conviviam comigo até aquela época. As pessoas desciam pra conversar e ficavam Ii comentando. A gente se reunia pra falar de jornal, pra trocar ideia sobre os jomais. Af, de vez em quando, 0 pessoal falava: “Lé aqui.” Isso foi me chateando porque cu achei que estavam zombando de mim, Entdo eu me afastei deles. Isso ainda foi pior pra mim, Af fiquei 1é um tempo. Quem passou a ser 0 meu amigo foi o rédio. Af um dia, mais ou menos & meia noite, eu estava ouvindo o rédio, af escutei uma ‘menina daqui, uma aluna dessas internas, adolescente, Ela falou que queria fazer amizade e tal e falou do Benjamin [Constant]. Memorizando o nimero que ela deu, eu liguei pra ela na hora, Af ela me atendeu e eu falei: “Poxal Eu t6 com um problema assim, assim e tal. J4 tem quatro anos {que eu 6 aqui em casa sem fazer nada. Como é que eu faco pra ir pra 14?” ‘A menina marcou um dia e disse para chamé-la quan- do chegasse ld. Assim ele fez. Fla 0 conduziu a divistio de reabilitagdo e ele passou a frequentar as diversas atividades que eram oferecidas. “Af foi a minha salvacao! Depois disso a minha vida mudou muito, Agora eu nio esquento mais. Quando eu estou no meio do pessoal e 0 pessoal fala o negécio de ler, eu ndio esquento mais. Voltei a descer, {i voltei a aceitar a brincadeira, Muda mesmo, a historia da gente muda. Ai jé passei a incentivar outras pessoas a virem pra c4. As vezes eu ligo pra rédio e incentivo as pes- ssoas a virem. Também liguei pra agradecer. E trouxe gente ra cd, trouxe outras pessoas”. No caso em questo, rédio foi um importante dispositive para provocar a guinada capaz de reverter 0 efeito devastador ocasionado pela perda da visio. Em seguida, surgiram outros dispositivos, como a oficina de ceramica, com os quais foram criados agenciamentos. O homem afirma que gosta da oficina de ceramica porque ela “eleva um pouco a nossa autoestima”. Ele observa que a prética da ceramica tem melhorado a relagio que 86 ele tem consigo. De fato, pudemos verificar que a prética artistica dé acesso a uma dimensio de virtualidade do si, concorrendo assim para a abertura da crosta identificat6ria da “deficiéncia” que uitas vezes recobre a subjetividade dos cegos. No lugar da defi- ciéncia, surge uma experiéneia de poténcia, de criagao, o que pos- sibilita, ao mesmo tempo, uma experiéncia de autocriagdo. Res- saltamos que as investigagdes indicaram que a mudanca da rela- gio consigo se faz pela experiéncia da autocriagto. Isso difere dos trabalhos sobre autoestima, to em voga nos dias atuais, que destacam a importincia do outro, ou seja, das outras pessoas ¢ daquilo que elas expressam ¢ verbalizam, na constituigao da autoestima, também chamada af de dimensio avaliativa do auto- conceito. Nas explicagdes correntes € a relagao com os outros que molda a relagdo consigo. Numa outra direcdo, argumenta- mos que @ oficina de ceramica nao reforga a camada externa do selfe suas marcas identificatérias, mas abre a dimensio de virtua- lidade da subjetividade. Foram explicitadas diversas outras experiéncias de atrito ou desentendimento com videntes. Um homem que possuia baixa visio descreveu a seguinte situagio: “Eu tava noutro dia no ponto do Gnibus, la em Mani- Iha, perto de Ttaboraf. Tinh uma senhora, com duas erian- as. Af eu disse: ‘Minha senhora, por gentileza, se vier 0 énibus tal a senhora d4 um al6 pra mim)". E ainda fui sin- cero: ‘Porque eu nao enxergo bem, eu no vejo & distin- cia’, Ela olhou pra mim e disse: ‘Oh, mogo, voc’, com uns culos desses, seré que voc’ niio enxerga o ntimero do 6ni- bus?” A fala da senhora revelava 0 seguinte racioeinio: quanto mais grossas forem as lentes dos éculos, melhor ser a qualidade da visto. O homem ficou com raiva e res- pondeu: “Enxergo sim, senhora. O préximo Gnibus que vier eu vou enxergar 0 ntimero e vou falar pra senhora”. Por ficar irritado com a mulher, desisti do pedido de ajuda, “Af eu deixei o dnibus vim, vim, vim, ¢ 0 6nibus parou numa distancia de um metro e meio, no ponto, no ponto. 87 "u levantei a cabega, olhei, olhei, e disse: ‘Esse Onibus €0 Onibus tal, né, minha senhora?” E concluiu: “Quer di- et, nés tém que saber passar por isso! Porque ela dizer: “Mogo, voc’, com uns éculos desses, nio enxerga 0 mimero do Gnibus?’ Ora, ela t4 ruim mesmo, né? Quer dizer, a gente ainda tem que saber se comportar pra nao responder mal, Pra n6s nao entender que ela disse aquilo com deboche, Porque ela no tem a menor nocio, ela no sabe quantas pessoas té aqui dentro cega, ela nunca foi num campo desses. Nés sabe que ela realmente é fraca sobre esse assunto! Linhas de dizibilidade se cruzam com linhas de poder e se transformam em linhas de subjetivacdo, O encontro no ponto do Onibus suscitou no homem o pensamento de que além de ter que enfrentar dificuldades em relagio & percepcdo da distincia, ao deslocamento no espago e & circulagio na cidade, a pessoa com deficiéneia visual tem que aprender a lidar com videntes que, por desconhecerem as particularidades da deficiéncia visual, acabam no prestando a eles a ajuda que necessitam. O encontro suscitou nele a indignacao pelo tratamento que a mulher Ihe conferiu desenyolveu um questionamento acerca da atitude dos videntes, concluindo, com