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PROFESSOR-REFLEXIVO: DA ALIENAÇÃO DA TÉCNICA

À AUTONOMIA DA CRÍTICA
Evandro Luiz Ghedin (USP)1

1. Do prático-reflexivo à epistemologia da práxis


O caminho aberto pela necessidade da reflexão, como modelo de formação, propôs uma
série de intervenções que tornou possível, ao nível teórico e prático, um novo modo de ver, perceber
e atuar na formação dos professores. Com todas as críticas e acréscimos que se façam a proposta
feita por Schön, é inegável a sua contribuição para uma nova visão da formação, e porque não dizer,
de um paradigma esquecido pelos centros de formação. A grande crítica que se coloca contra Schön
não é tanto a realização prática de sua proposta, mas seus fundamentos pragmáticos. A questão que
me parece central é que o conhecimento pode e vem da prática mas não há como situá-lo
exlusivamente nisto. É decorrente desta redução que se faz da reflexão situada nos espaços estreitos
da sala de aula que se situa a crítica ao conceito de professor reflexivo.
Esta crítica não é exclusiva ao Schön, mas à razão técnica, pois a racionalidade técnica
consiste numa epistemologia da prática que deriva da filosofia positivista e se constrói sobre os
próprios princípios da investigação universitária contemporânea (Schön, 1992). A racionalidade
técnica defende a idéia de que os profissionais solucionem problemas instrumentais mediante a
seleção dos meios técnicos. Para Schön (1992) os profissionais da prática que são rigorosos
resolvem problemas instrumentais bem estruturados mediante a aplicação da teoria e a técnica que
derivam do conhecimento sistemático. O questionamento a este tipo de profissionalização é que
quando se esgota o repertório teórico e os instrumentos construídos como referenciais, o
profissional não sabe como lidar com a situação. É diante disto que se justifica a proposta de Schön,
o problema foi ele ter reduzido a reflexão, como proposta alternativa para a formação, ao espaço da
própria técnica.
O que Schön está criticando é que o conhecimento não se aplica a ação, mas está tacitamente
encarnado nela e é por isso que é um conhecimento na ação. Mas isto não quer dizer que seja
exclusivamente prático. Se assim o for estaremos reduzindo todo saber a sua dimensão prática e
excluindo sua dimensão teórica. O conhecimento é sempre uma relação que se estabelece entre a
prática e as nossas interpretações da mesma; é a isso que chamamos de teoria, isto é, um modo de
ver e interpretar nosso modo de agir no mundo. A reflexão sobre a prática constitui o
questionamento da prática, e um questionamento efetivo inclui intervenções e mudanças. Para isto
há de se ter, antes de tudo, de algum modo, algo que desperte a problematicidade desta situação. A

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Professor de Filosofia. Pós-Graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília. Pós-Graduado em
Antropologia na Amazônia e Mestre em Educação pela Universidade do Amazonas. Doutorando em Filosofia da
Educação na Universidade de São Paulo.
capacidade de questionamento e de autoquestionamento é pressuposto para a reflexão. Esta não
existe isolada, mas é resultado de um amplo processo de procura que se dá no constante
questionamento entre o que se pensa (enquanto teoria que orienta uma determinada prática) e o que
se faz.
No que diz respeito a formação de professores há de se operar uma mudança da
epistemologia da prática para a epistemologia da práxis, pois a práxis é um movimento
operacionalizado simultaneamente pela ação e reflexão, isto é, a práxis é uma ação final que traz, no
seu interior, a inseparabilidade entre teoria e prática. O processo humano de compreensão-ação é,
intrinsecamente, uma dinâmica que se lança continuamente diante da própria consciência de sua
ação. Mas, a ação, puramente consciente da ação, não realiza em si uma práxis. A consciência-
práxis é aquela que age orientada por uma dada teoria e tem consciência de tal orientação. Teoria e
prática são processos indissociáveis. Separá-los é arriscar demasiadamente a perda da própria
possibilidade de reflexão e compreensão. A separação de teoria e prática se constitui na negação da
identidade humana. Quando se executa tal movimento permite-se o retorno à negação do ser, isto é,
ao se negar a indissociabilidade entre prática e teoria, nega-se, em seu interior, aquilo que tornou o
ser humano possível: a reflexão instaurada pela pergunta. A alienação encontra-se justamente na
separação e dissociação entre teoria e prática.

