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ANTROPOLOGIA

2a edição revisada
Governo do Estado do Maranhão
Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia,
Ensino Superior e Desenvolvimento Tecnológico
Universidade Estadual do Maranhão - UEMA
Núcleo de Tecnologias para Educação - UemaNet

Carlos Benedito Rodrigues da Silva

ANTROPOLOGIA

São Luís
2009
Governadora do Estado do Maranhão Edição:
Roseana Sarney Murad Universidade Estadual do Maranhão - UEMA
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parte, sem a prévia autorização desta instituição.

Silva, Carlos Benedito Rodrigues da,


Antropologia / Carlos Benedito Rodrigues da Silva
(org.). 2. ed. rev. — São Luís: UemaNet, 2010.

123 p.

1. Antropologia. I. Carlos Benedito da Silva II.


Título.

CDU: 1:37
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO

UNIDADE 1

CIÊNCIAS DA NATUREZA E CIÊNCIAS HUMANAS ................... 23

UNIDADE 2

O DESENVOLVIMENTO DA ANTROPOLOGIA: definição, divisões,

objeto e métodos ..................................................... 39

UNIDADE 3

CONCEITUAÇÃO ANTROPOLÓGICA DE RAÇA E CULTURA ......... 79

REFERÊNCIAS .......................................................... 119


PLANO DE ENSINO

DISCIPLINA: Antropologia
Carga horária: 60 horas

EMENTA

Conceituação, objeto de estudo e objetivos; ciência da natureza e


ciência do homem, a Antropologia no quadro das ciências sociais;
natureza e cultura na Antropologia: cultura e sociedade no Brasil:
diferenciação étnico–cultural e educação; organização política
e econômica; linguagem, mito, religião e magia; a transmissão
cultural; unidade e diversidade; o popular e o erudito.

OBJETIVOS

Geral
¡ O curso proporcionará uma visão inicial do que é antropologia
e sua posição entre as demais ciências. Pretende introduzir o
aluno a realizar uma análise antropológica de problemas sociais
e educacionais, partindo de exemplos concretos e sugerindo o
debate de conceitos e teorias.
Específicos

¡ Definir cultura como fenômeno dinâmico de transformação e


diferenciação das sociedades humanas;
¡ Identificar os principais componentes da cultura e analisar
criticamente as posições etnocêntricas estereotipadas em
relação às minorias étnicas e sociais.

CONTEÚDOS PROGRAMÁTICOS

UNIDADE 1
CIÊNCIAS DA NATUREZA E CIÊNCIAS HUMANAS

UNIDADE 2
O DESENVOLVIMENTO DA ANTROPOLOGIA: definição, divisões,
objeto e métodos

Desenvolvimento das Escolas Antropológicas

Os Precursores da Etnografia

Métodos da Investigação Antropológica

UNIDADE 3
CONCEITUAÇÃO ANTROPOLÓGICA DE RAÇA E CULTURA

Diferenciação Étnico-Cultural e Educação: a transmissão da


cultura

Dimensão Cultural da Escola


METODOLOGIA

Os objetivos propostos serão alcançados mediante a realização de


videoaulas e atividades que possibilitem o desenvolvimento reflexi-
vo da leitura dos fascículos, livros e textos complementares através
de debates, seminários, trabalhos em grupos e individuais.

AVALIAÇÃO

A avaliação será feita em três momentos. O primeiro consistirá nos


trabalhos desenvolvidos junto ao orientador, através da consulta
individual, e dos trabalhos em grupo; o segundo será uma prova
escrita; e o terceiro será a realização do seminário temático.

SUGESTÃO DE LEITURAS E REFERÊNCIAS

Dicas de Filmes

Diferenciação étnico-cultural e Escola


¡ Central do Brasil – Diretor: Walter Sales; Brasil

¡ Mentes Perigosas – Diretor: John N. Smith;USA

¡ Sociedade dos Poetas Mortos (1991) – Diretor: Peter Weeir

Cultura e Diversidade
¡ Um grito de liberdade (1987) – Diretor: Richard Attenborough;
Reino Unido- 157’

¡ Mistérios da Humanidade – (National Geografhic Society).


Documentário sobre a origem do homem e sua evolução: A
descoberta dos fósseis, as marcas deixadas pelo homem e o
início do conhecimento da própria humanidade.

¡ A missão (1986) – Diretor: Roland Joffe; USA – 147’


¡ Guerra e Paz no Oriente Médio – O documentário analisa as
origens da guerra e as perspectivas de paz para a região. A
obra apresenta a cronologia detalhada do conflito (1947/1998)
e interessantes mapas dos países envolvidos.

Diversidade étnico-cultural no Brasil


¡ O Quatrilho (1995) – Diretor: Flávio Barreto; Brasil – 120’

¡ Xica da Silva (1995) – Diretor: Cacá Diegues; Brasil – 107’

¡ Gaijin – Os caminhos da liberdade – Diretor:Tizuka Yamasaki


ícones

Orientação para estudo

Ao longo desta apostila, você encontrará alguns ícones utilizados


para facilitar a comunicação com você.

Saiba, abaixo, o que cada um significa.

SUGESTÃO: FILMES
ATIVIDADES

REFERÊNCIA
SUGESTÃO: LIVROS BIBLIOGRÁFICA
APRESENTAÇÃO

D
esde o século XIX, a Antropologia traçou seus caminhos,
buscando ampliar a compreensão sobre as diversas formas
de existência e organização social da vida humana. Ao
longo dessa trajetória, criou conceitos, teorias, métodos de
investigação, mergulhou, enfim, em seu próprio interior no sentido
de definir-se mais adequadamente em relação à escolha do seu
objeto de estudo.

Em meados do século XX, a Antropologia adquiriu reconhecimento


no campo científico, apresentando novas conformações aos estudos
sobre cultura, etnia, raça, relações de parentesco, religiosidade,
organização social etc., ocupando espaços em todas as áreas de
conhecimento e exigindo novas posturas também dos estudiosos
das sociedades humanas.

O que apresentamos aqui é o resultado de análises e elaborações


de vários estudiosos que se debruçaram sobre a Antropologia, no
sentido de enfatizar sua importância no processo de conhecimento
da imensa diversidade étnica e cultural humana, em várias partes
do mundo.

A Antropologia não apresenta receitas nem fórmulas mágicas


para a produção do conhecimento, mas define-se com um corpo
teórico e procedimentos metodológicos próprios, forjados no
contato das diversas gerações de antropólogos, que se formaram
desde o século XIX, com as sociedades mais distanciadas cultural
e geograficamente em relação ao mundo ocidental. Neste sentido,
a antropologia sugere uma forma de olhar, uma forma de analisar
e interpretar o outro, o diferente, buscando neles as próprias
contradições da identidade do observador. Esse é o caminho
proposto pela Antropologia, como pedagogia de rompimento
com as noções preconceituosas, responsáveis por racismos,
colonizações e genocídios, que ainda permeiam as relações
humanas em várias partes do mundo. Portanto, a Antropologia
tem uma importância fundamental no processo educativo das
novas gerações. Especialmente, quando se pensa a educação em
um país de dimensões territoriais tão amplas e de culturas tão
diversificadas como é o Brasil.

Assim, esperamos com esse programa estar contribuindo para a


formação dos educadores a partir de uma formação antropológica,
relativizadora, que reconheça e enfatize o diferente, não em
termos de comparação entre superioridades e inferioridades, mas
na sua concepção de humanidade, na riqueza de ser diferente.

No primeiro capítulo, situaremos os alunos no processo de


construção do pensamento científico, abordando as relações
entre as diversas ciências, tanto as dedicadas ao estudo dos
fenômenos físicos da natureza quanto as ciências dedicadas aos
estudos das sociedades humanas, enfatizando a importância da
definição metodológica no processo de produção do conhecimento
e a definição do homem como conceito e objeto científico do
conhecimento. Em seguida, trabalharemos o processo de
construção da Antropologia, com suas definições, divisões, objeto
e métodos de investigação. Na terceira unidade abordaremos
acerca da conceituação antropológica de raça e cultura.
Posteriormente, indicaremos algumas sugestões de atividades,
como forma de avaliação do conhecimento adquirido pelos
alunos ao longo do desenvolvimento do programa. Finalmente,
indicaremos as sugestões de leituras, para orientar os alunos em
novas possibilidades de estudos.

Prof. Dr. Carlos Benedito R. da Silva


INTRODUÇÃO

ANTROPOLOGIA: um estudo sobre o homem


Contextualização Histórica do Nascimento da Antropologia

Desde tempos muito antigos, o ser humano nunca deixou de


questionar sobre sua existência. A curiosidade humana sempre
esteve aguçada na busca de explicações para o porquê das coisas
acontecerem dessa ou daquela maneira.

Também no campo científico, estudiosos de todas as áreas


do conhecimento concordam com o fato de que, em todas as
sociedades, sempre existiram indivíduos que se dedicaram a
pensar sobre as atitudes e comportamentos humanos.

Segundo o antropólogo francês François Laplantine (1999, p. 13), “A


reflexão do homem sobre o homem e sua sociedade e a elaboração
de um saber são, portanto, tão antigos quanto a humanidade, e
se deram na Ásia como na África, na América, na Oceania e na
Europa”.

Sem dúvidas, a curiosidade humana sempre esteve aguçada, mas


uma organização do conhecimento, ou seja, a constituição de uma
antropologia como saber científico que elege o homem como seu
objeto de conhecimento, uma “ciência de estudo do homem”, é
relativamente recente na história da humanidade, e só vai ocorrer
no final do século XVIII. Até então, muita informação se acumulou
desordenadamente, por iniciativas particulares de aventureiros,
missionários ou viajantes.

É possível identificar alguns fatos importantes que contribuíram


para a organização do “estudo do homem” e para a formação do
pensamento científico ocidental.

Podemos nos remeter ao grego Heródoto, considerado o “pai da


História”, que viveu no século V a.C e fazia observações sobre vários
povos e diferentes costumes, nas regiões onde era possível conhecer
o mundo naquela época (uma vez que os meios de comunicação
na época não favoreciam esse contato), especialmente os povos
definidos como bárbaros.
Heródoto
http://greciantiga.org/ Aliás, vocês devem saber que como bárbaros eram classificados
img/esc/as-
herodotos.jpg todos aqueles que não eram gregos, porque os gregos se definiam
com “os homens”, “os belos”, e não eram homens apenas
enquanto sinônimo de humanidade, eram o gênero masculino da
espécie. Dizem que os homens gregos se sentiam tão superiores e
importantes, que era degradante para um homem se relacionar
com uma mulher, pois esta era insignificante.

Pois bem, voltando a nossa viagem pelo estudo do homem, Heródo-


to falava, já na época, sobre um conceito dos mais atuais na Antro-
pologia contemporânea, o Etnocentrismo. Dizia ele, observando os
bárbaros, que se fosse dado aos homens, dentre todos os costumes
do mundo, escolher os melhores, eles acabariam escolhendo os seus
próprios costumes, pois estão sempre convencidos de que os seus
são melhores do que os dos outros.

Ora, ao nível pessoal, isso não tem grandes consequências. Uma


pessoa pode não gostar de outra por vários motivos, por ser gorda
ou por ser magra, por ser alta ou baixa. Alguém pode não gostar
de outro porque usa vermelho ou porque come caranguejo, ou
por outro motivo banal. Ou seja, é apenas um pré-conceito que
incomoda mais a quem pratica do que a quem sofre. Mas quando
essa atitude preconceituosa se caracteriza como rejeição a grupos
humanos, impedindo-os de exercitarem suas potencialidades, ou
é utilizada para definir as relações entre as nações do mundo, aí
está a origem dos grandes conflitos mundiais de caráter político,
religioso ou econômico. Os telejornais nos informam sobre isso
diariamente.

Bem, seguindo nossa viagem, chegamos ao ano 98 depois de Cristo.


Aliás, fazendo um parêntese aqui, vocês devem se dar conta também
de que Cristo é um “divisor de águas” na história da humanidade.
Tudo é demarcado antes e depois de Cristo. Mas, embora essa seja
uma questão instigante para debates, não é disso que quero falar.
Como já falei sobre o grego Heródoto, que viveu antes de Cristo,
vamos falar agora sobre Tácito, um romano que viveu depois de
Cristo e fazia reflexões sobre as tribos germânicas, atentando para
seus costumes e caráter em comparação com os romanos.

Vocês devem ter visto nas aulas de história, ou lido em algum lugar,
que os romanos viviam em grandes orgias, especialmente nas épocas
das colheitas. É interessante observar que a maioria das grandes
festas populares ocorrem na época das colheitas. No Maranhão, por
exemplo, tem a festa da juçara no Maracanã, a festa da melancia
em Arari, a festa do abacaxi em Turiaçu (bem, não tenho certeza,
mas se não acontecer, fica como sugestão). Todas essas festas estão
relacionadas com boas safras e fartura de alimentos. Mas, como o
Maranhão ainda não existia naquela época, vamos voltar a Roma.

Eu dizia que os romanos faziam grandes orgias na época das colheitas,


foi inclusive nessa época que inventaram o carnaval, a festa da carne.
Mas, Tácito então observava que, entre esses bárbaros alemães,
o casamento era uma instituição marcada pela austeridade e pela
moral, não havia as orgias como em Roma. Dizia ele, que os alemães
eram tão rígidos em seus costumes que, com raríssimas exceções, se
contentavam com apenas uma mulher para cada homem.

Ora, Tácito estava tomando como referência os costumes do seu


povo, onde homens e mulheres tomavam parte nas orgias. É claro
que isso se dava entre as castas superiores, porque o povo não tinha
acesso ao luxo, como sempre ocorreu na história da humanidade.
Essa reflexão sobre diferentes costumes fornece contribuições
importantes aos estudos sobre o comportamento humano. Isso tem
a ver com o que nós já falamos lá atrás, sobre o etnocentrismo,
tema que será explorado nas próximas unidades do nosso programa.

Seguindo nossa viagem, vamos observar que, depois das observações


de Tácito, existem alguns registros de viajantes, lá pelos séculos
XIII e XIV, como Marco Polo, que saiu da Itália e viajou pela China e
pelo resto da Ásia, por mais de 20 anos, transmitindo uma grande
quantidade de informações sobre povos e costumes até então
desconhecidos pelos italianos. Outros viajantes de outras regiões
do mundo também apresentaram registros importantes sobre os
africanos, sobre o islamismo etc.

Nessa trajetória, chegamos à Idade Média, a Era das grandes invenções


e grandes descobertas, que possibilitaram acréscimos importantes
sobre o conhecimento que o homem tinha acerca de si mesmo.

A Idade Média é marcada pela chegada dos portugueses e espanhóis


no Novo Mundo. É marcada, também, pelo fortalecimento da
Igreja Católica, e aí estabelece-se uma disputa acirrada entre a
Ciência e a Religião.

Nessa época, predomina o pensamento religioso como explicação dos


fenômenos da natureza. É o Teocentrismo, “o direito e o poder divino
dos reis”. Os reis governam segundo a lei de Deus. O catolicismo tem
ingerência em todas as instâncias e o seu instrumento de controle
é a Santa Inquisição. Todos os que se atrevessem a questionar o
poder da Igreja eram punidos por ela. Muitos pensadores tiveram
que negar seus conhecimentos e suas teorias sobre o universo e
os que não o fizeram foram presos e torturados, sendo que alguns
deles chegaram a ser queimados nas chamadas fogueiras “santas”.

Nessa época se desenvolvem também as ideias sobre bruxaria e


magia negra, atribuídas especialmente às mulheres. Oficialmente,
quem detinha todo o conhecimento eram os representantes da
igreja católica, que exerciam um poder muito grande sobre o
povo. O próprio rei só era coroado pelos bispos e governava sob
“as graças de Deus”.
Mas, as mulheres que detinham conhecimentos sobre plantas
medicinais, que faziam partos, benziam etc., desafiavam esse
poder e, por isso, eram chamadas de bruxas, seres endemoniados,
que estariam praticando magia negra.

Na verdade, essa era uma forma de afastar qualquer ameaça ao


poder da igreja católica. As pessoas acusadas de bruxaria eram
queimadas vivas em praça pública. Uma das referências mais
conhecidas sobre isso é Joana D’Arc, que foi canonizada e virou
santa no próprio catolicismo.