preciso, que existem pessoas que so “fracas” ‘no assunto deficiéncia visual ‘As falas dos participantes revelam que o problema da defi- cigncia visual coloca em questéo nossa capacidade de lidar com a alteridade, com o que a diferenga produz.em nds, Ainda é marcante um grande desconhecimento acerca do funcionamento cognitivo das pessoas com deficiéncia visual por parte da maioria da popu- lagio, Por mais que se tenha avangado nos titimos anos, a repre- sentagdo social da cegueira ainda é marcada pelo preconceito, pautada na crenga de uma grande incapacidade e &s vezes mesmo numa suposta deficiéncia intelectual generalizada em fungdo da perda da visio. Por outro lado, varios dos entrevistados ressal- taram os efeitos produzidos pela entrada numa instituigo que oferece uma rede de cuidados e de praticas que criam condigoes 88 para enfrentar sua situagdo de pessoa cega. Um deles destaca “o quanto o Instituto ja abriu de espago, o quanto jé abriu de horizonte, mesmo sem a gente enxergar. Porque nés tem um horizonte dentro de nés...”. A instituigdio-Instituto, a oficina de cerimica, a entrevista, rédio mostraram-se dispositivos dentro de dispositivos, série de elos, de agenciamentos concretos produ= tores de subjetividade. Movimento-funcao de producao de realidade: o efeito de confluéncia das funcoes de referéncia e de explicitacao ‘Vimos na fungao de referéncia que esta se d4 como ime- diata criagdo de territério existencial. A fungio de referéncia, neste sentido, se localiza no ponto onde a repetigio, ao se fazer, vai tensionando de tal modo o territ6rio existente que o faz rever- berar até seus limites, Esse movimento expande o que no sintoma, no que € niicleo duro da repetigdo, impede a criagao. Acionar nao apenas 0 sintoma, mas 0 que escapa dele, parece-nos indicar ponto de intercessiio da fung3o de referéncia com a funcfio de produgdo-transformagao da realidade, Mas, como isso se dé? Num interessante movimento paradoxal, a fungi de referéneia cria no {errit6rio 0 contorno necessério para se experimentar a desterti- torializagao que permitiré a produgao-transformagio da realidade. Desse modo, a fungiio de referéncia estabelece pontos de (te}co- nhecimento para que um outro processo de criagZo se inicie, desta ‘vez, longe do que no antigo territério impedia a diferenciagao. ‘Vimos também que para que haja explicitago deve ser acessado o plano das experiéncias pré-refletidas. Varela, Thompson € Rosch (2003) referem-se ao ele como plano da virtualidade do i, por situar-se aquém do si-mesmo constituido e por ser de onde © si-mesmo emerge € se transforma, Por tocar nesse plano, “o devir-consciente coloca em curso um processo de produgio de subjetividade que passa a ocorrer no momento em que ha umalevir da consciéncia” (Kastrup, 2005, p.54). No momento da pritica da cerimica ha um duplo movimento da subjetividade. O primeiro 89 vai em diregdo ao plano da virtualidade do si. O segundo movi- ‘mento vai deste plano até a consciéncia, Trata-se af de uma espé- cie de tomada de consciéneia, no sentido de uma awareness da Virtualidade. Mais do que um movimento de conscientizagdo ou reflexdo acerca de um estado de coisas, trata-se aqui de perceber, atentar ou tomar ciéncia de uma virtualidade ou de um campo de forgas. Besse duplo movimento que dé 2 oficina de ceramica uma fungao de producio. A cartografia da oficina de cerémica, bem como a entrevista de explicitagdo, devem acompanhar tais pro- ‘cessos em curso, 0 que inclui tanto seguir o mergutho no plano de virtualidade da subjetividade quanto os movimentos de awareness das experiéncias implicitas e pré-refletidas, Por sua vez, a cartogra~ fia cria seus proprios dispositivos, produzindo novos movimentos de explicitagaio, que geram outros efeitos de producdo-transforma- ‘co. Enfim, embora a cartografia vise o estudo de subjetivida- des, a investigacao se faz através da habitagdo de um territério, 0 ‘que significa abordé-las por suas conexées, pelos agenciamentos {que estabelecem com 0 que Ihes é exterior. Nesse caso, a funcao de produgdo de realidade abarea tanto a produgio de subjetiv dades quanto a dos territ6rios nos quais elas se prolongam. Afirmamos: 0 método cartogréfico, como modo de acom- panhar processos® de produgdo de subjetividade, requer dispo- sitivos. O que caracteriza um dispositivo é sua capacidade de irrupgdo naquilo que se encontra bloqueado para a criagfo, é seu teor de liberdade em se desfazer dos cédigos, que dao a tudo 0 ‘mesmo sentido. O dispositivo tensiona, movimenta, desloca para outro lugar, provoca outros agenciamentos. Ele € feito de cone- xGes e, a0 mesmo tempo, produz outras. Tais conexdes no obe- decem a nenhum plano predeterminado, elas se fazem num cam- po de afecgdo onde partes podem se juntar a outras sem com isso fazer um todo, Numa cartografia 0 que se faz é acompanhar as > CEL. Pozzana e V. Kastrup, “Cartografar é acompanhar processos”, nesta coletinea, 90 linhas que se tragam, marcar os pontos de ruptura e de enrije- cimento, anatisar os cruzamentos dessas linhas diversas que fun- cionam ao mesmo tempo. Daf nos interessar saber quais movi- mentos-fungées 0 dispositivo realiza. Referéncia, explicitagao e transformagao so trés movimentos-fungdes a serem explorados quando se esté comprometido com os processo de produgaio de subjetividade. Referéncias DELEUZE, G Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filésofo. Barcelona: Gedisa, 1990, p.155-161. Traducao de Wanderson Flor do ‘Nascimento: www.escolanomade.org Consultado em 15/08/2008, Conversagdes, Rio de Janeiro: Ed. 34 Letras, 1992. DELEUZE, Ge PARNET, C. Dilogos. So Paulo: Escuta, 1998. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Piatds, vol. 1. Rio de Janeiro: Edito- ra 34, 1995, FOUCAULT, M. Microfisica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GUATTARI, F. Les années d’hiver: 1980-1985, Paris: Bernard Barrault, 1986, KASTRUP, V. 0 devir-consciente em rodas de poesia. Revista do Depar- tamento de Psicologia da UFF, 17.2, 2005, p.45-60. ____.. A imvengdo de si e do mundo: uma introdugao do tempo e do oletiva no estudo da cognigdo, Belo Horizonte: Auténtica, 2007a. A invengo na ponta dos dedos: a reversiio da atengo em pes- ‘soas com deficiéncia visual. Psicologia em Revista, 2007b, p.69-89. O Indo de dentro da experiencia: atengao a sie produgdo de Subjetividade numa oficina de ceramica para pessoas com deficiéncia visual adquirida, Revista Psicologia: Ciencia ¢ Profissdo, 28(1), 2008, 186-199, PASSOS, E., BENEVIDES DE BARROS, R. Clinica e biopolitica na cexperiéneia do contemporsineo. Psicologia Clinica Pés-Graduagio e Pes- quisa (PUCIRD), v.13, 2001, p.89-99, VARELA, F,, THOMPSON, E. ¢ ROSCH, E. A mente incorporada. Posto Alegre: Artmed, 2003, \VERMERSH, P.L’entretien d’explicitation,Issy-les-Molineaux: ESF, 2000. iil Pista 5 O COLETIVQ DE FORGAS COMO PLANO DE EXPERIENCIA CARTOGRAFICA. Liliana da Escéssia e Silvia Tedesco No contexto do livro desenvolveremos neste texto a pista que indica a cartografia como pritica de construgio de um plano coletivo de forgas. Plano geralmente desconsiderado pelas pers- pectivas tradicionais de conhecimento, ele revela a génese cons- tante das formas empiricas, ou seja, 0 processo de produgio dos objetos do mundo, entre eles, os efeitos de subjetivacdo. Ao lado dos contornos estveis do que denominamos formas, objetos ou sujeitos, coexiste o plano das forgas que os produzem. Longe de limitar seu olhar & realidade fixa, tal como propde a abordagem da representagio, a cartografia visa a ampliagaio de nossa concepcaio de mundo para incluir o plano movente da realidade das coisas. Nessa diregio apontaremos a dupla natureza da cartografia, a0 mesmo tempo como pesquisa e intervencao'. De um lado, como processo de conhecimento que ndo se restringe a descrever ou lassificar 0s contornes formais dos objetos do mundo, mas prin- cipalmente preocupa-se em tragar © movimento préprio que os anima, ou seja, seu. proceso constante de produgiio, De outro, assinalaremos a cartografia como pritica de intervengao, mostrando que acessar o plano das forgas é ji habité-lo e, nesse sentido, os atos de cartégrafo, sendo também coletivos de forgas, participam ¢ intervém nas mudangas e, principalmente, nas derivas transfor- madoras que af se dio. Passos © R, Benevides, “A cartografia como método de pesquisa- {nlervenglio”, nesta coletinea n Para tal, abordaremos esse plano de efetivagio das préticas de pesquisa cartografica a partir de um duplo movimento. No pri- meio, a nogiio de coletivo transindividual comparece para escla- recer modalidade peculiar de funcionamento desse plano. Sera necesséria sua distingfio em relagio a0 modo como a nogiio de coletivo tem sido habitualmente definida nas ciéncias humanas ¢ sociais, analisando as consequéncias de tal nogo para as préticas de pesquisa, No segundo, de natureza empfrica, trazemos a cena uma experiéneia de pesquisa em satide pablica, como estratégia de exercicio sensfvel do conceito de coletivo, reconhecido por nés como plano efetivo da experiéncia do conhecer/fazer, propria & cartografia e outros tipos de pesquisa-intervengao. Coletivo de forcas como superacao da dicotomia individuo sociedade De safda, a expresso coletivo de forgas remete a determi- nada abordagem do conceito de coletivo, derivada de uma rede ‘conceitual composta por pensadores como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault, Gilbert Simondon, Gabriel Tarde e René Lourau, dentre outros. Nessa rede conceitual, a nogio de coletivo distingue-se do modo como a psicologia e a sociologia entendem esse termo. Quando € confundido com 0 conceito de social, 0 co- letivo designa o domfnio da organizagio formal da sociedade re- conhecida nas diferentes instituigdes que a constituem e, assim, aproxima-se de nogdes como a de Estado, sociedade, comunida- de, coletividade, povo, nagio, massa, classe ou da dinémica das interagdes grupais. Coletivo e social aparecem af em oposigdo a individuo. Esse modo de apreensio psicolégica e sociolégica dos conceitos de coletivo e de social deriva de um modo de pensar a realidade, caracteristico da moderidade e que responde por outras dicotomizagées, tais como: teoria-pritica, sujeito-objeto, natureza-cultura, mente-corpo, normal-patol6gico, satide-doenga, trabalho manual-trabalho intelectual. 2 Ver L, da Escéssia (2004), que apresenta um estudo sobre 0 conceito de coletivo, buscando superar essa l6gica dicotmica. 