2. Da epistemologia da prática à autonomia emancipadora da crítica


Como assinala o próprio Schön, a prática profissional desenvolvida sob uma perspectiva
reflexiva não é uma prática que se realiza abstraindo-se do contexto social no qual ocorre. Este é um
contexto que representa também diferentes interesses e valores. Os professores não estão a margem
da discussão pública sobre as finalidades do ensino e sua organização. Pelo contrário, se encontram
precisamente no meio das contradições presentes na sociedade. Pôr isso mesmo, não podem, de
modo algum, nas suar reflexões e ações, deixar de levar em consideração tal contexto como
condicionante de sua própria prática. Sob este ponto de vista, a deliberação prática e o juízo
profissional autônomo se realizam no contexto dos elementos que intervém na reflexão, e ela
participa do conflito ideológico ou a contradição de interesses que se desenvolve publicamente.
Aqui assume relevância ímpar a crítica, pois os professores têm a responsabilidade de ter
opiniões informadas e critérios de valor argumentáveis, assim como de defendê-los publicamente.
Ao estabelecer as relações entre a prática reflexiva do ensino em aula e a participação nos contextos
sociais que afetam sua atuação, o professor reflexivo estende suas deliberações profissionais a uma
situação social mais ampla, colaborando para que se gere uma mudança social e pública que possa
ser mais reflexiva (Contreras, 1997) e ampliar o horizonte da compreensão crítica de sua atuação.

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Quando se defende a idéia do professor como profissional reflexivo não se está revelando
nenhum conteúdo para a reflexão. Não se está propondo qual deve ser o campo de reflexão e onde
estão situados seus limites. Pressupõe-se que o potencial da reflexão ajudará a reconstruir tradições
emancipadoras implícitas nos valores de nossa sociedade. O que está em dúvida é se os processos
reflexivos, por suas próprias qualidades, se dirigem a consciência e realização dos ideais de
emancipação, igualdade ou justiça; ou se poderiam estar ao serviço da justificação de outras normas
e princípios vigentes em nossa sociedade, como a meritocracia, o individualismo, a tecnocracia e o
controle social.
A escola representa aspirações e valores que nem sempre são resultados claramente
compatíveis. Precisamos entender de que maneira os docentes podem manejar estes processos de
interação entre seus interesses e valores e os conflitos que a escola representa, com o objetivo de
entender melhor que possivilidades de reflexão crítica podem gerar-se na pertença a instituição
educativa. A conclusão que poderíamos tirar é que os professores ao defender uma posição mais
vantajosa acabam reduzindo suas preocupações e suas perspectivas de análise aos problemas e as
situações internas ao espaço da sala de aula. Não se pode pretender que a situação mude apelando
por uma simples transformação destas condições, como se um exercício de vontade pessoal por
parte dos docentes fosse capaz de uma mudança; ou ainda, que a transformação possa realizar-se só
por um desejo de deixar de ser individualista, presentista e conservador.
Muitos professores tendem a limitar seu mundo de ação e de reflexão a aula. É necessário
transcender os limites que se apresentam inscritos em seu trabalho, superando uma visão meramente
técnica na qual os problemas se reduzem a como cumprir as metas que a instituição já tem fixadas.
Esta tarefa requer a habilidade de problematizar as visões sobre a prática docente e suas
circunstâncias, tanto sobre o papel dos professores como sobre a função que cumpre a educação
escolar. Isto supõe: que cada professor analise o sentido político, cultural e econômico que cumpre
à escola; como esse sentido condiciona a forma em que ocorrem as coisas no ensino; o modo em
que se assimila a própria função; como se tem interiorizado os padrões ideológicos sobre os quais se
sustenta a estrutura educativa.
Isto indica que o trabalho docente é uma tarefa eminentemente intelectual e implica num
saber fazer (Santos, 1998). Conceber o trabalho dos professores e professoras como trabalho
intelectual quer dizer, pois, desenvolver um conhecimento sobre o ensino que reconheça e questione
sua natureza socialmente construída e o modo em que se relaciona com a ordem social, assim como
analisar as possibilidades transformadoras implícitas no contexto social das aulas e do ensino
(Contreras, 1997).
A definição do professor como intelectual transformador permite expressar sua tarefa nos
termos do compromisso com um conteúdo muito definido: elaborar tanto a crítica das condições de