Bem, apesar da Santa Inquisição, a mente humana continuava


em busca de explicações para os fenômenos da natureza, para o
sentido da vida. Por isso, a Idade Média é também o período das
grandes invenções, como a imprensa criada em 1446 que, mesmo
na clandestinidade, possibilitou contatos cada vez mais amplos com
as novas ideias sobre o conhecimento do homem e da natureza.

Os relatos de viagens, as descobertas de novos territórios habitados


por povos de costumes diferentes, entre outros fatos, começaram a
pôr em xeque as ideias de um mundo imutável.

No século XVIII, considerado o século das luzes, das grandes ideias,


os filósofos iluministas começam a falar mais intensamente sobre o
homem e o progresso do mundo. Segundo os iluministas franceses,
o mundo estava em constante mudança e mudança para melhor.
“Penso, logo existo” era a célebre frase do filósofo Descartes.

Segundo ele, o homem só deve tomar como certo aquilo que


seja passível de explicação, aquilo que a razão possa explicar e
compreender. Ou seja, a minha existência está condicionada à
minha capacidade de pensar sobre ela. Estavam lançadas as bases
do método científico.

O discurso filosófico dos iluministas sobre o homem e o progresso do


mundo vai estimular, entre outras coisas, as Revoluções Burguesas,
Revolução Francesa em 1789 e Revolução Industrial em 1750,
trazendo novas questões para a história do pensamento científico
ocidental.
No século XVIII, formulam-se novas ideias que impulsionaram
extraordinariamente o conhecimento científico. Uma delas foi a
ideia de natureza como processo. Ou seja, a natureza pode ser
transformada pela ação do tempo, mas também pela ação dos
homens, e isso traz consequências para o destino da humanidade.

A ideia de uma “iluminação” interior, isto é, de uma fonte subjetiva


e imediata de conhecimento inerente à espécie humana, associada
à ideia de natureza em processo, possibilita novas reflexões, onde
o homem passa a ser sujeito e objeto de conhecimento do próprio
homem.

A definição do conhecimento como atributo humano não excluía


a ideia do homem como criação divina, pois a fonte subjetiva e
imediata de conhecimento de cada ser humano tanto pode ser
uma intuição intelectual de cada pessoa, como pode ser inspiração
divina.

Essa ideia está na base do iluminismo, um movimento intelectual


caracterizado pela atitude crítica em relação à tradição, pela
concepção de uma ordem racional do mundo, pela ideia de
transformação do mundo, pela ideia de transformação dos
homens e de suas culturas expressas no progresso da humanidade,
perceptível com ampliação dos horizontes geográficos, pelo
conhecimento de povos com civilização independente da europeia,
como os chineses, ou com culturas consideradas primitivas, como
as de índios das Américas, de povos da África e de povos das ilhas
do Pacífico.

Essas reflexões, portanto, consolidam-se como as bases de formação


das Ciências Sociais no século XIX, que têm a sociedade, a cultura, o
homem, seu pensamento, suas relações e realizações como objetos
de estudo.

O questionamento dos iluministas é contra o Teocentrismo. Admite-


se Deus como criador do mundo, mas não como governador da
máquina do mundo, pois este tem leis próprias, definidas pela
ação humana. É claro que os religiosos vão dizer que os homens
só fazem o que fazem de acordo com a vontade de Deus, mas
esse é um outro debate, e eu não estou aqui para questionar nem
alimentar a fé de ninguém.

Um relato interessante foi apresentado pelo antropólogo Pertti J.


Pelto, no livro Iniciação ao Estudo de Antropologia, um dos que
Fonte: http://images.
google.com.br/
estou usando como base para este programa. Ele afirma que: images?q=capela+cistina

Até o século XIX, muitos ou a maioria dos eruditos


que se ocupavam da diversidade cultural humana
e da história cultural haviam aceitado a idade
da Terra tal como a fixara o Arcebispo Ussher em
1650. O bom Arcebispo calculara, depois do estudo
cuidadoso das Escrituras, que o mundo havia sido
criado por Deus exatamente 4.004 anos antes do
nascimento de Cristo, e a essa teoria, o teólogo
Dr. Lightfoot acrescentara a demonstração de
que ”céu e terra, centro e circunferência, foram
criados juntos, no mesmo instante... e o homem
foi criado pela Trindade no dia 24 de outubro de
4.004 ... a. C., às nove horas da manhã”.

É claro que, na época, essa afirmação não causou o mesmo espanto


que está causando entre vocês agora, pois ainda estamos falando
de uma época em que o pensamento religioso era predominante.
Nas décadas de 1830 e 1840, no entanto, durante escavações na
França, foram econtradas algumas ferramentas que serviriam para
afirmar a existência do homem na terra, desde tempos muito mais
antigos.

Em 1857, porém, foi encontrado um fóssil considerado um dos


primeiros habitantes da Europa. Por ter sido encontrado às margens
do Rio Neander na Alemanha, este esqueleto fóssil recebeu o nome
de “Homem de Neanderthal”.

Outras descobertas se seguiram a essa, acirrando ainda mais as


discussões entre a ciência e a religião, sobre a antiguidade do
homem na terra.

Em 1859, ao curso de uma longa excursão, Charles Darwin acumula


muitas informações sobre o homem e seu mundo natural, que
resultou na publicação da obra A Origem das Espécies, defendendo
a teoria da seleção natural dos seres vivos.
A partir daí, os princípios básicos da evolução ganham importância
em todos os ramos do conhecimento. A ciência adquire status de
legitimidade para a explicação dos fenômenos do mundo. O estudo
do homem vai avançando, dando origem a conhecimentos cada
vez mais amplos.
unidade

1
Objetivo dESTA unidade:

CIÊNCIAS DA NATUREZA E CIÊNCIAS Situar os alunos no


contexto histórico das
HUMANAS transformações que
originaram o surgimento
da Antropologia como
Ciência, dedicada

P
ara compreender as diferenças entre os estudos das ao conhecimento dos
Ciências Naturais e das Ciências Sociais, precisamos aspectos biológicos
e culturais da vida
nos ater aos procedimentos metodológicos empregados
humana, possibilitando
nesses dois campos de produção científica. É preciso a compreensão das
compreender a produção científica, a partir das relações suas principais divisões
e procedimentos
estabelecidas entre o pesquisador e o grupo estudado.
metodológicos.
Um exemplo que, por nos ser bem próximo, serve para ilustrar:
quando um cientista natural, principalmente das áreas da
Biologia ou da Agronomia (embora os biólogos e agrônomos
também atuem no campo das Ciências Humanas) estuda
as formas de reprodução dos caranguejos que habitam os
manguezais do Maranhão, ou os campos de babaçu das regiões
agrícolas do interior do Estado, os pesquisadores não interagem
necessariamente com o caranguejo ou com a palmeira de
babaçu. A relação com esses objetos de conhecimento não
interfere necessariamente neles, no sentido de uma troca de
sentimentos, estes continuarão sendo caranguejo e palmeira
de babaçu como antes.

Quando, porém, os cientistas sociais, principalmente antro-


pólogos, estudam as manifestações do bumba-meu-boi, dos
terreiros das religiões tradicionais de origens africanas, ou
as situações relacionadas ao trabalho das quebradeiras de coco
babaçu dos campos rurais maranhenses, o objeto de conhecimento
é o ser humano em suas várias dimensões.

Neste caso, sujeito e objeto se influenciam reciprocamente.


Durante o processo de conhecimento, estarão em jogo trocas
constantes de afetividades, valores e saberes. É possível ao
pesquisador, como diz Bronislaw Malinowsky, “pôr-se no lugar
do outro”, familiarizar-se com seus códigos de comunicação,
com suas linguagens e decifrá-las, a partir do reconhecimento do
investigado, não mais como objeto passivo de investigação, mas
como ator, sujeito e protagonista de sua própria história.

Outro aspecto importante na demarcação dessas diferentes


formas de abordagem científica é que os fenômenos da natureza
são repetitivos e podem, em certas condições, ser reproduzidos
em laboratórios.

Tanto as pesquisas sobre a reprodução dos caranguejos como sobre


as palmeiras de babaçu podem ser realizadas em laboratório, os
fatos e os fenômenos observados se mantêm na natureza, podem
ser reproduzidos sempre que desejarmos, ou quando for necessário.

Nos estudos sobre bumba-meu-boi, sobre religiosidade afro-


brasileira, ou sobre quebradeiras de coco, as situações não podem
ser reproduzidas nem congeladas para serem analisadas.

Mesmo que as pessoas realizem novamente a festa, como acontece


a cada ano, o ritual religioso, como acontece periodicamente,
de acordo com os respectivos calendários de cada terreiro, ou o
trabalho na lavoura, como acontece diariamente, as situações não
se reproduzirão da mesma maneira, os elementos componentes
daquele universo já não serão os mesmos, haverá certamente
outras pessoas, com situações diferentes, pode faltar dinheiro para
que a festa aconteça do mesmo jeito, o material para decoração
já não será o mesmo. Enfim, vários motivos podem interferir,
fazendo com que um mesmo evento aconteça de forma diferente
a cada ano. Tudo isso precisa ser levado em conta para uma análise
coerente da situação observada.

24 PEDAGOGIA
Uma diferença marcante, portanto, é que a reconstituição
possibilita comparações aproximativas entre os rituais, festas
etc., ocorridos em períodos diversos. Ou seja, sempre é possível
comparar as festas ou rituais de um ano com as de outro, as festas
de uma região com as de outras etc. Porém, mesmo sendo rituais
ou festas semelhantes, nunca serão da mesma maneira, seja de
uma região para outra ou de um ano para outro.

Por outro lado, a reprodução de uma mesma experiência por


várias vezes possibilita o estudo objetivo tendente à exatidão.
Ou seja, nas Ciências Naturais, a objetividade e a comprovação
das hipóteses são determinadas pelas possibilidades de quantas
reproduções forem necessárias de um mesmo experimento. Isso
significa que as experiências com animais ou insetos, as análises
do DNA, do cérebro ou do sangue, para descobrir doenças ou
para conhecer as potencialidades humanas, sempre serão feitas
da mesma forma e com os mesmos elementos, porque esses testes
podem ser isolados em laboratório.

Nas Ciências Sociais, a objetividade é dada pela fidelidade do


pesquisador às informações prestadas pelo sujeito da observação,
ou seja, quem organiza ou participa de uma atividade cultural
ou religiosa, quem vivencia determinadas experiências em seu
cotidiano ao longo de várias décadas, pode falar delas com
mais conhecimento. O pesquisador é apenas um tradutor desse
conhecimento em linguagem científica, mas para essa tradução
ser reconhecida como legítima, ele precisa respeitar o que o
informante está lhe dizendo e, a partir daí, comparar e analisar as
informações com as teorias.

O procedimento tradicional de pesquisa e apresentação de


resultados, tanto nas Ciências da Natureza quanto nas Ciências
Humanas, exige a adoção de critérios e procedimentos rigorosos,
em termos teórico-metodológicos, pois essa é uma condição
fundamental, não para comparar as ciências entre si, mas para
definir e diferenciar a análise e o conhecimento científico em
relação às especulações do senso comum.

ANTROPOLOGIA | unidade 1 25
Nesse caso, em todas as atividades relacionadas à produção do
conhecimento científico, são necessários alguns procedimentos
sistematizados, como a revisão bibliográfica criteriosa, eviden-
ciando o conhecimento do pesquisador com o tema que resolveu
estudar, e também com as reflexões já produzidas por outros, so-
bre esse mesmo tema; definição de uma metodologia adequada
ao problema formulado na abordagem do problema; descrição dos
procedimentos utilizados no processo de investigação; descrição e
análise dos dados obtidos explicitando os conceitos e referenciais
utilizados como suporte teórico para a realização do estudo. Esses
procedimentos são essenciais para a definição da produção cientí-
fica em qualquer área do conhecimento.

Só para relembrar o que já foi afirmado no início deste estudo, a


constatação das diferenças entre os grupos humanos, bem como
a observação e interpretação dessas diferenças são tão antigas
quanto o contato entre grupos humanos.

A situação de contato dá visibilidade à diversidade, mas nem


sempre essa diversidade é encarada como fator positivo, pois as
observações feitas de modo comparativo acabam tomando como
referência os padrões do grupo do observador e, nesse caso, as
diferenças são traduzidas em termos de inferioridades, alimen-
tando noções preconceituosas de toda ordem, o que compromete
a objetividade científica.

Como mostramos na introdução, as primeiras observações


que chegaram até nós sobre o contato entre grupos humanos
diferenciados foram aquelas fixadas em registro escrito pelos
povos da antiguidade, principalmente europeus.

No desenvolvimento anterior à constituição da Antropologia como


ciência, podem-se distinguir duas fases: a fase da curiosidade e a
fase da comparação subjetiva.

A primeira fase se estende da antiguidade até o iluminismo. Nessa


fase, os outros povos e as outras culturas com os quais os europeus
entraram em contato eram objetos de admiração, de espanto, de
surpresa, de pasmo, de estranheza ou de assombro. As diferenças

26 PEDAGOGIA
observadas se tornaram objeto de estranhamento porque eram
distintas do conhecido, do familiar. As culturas diferentes foram
consideradas exóticas, isto é, estranhas para as concepções de
mundo dos europeus.

O contraste entre o familiar, o doméstico, o próprio, o característico-


do-nós e o estranho -próprio do outro- dá visibilidade à questão da
diversidade, colocando o desafio de sua explicação.

A diferença, além de estranheza, provoca insegurança, porquanto


abala a certeza da ordem social. A tendência é a elaboração
de análises carregadas de noções pré-conceituosas, definindo o
diferente como inferior.

Recusa-se, desse ponto de vista, a reconhecer a concepção do


outro porque ele é diferente.

Assim ocorreu quando os gregos, em contato com os povos da Ásia


Menor, lhes definiram como bárbaros, considerando a diferença de
seus costumes. “Bárbaro”, para os gregos e romanos, transformou-
se em categoria classificatória dos povos estrangeiros, com
costumes diferentes, sem a civilização greco-romana e, por isso
mesmo, selvagens, incultos, grosseiros, desumanos.

O termo “bárbaro”, além de passar a ideia de não civilizado, passa


também a ideia de não humano, o que demonstra uma relação
recíproca entre civilização e humanidade. Nesse caso, a diferença
de grau de civilização implicaria diferença de grau de humanização,
consequentemente, os europeus atribuíram a si mesmos um grau
mais elevado de civilização em relação aos outros povos.

Até hoje, muitos de nós acreditamos na inferioridade dos negros,


dos índios, das mulheres e dos latinos, em relação aos homens
brancos europeus. Muitos de nós acreditamos que as religiões de
origens africanas são coisas do demônio, que nos causam medo,
quando, na verdade, foram os europeus que inventaram isso,
para fortalecer sua ideologia de dominação colonizadora e para
assegurar seu domínio sobre as riquezas econômicas e culturais
das regiões onde se instalaram.

ANTROPOLOGIA | unidade 1 27
As bases da hierarquia das diferenças encontram, desde então,
fundamentos na classificação de povos como bárbaros, embora
já se registrasse também a emergência de um pensamento mais
isento, fundante do relativismo das diferenças culturais.

Heródoto, o historiador grego comentado na introdução, ao


mesmo tempo em que registrava o estranhamento dos gregos ao
matriarcado, ou seja, a predominância das mulheres na transmissão
da herança familiar, registrou também sua conclusão de que todos
os povos, sem exceção, consideram seus costumes e suas crenças
melhores que os dos demais povos. Heródoto tem a percepção de
que o sentimento de autoavaliação na situação de comparação
entre culturas, se transforma em critério parcial, implicando
desvalorização do outro. Considera, todavia, a autovalorização
como um sentimento universal.

Passados vários séculos das aventurosas navegações dos gregos


do tempo de Heródoto pelo Mar Mediterrâneo, os espanhóis e
os portugueses descobriam as terras americanas, navegando
mares desconhecidos. A curiosidade e o espanto são mutuamente
expressos, revelando a rejeição pelo diferente, que é traduzido
por uma relação de inferioridade, atribuindo a esses povos uma
condição de selvageria e negando-lhes os atributos de humanidade,
questionando se o selvagem teria uma alma, como os “civilizados”
europeus.