93 Porém, na rede conceitual indicada, é possfvel aprender coletivo longe dessa visdo dicot6mica sobre coletivo e individuo, A oposigao é substitufda pelo entendimento do coletivo a partir de relagdes estabelecidas entre dois planos —o plano das formas € © plano das forgas — que produzem a realidade. Embora distintos, ‘05 dois planos nao se opéem, e sim constroem entre si relagGes de reciprocidade que asseguram cruzamentos miiltiplos. plano das formas corresponde ao plano de organizagao da realidade (Deleuze e Parnet, 1998) ou plano do institufdo (Lourau, 1995) e concerne as figuras jé estabilizadas ~ individuais ou coletivas. Também se incluem af os objetos que acreditamos constituir a realidade: coisas e estados de coisa, com contornos definidos que thes emprestam caréter constante e cujos limites parecem claramente distingui-los uns dos outros. As formas do ‘mundo constituem-se naquilo que o pensamento da representagio® reconhece como objetos do conhecimento, com suas regularidades apreensiveis por leis, pelo cAlculo probabilistico das ciéncias. No entanto, afastados desse modelo de conhecimento, os objetos do mundo, diferente de possuirem natureza fixa, de os- tentarem invarincia, abrem-se & variag4o, ou melhor, esto em constante processo de transformacdo. Eles sio resultantes de composigdes do plano das formas com o plano movente das for- as ou coletivo de forgas. O que algumas ciéncias e filosofias tomam por realidades atemporais so, na verdade, efeitos da relagdo entre os dois planos. As formas resultam dos jogos de forcas ¢ correspondem a coagulagdes, a conglomerados de veto- res, A delimitagio formal dos objetos do mundo resulta da lenti- ficagdo e da redundancia que a configuragao das forgas assume num momento dado. Ou seja, gragas a provis6ria estabilizagao dos jogos de forga somos convencidos da universalidade do mundo a nossa volta (Deleuze, 1995) Ao articularmos as teses de Michel Foucault sobre o saber com 0 conceito de individuaco de Simondon, esclarecemos » Sobre o pensamento da representagio ver L. Pozzana e V. Kastrup, “Carto- {grafar € acompanhar processos”, nesta coletinea. 94 melhor © proceso genealdgico da produgdo das formas con- ceituais ¢ empiricas a partir do jogo ou diagrama de forgas. Segundo Foucault, a realidade com que lidamos emerge do pro- cesso de produgao do saber, efeito do movimento convergente de forgas, de carter discursivo e nao discursivo ~ duas modalida- des de praticas distintas, porém em relacdo de reciprocidade cons- tante e que produzem realidades. Entre as priticas discursivas ou de dizibilidade (Deleuze, 1988) encontram-se os alos realizados nos signos e que decidem sobre tudo aquilo que podemos dizer do ‘mundo. As priticas nio discursivas ou de visibilidade referem-se as agdes mudas dos corpos e criam modalidades de ver. Ou seja, a realidade ¢ resultante de modos de ver e de dizer produzidos num determinado momento hist6rico (Foucault, 1979). F nesse sentido que as conceituagées das ciéncias humanas tém falhado ao considerar 0 coletivo como restrito ao que ja é em si mesmo uma forma ou uma figura fechada, ignorando-o em sua dimensio mais ampla. Em tal dimensio, 0 conceito de coletivo refere-se ao plano das forgas também definid como plano de consisténcia ou de imanéncia (Deleuze e Pamet, 1998) ou, ainda, plano do instituinte (Lourau, 1995). 6 também o plano em que as foreas entram em relaZo: “relagbes de movimento ¢ de repouso, de Velocidade ¢ de lentidao, entre elementos néio formados, rela- tivamente ndo formados, moléculas ou particulas levadas por fluxos. Se ele desconhece figuras conceituais ou empiricas tampouco conhece sueitos, os grupos sociais, as coletividades, a sociedade...” (Deleuze e Parnet, 1998, p.108). ‘Também encontramos na obra de Gilbert Simondon fer~ ramentas conceituais que nos permite pensar o coletivo de for- ‘gas como plano geneal6gico das formas do mundo abandonando ‘a concepedo fixa e preestabelecida de realidade para concebé-Ia ‘em movimento continuo de criagao ou individuagio. Simondon (1989) denomina esse plano geneal6gico de transindividual ou pré-individual, Temos, ento, um coletivo transindividual, enten- ido como espago-tempo entre o individual e 0 social, espago dos intersticios, plano de criagio das formas individuais e sociais, origem de toda mudanga 95 Para a caracterizagao desse plano, Simondon apresentas ‘nos um sistema metaestével, portador de intensidades quénticas que nao atingem uma situagao de equilfbrio, seja pela compen- sagdo das forcas, seja por sua redugdo. A metaestabilidade nao & tampouco um estado de desequilibrio, intervalo entre perfodos de equilibrio. Ao contrério, a disparidade entre os componentes traduz sua natureza real. Compde-se de valores extremos jamais concilidveis, de particulas descontinuas, tais como as descritas pela fisica qudntica que, pelo aleat6rio de sua trajet6ria, fazem de seus componentes uma “materialidade energética em movimento” (Deleuze © Guattari, 1997). ‘A matéria pré-individual é definida por sua natureza no delimitavel em contornos precisos. Por esse motivo, é descrita como, fluxo de energia, como variagdes que