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seu trabalho como uma linguagem de possibilidade que se abra a construção de uma sociedade mais
democrática e mais justa, educando o seu alunado como cidadãos críticos, ativos e comprometidos
na construção de uma vida individual e pública digna de ser vivida, guiados pelos princípios de
solidariedade e de esperança (Contreras, 1997).
Refletir criticamente significa colocar-se no contexto de uma ação, na história da situação,
participar em uma atividade social e tomar postura ante os problemas. Significa explorar a natureza
social e histórica, tanto de nossa relação como atores nas práticas institucionalizadas da educação,
como a relação entre nosso pensamento e nossa ação educativa. A reflexão crítica induz a ser
concebida como uma atividade pública, reclamando a organização das pessoas envolvidas e
dirigindo-se a elaboração de processos sistemáticos de crítica que permitiriam a reformulação de
sua teoria e sua prática social e de suas condições de trabalho (McCarthy, 1987).
Um processo de reflexão crítica permitiria aos professores avançar num processo de
transformação da prática pedagógica mediante sua própria transformação como intelectuais críticos,
isto requer a tomada de consciência dos valores e significados ideológicos implícitos nas atuações
docentes e nas instituições, e uma ação transformadora dirigida a eliminar a irracionalidade e a
injustiça existentes nestas instituições (Contreras, 1997). A reflexão crítica apela a uma crítica da
interiorização de valores sociais dominantes, como maneira de tomar consciência de suas origens e
de seus efeitos.
Habermas (1990) defende a autoreflexão como a possibilidade de trazer à consciência os
determinantes de uma forma concreta de estar estruturada a realidade social, processos pelo qual, ao
fazer-se consciente de tais determinantes, se desfazem seus poderes repressivos sobre a razão.
Porém, a forma em que resolve tal possibilidade da autoreflexão que desfaz as distorções da
consciência é distinguindo dois tipos de reflexão: o momento da crítica do particular e o momento
das formas de reflexão transcendental ou de reconstrução racional, base dos teoremas críticos, a
partir dos quais se desenvolve o anterior momento crítico do particular.
O que sugere o modelo do professorado como intelectual crítico é que tanto a compreensão
dos fatores sociais e institucionais que condicionam a prática educativa, como a emancipação das
formas de dominação que afetam nosso pensamento e nossa ação não são processos espontâneos
que se produzem naturalmente. O intelectual crítico está preocupado pela captação e potenciação
dos aspectos de sua prática profissional que conservam uma possibilidade de ação educativamente
valiosa (Contraras, 1997).
Tudo isto supõe um processo de oposição ou de resistência a grande parte dos discursos, as
relações e as formas de organização do sistema escolar, uma resistência a aceitar como missão
profissional aquela que já aparece inscrita na definição institucional do papel docente. A aspiração a
emancipação não se interpreta como a conquista de um direito individual profissional, mas como a

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construção das conexões entre a realização da prática profissional e o contexto social mais amplo,
que também deve transformar-se.

BIBLIOGRAFIA

ALARCÃO, Isabel (org.). Formação reflexiva de professores. Estratégias de supervisão. Porto: Porto
Editora, 1996.
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GARRIDO, Elsa – PIMENTA, Selma Garrido – MOURA, Manoel Orisvaldo de. “A pesquisa
colaborativa na escola como abordagem facilitadora para o desenvolvimento da profissão do professor”.
In: MARIN, Alda Junqueira (org.). Educação Continuada. Campinas – SP: Papirus, 2000: 89-112.
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Petrópolis: Vozes, 1986.
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo e
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McCARTHY, Thomas. La Teoria Crítica de Jürgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1987.
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PIMENTA, Selma Garrido (org.). Saberes Pedagógicos e atividades docentes. São Paulo: Cortez, 2000:
15-34.
SACRISTÁN, José Gimeno. “Mudanças curriculares na Espanha, Brasil e Argentina” in: Pátio, ano 1,
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SAVIANI, Demerval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 6ª.ed. São Paulo: Cortez –
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VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Praxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
ZEICHNER, K. (1992) El maestro como profesional reflexivo. Cuadernos de Pedagogía, 220, 44-49.

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ESQUEMA
PROFESSOR-REFLEXIVO: DA ALIENAÇÃO DA TÉCNICA À AUTONOMIA DA CRÍTICA

I - Do prático-reflexivo à epistemologia da práxis


ƒ A formação de professores orientada por um positivismo pragmático;
ƒ As contribuições de Shön e seus fundamentos pragmáticos;
ƒ Críticas à razão técnica e seu modelo de conhecimento;
ƒ A epistemologia da prática e o prático-reflexivo;
ƒ O conhecimento se dá na ação e é uma prática interpretativa;
ƒ Para além do prático-reflexivo: a epistemologia da práxis.

II - da epistemologia da prática à outonomia emancipadora da crítica


ƒ A prática ocorre num contexto social determinado;
ƒ A reflexão crítica surge da participação nos contextos sociais;
ƒ A mudança da prática há de buscar interferência na estrutura social;
ƒ O potencial da reflexão está na reconstrução da emancipação;
ƒ Sair da sala de aula, superando uma visão técnica, para o sentido político, cultural e econômico
que cumpre a escola;
ƒ O professor como intelectual crítico e sua emancipação;
ƒ Refletir criticamente significa colocar-se no contexto de uma ação;
ƒ A reflexão crítica é uma construção social e política sobre como a sociedade se organiza em
função do interesse de classe;
ƒ A reflexão crítica no reconhecimento das diferenças;
ƒ O modelo crítico não é um processo espontâneo e natural. É um esforço para desvelar a
ocultação ideológica;
ƒ A crítica é um processo de oposição e resistência à uma missão inscrita na definição
institucional do papel docente;
ƒ A emancipação profissional passa pelo contexto social a ser transformado.

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