Essas noções preconceituosas estão refletidas no debate entre o


dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera no século XVI, relatado
por François Laplantine (1999, p.38-49):

Àqueles que pretendem que os índios são bárbaros,


responderemos que essas pessoas têm aldeias,
vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem política
que, em alguns reinos, é melhor que a nossa. [...]
esses povos igualavam ou até superavam muitas
nações do mundo conhecidas como policiadas e
razoáveis, e não eram inferiores a nenhuma delas.
Assim, igualavam-se aos gregos e aos romanos, e
até, em alguns de seus costumes, os superavam.
Eles superavam também a Inglaterra, a França, e
algumas de nossas regiões da Espanha. [...] Pois
a maioria dessas nações do mundo, senão todas,
foram muito pervertidas, irracionais e depravadas,

28 PEDAGOGIA
e deram mostra de muito menos prudência e
sagacidade em sua forma de se governarem e
exercerem as virtudes morais. Nós mesmos fomos
piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda
a extensão de nossa Espanha, pela barbárie de
nosso modo de vida e pela depravação de nossos
costumes (Las Casas).

Aqueles que superam os outros em prudência e


razão, mesmo que não sejam superiores em força
física, aqueles são, por natureza, os senhores;
ao contrário, porém, os preguiçosos, os espíritos
lentos, mesmo que tenham as forças físicas para
cumprir todas as tarefas necessárias, são por
natureza servos. E é justo, e útil que sejam servos,
e vemos isso sancionado pela própria lei divina.
Tais são as nações bárbaras e desumanas, estranhas
à vida civil e aos costumes pacíficos. E será sempre
justo e conforme o direito natural que essas pessoas
estejam submetidas ao império de príncipes e
de nações mais cultas e humanas, de modo que,
graças à virtude destas e à prudência de suas leis,
eles abandonem a barbárie e se conformem a uma
vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles
recusarem esse império, pode-se impô-lo pelo meio
das armas e essa guerra será justa, bem como o
declara o direito natural que os homens honrados,
inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles
que não têm essas virtudes (Sepulvera).

Também o Diário de descoberta da América de Cristóvão Colombo,


as cartas de Hernan Cortez e as crônicas de narrações dos índios
sobre a conquista, recolhidas e publicadas por Leon-Portilla,
registram a curiosidade e a estranheza que a diferença provocava
entre índios e europeus.

Uns e outros ressaltam as diferenças físicas e culturais, mas lidam


de modo diverso com essa questão. Os espanhóis consideram
os índios ignorantes e, de acordo com o parecer do Almirante
da esquadra de Colombo, “não tinham nenhuma religião”. Os
espanhóis decidiram conquistar as terras dos índios, decidiram
que os índios deveriam ser convertidos em cristãos e serviçais.

O modo como descrevem os instrumentos indígenas e os seus


costumes denota uma clara relação de dominação e uma clara
desvalorização do outro, fundada na apreciação unilateral e auto-
centrada da diferença.

ANTROPOLOGIA | unidade 1 29
Os índios consideram os espanhóis ameaçadores, perigosos. O
modo como descrevem os instrumentos dos civilizados, os navios,
os cavalos que nunca tinham visto antes e o estrépito com que
chegaram evidencia medo, estranheza, perplexidade, respeito e
expectativa de violência.

Para os índios, isto era sobrenatural, por isso mesmo associaram


os espanhóis a deuses.

O eixo superioridade/inferioridade é antagônico na visão que


espanhóis e índios têm, um em relação ao outro. Para os espanhóis,
os índios são prováveis escravos, para os índios os espanhóis são
prováveis deuses. Esse modo de lidar com a diferença marcou o
devir da história da colonização das Américas e das relações de
contato entre colonizadores e índios.

[...] cheguei às margens do grande mar e vi andar


pelo meio do mar uma serra ou morro grande,
que andava de um lugar para outro até chegar às
margens” (Relato indígena da Conquista, p. 34).

[...] espécie de torres ou pequenos morros que


vinham flutuando sobre o mar. Neles vinham
pessoas estranhas de carnes muito brancas, mais
que as nossas carnes, todas têm barbas longas e
os seus cabelos vão até as orelhas (Relato indígena
Caravelas da Conquista in Leon-Portilla 1985, p. 31).
http://www.lepanto.com.br/
Imagens1/Carvw2.jpg [...] vêm os cervos que trazem os homens em seus
lombos.Com seus calções de algodão, com seus
escudos de couro, com suas lanças de ferro. Suas
espadas pendem dos pescoções de seus cervos.
Estes têm cascavéis, estão encascavelados, vêm
trazendo cascavéis. Fazem estrépito as cascavéis,
repercutem as cascavéis.
Esses cavalos, esses cervos bufam, rugem. Suam
mares: o suor destilha deles como água. E a
espuma de seus focinhos cai ao solo gotejando. É
como água ensaboada com amole: gotas gordas a
escorrer.

Quando correm fazem estrondo: fazem estrépito,


sente-se o barulho, como se caíssem pedra no
chão. Logo a terra fica revolvida, logo a terra
enche-se de buracos onde eles puseram sua pata.
Por isso, a terra só fica dilacerada onde puseram
mão ou pata (Relato Indígena registrado por
Sahagrin in Leon-Portilla, 1985, p. 20).

30 PEDAGOGIA
Foi uma cilada muito bem feita e conseguimos matar
uns quinhentos índios mais bravos e mais corajosos
[...] A única perda que tivemos aquele dia foi uma
égua, cujo cavaleiro caiu, e que saiu em corrida
sem rumo, indo parar no meio dos nossos inimigos
que a flecharam. Mesmo ferida ela veio até nosso
Aldeias
Microsoft Office acampamento, mas acabou morrendo, o que nos
deu grande tristeza, pois os cavalos e éguas eram
o grande sustentáculo de nossas vitórias (Cortez,
1986, p. 93).

Antes do amanhecer do dia seguinte tornei a


sair com cavalos, peões e índios e queimei dez
povoados, onde havia mais de três mil casas. Como
trazíamos a bandeira da cruz e lutávamos por nossa
fé e por serviços de vossa sacra majestade, em
sua real ventura nos deu Deus tanta vitória, posto
que matamos muitos sem que nenhum dos nossos
sofresse dano (Cortez, 1986, p. 33).

A diversidade observada pelos conquistadores em uma postura


comparativa, fortalecia o fator da desigualdade e da inferioridade.
Não conseguiam apreender a originalidade da diferença. Não
conseguiram pensá-la como simples expressão da diversidade, como
evidência da pluralidade, como possibilidade de multiplicidade. Só
muito mais tarde, já no final do século XIX, essas ideias começaram
a mudar.

A fase da curiosidade contribuiu com o desenvolvimento de uma


volumosa literalidade etnográfica, ainda que desarticulada.
Começou a ser superada pelo iluminismo, inaugurando-se a
fase aproximativa da diferença na busca de comparação. Com
a expansão europeia, ampliou-se o contato com a diferença.
Muitas descrições etnográficas, motivadas pela curiosidade, foram
produzidas por viajantes, missionários e administradores coloniais.

No século XVIII, com os questionamentos apresentados pelos


iluministas, superou-se a fase da curiosidade, das conclusões
precipitadas, tiradas das relações entre cultura europeia e cultura
dos outros povos. É o começo da etnologia comparativa, ou seja,
o estudo mais detalhado dos costumes, com vistas a encontrar
uma explicação para certas correspondências de práticas culturais
entre povos de culturas diferentes.

ANTROPOLOGIA | unidade 1 31
Procurava-se fazer a analogia, entre usos e costumes de povos
indígenas, com usos e costumes dos povos registrados na Bíblia
e nas obras de escritores da antiguidade clássica. A questão de
fundo era a explicação da cultura europeia em confronto com
as culturas dos povos “selvagens”. Emerge, na fase iluminista, o
propósito de se buscar uma explicação das semelhanças entre usos
e costumes de diferentes povos indígenas, em diferentes regiões
da terra, tendo-se como postulado a unidade do gênero humano.
Partindo-se dessa concepção, tradições de povos indígenas seriam
evidências de etapas anteriores, vestígios da mais recuada
antiguidade, anterior à própria antiguidade clássica.

Desenvolve-se o conceito de civilização como conceito explicativo,


na perspectiva da civilização como aperfeiçoamento natural
do homem. Os iluministas consideravam as culturas dos povos
indígenas como expressão de um momento civilizatório, um
estágio de evolução, uma etapa civilizatória regulada pelas leis da
natureza – um estágio anterior ao desenvolvimento da sociedade
europeia em que viviam.

Surge o conceito de “homem natural”, isto é, do homem em


estado natural, numa civilização entre selvagens, bárbaros e
civilizados, fundada na concepção de unidade histórica do homem
e de suas culturas. Estavam construídas as bases conceituais que
possibilitam, mais tarde, o desenvolvimento do evolucionismo.

Será preciso esperar o século XVIII, para entrarmos na modernidade,


conforme mostra Michel Foucault (1966), e só então se pode
apreender as condições históricas e culturais, para a constituição
de um projeto antropológico, com um saber que não resulte
apenas de reflexão ou contemplação, mas de observação empírica
sobre a existência concreta do homem, sobre suas instituições,
linguagens, comportamentos e relações de produção. Um saber,
enfim, que possibilite a construção de novos conceitos, começando
pelo próprio conceito de homem, enquanto objeto e sujeito do
conhecimento.

A partir do século XVIII, portanto, a problemática comparativa


entre as culturas dos povos indígenas, a Bíblia e a Antiguidade

32 PEDAGOGIA
Clássica, cedem lugar à problematização das origens da vida e da
cultura. Rompem-se com os limites antropocêntricos, amplia-se a
ideia de origem, superando-se a rigidez das teorias criacionistas
então vigentes.

Curiosidade. É tão forte que estamos dispostos até a perder


o paraíso, pelo gozo efêmero de ver aquilo que ainda não foi
visto. É assim que a nossa estória começa, num dos mais antigos
mitos religiosos. Preferimos morder o fruto do conhecimento,
com o risco de perder o Paraíso, pela alegria de um outro
gozo: saber...

Ali está, diante de nós, a coisa fascinante. Mas não nos basta
ver o que está de fora. É preciso entrar dentro, conhecer
os seus segredos, tomar posse de suas entranhas. Não é isto
que acontece com a própria experiência sexual? Os judeus,
no Antigo Testamento, empregavam uma única palavra para
designar o ato de conhecer e o ato de fazer amor. “E Adão
conheceu a sua mulher, e ela ficou grávida...” É assim mesmo
que acontece no conhecimento. Primeiro, o enamoramento.
Quem não está de amores com um objeto não pode conhecê-
lo. Depois vêm os movimentos exploratórios, a penetração,
o conhecimento do bom que estava oculto, experiência de
prazer maior ainda.

O fascínio do giro das estrelas, dos descaminhos dos cometas, a


beleza dos cristais, joias simétricas – ah! Quem fez a natureza
deve ser um joalheiro para fazer coisas tão lindas assim, e
também um grande geômetra para traçar nos céus os caminhos
matemáticos dos astros; quem sabe um músico, que toca
músicas inaudíveis aos ouvidos comuns, e somente perceptíveis
aos que conhecem as harmonias dos números! – os ímãs, seres
parapsicológicos, que puxam o ferro sem tocar, todos os corpos
do espaço, grandes ímãs, se puxando uns aos outros, atração
universal, amor universal, as marés que balançam aos ritmos da
lua e do sol, as plantas, mistérios, também ao ritmo da luz, suas
harmonias com as abelhas, a loucura, os sonhos, esta fantástica

ANTROPOLOGIA | unidade 1 33
loteria que se chama genética, os animais arranjados em ordem
de complexidade crescente, tudo sugerindo que uns foram
surgindo dos outros, Darwin, a inflação, que bicho é este, que
ninguém consegue domar?, nossa permanente intranquilidade,
seres invisíveis, os deuses, a agressividade, o sadismo, por
que será que há pessoas que sentem prazer no sofrimento dos
outros?, as massas, boiadas estouradas, sem limites e sem moral,
“Hei Hitler!”, e as pessoas lutam para deixar de fumar e não
conseguem e, de repente, sem nenhum esforço, algo acontece
por dentro, e param de um estalo...

Não há limites para os mistérios. Alguns parecem pequenos, e


moram nas coisas simples do cotidiano. E nisto o cientista tem
algo que o liga ao poeta. Porque um poeta é isto, alguém que
consegue ver beleza em coisa que todo mundo pensa ser boba
e sem sentido. Por favor, leia Adélia Prado, mulher comum que
os deuses, brincalhões, dotaram desta graça incompreensível de
poder transfigurar o banal em coisa bela, aquilo de que ninguém
gosta em coisa erótica.

Como no seu poema sobre limpar peixes com o seu marido. O


cientista é a pessoa que é capaz de ver, nas coisas insignificantes,
grandes enigmas a serem desvendados, e o seu mundo se enche
de mistérios. Moram em nós mesmos, nos gestos que fazemos,
nas doenças que temos, em nossos sonhos e pesadelos, ódios e
amores; na nossa casa, no jardim, pela rua... Outros parecem
enormes e têm a ver com o início do universo, as profundezas do
espaço, as funduras da matéria. Mas tudo é parte de um mesmo
universo maravilhoso, espantoso, que nos faz tremer de gozo e de
terror, quando nos abrimos para o seu fascínio e penetramos os
seus segredos. Há o mistério das coisas, há o mistério das pessoas,
universos inteiros dentro do corpo, mundos bizarros que afloram
nas alucinações dos psicóticos, e que nos arranham vez por outra,
dormindo ou acordados, as funduras marinhas da Cecília Meireles,
as florestas do Rilke, Édipos, Narcisos, pessoas grandes por fora
onde moram crianças órfãs. Grandes solidões que buscavam a
presença de outras, os mundos da cultura e da sociedade, das festas
populares e das grandes celebrações coletivas e, repentinamente,

34 PEDAGOGIA
nos damos conta de que os enigmas coletivos da Via Láctea são
pequenos demais comparados com aqueles das pessoas que vemos
todo dia. Só que nossos olhares ficaram baços, e não percebemos
o maravilhoso ao nosso lado. Se fôssemos tomados pelo fascínio,
então pararíamos para ver e veríamos coisa de que nunca havíamos
suspeitado.

Mas, em tudo isto, é preciso não esquecer de uma coisa: ciência


é coisa humilde, pois se sabe que a verdade é inatingível. Nunca
lidamos com a coisa mesma, que sempre nos escapa. Aquilo que
temos são apenas modelos provisórios, coisas que construímos
por meio de símbolos, para entrar um pouco no desconhecido
(MARCELINO, 1988. p.13.14.15)

Considerando o que foi dito até agora, formem grupos com cinco
pessoas para discutir as seguintes questões:

Como ponto básico, podemos dizer, numa formulação


que será ampliada nos próximos capítulos, que o social
(e cultural) é tudo aquilo que independe da natureza
interna (genética ou quadro genético) ou externa
(fatores ambientais, naturais) (DAMATTA, 2000, p. 45).
Quais os fatores que elevam a antropologia ao status de
ciência e quais os elementos principais que caracterizam
a mesma enquanto uma ciência social?

Discuta sobre os principais fatos históricos que


contribuíram para o surgimento da antropologia.

ANTROPOLOGIA | unidade 1 35
Como é possível diferenciar as ciências humanas e as
sociais das ciências exatas e naturais?

Concluídas as discussões, cada grupo deve fazer uma explanação


do resultado da atividade.

1492: a CONQUISTA do paraíso (1992)

Sinopse: Depardieu interpreta Cristóvão Colombo, um intrépido navegador


que descobre uma nova rota para chegar às Índias, porém não deixa de
estar sujeito às traições e carnificinas que suas viagens trariam como
consequência. O filme trata das duas primeiras viagens que se tornaram
um marco na vida desse almirante e nos leva à terceira e última etapa
da deslumbrante aventura. Bravura e cegueira, triunfo e desespero e a
arrogância do Velho Mundo, em contraste à inocência do Novo Mundo,
sucedem, nessa ordem, uma história guiada por poder e paixão extremados.
É A Conquista do Paraíso, o começo de uma nova era.

Direção: Ridley Scott


Gênero: Aventura
Elenco: Gérard Depardieu, Armand Assante, Sigourney Weaver, Loren
Dean, Ángela Molina, Fernando Rey, Michael Wincott, Tchéky Karyo,
Kevin Dunn, Frank Langella, Mark Margolis, Kario Salem, Billy L.
Sullivan, John Heffernan, Arnold Vosloo.

36 PEDAGOGIA
Em Nome da Rosa (1986)

Sinopse: Em 1327, um monge franciscano tem a ajuda de um noviço na


investigação de uma série de estranhas mortes em um mosteiro no norte
da Itália, durante a Idade Média.