interferem a todo instante na génese continua dos individuos. Isso traz. consequéncias metodo- 6gicas importantes: qualquer que seja 0 nosso objeto de pesquisa € preciso tomé-lo em sua dupla face, ou seja, como uma forma individuada que, devido & franja de pré-individualidade que car- rega consigo, est em constante movimento, em vias de diferir. Note-se que ao optar pelo uso do termo plano de forgas © nao campo de forgas, buscamos o afastamento da tradigio iniciada no século XIX e que inspira as ciéncias naturais € as cigncias humanas a pensar os fendmenos como resultantes do equilfbrio da dindmica de forgas. Surgida na fisica de Maxwell e reafirmada pela psicologia da Gestalt, por exemplo, a nogio de campo de forcas substituiu a ideia de um mundo formado de particulas isoladas, posteriormente ligadas umas as outras por forgas externas &s partes. Na concepeao de campo dinamico, as relagdes so primei- ras em relagdo aos termos ligados. Segundo essa concepgao, 0 espaco inteiro estaria coberto por linhas de forga constituidoras de ‘um campo dindmico, no qual a agao entre os compos € determinada pela configuracao de forgas presentes no conjunto total do campo, Percebe-se, em comum & concepgao de campo de forgas e plano de foreas, a prioridade aferida as relagdes na constituigdo da reali- dade, Ou seja, antes de definir a substdncia prépria aos corpos 96 que, entio, entrariam em relago uns com outros, transportando suas caracterfsticas originais para essa operacdo relacional entre corpos, siio as relagSes que determinam as propriedades das partes. Até esse ponto, as duas posigdes se aproximam. Porém duas distingdes precisam ser marcadas. O campo de forgas é regido por princfpios universais. Cada teoria elege regras inyaridveis de funcionamento desse campo como garantia da manutengdo de um télos fixo, de uma direcdo inalterdvel de todo fenémeno que, por sua vez, confere homogeneidade & natureza das relagdes af instaladas. A composigao de forgas pode variar a cada momento, porém é sempre previsivel a diregdio seguida, im- primindo ao movimento geral uma tnica direcdo, No caso em ques- ‘Ho, 05 te6ricos da Gestalt afirmam a tendéncia ao equilibrio, como a légica invariant, reguladora dos fendmenos da realidade, J4 na concepedo de plano coletivo de forgas, nio existem regras fixas, modos privilegiados de relagdo, As modatidades dos elose as dire- ‘Ges multiplicam-se nas diferentes composigdes momenténeas & locais entre as forgas. Ao mesmo tempo, 0 ideal de equilibrio, como diregdo nica e privilegiada, também desaparece. A pluralidade substitui a sintese unificadora, e 0 principio de estabilidade dé lugar & dindmica da metaestabilidade. Assim. como pudemos pensar a distingo entre o plano das formas e 0 plano das forcas a partir dos conceitos de pré- individual metaestabilidade de Simondon, cabe apontar a inevi- tavel relagdo entre os dois planos, explicitada por esse pensador, através do conceito de individuagdo. A individuagdo definida como o processo através do qual ocomre a constituigao das formas individuadas, dos individuos fisicos, orgéinicos, psfquicos ¢ sociais. Esse processo de tomada de forma pressupde, segundo Simondon (1964), uma defasagem ou desdobramento do ser em duas dimen- sdes. Uma delas a dimensfo individuada, marcada pela tendéncia repeticZo de sie, portanto, reconhecida por regularidades facil- mente delimitaveis e, neste sentido, capturtivel pelo exercfcio da representagio. A outra dimensio seria a do pré-individual, cons- tituida por pontos singulares, isto é, por puras diferengas poten- 7 ciais, alheias & ordenagdo. Como afirmado anteriormente, essa realidade pré-individual — condigao prévia da individuagao — é um sistema metaestavel, rico em potenciais, portador de intensida- des e singularidades, Enquanto a dimensao do individuado ostenta aparente contomno e homogeneidade interna, esta outra, a do pré= individual, € caracterizada justamente pela inexisténcia de limi- tes e por sua dessimetria, Visto ndo existie repeticao entre os com= ponentes do segundo plano, ndo hé denominador comum que os Unifique ou elos classificadores, ites 2s estratégias de organizagao, 0s objetos ou fatos empfricos, como formas individualiza- das, possuem uma realidade pré-individual. Do contato entre os dois planos dessimétricos ~ por serem possuidores de regimes de funcionamento dispares ~ criam-se estados criticos, situagoes problematicas que exigem a procura de resolugdes. As singula- ridades, em contato com a forma, propdem-the novas direcdes Outras ordens so anunciadas e, com elas, novos prinefpios ca- pazes de lidar com a incompatibilidade. O ser passa a ser descrito pela busca incessante dos modos de regulagio compativeis com as diferencas. Cada nova fase individuada redefine tanto o indivi- duado quanto o pré-individual. E 0 que é mais importante: todo ser individuado (um individuo, um grupo social, uma instituigao) permanece, apés a individuagao, com uma carga pré-individual que pode ser ativada a qualquer momento, 0 que os torna seres sempre inacabados ¢ em permanente processo de individuagao, Vemos aqui a dimensio pré-individual ou transindividual, ‘como tum plano de intensidades e singularidades