Direção: Jean-Jacques Annaud


Gênero: Drama, Policial, Suspense, Thriller
Elenco: Sean Connery, Christian Slater, F. Murray Abraham, Valentina
Vargas, Ron Perlman, Michael Lonsdale, William Hickey, Elya Baskin,
Feodor Chaliapin Jr., Helmut Qualtinger, Volker Prechtel, Michael
Habeck, Urs Althaus.

Lutero (2003)

Sinopse: A biografia de Martinho Lutero (interpretado no filme por


Joseph Fiennes), alemão fundador da Igreja Protestante. Devido aos
abusos da Igreja Católica no século XVI, com grande exploração de
seus fiéis, Lutero lutou por uma igreja mais limpa e voltada para Deus,
sem a corrupção dos poderosos católicos da época

Direção: Eric Till


Gênero: Biografia/Drama
Elenco: Alfred Molina, Joseph Fiennes, Jonathan Firth, Claire Cox

A Rainha Margot (1994)

Sinopse: Agosto de 1572: Marguerite de Valois, irmã do imaturo rei


Carlos I, é bela, jovem e católica. Na França, trava-se uma sangrenta
guerra religiosa. Para impor a paz e reforçar o domínio da França,
a mãe, Catarina de Médicis, casa-a à força com Henrique de Navarra,
protestante huguenote e o futuro rei Henrique IV. Na sombra, Catarina
de Médicis continua a exercer o poder ordenando assaltos, envenenando
e instigando ao incesto. Mas a noite de 24 de Agosto que ficou para
sempre para a história como o Massacre de S. Bartolomeu, aproxima-
se... sacrificada às razões de Estado, a rainha Margot vai, no entanto,
conhecer o amor com um outro huguenote, o senhor de La Mole.

ANTROPOLOGIA | unidade 1 37
Direção: Patrice Chéreau
Gênero: Drama
Elenco: Isabelle Adjani, Daniel Auteuil, Jean-Hugues Anglade,
Vincent Perez, Virna Lisi, Dominique Blanc, Pascal Greggory,
Claudio Amendola, Miguel Bosé, Asia Argento, Julien Rassam, Thomas
Kretschmann.

Apocalypto (2006)

Sinopse: Um homem é capturado para ser sacrificado, em nome da

prosperidade do império maia. Ele consegue fugir e tenta voltar para

casa o mais rápido possível, para salvar sua família.

Direção: Mel Gibson


Gênero: Aventura
Elenco: Rudy Youngblood (Jaguar Paw), Dalia Hernandez (Seven),
Jonathan Brewer (Blunted), Morris Birdyellowhead (Flint Sky),
Carlos Emilios Baez (Turtles Run), Ramirez Amilcar (Culr Nose), Israel
Contreras (Smoke Frog), Israel Rios (Cocoa Leaf), Maria Isabel Diaz
(Sogra), Iazua Larios (Sky Flower), Raoul Trujillo (Zero Wolf),
Gerard Taracena (Middle Eye), Rodolfo Palacios (Snake Ink), Mayra
Serbulo, Espiridion Acosta Cache.

38 PEDAGOGIA
unidade

2
O DESENVOLVIMENTO DA ANTROPO- Objetivos dESTA unidade:

LOGIA: definição, divisões, objeto e métodos Mostrar a trajetória


de construção da
Antropologia desde
o século XIX, suas
definições e divisões,
levando a compreender
também o que os

O
conceito de cultura é o conceito chave da explicação, antropólogos estudam
(objeto de estudo).
ou da interpretação antropológica, e, como tal, é a
chave mestra de investigação em todas as áreas e Abrir as portas das
especializações da Antropologia, pois é em torno desse conceito chamadas escolas
que a Antropologia vai construir suas teorias e métodos de do pensamento
antropológico,
pesquisa.
conhecendo seus
principais pensadores e
Antes, porém, de iniciar esse percurso, é conveniente remover
seus conceitos, visando
algumas pedras do caminho, facilitando o entendimento dos compreender suas
desdobramentos e implicações das novas dimensões que o conceito tendências e formas
de cultura vai incorporando, desde a criação da Antropologia, no de abordagem sobre as
culturas humanas.
fim do século XIX.

Pretendemos situar as limitações iniciais com que a Antropologia


define seu objeto, para ampliar as áreas de estudo, o que
chamamos de “olhar antropológico”.

Definindo o objeto da Antropologia

A Antropologia define como objeto original de suas investigações,


os povos sem escrita, as sociedades tribais da África e das
Américas, definidas como “sociedades primitivas”, que transmitem
o conhecimento através da fala.

Pensando em termos comparativos, a História tradicionalmente


se ocupava do estudo do desenvolvimento das sociedades,
investigando sua documentação, sua memória escrita. A
Antropologia, por sua vez, se ocupou das sociedades longínquas,
isto é, com assentamento em lugares distantes. Esses povos
possuíam tecnologia simples em relação às sociedades europeias,
pouca amplitude de contatos sociais, população e território de
dimensões mais restritas, mesmo em termos de especialização
das atividades e funções sociais. Cabia à Antropologia realizar o
esforço de estudar suas tradições, usos e costumes.

Assim, a reflexão antropológica toma primeiramente, como objeto


de estudo, as sociedades chamadas “simples”, distanciadas e
diferenciadas das sociedades europeias.

Para os pioneiros da Antropologia, as sociedades “simples” eram


tomadas como situação de laboratório, como expressão – no
presente – de estágios anteriores de sua própria sociedade, das
sociedades “complexas”, associadas à civilização ocidental.

No entanto, a Antropologia não permanece presa a essa


comparação da diferença entre sociedades “simples” e sociedades
“civilizadas”. Começa a enfocar a diferença no interior das
próprias sociedades, buscando novas formas de abordagens dos
grupos sociais diferenciados, mesmo que esses grupos pertençam
à sociedade urbano-industrial contemporânea, mas sejam
culturalmente distanciados na forma de viver.

Sua especificidade científica, como campo de conhecimento, não


se restringe ao estudo de sociedades indígenas, ou de camponeses.
Abrange as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade.

A tendência atual, na Antropologia, é deslocar o foco da discussão


da especificidade do objeto para a especificidade de sua prática.
Ou seja, o importante não é mais quem é estudado, mas a maneira
como se estuda.

40 PEDAGOGIA
Ao longo de sua trajetória científica, a Antropologia acumulou
muitas informações sobre populações de diversas partes do mundo.
O aperfeiçoamento de seus métodos e técnicas de investigação
permitiu a elaboração dessas informações em diferentes esquemas
de análise, sob diferentes enfoques e múltiplas dimensões. Isto levou
ao surgimento de campos especializados do saber antropológico,
com abordagens, corpo teórico e técnicas de pesquisa próprios.

Já não é mais possível a um antropólogo deter o conhecimento


ampliado que caracterizava os antropólogos dos séculos XIX,
dominando os vários ramos do saber antropológico, dando conta das
diversas tendências e aberturas, tanto no campo da Antropologia
Física, quanto no campo da Antropologia Cultural.

Atualmente, os antropólogos ligados à Antropologia Física


aproximam-se das áreas da Biologia, Paleontologia ou Genética,
enquanto que o antropólogo (ou etnólogo) que se aplica ao estudo
da Antropologia Cultural ou Social tem formação básica na área
das Ciências Sociais.

No Brasil, a Antropologia Social já apresenta várias especialidades:


Etnologia Indígena, Antropologia Rural, Antropologia das
Populações Afro-Brasileiras, Antropologia Urbana. Cada um
desses campos especializados tende, por sua vez, a comportar
níveis cada vez mais amplos de especialização.

Existe, hoje, uma vasta produção sobre Etnologia Indígena, por


exemplo, possibilitando ao antropólogo tornar-se um especialista
no conhecimento dos povos indígenas das várias regiões do país.
Na Antropologia Rural, por sua vez, a tematização contempla
trabalhadores rurais, migrantes, sem-terras, comportando, todos
esses temas, níveis correspondentes de especialização.

A Antropologia das Populações Afro-Brasilerias dispõe, também, de


amplos estudos que enfocam questões de raça, etnicidade, gênero,
identidade, comunidades quilombolas etc.. Novas abordagens
estimulam discussões, abrindo outras perspectivas teóricas.

A Antropologia Urbana vem se ocupando da vida social nas grandes


cidades, enfocando, especialmente, a diversidade cultural. Há,

ANTROPOLOGIA | unidade 2 41
ainda, outras tendências de especialização temática, como religião,
família, gênero, infância, velhice, homossexualismo, saúde etc.

Para constituir-se de um corpo teórico e metodológico que a


qualifica como ciência dedicada ao estudo das diversidades e
especificidades das culturas humanas, a Antropologia seguiu uma
trajetória, ampliando suas reflexões, questionando seus próprios
conceitos, desde as concepções teóricas do Evolucionismo do
século XIX até dias atuais.

Definição e Divisões da Antropologia

O desenvolvimento do estudo dos grupos humanos, portanto,


se deu desde os primeiros contatos entre os povos do mundo.
O esforço de sistematização sobre esse conhecimento tem sido
historicamente estimulado cada vez que nos defrontamos com
outros seres humanos diferentes de nós.

Ao observarmos as diferenças do outro, ou seja, os grupos com


os quais não temos contatos próximos, acabamos nos olhando e
nos observando também, o que nos leva a nos conhecer melhor,
na medida em que percebemos mais claramente o que é comum
entre nós e o que nos distingue do outro. As situações comuns
partilhadas por um grupo, além de particularizá-lo em relação aos
outros, permite definir o seu pertencimento a uma comunidade.

A Antropologia procura decifrar e compreender as populações


humanas, no âmbito das suas diferentes formas de viver
em sociedade. Numa formulação bastante ampla e geral, a
Antropologia estuda o homem e suas realizações; numa formulação
mais aproximativa, a Antropologia estuda a sociedade como um
sistema de símbolos e significados. Uma das características das
populações humanas, e talvez a mais importante, é sua diversidade.

Sendo uma das ciências que têm o homem como objeto de


conhecimento, a antropologia procura responder a questão central

42 PEDAGOGIA
do significado da diferença, visando abarcar a totalidade da vida
humana em termos biológicos e culturais. O nome antropologia,
deriva de duas palavras gregas. Anthropos, que significa homem
e Logos, ou mais precisamente Logia, cujo significado remete a
estudo, ciência ou conhecimento. Daí a definição da Antropologia
como “Ciência de Estudo do Homem”.

Certamente, a antropologia não é a única ciência que estuda o


homem, muitas outras disciplinas científicas podem ser arroladas
nesse mesmo quadro, como a Sociologia, a Psicologia, a Genética,
dentre outras.

O que caracteriza a Antropologia e a distingue das demais ciências


é o seu objetivo de estudar o homem em todas as suas dimensões.
A unidade da Antropologia, diz o antropólogo Melville Herskovits:

Está no fato importantíssimo de que a Antropologia,


centrando sua atenção no homem, leva em conta
todos os aspectos da existência humana, biológica
e cultural, passada e presente, combinando esses
diversos materiais numa abordagem integrada do
problema da existência humana. Diversamente das
disciplinas que tratam de aspectos mais restritos
do ser humano, a Antropologia frisa o princípio de
que a vida não se vive por categorias mas é uma
corrente contínua (HERSKOVITS, 1978, p.16).

Ao mesmo tempo que se propõe a ser uma disciplina especializada,


a Antropologia tem um projeto abrangente, envolvendo temas de
estudo de outras áreas, como a biologia, a geografia, a psicologia,
a sociologia etc.

Para dar conta de uma proposta tão abrangente, alguns


antropólogos estabeleceram uma divisão da Antropologia em duas
grandes áreas: Antropologia Física e Antropologia Cultural.

Etnografia
Etnologia
Antropologia Física Antropologia
Social
Antropologia Geral
Linguística

Antropologia Cultural

Arqueologia

ANTROPOLOGIA | unidade 2 43
A Antropologia Física dedicou-se ao estudo dos aspectos biológicos
do homem. Essa área procurou estudar os processos evolutivos da
espécie humana, adotando procedimentos das Ciências Naturais
para detectar as origens, semelhanças e diferenças entre os homens.

A partir desses procedimentos, desenvolveram-se estudos


das raças, caracterizando o homem em raças diferentes,
apresentando estágios de desenvolvimento diferenciados de
acordo com as características biológicas. Esses conhecimentos
contribuíram significativamente para a classificação dos povos em
raças superiores e inferiores, resultando, entre outras coisas, no
extermínio dos povos indígenas da América e na escravização dos
povos negros da África.

A Antropologia Cultural se propõe ao estudo do homem como


ser cultural, analisando as múltiplas dimensões do ser humano
em sociedade, seus comportamentos e sua produção material. O
estudo da cultura aborda as dimensões simbólicas da ação social.

Toda sociedade possui sua cultura, um sistema de signos que podem


ser analisados, como componentes de um modo de comunicação.
A cultura consiste em estruturas de significado socialmente
estabelecidas, fornecendo a cada indivíduo do grupo um mapa,
uma referência para situar-se, em relação a sua sociedade e em
relação aos outros indivíduos ou grupos.

Toda cultura implica uma tradição social e historicamente


construída, com regras e normas elaboradas e vivenciadas
coletivamente. Ou seja, dentro de uma mesma cultura, as pessoas
falam a mesma língua, compartilham situações comuns de família,
religiosidade, trabalho, vestimenta, festas etc.. Ao mesmo tempo,
dentro de uma mesma cultura, é possível haver variações nas
formas de se relacionar com essas coisas.

As formas de trabalhar, de rezar, de se casar etc. podem ser


diferentes, mas as instituições, casamento, trabalho e religião
continuarão existindo. Alguém pode até mudar o jeito de se vestir,
mas nunca deixa de usar roupa, porque essa é uma convenção
estabelecida pela cultura.

44 PEDAGOGIA
É no plano da cultura que se torna possível refletir o homem
como criação do próprio homem. Para responder à natureza,
desenvolveu a capacidade de modificar-se, pensando e produzindo
diferentes possibilidades de respostas, projetando a compreensão
da diversidade e da pluralidade por meio da conversa com o outro.

Se o ser humano não tem a mesma capacidade orgânica dos outros


animais, de criar uma couraça ou pelos no corpo para se proteger
do frio, se não tem a mesma agilidade de um uma onça ou de uma
cobra, se não pode carregar a casa nas costas, como as tartarugas,
se não pode permanecer muito tempo embaixo da água, como os
peixes, ele é dotado de um cérebro muito complexo, que lhe dá
capacidade para produzir abrigos e equipamentos, permitindo-lhe
sobreviver a todas essas situações e a todas as transformações da
natureza.

A forma como esses equipamentos são produzidos vai ser dada


pela cultura e é diferente, de acordo com a época, o povo e a
região onde são produzidos. Por isso, os povos de cada cultura
vivem de formas diferentes, têm casas diferentes, se alimentam
de coisas diferentes. Essa é uma das características da diversidade
cultural humana, campo de estudo da Antropologia.

A Antropologia Cultural é subdivida em Etnologia, Linguística e


Arqueologia, e ainda, a Etnologia recebe outra divisão: Etnografia
e Antropologia Social.

Linguística é o estudo científico da linguagem. Estuda a


linguagem como patrimônio cultural de uma sociedade, possibilita
compreender como os indivíduos expressam seus valores, suas
preocupações e justificam seu universo social tanto através da
literatura escrita como da tradição oral.

A Arqueologia é associada à Antropologia Física, pois revela


aspectos do passado de uma cultura material. Ou seja, possibilita
o conhecimento sobre uma cultura já extinta, através da análise
de objetos e inscrições mediante escavações em moradias antigas
como monumentos, objetos de artes, ferramentas e outros
materiais produzidos pela ação humana.

ANTROPOLOGIA | unidade 2 45
Etnologia é também chamada Antropologia Social ou Cultural.
Ocupa-se do estudo comparativo da cultura, procurando identificar
semelhanças e diferenças entre os povos. Analisa o desenvolvimento
das relações internas de uma cultura, e também as relações entre
as culturas. Etnografia é uma das etapas do estudo antropológico,
dedicada à descrição dos costumes, da cultura e das formas de vida
dos povos e dos problemas teóricos da análise sobre os costumes
humanos.

Atualmente, cada uma dessas áreas tornou-se uma disciplina


isolada, com um corpo teórico próprio. A Antropologia Física
relaciona-se mais aos estudos de genética, paleontologia e
biologia. A arqueologia relaciona-se com a geografia e a história.

No campo dedicado ao estudo das Culturas, existe uma identificação


maior entre Antropologia Cultural, Antropologia Social, Etnologia
e Etnografia, que podem se dedicar ao mesmo objeto de estudo,
recebendo distinções de acordo com a nacionalidade. Ou seja, a
Antropologia Social vem de uma tradição britânica, influenciada
pelos etnólogos franceses, enquanto a Antropologia Cultural vem
da tradição norte-americana, desenvolvida nos estudos sobre
comportamentos culturais dos diversos povo daquela sociedade.

DESENVOLVIMENTO DAS ESCOLAS ANTROPOLÓGICAS

Abordagem Evolucionista

A Antropologia surge como ciência no final do século XIX, no


momento de intensa efervescência intelectual em toda a Europa.
O conceito de progresso, desenvolvido pelos humanistas do século
XVIII, ao universalizar-se, pavimentou solidamente a estrada por
onde caminharia mais tarde, sem maiores tropeços, o conceito de
evolução.

46 PEDAGOGIA
Charles Darwin, a partir dos avanços de seus precedentes no
campo da Biologia, realizou a síntese das ideias sobre evolução
e desenvolveu sua tese explicativa da origem das espécies. A
generalização teórica da evolução das espécies permitia não só
explicar a diversidade dos seres vivos, como problematizar seu
aparecimento, desaparecimento e os processos biológicos que
permitem a variabilidade de formas orgânicas.

A teoria evolucionista significou uma revolução teórica sem


precedentes no século XIX, colocando em xeque as categorias Charles Darwin
fixas do pensamento medieval, confrontando-se com as teses do http://bbsnews.net/
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criacionismo e fornecendo, sem dúvidas, uma base lógica para a undated_charles_darwin.jpg

superação das explicações teológicas sobre os eventos biológicos


e culturais do universo.

A repercussão do abalo dessas explicações evolucionistas sobre o


sentido da vida e da morte gerava insegurança, e se associava à
dimensão psicológica da vaidade ferida do homem, em perder sua
posição de rei e senhor da criação para tornar-se simplesmente
uma entre as múltiplas possibilidades de resultado do processo
evolutivo.

É no contexto desses embates ideológicos que os primeiros


antropólogos se esforçavam por estabelecer a ciência da cultura,
atribuindo-se como tarefa inicial a reconstrução do esquema
evolucionista da cultura, para explicar a diversidade cultural do
homem.

Tylor, pioneiro da ciência antropológica, formulou o primeiro


conceito científico de cultura, como “conjunto complexo que
inclui conhecimento, crenças, arte, moral, lei, costumes e
quaisquer outras capacidades, e hábitos adquiridos pelo homem
como membro da sociedade”.

O conceito, como proposição descritiva, fornece suporte de


referência para o estudo etnográfico das diversas culturas, a partir
dos seus componentes (conhecimentos, crenças, arte, moral, lei,
costumes). Como generalização empírica, toda cultura presente,
passada e futura é conceituada como conjunto complexo. Patenteia
a possibilidade de descrição e de comparação.

ANTROPOLOGIA | UNIDADE 2 47
O que é cultura? O conceito procura responder a essa questão,
explicando-a como fenômeno distinto, como realidade empírica
passível de descrição, de análise e de explicação.

Na comparação entre as diferentes culturas, os antropólogos


evolucionistas pretendiam reconstruir, inspirados no evolucionismo
biológico, os estágios de evolução cultural da humanidade, até
chegar ao estágio de evolução da sociedade europeia, considerada
o topo do desenvolvimento cultural.

O conceito de sobreviência, associado ao conceito de evolução


e ao conceito de cultura, fornece o esquema explicativo para
os estudos preconceituosos, definindo os grupos humanos
em estágios de desenvolvimento do mais primitivo ao mais
civilizado.

Como a linha evolutiva se associa à inviabilidade do progresso,


toda cultura deve passar pela mesma sucessão de fases, ou
estágios de desenvolvimento, na sua marcha evolutiva entre
a selvageria, a barbárie e a civilização.

Utilizando observações e registros de viajantes e missionários,


os antropólogos procuravam comparar componentes das
diversas culturas, para estabelecer a sua fase de evolução,
com base no estado de desenvolvimento dos meios de
produção, da religião, da organização social, enfim, de todos
os componentes do conjunto.

Utilizando o conceito de cultura e o método positivista de estudo,


esses antropólogos analisaram um formidável volume de dados
culturais de diferentes povos. No campo das representações
sociais, por exemplo, Taylor conclui que a manifestação religiosa
mais primitiva é a crença de que almas e espíritos animam todas
as coisas e todos os seres vivos do universo. Denominou esse
estágio religioso “primitivo” de animismo e propôs a seguinte
escala evolutiva religiosa: animismo>idolatria>politeísmo>
monoteísmo.

48 PEDAGOGIA
Realizando estudos sobre parentesco como fundamento da
organização social e política, Morgan, outro importante
antropólogo evolucionista, concluiu que a sequência evolutiva
da organização familiar foi a seguinte: promiscuidade>
matriarcado>patriarcado. Seus estudos comparativos sobre
meios de produção levaram-no a concluir que, no estágio
selvagem, o homem vive de caça, pesca e coleta. No estágio
bárbaro, o homem cria a agricultura, instrumentos, máquinas
e indústrias.

O PROGRESSO TÉCNICO DA HUMANIDADE, SEGUNDO A VISÃO EVO-


LUCIONISTA, PODE SER ESQUEMATIZADO NO SEGUINTE QUADRO:

ESTÁGIO GRAU DESENVOLVIMENTO


Baixo Invenção da linguagem

Selvagem Médio Uso do machado

Alto Invenção do arco e da flecha


Baixo Invenção da cerâmica

Bárbaro Médio Pastoreio, agricultura, irrigação

Alto Domestificação do ferro


Baixo Invenção da escrita

Médio Invenção da pólvora, da bússola, do papel,


Civilização
da imprensa
Alto
Invenção da máquina, da indústria

Na rigidez do esquema, as culturas dos chamados povos primitivos


seriam, na atualidade, expressão de estágios e graus de evolução
anteriores à civilização. Sob esse mesmo enfoque, a permanência de
aspectos culturais primitivos mais avançados (como superstição nas
culturas europeias) seria explicada pelo conceito de sobrevivência.

O evolucionismo deu importante contribuição ao conhecimento


antropológico, ressaltando a importância da cultura, como
fenômeno observável, analisável, interpretável, o que lhe confere
o estatuto de objeto de estudo científico.

ANTROPOLOGIA | unidade 2 49
Essa escola possibilitou a utilização do método comparativo como
substituto do método experimental, para analisar e explicar os
fenômenos culturais em direção a proposições descritivas gerais,
ou seja, permitindo a construção de generalizações empíricas
sobre cultura e diversidade cultural.

A observação sistemática de várias culturas, ainda que em número


limitado, permite fazer a generalização de que as sociedades
humanas dispõem de um sistema de classificação de seus
membros. Isso, aplicado a todas as sociedades humanas, ainda que
a comprovação não seja integralmente possível.

Críticas ao Evolucionismo

As análises evolucionistas, todavia, foram em grande parte


deficientes, equivocadas, preconceituosas, dando suporte, por
exemplo, a usos vulgares.

A vulgarização de concepções estereotipadas deram sustentação


ao racismo, justificando-se em uma infundada relação causal entre
raça e desenvolvimento cultural, que o próprio evolucionismo
científico não postulava. O evolucionismo vulgar supõe uma
evolução cultural biologicamente sustentada, o que, por sua
vez, implicaria que as diferenças raciais expressassem diferentes
estágios de evolução do homem.

Tomando o fenômeno do progresso tecnológico da civilização


europeia numa relação mecânica com a raça branca, inferiu-se
que a raça branca expressava biologicamente mais alto grau de
evolução.

A tese do evolucionismo científico, no campo social, era de


que as disparidades culturais não resultavam de predisposições
congênitas, isto é, não eram biologicamente condicionadas. Umas
das postulações do evolucionismo científico era a unidade psíquica
do homem – todos os homens possuíam as mesmas capacidades
mentais.

50 PEDAGOGIA
As diferenças de progresso cultural são mostras empíricas de
estágios tardios, indo da mais ou menos arcaica às mais ou menos
civilizadas.

Todavia, os termos dessas concepções deram margem a


entendimentos equivocados, levando à universalização da
inferência da superioridade das sociedades mais civilizadas e da
inferioridade dos mais arcaicos ou primitivos, transpondo-se a
explicação de modo desordenado, sem nenhuma análise crítica do
campo biológico para o campo social.

A ideologia etnocêntrica da superioridade das culturas europeias


se disseminou como verdade. O etnocentrismo, como princípio
classificatório das culturas, relegou todos os povos não europeus
a planos inferiores. O etnocentrismo tomou a forma de racismo,
ideologia perversa que legitima a violência de homens contra
homens, a privação da igualdade de direitos baseada na diferença
de cor, na diferença de origem racial, como se a condição de
humanidade fosse redutível a traços fenotípicos e os homens
fossem uns mais humanos, e outros menos.

O caráter apriorístico dos esquemas evolucionistas acabaram por


despertar reserva, uma vez que eram elaborados com base em
dados fragmentados, coletados sem critério, provenientes de
fontes as mais diversas. A ambição por descobrir “leis” universais
de desenvolvimento humano passou a ser questionada. A validade
da pesquisa de gabinete também começou a ser avaliada
criticamente, e seus resultados contestados.

Ao eleger as sociedades civilizadas como ápice da evolução, e


as sociedades “arcaicas” ou “primitivas” como polo inferior, o
evolucionismo forneceu justificativa teórica ao colonialismo que
pretendia estender as vantagens da civilização aos povos que ainda
não haviam alcançado esse estágio, definido por eles mesmos,
como “superior”.

Ao definir como objeto as sociedades fora da esfera da civilização, a


Antropologia se manifestava a serviço do colonialismo, ela própria
profundamente impregnada da ideologia eurocêntrica, segundo a

ANTROPOLOGIA | unidade 2 51
qual os povos civilizados europeus constituíam a referência para
comparar outros povos.

OS PRECURSORES DA ETNOGRAFIA

Boas e Malinowski

Se existiam, no final do século XIX, homens (geralmente missionários


e administradores) que possuíam um excelente conhecimento das
populações no meio das quais viviam – é o caso de Codrington,
que publica em 1891 uma obra sobre os melanésios; de Spencer e
Gillen, que relatam, em 1899, suas observações sobre os aborígines
australianos; ou de Junod, que escreve A Vida de uma Tribo Sul-
africana (1898), a etnografia propriamente dita só começa a existir
a partir do momento no qual se percebe que o pesquisador deve,
ele mesmo, efetuar no campo sua própria pesquisa, e que esse
trabalho de observação direta é parte integrante da pesquisa.

A revolução que ocorrerá na Antropologia durante o primeiro terço


do século XX é considerável, ela põe fim à repartição das tarefas,
até então habitualmente divididas entre o observador colonial
(viajante, missionário, administrador e o pesquisador erudito) que,
tendo permanecido na metrópole, recebe, analisa e interpreta as
informações fornecidas por estes.

O pesquisador compreende, a partir desse momento, que ele deve


deixar seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade
dos que devem ser considerados não mais como informadores a
serem questionados, e sim como hóspedes que o recebem e mestres
que o ensinam. Ele aprende, então, como aluno atento, não apenas
a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e a
pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele
mesmo. Tratam-se de condições de estudo radicalmente diferentes
das que conheciam o viajante do século XVIII e até o missionário

52 PEDAGOGIA
ou o administrador do século XIX, residindo geralmente fora da
sociedade indígena e obtendo informações por intermédio de
tradutores e informadores.

Em suma, a Antropologia se torna pela primeira vez uma atividade


ao ar livre, levada, como diz Malinowski, “ao vivo”, em uma
“natureza imensa, viagem e aberta”.

Esse trabalho de campo, longe de ser visto como um modo de


conhecimento secundário, servindo para ilustrar uma tese, é
considerado como a própria fonte de pesquisa. Orientou a partir
desse momento a abordagem da nova geração de etnólogos que,
desde os primeiros anos do século XX, realizou estadias prolongadas
entre as populações do mundo inteiro.

Em 1906 e 1908, Radcliffe-Brown estuda os habitantes das ilhas


Andaman. Em 1909 e 1910, Seligman dirige uma missão no Sudão.
Alguns anos mais tarde, Malinowski volta para a Grã-Bretanha,
impregnado do pensamento e dos sistemas de valores que lhe
revelou a população de um minúsculo arquipélago melanésio, ou
seja, as Ilhas Trobriand no Pacífico Sul, a partir de onde escreveu
seu clássico “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”.

A partir daí, os trabalhos etnográficos e a publicação das obras


que deles resultam seguem em um ritmo ininterrupto. Em 1901,
Rivers, um dos fundadores da antropologia inglesa, estuda os
Todas, da Índia; após a Primeira Guerra Mundial, Evans-Pritchard
estuda os Azandés (trad. Franc. 1972) e os Nuer (trad. Franc.
1968); Nadel, os Nupes da Nigéria; Fortes, os Tallensi; Margaret
Mead, os insulares da Nova Guiné etc.

Como não é nosso propósito aqui examinar toda a contribuição


desses diferentes pesquisadores na elaboração da etnografia e da
etnologia contemporâneas, focaremos a atenção sobre dois entre
eles, considerados dos mais importantes, um americano de origem
alemã: Franz Boas; o outro, polonês naturalizado inglês: Bronislaw
Malinowski, os quais passamos a estudar a partir de agora.

ANTROPOLOGIA | unidade 2 53
Frans Boas (1858-1942)

Boas é considerado um dos mais importantes antropólogos


no processo de construção da antropologia. A partir de seus
ensinamentos, assistimos a uma verdadeira virada metodológica
na prática da antropologia. Suas contribuições foram das mais
Frans Boas
http://www.webpages. significativas para o desenvolvimento dos trabalhos de campo.
uidaho.edu/~rfrey/
images/220/Franz%20
Boas.jpg Iniciadas a partir dos últimos anos do século XIX (em particular
entre os povos Kwakiutl e Chibook de Colúmbia Britânica),
suas pesquisas eram conduzidas a partir de um ponto de vista
rigorosamente minucioso.

No campo, ensina Boas, tudo deve ser anotado, desde os materiais


constitutivos das casas até as notas das melodias cantadas pelos
Esquimós, e isso detalhadamente, no detalhe do detalhe. Tudo
deve ser objeto da descrição mais meticulosa, da retranscrição
mais fiel (por exemplo, as diferentes versões de um mito, ou
diversos ingredientes entrando na composição de um alimento).

Frans Boas foi o primeiro a formular, com seus colaboradores, uma


crítica mais radical e mais elaborada sobre as noções de origem e
de reconstituição dos estágios propostas pelos evolucionistas. Ele
mostra que um costume só tem significado se for relacionado ao
contexto particular no qual está inserido.

Lewis Henri Morgan, que foi responsável pela divulgação dos


esquemas evolucionistas para as culturas humanas e, muito antes
dele, Montesquieu já tinha aberto o caminho a essa pesquisa cujo
objeto é a totalidade das relações sociais e dos elementos que a
constituem.

Mas, a diferença é que, a partir de Boas, entende-se que, para


compreender o lugar particular ocupado por um costume, não se
pode mais confiar em suposições ou em afirmações produzidas
através de relatos de missionários, ou de administradores coloniais.
Só é possível ao antropólogo elaborar uma monografia, isto é, dar
conta cientificamente de uma microssociedade, apreendida em

54 PEDAGOGIA
sua totalidade e considerada em sua autonomia teórica, a partir
do contato direto com essa sociedade.

Com Frans Boas, começa a surgir, portanto, a etnografia como


exercício profissional, que não se limita mais à simples coleta de
materiais à maneira dos antiquários, mas procura detectar o que
faz a unidade da cultura que se expressa através desses diferentes
materiais. Para ele, não há objeto nobre nem objeto indigno da
ciência. As piadas de um contador são tão importantes quanto
a mitologia que expressa o patrimônio do grupo. Em especial, a
maneira pela qual as sociedades tradicionais, indígenas, africanas,
camponesas ou quilombolas classificam suas atividades cotidianas,
mentais e sociais, deve ser levada em consideração. Boas anuncia,
assim, a constituição do que hoje chamamos de “etnociência”.