impessoais que permanecem acopladas as formas individuadas como uma franja de virtualidades, permitindo sempre novas individuagdes. Novas formas surgem a partir de novos estados criticos gerados na co- ‘miunicagdo entre as duas dimensées. O coletivo transindividual € 0 plano instituinte e molecular do coletivo, No entanto, ele no é um plano transcendente, mas um plano imanente ¢ concreto de pri- ticas € de relagdes ético-politicas. Nesse sentido, o olhar do pesqui- sador yoltado exclusivamente ao plano das formas instituidas reyela sua insuficiéneia, na medida em que deixaria de fora da 98 investigacao parte constituinte do objeto estudado. As coisas € 1s estados de coisas, presentes nto plano das formas, néo seriam realidades fixas, mas efeito de recortes temporais do processo corresponderiam a determinados momentos ou fases do con- {inuo movimento de variago gerado pelo contato. O que que- temos ressaltar € que o saber nunca esté frente a formas fixas, dladas desde sempre. Nesse sentido, o que as priticas do saber, filos6ficas ou cientificas, realizam, quando referendadas a0 mo- delo da representagio, sfio recortes nesse proceso sempre em andamento. Consequentemente, tomam determinados momen- tos do processo, caracterizados por certa lentificagao, como paralisagdes e assim interpretam como constancia universal 0 que corresponderia apenas a uma fase de um processo maior (Kastrup, Tedesco e Passos, 2008). 0 método da cartografia e o plano coletivo de forcas Restritas A dimensdo das formas, as metodologias tradi- cionais de pesquisa nfo conseguem apreender a marca mais senufna da realidade, seu processo continuo de individuago, ou se preferirmos, seu processo de criasio. O desafio da cartogra- fia € justamente a investigagio de formas, porém, indissocia- das de sua dimensio processual, ou seja, do plano coletivo das forgas moventes. Se o plano pré-individual das forgas esté sempre presente, 0 lado do plano das formas, como poténcia para novas indivi- dluagoes, acessar 0 plano coletivo de forgas € esseneial & pesquisa cartografica. Em primeiro lugar para provoear a ampliagio do olhar e assim ser capaz de atingir outras dimens6es dos objetos do conhecimento, ou seja, a processualidade que marca os aconte- cimentos do mundo. E, em segundo lugar, para realizar-se como pesquisa intervengio, Pois aceder a dimensfio movente da reali- dade significa afetar as condigdes de génese dos objetos, ¢ assim poder intervir e fazer derivas, num processo de diferenciagao, novas formas ainda nao atualizadas. 99 Sendo assim, duas quest5es se impdem ao cartégrafo. primeira é se toda e qualquer pratica ativa esse plano pré-i vidual ¢ molecular do coletivo. A segunda é se determin: prdticas obstruem o acesso a esse plano de criagao trabalhando favor da permanéncia e cristalizagio das formas, enquanto out acionam tal plano. Perguntamos: como, em nossas praticas cartografia, podemos trabalhar a favor da ativacdo do plano trans individual? Ou no se trata de ativagdo, mas de construgio do plano transindividual’? Aspe e Combes (2004) afirmam que “o transindividual deve ser construido, elaborado (s/p)” ¢ que para isso € preciso “encon- tar modalidades pelas quais a transindividualidade possa existir fora do ato especulativo” (s/p). Trata-se de modos de fazer espe= cificos, de métodos competentes em aceder ao plano de forgas. Acteditamos que a cartografia, pela indissociabilidade que opera entre pesquisa e intervengaio, indica essa possibilidade de construe gio de dominios coletivos e metaestveis, para além da mera observagio ou descrigo de realidades coletivas, Tal competéncia dirige-se & construgdo de um plano no qual as relagdes escapem a organizagdo, normalmente estabele- ccida pelo pensamento da representagao, no plano das formas. As classificagdes, hierarquizagbes, dicotomias, formas e figuras, tio familiares a nossa realidade cotidiana, precisam desaparecer, mesmo que por instantes, para que os corpos se exponham em: seu estado de variagdio o mais intensivo, isto 6, como qualidades puras ainda no reduzidas as categorias da representago, Como puras difereneas ou forgas livres da organizaco do pensamento representacional e das ages corriqueiras, os componentes do coletivo afetam o plano da organizagao das formas para instau- rar condigGes de diferenciagao reciproca, produzindo um a mais de forca, agilizando vetores de criagaio de novas formas que niio pertenciam @ nenhum dos componentes ja existentes e nem ao somatério desses. E do encontro, do contagio recfproco ali operado entre as diferengas puras, constituintes do plano cole~ tivo de forgas, ou coletivo transindividual, que as novas formas ganham realidade. 