Ele foi um dos primeiros a mostrar para o etnólogo, não apenas


a importância, mas também a necessidade do acesso à língua da
cultura na qual trabalha. As tradições que estuda não poderiam
ser-lhe traduzidas. Ele próprio deve recolhê-las, na língua falada
pelos seus interlocutores.

A influência de Boas foi considerável para o reconhecimento da


Antropologia como ciência de estudo das culturas humanas. Foi o
grande pedagogo que formou a primeira geração de antropólogos
americanos na primeira metade do século XX.

Malinowski (1884-1942)

Malinowski dominou incontestavelmente a cena antropológica de


1922, ano de publicação de sua primeira obra, Os Argonautas do
Pacífico Ocidental, até sua morte, em 1942.

Foi um dos primeiros a conduzir cientificamente uma experiência


etnográfica, a viver com as populações que estudava e a recolher
seus materiais a partir do próprio idioma falado no grupo,
radicalizou essa compreensão por dentro e, para isso, procurou Malinowski
http://www.n-a-u.org/
romper ao máximo os contatos com o mundo europeu. MALINOWSKI4.JPG

ANTROPOLOGIA | UNIDADE 2 55
Fez duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand e ninguém, antes
dele, tinha se esforçado em penetrar tanto na mentalidade dos
outros e procurar traduzir o que sentem os homens e as mulheres
que pertencem a uma cultura que não é nossa.

Boas procurava estabelecer repertórios exaustivos, e muitos entre


seus seguidores nos Estados Unidos procuraram definir correlações
entre o maior número possível de variações. Malinowski considera
esse trabalho uma aberração. Convém, pelo contrário, segundo
ele, mostrar que a partir de um único costume, ou mesmo de um
único objeto (por exemplo a canoa trobriandesa), aparentemente
muito simples, aparece o perfil do conjunto de uma sociedade.

Malinowski considera que uma sociedade deve ser estudada


enquanto uma totalidade, tal como funciona no momento mesmo
onde a observamos.

Nessa história sobre a antropologia, podemos fazer uma breve


comparação entre James Frazer e Malinowski, com dois dos mais
inportantes pensadores da antropologia, desde o seu surgimento
no campo científico.

Frazer adota uma abordagem rigorosamente inversa, ou seja, seu


trabalho consiste em analisar de uma forma intensiva e contínua
uma microssociedade sem referir-se a sua história. Enquanto
Frazer procurava responder à pergunta: “Como nossa sociedade
chegou a se tornar o que é?” e respondia escrevendo O Ramo de
Ouro, Malinowski se pergunta o que é uma sociedade dada em
si mesma e o que a torna viável para os que a ela pertencem,
observando-a no presente, através da interação dos aspectos que
a constituem.

Frazer, quando questionado por que ele próprio, não observava as


sociedades a partir das quais tinha construído sua obra. Respondia:
“Deus me livre”! ou seja, Frazer era um homem de gabinete,
que escreveu 14 volumes de uma obra das mais importantes da
Antropologia, sobre magia e religião entre sociedades primitivas,
sem nunca ter tido contato com elas.

Com Malinowski, a Antropologia se torna uma “ciência” da


tradução do pensamento e da cultura do outro, do diferente,

56 PEDAGOGIA
em termos de sua própria especificidade. Assim, vira as costas
ao empreendimento evolucionista de reconstituição das origens
da civilização, e se dedica ao estudo das lógicas particulares
características de cada cultura.

O que o leitor aprende ao ler Os Argonautas, é que os costumes dos


Trobriandeses, tão profundamente diferentes dos nossos, têm uma
significação e uma coerência, são sistemas lógicos perfeitamente
elaborados.

Atualmente, todos os etnólogos estão convencidos de que as


sociedades diferentes da nossa, são sociedades humanas tanto
quanto a nossa, e que os homens e mulheres que nelas vivem
são adultos que se comportam diferentemente de nós, e não
“primitivos”, autômatos atrasados, que pararam em uma época
distante e vivem presos a tradições estúpidas.

A fim de pensar essa coerência interna das culturas, Malinowski


elabora uma teoria (o funcionalismo) que tem seu modelo nas
ciências da natureza. Segundo ele, o indivíduo sente um certo
número de necessidades, e cada cultura tem precisamente a função
de satisfazer, a sua maneira, essas necessidades fundamentais.

Cada uma realiza isso elaborando instituições (econômicas,


políticas, jurídicas, educativas...), fornecendo respostas coletivas
organizadas, que constituem, cada uma a seu modo, soluções
originais para atender a essas necessidades.

Uma outra característica do pensamento desse pesquisador é sua


preocupação em abrir as fronteiras disciplinares, propondo os
estudos sobre o homem através da tripla articulação do social,
do psicológico e do biológico. Convém, em primeiro lugar, para
Malinowski, localizar a relação estreita do social e do biológico;
o que decorre do ponto anterior, já que, para ele, uma sociedade
funciona como um organismo, onde as relações biológicas devem
ser consideradas, não apenas como o modelo explicativo, que
permite pensar as relações sociais, mas como o seu próprio
fundamento.

Além disso, uma verdadeira ciência da sociedade inclui o estudo


das motivações psicológicas, dos comportamentos, o estudo

ANTROPOLOGIA | unidade 2 57
dos sonhos e dos desejos do indivíduo. E Malinowski, quanto a
esse aspecto, vai muito além da análise da efetividade de seus
interlocutores. Ele procura reviver nele próprio os sentimentos
dos outros, fazendo da observação participante um mergulho do
pesquisador no interior da cultura e do outro, compartilhando
seus sentimentos, seus códigos de linguagem e comunicação e
interiorizando suas reações emotivas.

Compreendendo que o único modo de conhecimento aprofundado


sobre o outro é a participação na sua existência, Malinowski
inventa, literalmente, e é o primeiro a pôr em prática o método
de observação participativa, dando-nos o exemplo do que deve ser
o estudo intensivo de uma sociedade que nos é estanha.

Malinowski ensinou os antropólogos a olhar o outro na riqueza


de ser diferente. Deu-lhes o exemplo daquilo que devia ser uma
pesquisa de campo, que não tem mais nada a ver com a atividade
do “investigador” questionando “informadores”. É preciso dedicar-
se à observação de fatos sociais, aparentemente minúsculos e
insignificantes, cujos significados só podem ser encontrados nas
suas posições que ocupam na sociedade como um todo.

Assim, as canoas trobriandesas (das quais falamos acima)


são descritas em relação ao grupo que as fabrica e ao ritual
mágico que as consagra, às regulamentações que definem sua
posse etc., algumas transportando de ilha em ilha colares de
conchas vermelhas, outras, transportando pulseiras de conchas,
efetuando em sentidos contrários percursos invariáveis, passando
necessariamente de novo por seu local de origem, fechando um
círculo de relações sociais.

Malinowski mostra que estamos frente a um processo de troca


generalizado, que não se restringe apenas à dimensão econômica,
pois nos permite encontrar os significados políticos, mágicos,
religiosos e estéticos do grupo inteiro.

Finalmente, uma das grandes qualidades de Malinowski é sua


faculdade de restituição da existência desses homens e dessas
mulheres, que puderam ser conhecidos apenas através de uma
relação e de uma experiência pessoais.

58 PEDAGOGIA
Essa exigência de conduzir um projeto científico sem renunciar à
sensibilidade artística é que define a etnologia.

Malinowski ensinou a muitos, não apenas a olhar, mas a escrever,


restituindo às cenas da vida cotidiana seu relevo e sua cor.

“Um historiador”, escreve Raymond Firth, “pode ser surdo, um


jurista pode ser cego, um filósofo pode a rigor ser surdo e cego,
mas é preciso que o antropólogo entenda o que as pessoas dizem
e veja o que fazem”.

Ora, a grande força de Malinowski foi ter conseguido fazer ver e


ouvir aos seus leitores aquilo que ele mesmo tinha visto, ouvido,
sentido.

Abordagem Funcionalista

No início do século XX, o movimento de contestação ao


evolucionismo, feito por antropólogos insatisfeitos com o
encaminhamento teórico-metodológico da disciplina, centrou-
se em torno de dois núcleos argumentativos: os antropólogos
evolucionistas lidavam com dados colhidos por outros. Era essencial
e indispensável que os antropólogos colhessem, eles próprios,
os dados; tornava-se cientificamente necessário aos estudos
antropológicos o deslocamento metodológico da investigação de
gabinete para pesquisa de campo.

O conceito de cultura se desenvolve no sentido teórico de pensar a


cultura como sistema composto de unidade (traços culturais) que
interagem uns com os outros, formando combinações e sínteses.
Decifrar o funcionamento dos sistemas passa a ser o desafio da
Antropologia.

Desenvolve-se, então, o conceito de função e o método


funcionalista, que podem ser definidos como “metodologia de
exploração da interdependência”, para compreender como as
sociedades funcionam.

ANTROPOLOGIA | unidade 2 59
Uma característica do funcionalismo é a preocupação em mostrar
que as sociedades humanas e suas respectivas culturas existem
como um corpo orgânico, constituído de partes interdependentes. As
partes não podem ser plenamente compreendidas separadamente do
todo, e o todo deve ser compreendido em termos de suas partes, suas
relações uma com a outra e com o sistema sociocultural em conjunto.

A cultura é concebida como um todo integrado, cujos traços


estão funcionalmente relacionados. Avança-se, portanto, da ideia
evolucionista da cultura como todo complexo, cuja relação entre
seus elementos não é questionada, para a ideia funcionalista de
cultura como sistema vivo e dinâmico, cujos elementos são inter-
relacionados, preenchendo cada qual uma função específica no
esquema integral.

A Antropologia, ao invés da preocupação com as origens e evolução


das culturas, passou a preocupar-se em responder às questões de
como funcionam os sistemas culturais e de que forma chegaram, em
sua diversidade, a ser o que são.

Malinowsky procura dar uma resposta a essas questões, elaborando


a teoria funcionalista da cultura. Seguindo o modelo das ciências
da natureza, na perspectiva de que a cultura determina e causa a
cultura, Malinowsky parte do pressuposto que os indivíduos sentem,
em qualquer tempo, em qualquer lugar, dadas necessidades, e que
em diferentes tempos, em diferentes lugares os homens elaboram
coletivamente suas respostas a essas necessidades.

De acordo com Malinowski, cada cultura tem como função sistemática


satisfazer essas necessidades fundamentais, e cada uma o faz à sua
própria maneira.

Vejamos os quadros ilustrativos?

NECESSIDADES BÁSICAS RESPOSTAS CULTURAIS


Metabolismo Abastecimento
Reprodução Parentesco
Bem-estar corporal Abrigo
Seguridade Proteção
Movimento Atividades
Crescimento Exercitação
Saúde Higiene

60 PEDAGOGIA
NECESSIDADES BÁSICAS RESPOSTAS ORGANIZATIVAS
Produção, uso, manutenção e
renovação dos utensílios e bens de Economia
consumo.
Codificação das normas de
Controle social
comportamento e sanções relativas.
Conhecimento e transmissão da
Educação
tradição.
Autoridade e poder para cada
Organização política
instituição

Nenhum sistema cultural é superior ou inferior ao outro, pois


responde adequadamente às necessidades da sociedade que o
desenvolveu, de acordo com seus interesses.

O fato de desenvolver suas próprias respostas culturais torna


todos os grupos humanos culturalmente diferenciados, iguais em
capacidade. As diferenças de desenvolvimento material e técnico
foram esvaziadas do conteúdo hierarquizante que o evolucionismo
lhes atribuía. São abordadas como dados de significação relativa,
em conformidade com a função que desempenha no sistema
cultural de que é parte.

Outros antropólogos funcionalistas contribuíram sobremaneira


para a compreensão das instituições sociais como respostas
organizativas. Radacliffe-Brown, por exemplo, contribuiu para a
abordagem dos sistemas culturais como sistemas de integração
social. O conceito de organização social é tomado como chave de
explicação do sistema cultural.

Os antropólogos funcionalistas universalizam a etnografia como


prática antropológica, demonstrando a pesquisa de campo
como ponto de partida para análise e explicações científicas dos
processos culturais.

Somente a pesquisa de campo permite a compreensão da


lógica particular da cultura que está sendo estudada. Parte-se,
portanto, do princípio de que cada cultura tem sua própria lógica
característica, o que desloca a questão do relativismo cultural a

ANTROPOLOGIA | unidade 2 61
um patamar de investigação, para além da simples constatação de
sua ocorrência como fenômeno.

Esse pensamento associa ao conceito de cultura a noção de


processo, como modos de pensar, de sentir, de agir característicos
de uma cultura, e cada processo como elemento estrutural da
organização social.

Por isso mesmo, os estudos funcionalistas, por fornecerem aos


governos coloniais o conhecimento do funcionamento da cultura
dos povos colonizados, permitiram-lhes, em alguns casos, melhor
controle e maior domínio sobre estes.

Por outro lado, ao se empenharem em demonstrar a constituição


sistemática da cultura, os antropólogos funcionalistas não
reconheciam o conflito como elemento da dinâmica social.
Para eles, a sociedade está sempre em equilíbrio. O conflito é
apreendido pela ótica positivista de perturbação da ordem, sem
se questionar se a ordem é justa ou não.

Se o funcionalismo ganhou espaço por oferecer aos pesquisadores


um sentido para os dados sociais e culturais, uma chave de
explicação para a prática etnocêntrica começou a perder interesse
pela redução da etnografia a descrições simplistas de relações e
correlações culturais, como um fim em si mesmas, sem nenhuma
perspectiva de comparações empíricas, conduzindo os estudos da
cultura a um empirismo limitado e pobre.

Abordagem Estruturalista

É a partir da análise das relações sociais, sob o enfoque de sua


função estrutural, que se articulam as bases para o desenvolvimento
estruturalista do conceito de cultura.

De acordo com Lévi-Strauss, reconhecidamente o principal teórico


Lévi-Strauus do estruturalismo, “a noção de estrutura não se relaciona com a
http://www.
libreriahebraica. realidade empírica, ou seja, não pode ser observada como algo
com/catalog/images/
claude.jpg concreto, mas deve ser pensada como um modelo de análise,

62 PEDAGOGIA
construído a partir da realidade. Aparece, assim, a diferença entre
duas noções tão próximas que, muitas vezes, têm sido confundidas,
quero dizer, a de estrutura social e a de relação social.

O conceito de cultura como linguagem, em sentido amplo, é a


base do estruturalismo antropológico. Com Lévi-Strauss, o método
estruturalista passou a ter relevância, tornando-se foco de um
debate de alto nível, no plano do conhecimento. A abordagem
estruturalista focaliza, assim, os códigos culturais, os princípios
conceituais, os sistemas simbólicos; procura apreender as regras.
Sua pretensão é buscar nos processos mentais a fonte de seus
códigos, é pesquisar as propriedades lógicas da própria mente
humana.

A análise estruturalista procura decifrar o sentido simbólico das


regras básicas que codificam relações sociais de diversos sistemas
particulares do sistema cultural, como o sistema de parentesco, o
sistema mitológico, o sistema ritual.

Partindo do real (realidade empírica das relações sociais concretas),


o antropólogo estruturalista decompõe a cultura que estuda em
suas unidades significativas, e recompõe esse real, iluminando a
sua lógica simbólica.

A análise estruturalista se preocupa com a “ordem pensada”,


estando interessada nos padrões formais da cultura, no modo como
os elementos se relacionam uns como os outros, para formar um
sistema e, em outro nível, na forma como os sistemas simbólicos
de uma cultura se relacionam logicamente.

Para os estruturalistas, quando se decifra a natureza formal


dos sistemas culturais, qualquer forma de relação lógica entre
fenômenos culturais é passível de entendimento, pois pode ser
também decifrada, uma vez que é uma produção mental, e a
mente funciona da mesma forma. O estruturalismo considera
que a mente opera de forma inconsciente, o que, para além de
seu repertório de formas, permite ao homem criar a diversidade
cultural.

ANTROPOLOGIA | unidade 2 63
Se o mundo da experiência fornece a base empírica à análise
estruturalista, não é a experiência em si que se pretende explicar,
mas a racionalidade básica a ela subjacente, a lógica que rege os
fenômenos nela envolvidos e que a tornam congruente.

Um dos problemas do estruturalismo, que o torna alvo de muitas


críticas, é o fato de que não há como se ter acesso à estrutura
inconsciente de uma cultura. Vale dizer que as “estruturas
elementares”, a “estrutura da mente”, os “princípios estruturais”
são inferências, isto é, são construções hipotéticas, construções
teóricas “puras” – não há como serem comprovadas. São modelos
explicativos.

Uma crítica bastante pertinente ao estruturalismo é o caráter


sincrônico de suas análises, ou seja, sua pouca consideração à
história em termos da dialética que existe em seu movimento, a
falta de critérios precisos na escolha dos modelos.

Outras Divisões da Antropologia

Além dessas divisões já apresentadas sucintamente existem outras


mais atualizadas, a exemplo da Antropologia Biológica, que se
interessa também pelos estudos de genética das populações, além
de anatomia comparada das raças, cor de pele, crânios, medições
comparativas de esqueletos etc.

A Antropologia Biológica, investigando as variações das


características biológicas do homem, no espaço e no tempo,
comprovou a unidade da espécie humana, isto é, as diferenças de
cor de pele, de textura de cabelo e outros detalhes não implicam
maior ou menor capacidade de cérebro, ou alguma diferença de
ordem qualitativa. Assim, o homem, do ponto de vista biológico,
possui os mesmos atributos, as mesmas características distintas
que tornam a natureza dos indivíduos da espécie Homo sapiens
absolutamente idêntica, para além das variedades fenotípicas.

64 PEDAGOGIA
Essas pesquisas se orientam para descobrir fósseis da espécie
humana, principalmente na África, Ásia e Europa. Os fósseis pré-
históricos são chamados fósseis hominídeos, isto é, apresentam
afinidades e aproximações com a forma humana moderna,
evidenciando estágios remotos de desenvolvimento evolutivo da
espécie humana.

O desenvolvimento da Genética permitiu à Antropologia Biológica


desenvolver pesquisas de genética das populações, objetivando
estabelecer distinção entre o inato e o adquirido, bem como a
interação entre um e outro.

A Antropologia Psicológica se dedica ao estudo dos processos e


do funcionamento do psiquismo humano. O estudo dos compor-
tamentos individuais, conscientes e inconscientes, pode revelar
a totalidade de uma cultura, objeto específico de definição da
antropologia como ciência.

A abordagem do outro como sujeito possibilita a análise


antropológica voltada para a intersubjetividade. O antropólogo,
para compreender o outro, necessariamente, despe-se de seus
valores, se transformando em estrangeiro, disposto a um olhar
distanciado de si mesmo e de sua própria cultura, aberto ao ponto
de vista e a lógica do outro.

MÉTODOS DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA

O termo metodologia refere-se ao conjunto de técnicas usadas por


uma disciplina particular, com o objetivo de analisar os dados, a
fim de se chegar a um conhecimento. Neste caso, a metodologia
antropológica corresponderia ao que se denomina de métodos e
técnicas em pesquisa antropológica.

ANTROPOLOGIA | unidade 2 65
O trabalho de campo é, sem dúvida, uma
atividade preferida dos antropólogos, pois a
pesquisa em todos os subcampos da antropologia é
frequentemente empreendida em lugares remotos,
terras distantes – na África, no Ártico, no Pacífico
Sul. A primeira viagem prática de um antropólogo-
particularmente se visar a uma sociedade primitiva,
longe das cidades e civilização – é considerada
como um rito de iniciação, depois do qual ele
‘jamais é o mesmo’. Podemos dizer, na verdade,
que os poucos antropólogos que se concentram na
pesquisa de gabinete e evitaram os riscos e rigores
do trabalho de campo são vistos com superioridade
pelos seus colegas. A auréola romântica em torno
do trabalho de campo por vezes obscurece o fato de
que o antropólogo recolhe informações no campo
para um penoso trabalho posterior no gabinete – no
laboratório e na biblioteca. Para cada mês passado
na África, nos mares do Sul ou nas selvas da Nova
Guiné, o antropólogo habitualmente passa muitos
outros analisando e redigindo as suas descobertas
(Pelto,1984, p. 46).

Sem dúvida, toda pesquisa de campo implica, indiretamente,


sempre em uma alteração do curso dos acontecimentos. A
simples presença de um etnólogo numa aldeia indígena, ou em
uma comunidade rural ou urbana, já provoca modificações na
vida dos integrantes do grupo.

Aqueles que negam às ciências do comportamento a condição


de ciência, afirmam que elas não são capazes de controlar os
seus experimentos ou observá-los, já que os cientistas sociais
trabalham diretamente com as manifestações simbólicas dos
grupos humanos.

É necessário enfatizar que os cientistas sociais passam por uma


formação especializada, tomam conhecimento de todo um
patrimônio de conquistas da disciplina, participam de pesquisas
e destinam grande parte de sua vida à produção do conhecimento
sobre as diversidades do comportamento humano.

O cientista social pode perguntar qualquer coisa ao seu objeto de


pesquisa e obterá informações, ao passo que o cientista natural
pouco pode obter de sua cobaia; o laboratório do antropólogo é
a própria sociedade rural ou urbana, o grupo religioso, o grupo
cultural, uma fábrica, enfim, é o próprio local dinâmico, vivo,
onde se pode observar, analisar e verificar como realmente as
coisas acontecem.

66 PEDAGOGIA
Em suma, o que podemos concluir sobre esses aspectos
metodológicos é que, embora a ciência ou o conhecimento
científico seja único, cada ciência tem o seu objeto formal. A
cada uma delas, vão interessar aspectos particulares do universo.
Se o seu objeto de estudo é peculiar, peculiares deverão ser os
métodos de pesquisa, as técnicas empregadas e o instrumento
utilizado. Segundo o antropólogo britânico John Beattie:

O progresso nas Ciências Naturais frequentemente


subentende o estabelecimento de situações experi-
mentais em laboratório e, então, vê-se o que acon-
tece, confirma, ou não, a hipótese previamente
estabelecida. Usualmente, os cientistas sociais não
podem testar as suas hipóteses a respeito das insti-
tuições humanas do mesmo modo. Seu laboratório
é a própria sociedade e, quando se lida com seres
humanos, outras considerações, além do desejo
de conhecimento, tal como o bem-estar geral, os
padrões legais e morais, o interesse nacional, pre-
cisam ter primazia. Por esta razão, raramente é
possível nas ciências sociais estabelecer situações
experimentais segundo o modelo da ciência natu-
ral. Menos possível ainda é lograr que tais situações
sejam repetidas sob condições que, para todos os
objetivos práticos, sejam idênticas, como fazem os
cientistas naturais (Beatti, 1977, p. 94).

Os métodos e técnicas adotados na pesquisa antropológica estão


relacionados com a orientação teórica adotada. Assim, no caso
de uma pesquisa de caráter evolucionista, as técnicas a serem
utilizadas podem ser tomadas de empréstimo à arqueologia
histórica, mas não bastam. Usa-se o que se denominou de método
comparativo, isto é, toma-se o maior número de informações
sobre o tema no tempo e no espaço e procede-se à comparação,
para daí tirar as inferências.

Admitindo-se a unidade psíquica do homem (isto é, admitindo-se


que o homem biológica e psicologicamente é idêntico em todos os
lugares e durante largo período de tempo), tomam-se as observações
do padrão de vida do nativo contemporâneo para serem aplicadas
na reconstituição de uma cultura desaparecida. Aí está um
exemplo de procedimento metodológico na Antropologia. Como se
percebe, há pressupostos teóricos, há postulados metodológicos e

ANTROPOLOGIA | unidade 2 67
há um conjunto de técnicas (entrevistas, observação participante,
história de vida etc.).

No início do século XX, o funcionalismo introduziu novos


posicionamentos metodológicos na antropologia, com a proposta
da observação participante, podendo-se falar em um método
funcionalista. Este, por exemplo, ao contrário do método
histórico-cultural, acha que é possível se estudar uma população
sem conhecimento de sua história, de seus contatos culturais
anteriores etc.

No caso, trata-se de uma visão sistêmica sincrônica onde se


objetiva estudar o funcionamento e a razão de sua lógica interior,
como se procurássemos conhecer a “linguagem da cultura”, no
momento em que ela se manifesta.

A diferença maior não está na coleta de dados, esta praticamente é


idêntica para quantos se metam na tarefa de registrar informações
sobre um determinado campo de pesquisa. Mas a diferença está,
principalmente, no que se escolhe ou se deva recolher.

O chamado método histórico-cultural, utilizado principalmente


pelos discípulos de Frans Boas, visava coletar o máximo de
informações sobre os contatos entre povos, a análise de sua
tradição oral, dos artefatos que permitissem inferir possíveis
contatos de cultura, o estudo dos mitos etc. Enfim, há variações
metodológicas que vão influir na escolha do que investigar na
vida dos povos. Porém, o elenco das técnicas utilizadas é mais ou
menos o mesmo para todos que enveredam no trabalho de campo.

Dizia Melville Herskovits, que o êxito da obra do etnólogo


depende, em grande parte, de sua sensibilidade. É verdade. No
entanto, requer também muita habilidade porque sua pesquisa é
bastante difusa e complexa. Exige certa ecleticidade. Não basta
que o pesquisador social seja sensível ao que necessita perguntar
ou hábil no que deve observar. É mister que ele tenha disciplina
bastante, para colher e registrar com precisão suas observações.

Quando o antropólogo parte para um estudo de comunidade em


que lhe interessa não só um aspecto determinado da cultura da
população estudada, mas, ao contrário, uma visão panorâmica de

68 PEDAGOGIA
toda a cultura, podemos imaginar como ele fica assoberbado com
a quantidade de informações que tem de registrar e com tudo o
que tem de observar.

A observação participante foi aprendida pelos etnólogos na prática


de trabalho de campo. Não foi nos livros que eles aprenderam a
realizar pesquisa junto aos nativos, a pôr em prática o que veio se
chamar observação participante.

O propósito deste método é obter dados através da observação do


comportamento dos indivíduos, no contato direto com os grupos
ao qual pertencem.

A observação participante exige do pesquisador dedicação


exclusiva. Ele passa a morar com o grupo a ser observado. Alimenta-
se da mesma comida do grupo. Canta com eles, reza, observa
todos os movimentos, chega a assimilar sua maneira de viver e
passa a amá-los. Dá-se um envolvimento grande entre pesquisador
e pesquisados.

Há casos em que pesquisadores foram adotados pelos nativos.


Tudo isso se explica, pois este, para realizar sua pesquisa, precisa
permanecer longo período com a população que quer estudar,
meses a fio, distante de tudo o que sua própria cultura lhe poderia
oferecer. Em contrapartida, começa a compreender melhor a
maneira de pensar da população e, inconscientemente, passa a
sentir-se parte da população nativa. Podemos nos valer, ainda uma
vez, do testemunho do professor Roberto da Matta:

De fato, o trabalho de campo em antropologia


social tem como uma de suas características um
profundo envolvimento do pesquisador com o seu
objeto de estudo que, nesta área das ciências
sociais, não é um documento distante ou uma fria
frequência estatística, mas um conjunto de pessoas,
identidades e relações caoticamente percebidas
pelo investigador nos seus primeiros momentos
de trabalho. É a partir deste conjunto nebuloso
que o antropólogo procura inventar uma forma
e com ela iluminar suas hipóteses de teorias. Em
antropologia social, então, o pesquisador produz
seus próprios documentos, cria os seus dados e
muitas vezes inventa suas técnicas de trabalho. Da
tal sorte que a prática do seu ofício, conforme já
sugeriu o brilhante Rodney Needham (1963), muito
se assemelha ao ato de enxergar (ou ao ato de
voltar a ver).

ANTROPOLOGIA | unidade 2 69
Na minha própria experiência de campo,
não poderei jamais esquecer da sensação de
sufocamento, sentida nos primeiros meses de
convivência intensiva com os índios, quando me
sentia distante dos problemas teóricos que me
conduziram à aldeia e cada vez mais tomava parte
na vida cotidiana das aldeias Apinayé. De tal modo
que participar intensamente da vida diária da
aldeia correspondia, num sentido muito concreto,
perder de vista as técnicas, os modelos e as aldeias
de diagrama que havia estudado no meu gabinete
no Museu Nacional.
Tudo isso conduz a uma imensa dificuldade no
momento de transformar essa experiência concreta
e maçante em dados sociológicos. Pois que tal
ginástica depende não só dos objetivos básicos do
pesquisador (inclusive do que estava preparado
ou não para ver) como também das dificuldades
inerentes a toda e qualquer descrição literária
quando o autor procura traduzir experiências totais
e que o atingiram globalmente como ser humano,
através de um meio único e linear como a escrita,
por mais licenças poéticas que possa dispor para
atingir os seus objetivos (Da Matta, 1987, p. 56).

Da Matta enfatiza a importância do envolvimento do observador


participante como uma prática assumida. A antropologia não nega
tal envolvimento. Ao contrário, há razões para defendê-lo. Basta
lembrar que este aparente subjetivismo pode levar – e tem levado
– os antropólogos a se aproximarem o suficiente da realidade das
populações que estuda.

Conhecer não deixa de ser uma forma de possuir. Acontece com


o observador participante uma espécie de “êxtase” diante da
cultura que passa a viver e que desconhecia. Fica maravilhado,
fica deslumbrado. Nessa sua tarefa de observação – é bom lembrar
que se trata de alguém que foi treinado para tal – o antropólogo
observa com todos os seus sentidos, com todo o seu ser.

O longo período que passa na localidade lhe permite, também,


sentir a dinâmica da vida local diante do mundo todo. Conhece as
festas. Ouve histórias. Conhece os mitos e as lendas. Descobre os
gostos e os apetites dos seus observados.

Na antropologia, principalmente devido à sua postura metodológica,


mais do que em qualquer disciplina científica, está presente

70 PEDAGOGIA
a dúvida metódica. Nesta disciplina não há lugar para posições
fechadas. Cada pesquisador tem a oportunidade de, sozinho,
sentir a força das teorias na pesquisa de campo, na observação
participante.

Esta técnica de pesquisa que, como foi dito, caracteriza a


antropologia, comporta várias outras técnicas. Técnica de registro
de dados, técnicas de observação e outras. Assim, durante o
trabalho de observação participante, o pesquisador pode realizar
entrevistas estruturadas ou não, pode fazer um diário de pesquisas,
pode registrar suas observações em fichas, pode recolher artefatos,
efetuar gravações em fitas magnéticas, obter fotos e rodar filmes
super 8’ etc.. Porém, pode fazer muito mais ainda, basta apelar
para a própria imaginação e aproveitar as circunstânciais.

A entrevista é um elemento importantíssimo em qualquer ciência


social. No caso da antropologia, pode acontecer de o pesquisador
desconhecer o idioma falado.

Neste caso, terá oportunidade de estudar com os seus novos amigos


este novo idioma. Aliás, foi assim que os estudos de linguística
tiveram grande incremento.

Precisando os antropólogos de aprender muitos idiomas para o seu


trabalho de campo, muitos deles organizaram gramáticas dessas
línguas e registraram o seu vocabulário. Esta contribuição não
foi nada desprezível. Podemos dizer que foi este procedimento
que despertou o interesse pelos etnográficos, como ocorre com a
antropologia moderna.

No caso de o antropólogo não dominar o idioma, ou enquanto isso


não acontece, ele precisa munir-se de um intérprete. Claro que
isso exige dele, antropólogo, muito cuidado e reserva nos dados
que assim obtém. Com o tempo, já é mais fácil o trabalho, porque
começa a entender o idioma. Não é só o problema do intérprete
que exige a atenção do pesquisador. O informante, geralmente,
alguém que se afeiçoa mais ao pesquisador, merece também
cuidados especiais.

ANTROPOLOGIA | unidade 2 71
Há que se verificar se o mesmo não distorce as informações com o
objetivo de agradar o pesquisador. O pagamento a informantes pode
não ser aconselhável. Contudo, ele poderá ser feito, desde que o
pesquisador leve isso em consideração e filtre as informações.

Todos sabemos que, em qualquer cultura, existem informações que


são dadas com prazer, outras que são fornecidas com relutância
e outras que não são dadas. Estas últimas devem ser, com jeito,
arrancadas. Isto quer dizer que os informantes não podem fornecê-
las e o pesquisador, no caso, pouco poderia fazer com o uso da
entrevista. Ademais, sempre é necessário o pesquisador proceder
a uma verificação posterior de toda e qualquer informação – uma
espécie de prova.