100 Experimentacées cartograficas na satide publica Entre 2004 e 2006 realizamos uma pesquisa cujo objetivo foi cartografar as praticas dos psicélogos no campo da satide men- tal em Aracaju. Antes de iniciar a pesquisa ja tinhamos uma inser- Gio nese campo especifico, como supervisores de estégio em Psicologia e Instituigao de Satide Mental. Ou seja, havia um movi- ‘mento de interveneao institucional que se desdobra a partir de um determinado momento e se constituiu como pesquisa cartogréfica. Numa primeira etapa visitamos servigos da rede substitu- tiva (CAPS e Centros de Referéncia em Satide Mental), entre- vvistamos psicélogos e realizamos observacio participante em algu- ‘mas atividades dos CAPS. Com isso pudemos fazer um levanta- mento inicial das modalidades de préticas existentes no campo, da relagio que os psiclogos estabeleciam entre essas préticas € alguns principios, conceitos ¢ dispositivos da Reforma Sanitaria e da Reforma Psiquidtrica, além de identificar principais desafios, avangos ¢ dificuldades encontradas no cotidiano dos servigos. Concluida essa etapa sabfamos que os dados, embora indicassem aspectos importantes das préticas operavam. um recorte num pro- cesso permanente de individuacao, revelando apenas a dimensio formal e instituida destas priticas, O desafio era continuar a pes- quisa focando na processualidade, ou seja, na dimensio de cria- gio das priticas, no plano de forgas denominado por Simondon como coletivo transindividual. A estratégia pensada para continuidade da pesquisa foi criar um espago coletivo de discussdo com os psicdlogos sobre as suas priticas na Rede de Atencdo Psicossocial tendo como ele- + A pesquisa teve inicio em 2004 com o titulo “Produgio de satide © subjetividade: cartografias das priticas dos psic6logos na rede de atenco psicossocial do SUS-Aracaju". No segundo ano passou a ser denominada “Producio de Satide e subjetividade: Projeto Clinamen”. A equipe de pesquisa era composta por dois pesquisadores (Liliana da Escéssia e Mauricio Mangueira) e seis alunas/bolsistas (Aline Morschel, Aline Belém, ‘Taylanne Aragjo, Deyse Andrade, Karen Leite ¢ Fernanda Mendonga) da Universidade Federal de Sergipe. 101 mento disparador os dados resultantes da etapa anterior. © objetivo eta ampliar a pesquisa para além da mera observagio ou des ‘do de realidades, e 0 objeto —as priticas psicolégicas — para além de sua dimenstio formal e representacional. A aposta residia na possibilidade de instauragao de um regime de comunicagao capaz de colocar em relagdo ndo apenas sujeitos, grupos e coletivos — enquanto formas individuais e sociais ~ mas o coletivo de forgas «que permanece acoplado aos sujeitos, grupos ¢ coletivos apés cada tomada de forma. O Projeto Clinamen': encontros de clinica € politica em saiide mental foi o desvio metodol6gico criado num. movimento transdutivo® da pesquisa em que uma agio, inicial- mente localizada num ponto da rede na qual esté inserido 0 objeto, desloca-se para outro ponto desdobrando-se em novas agdes. Clinamen efetivou-se através de oito oficinas, realizadas a0 longo de um ano, nas quais pudemos acompanhar processos” de individuagao do objeto, dos pesquisadores e do conhecimento produzido, numa dindmica em que conhecer e fazer se apresen- ‘tam como ages simultineas e insepariveis. Deslocamentos, am= pliagdes, propagagdes e desdobramentos de toda ordem vaio sendo produzidos no decorrer das oficinas, a partir de problematizacdes e articulagdes coletivamente tecidas entre o objeto e a realidade miitipla e diversa na qual este estava inserido ou conectado. J na primeira oficina, uma questo colocada por um dos participantes tensiona o grupo forgando sua forma, seus limites: “Por que s6 psicélogo aqui? Eu no consigo vera pritica dos psi- cdlogos separadas da de outros profissionais, acho que devfamos convidar outros trabalhadores ¢ os gestores também, Nio hé pratica psi, 0 que ha so priticas nos CAPS, nas referéncias, no SUS”. Alguns concordam e acham que todos os profissionais da De origem grega, klinamen indica inclinagio ou desvio. Transdugdo, segundo Simondon (1989), € uma operacio fisica, biol6gica, ‘mental, ou social, pela qual uma atividade se propaga gradativamente no interior de um dominio. A operago transdutiva ¢ definida ainda como uma individuagio em progresso. L. Pozzana e V. Kastrup, “Cartografar € acompanhar processos”, nesta coletines, 102 rede municipal devem ser convidados para a proxima oficina, outros discordam alegando que se trata de uma oportunidade Jinica de os psicdlogos problematizarem suas préticas de forma inais “protegida’ e que a presenga de outros profissionais causard inibigdio, Ha quem considere que a incluso deve ser irrestrita, devendo participar todos que apresentem interesse, seja psicélogo ou ndo, seja de Aracaju ou de qualquer outro municfpio do estado. Convergéncias e divergéncias de opinides se alternam, posigdes yao sendo redefinidas numa dinamica de contigio e propagagio que independe de decisio ou yontade individual. Grupos de di ‘cussiio menores so formados © a questio insiste, de maneira intensiva e impessoal, tal como um analisador que, a0 ser pro- duzido por uma situago/contexto age imediatamente sobre este produzindo movimentos instituintes. Ou, tal como uma tensfo de informagao produzida por germens potenciais em dominios metaestiveis. Simondon define essa tenstio de informagao como “a propriedade que possui um esquema de estruturar um dominio, de se propagar através dele, ordenando-o (1989, p.54)”, ou como ele proprio afirma, modulando-o. Resulta, ao final dessa oficina, o seguinte encaminhamen- 10: 0 préximo encontro seria ainda restrito a psicélogos, mas estes poderiam estar lotados em qualquer municfpio do estado e em {qualquer instituigdo piblica que possuisse algum tipo de artieu- lagio com a satide publica, a exemplo da justica, da assisténcia social. A partir da segunda oficina essa forma-coletivo vai sofren- do modulagdes, num movimento de ampliago e propagagao che- gando a incorporar trabalhadores em satide mental, independente de sua formagio e local de trabalho. Isso impde novos desdo- bramentos metodolégicos, pois nio se trata mais de acompanhar praticas de psicélogos, mas prdticas em saiide mental. Novas individuagdes/modulagdes do objeto e, consequentemente, novos caminhos € desvios. Na terceira oficina a questio da clfnica em satide mental ‘emerge como problema e, embora se mantenha como tema-foco das oficinas subsequentes, vai passando por transformagdes que se corporificam em diferentes modos de se colocar o problema, 103 ou, melhor dizendo, na produgao de novos problemas: Qual é a clinica psi no campo da satide mental? Que clinica é essa da Reforma Psiquidtrica, da Satide Mental? O que & que se passa nessa tal clinica ampliada, antimanicomial? O que esses nomes apontam, tragam? Como se opera, como se faz essa clinica? De~ ccidimos tomar essas perguntas e colocé-las para funcionar, proble- ‘matizé-las, transformé-las em novos problemas, abrir os vetores que elas apontam e colocé-los em anélise assim como as institui- ges que af esto presentes (a instituigao clfnica, satide mental, universidade, psicologia, psicologia comunitéria, andlise insti- tucional, dentre outras). A cartografia possibilitou colocar um problema em processo de variaco e acompanhar 0 proceso * Esse foi o movimento tragado da terceita oficina em diante. Dentre as fungdes possfveis de serem experimentadas numa pesquisa cartogréfica, e que permitem 0 acesso ao plano instituinte das forgas, ou, ao plano do coletivo transindividual, duas se des- tacaram nas oficinas Clinamen: a fungao transversalizacao e a fun- Gio transducdo, A fungao transdugdo efetiva-se por meio de agdes € movimentos que se propagam, gradativamente, de um dominio para outro © em varias diregdes produzindo atragdes, contigios, encontros ¢ transformagées. A fungéio transversalizagtio diz. res- peito 2 ampliacdo e intensificagdio da capacidade de comunica- ‘gio? entre sujeitos € grupos (Guattari, 1981) ¢ de intersecgao entre elementos e fluxos heterogéneos, materiais e imateriais. Remete a uma ética da conectividade (Simondon, 1989) nos processos, numa busea de superagao das légicas comunicacionais vertica- lizadas ou horizontalizadas, elas proprias, individualizantes, © Nesse momento da pesquisa contamos com a participagio decisiva de Eduardo Passos e Regina Benevides em duas oficinas, * Consideramos que se opera ums ag30_intensiva sobre 0 provesso de ‘comunicacdo, o que & diferente de uma simples ampliagio de seu modo de ene eet ea le ee ae levao.conceito de comunicagio ao seu limite a0 desestablizar seus prinespios ‘mais bésicos. Trata-se agui de comunicagZo sem cédigo comum e sem ‘ransmisso de informarao, numa experiéncia de contégio pela diferenca pura (ef Tedesco, 2008), 104 Nas oficinas Clinamen, a fungio-movimento transdugio ¢ a de transversalizagao produziram experiéncias, mesmo que ‘momentineas, de dissolugao de classificagées, hierarquizagdes € dicotomias presentes nas realidades institucionais cotidianas (entre campo de saberes e profissdes, entre pesquisadores © pes- quisados, alunos e professores, trabalho e formago), permitindo 1 instauragio de um plano relacional que produz ressondncia e conectividade entre miltiplas dimensdes da realidade, estas tam- bém concebidas como redes de relagées. Deleuze ressalta essa poténcia das conexdes quando afirma: “O problema coletivo, en- consiste em instaurar, encontrar ou reencontrar um maximo de conexdes. Pois as conexdes (¢ as disjung6es) sao precisamente a fisica das relagdes, o cosmos” (1997, p.62). Nesse sentido, uma pesquisa cartogréfica, ao intensificar a comunicacio, possibilitar relagdes entre relagdes, atragdes © contigios ativa o plano coletivo de forgas ~ 0 coletivo transindi- vidual. Ao cartégrafo cabe se deixar leva, em certa medida, por esse plano coletivo®, nao por falta de rigor metodolégico, mas porque uma atitude atencional prépria do eartégrafo", que © per mite acompanhar as modulagdes e individuagdes dos objetos e da realidade. Podemos dizer, a partir de Simondon, que se trata tam- bém de uma ética cartografica. Em estudos anteriores (Esedssia, 1999, 2003) assinalamos que as nogdes de metaestabilidade e de informagio, tal como formuladas pela teoria da individuagao de ‘Simondon, constituiam a base de uma proposta ética nao somente na relacdo homem-téenica, mas em toda ¢ qualquer relacio. Em tal proposta, a ética é uma realidade reticular, Vejamos 0 que diz este pensador: “A realidade ética esta estruturada em rede, isto é hha uma ressondincia dos atos, uns com relag#o aos outros.[-.] No sistema que eles formam e que € 0 devir do ser” (Simondon, L, Pozzana e V. Kastrup, “Cartografar é acompanhar processos”, nesta coletinea. 7 § Y, Kastrup, “O funcionamento da atengiio no trabalho do cart6grafo”, nesta coletanea, 105

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