A entrevista parece uma técnica muito simples, até o momento


em que o estudante começa a pô-la em prática. O iniciante sente,
muito cedo, que realizar entrevista é também uma arte. Requer
clareza de objetivos e sensibilidade para conduzi-la num clima de
simpatia e benevolência. Há muitas modalidades de entrevista.

Quanto à entrevista repetida, presta-se a medir as mudanças socias,


repetindo a mesma entrevista em mais de uma oportunidade. Não
vamos discutir o valor do procedimento, mas este tem sido pouco
utilizado na antropologia. De resto, em se tratando de entrevista,
o antropólogo parece ter preferência pela entrevista livre, quer
organizada ou não.

Só ultimamente se nota certas tendências, na antropologia, ao


uso de questionário. Nossa disciplina não tem tradição neste
campo. Talvez se explique isto devido às populações estudadas,
normalmente, pela antropologia – populações ágrafas. O que pode
explicar também é a própria opção da antropologia por um método
compreensivo de coleta de dados.

Em face disso, assumem importância ímpar as técnicas de registro


e documentação utilizadas pelo pesquisador de campo. Sua
pesquisa começa muito antes de partir para o campo. Principia nas
bibliotecas e nas livrarias. Colhido o material indispensável, que
possa trazer alguma contribuição ao estudo que vai empreender,
parte para o campo.

72 PEDAGOGIA
A essa altura já deve ter tomado conhecimento de tudo que se
escreveu sobre o assunto que pretende estudar. Já deve ter feito
seu projeto de pesquisa e arrolado todo o suporte financeiro que
lhe permita levar a cabo o trabalho. Pode fazer parte de sua
bagagem uma gama de instrumentos úteis. Entre eles, máquina
fotográfica, filmes, gravador e fitas magnéticas, papel, fichas,
alguns livros indispensáveis etc.

Nem sempre o pesquisador pode acompanhar suas pesquisas com


o gravador. O informante pode ficar inibido ou recusar-se, mesmo,
a conceder as informações solicitadas.

Daí a necessidade de muito treinamento na técnica de registro


posterior. Ouvida a informação (muitas vezes trata-se de um
bilhão de informações), o pesquisador recolhe-se e passa a
anotar tudo o que se lembra. Pode fazê-lo sem uma ordem
preestabelecida, se não dispuser de tempo. Mas é de bom alvitre
não acumular informações desordenadas. Informações desse tipo,
quando acumuladas, perdem seu valor. Necessário se faz que ele
as organize em fichas e por assunto, de modo a lhe permitir o
manuseio e o remanejamento das mesmas.

Além das fichas, o pesquisador poderá manter um diário de pesquisa


ou diário de campo, onde vai registrando as observações e as
impressões de caráter geral sobre o encaminhamento da pesquisa.
Trata-se de um instrumento valioso que poderá servir de preventivo
aos momentos de desânimo e de tédio. Não se pense que a pesquisa
antropológica de campo acontece de forma agradável, do começo
ao fim. Há momento de crise. O antropólogo é acometido de um
cansaço sentimental, digamos. Sente um aperto no coração e uma
tendência quase irresistível a destruir tudo o que realizou e jogar
fora todas as suas anotações.

À medida que as anotações vão crescendo e a documentação se


torna mais substanciosa, o pesquisador vai sentindo a dificuldade
de organizar todo o material e preparar seu relatório de pesquisa.
A coisa se torna mais dramática, acreditamos, em face da própria
visão globalizante de nossa disciplina. Não devemos tratar de
aspectos técnicos de elaboração de monografia. Ademais, o

ANTROPOLOGIA | unidade 2 73
assunto é visto nas cadeiras de métodos e técnicas de pesquisa,
bem como na cadeira de monografia.

Por último, uma consideração importante. Muitos dos antropólogos


brasileiros não terão ou não tiveram a oportunidade de levar
avante pesquisa de campo no interior das selvas ou junto a povos
primitivos em outros países. Em razão disso, o que foi dito sobre
as técnicas de pesquisa pode parecer sem sentido.

Mas, o campo de estudo dos antropólogos não consiste apenas


de aldeias indígenas. Há uma infinidade de temas importantes a
pesquisar nos nossos quintais. As favelas e palafitas se proliferam
nas grandes cidades. O menor abandonado está solto nas ruas.
As prisões estão abarrotadas, a violência está em toda parte,
grupos específicos se organizam e se manifestam constantemente,
com suas formas de expressar as identidades, a cultura popular é
altamente diversificada nas várias regiões do país, a universidade
pede diagnósticos e modificações, a juventude cresce em
sobressalto.

Enfim, há muitos problemas urbanos, que estão a exigir a


dedicação e o estudo por parte de pesquisadores sociais,
inclusive do antropólogo. O antropólogo pode perfeitamente
dar a sua contribuição teórica e metodológica nas pesquisas
interdisciplinares. O importante é que o trabalho seja realizado
com seriedade.

Em suma, a regra básica do procedimento metodológico deve ser a


ética científica, a honestidade, enfim. É desnecessário dizer que a
credibilidade científica repousa no rigor metodológico apenas em
parte. De nada adiantaria este rigor, caso viesse a faltar honestidade
por parte da comunidade científica. Honestidade não quer dizer
necessidade de patrulhas de qualquer natureza. Ela deve decorrer
do treinamento e da formação universitária. Se nosso estudante
aprender, durante sua permanência na universidade, esta ética
científica, a ciência crescerá em seus propósitos educativos e
libertadores.

74 PEDAGOGIA
Como uma área importante de conhecimento sobre as culturas
humanas a Antropologia apresenta duas questões importantes: a
compreensão de cada cultura como um sistema, um conjunto de
manifestações práticas e espirituais, de trabalhar, produzir, pensar,
organizar a vida social etc., e uma busca de compreensão sobre
de que modo esses sistemas, em sua variedade e diversidade,
chegaram a ser o que são.

A tarefa a que a Antropologia se propõe, desde seu surgimento,


como ciência, é a de explicar as semelhanças e as diferenças
culturais, a manutenção e a mudança cultural através do tempo.

A Antropologia procura decifrar e compreender as populações


humanas, no âmbito das suas diferentes formas de viver
em sociedade. Numa formulação bastante ampla e geral, a
Antropologia estuda o homem e suas realizações; numa formulação
mais aproximativa, a Antropologia estuda a sociedade como um
sistema de símbolos e significados. Como já assinalamos, uma das
características das populações humanas é sua diversidade.

A Antropologia, uma das ciências que têm o homem como objeto de


conhecimento, procura responder a questão central do significado
da diferença, abordando o homem, desde o seu surgimento, como
ser biológico e como ser cultural.

Seguindo orientações diversas, apresentadas pela própria busca


do acúmulo de informações sobre os diferentes aspectos da
vida humana, especialmente a partir dos primeiros contatos dos
viajantes europeus com os povos não ocidentais, a antropologia foi
dividida em grandes áreas, visando abarcar a totalidade da vida
humana em termos biológicos e culturais.

ANTROPOLOGIA | unidade 2 75
Funcionalismo, enquanto escola antropológica possui
pressupostos teóricos relevantes no estudo da cultura.
Portanto, qual a contribuição desta escola no estudo da
cultura e do homem como ser social?

Por que a Etnografia é o método por excelência da


antropologia?

Elabore um quadro sistemático com as escolas


antropológicas, seus principais pensadores e ideias.

Dança com Lobos (1990)

Sinopse: Durante a Guerra Civil, um jovem soldado (Kevin Costner)


pratica uma ato ousado, é considerado herói e vai servir por sua escolha
em um lugar com forte predominância do povo Sioux. Com o tempo
ele assimila os costumes dos nativos, acontecendo uma aculturação às
avessas.

Direção: Kevin Costner


Gênero: Drama
Elenco: Kevin Costner, Mary McDonnell, Graham Greene, Rodney
A. Grant, Floyd “Red Crow” Westerman, Tantoo Cardinal, Robert
Pastorelli, Charles Rocket, Maury Chaykin, Jimmy Herman, Nathan Lee
Chasing Horse, Michael Spears, Jason R. Lone Hill, Tony Pierce, Tom
Everett.

O Último Samurai (2003)

Sinopse: Em 1870 é enviado ao Japão o capitão Nathan Algren (Tom


Cruise), um conceituado militar norte-americano. A missão de Algren

76 PEDAGOGIA
é treinar as tropas do imperador Meiji (Shichinosuke Nakamura), para
que elas possam eliminar os últimos samurais que ainda vivem na região.
Porém, após ser capturado pelo inimigo, Algren aprende com Katsumoto
(Ken Watanabe) o código de honra dos samurais e passa a ficar em
dúvida sobre que lado apoiar.

Direção: Edward Zwick


Gênero: Aventura
Elenco: Tom Cruise, Ken Watanabe, Billy Connolly, Tony Goldwyn,
Masato Harada, Masashi Odate, John Koyoma, Timothy Spall,
Shichinosuke Nakamura, Togo Igawa, Shin Koyamada, Hiroyuki Sanada,
Shun Sugata, Seizo Fukumoto, William Atherton.

A Vila (2004)

Sinopse: Em 1897 uma vila parece ser o local ideal para viver:
tranquila, isolada e com os moradores vivendo em harmonia. Porém
este local perfeito passa por mudanças quando os habitantes descobrem
que o bosque que o cerca esconde uma raça de misteriosas e perigosas
criaturas, por eles chamados de “Aquelas de Quem Não Falamos”.
O medo de ser a próxima vítima destas criaturas faz com que nenhum
habitante da vila se arrisque a entrar no bosque. Apesar dos constantes
avisos de Edward Walker (William Hurt), o líder local, e de sua mãe
(Sigourney Weaver), o jovem Lucius Hunt (Joaquin Phoenix) tem um
grande desejo de ultrapassar os limites da vida rumo ao desconhecido.
Lucius é apaixonado por Ivy Walker (Bryce Dallas Howard), uma jovem
cega que também atrai a atenção do desequilibrado Noah Percy (Adrien
Brody). O amor de Noah termina por colocar a vida de Ivy em perigo,
fazendo com que verdades sejam reveladas e o caos tome conta da vila.

Direção: M. Night Shyamalan


Gênero: Suspense
Elenco: Bryce Dallas Howard, Joaquin Phoenix, Adrien Brody, William
Hurt, Sigourney Weaver, Brendan Gleeson, Cherry Jones, Celia
Weston, John Christopher Jones, Frank Collision, Jayne Atkinson,
Judy Greer, Fran Kranz, Michael Pitt, Jesse Eisenberg.

ANTROPOLOGIA | unidade 2 77
A Letra Escarlate (1995)

Sinopse: Em 1666 em Massachussetts, Bay Colony, uma bela mulher


(Demi Moore) casada com um médico (Robert Duvall) chega na
localidade na frente do marido, com a incumbência de providenciar
um lar para o casal. Mas ela fica apaixonada por um reverendo (Gary
Oldman), que tem por ela os mesmos sentimentos. No entanto, eles
reprimem tais emoções pelo fato dela ser casada, mas quando ela supõe
que seu marido foi morto pelos índios ela se sente livre e acaba ficando
grávida do reverendo. Mas, como apesar de ficar presa e socialmente
marginalizada ela se recusa a dizer o nome do pai da criança, passa
então a portar um “A” de adúltera bordado em cores vermelhas em suas
roupas, como símbolo de sua vergonha perante a sociedade local.

Direção: Roland Joffé


Gênero: Drama
Elenco: Demi Moore, Gary Oldman, Robert Duvall, Lisa Jolliff-andoh,
Edward Hardwicke, Robert Prosky, Roy Dotrice, Joan Plowright,
Malcolm Storry.

78 PEDAGOGIA
unidade

3
CONCEITUAÇÃO ANTROPOLÓGICA DE Objetivos dESTA unidade:

RAÇA E CULTURA Abordar dois conceitos-


chaves na Antropologia.
Primeiramente o
etnocentrismo, como
visão de mundo onde
as visões, ideias e
valores de um grupo
são tomados como
padrão de referência

A
para todas as coisas, e,
nalisaremos os entraves e consequências da utilização neste sentido, discutir
do conceito de raça como categoria de classificação as consequências dessa
biológica do homem, levando ao fortalecimento postura para as relações
entre as culturas
do racismo com prática de extermínio de vários povos na humanas. Ao mesmo
história da humanidade. Abordaremos também os esforços tempo, enfocaremos
as concepções do
de definição de cultura, como conceito explicativo da
relativismo, como
diversidade e das especificidades dos grupos humanos. Ainda proposta de análise mais
neste capítulo, analisaremos os componentes da cultura ampla, reconhecendo
as várias possibilidades
como linguagem, religiosidade, entre outros, enfocando os de expressão da
processos de diferenciação étnica e cultural, bem como as diversidade cultural
formas de transmissão da cultura no processo educativo. entre os povos, ou seja,
cada cultura sendo
analisada a partir das
Uma das mais caras fantasias dos brancos é comprovar
suas especificidades.
cientificamente a teoria da sua superioridade racial, o Trataremos de
que tem levado o etnocentrismo a contaminar a própria compreender o processo
de construção dos
objetividade da ciência. conceitos de raça e
cultura.
As Limitações da Classificação Biológica

Todos sabem o que é um negro, um branco, um japonês etc.,


porque todos têm uma imagem mental dos protótipos das raças.
É possível até que muitos acreditem que classificar a humanidade
em raças seja tarefa fácil. Vejamos como os cientistas têm-se
saído na tentativa para formulação das classificações raciais.

A primeira classificação racial foi proposta no século XVIII,


por Lineu, o fundador da taxonomia, ou seja, um sistema de
classificação, cujo catálogo incluía todos os seres vivos conhecidos
na época, inclusive o homem. Lineu criou a designação Homo
sapiens e classificou a espécie humana em quatro raças: europeus,
asiáticos, americanos e africanos.

Muitas e muitas outras classificações raciais surgiram depois,


algumas tentando simplificar o número de grupos e outras
complicando com divisões e subdivisões em dezenas de subgrupos.

A quase totalidade das classificações baseia-se em características


físicas como cor da pele, textura dos cabelos, forma da cabeça
(índice cefálico), espessura dos lábios, distribuição de pelos etc.

Embora pareça fácil à primeira vista, a existência de grande


número de classificações raciais comprova que não há, entre os
pesquisadores, um consenso quanto ao que deve ser considerado
raça. Além disso, as características físicas, que num primeiro
momento tão nitidamente identificam as raças, se mostraram
ineficazes para delimitá-las cientificamente.

Examinemos uma parte do problema acompanhando a representação


da Figura 1. Nessa figura, tomamos as três características físicas
mais usuais nas classificações raciais:

¡ cor da pele;

¡ índice cefálico;

¡ textura dos cabelos;

80 PEDAGOGIA
e as empregamos para caracterizar cinco grupos humanos bem
conhecidos:

¡ europeus do norte;

¡ europeus do centro;

¡ africanos

¡ australianos;

¡ mongólicos;

Observemos, pelas conexões na Figura 1, que:

¡ africanos e australianos não diferem quanto à cor da pele, mas


apresentam a textura dos cabelos completamente diferentes;

¡ europeus do norte e europeus do centro têm a mesma cor da


pele, mas têm índices cefálicos diferentes;

¡ europeus do norte e africanos têm a cor da pele diferente,


mas são iguais quanto ao índice cefálico.

COR DA PELE ÍNDICE CEFÁLICO TEXTURA DOS CABELOS


ES
NT
RE
FE
DI

EUROPEU DO NORTE EUROPEU DO CENTRO AFRICANO AUSTRALIANO MONGÓLICO


S
AI
GU I

COR DA PELE ÍNDICE CEFÁLICO TEXTURA DOS CABELOS

Figura 1 - Classificação Racial

As dificuldades para delimitação das raças tornam-se maiores


quando se tentam fazer classificações raciais em função de mar-
cadores genéticos no sangue (tipos de sangue). Na verdade, as
diferenças são relativas, isto é, se expressam em termos de maior
ou menor frequência de genes num grupo ou noutro.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 81
Desse modo, tanto pela antropologia física como pela genética de
populações, através de estudos de frequências gênicas, é impossível
delimitar as raças. As variações entre as raças são contínuas e
superficiais, não permitindo separá-las biologicamente.

Se não é possível delimitar biologicamente as raças, sua definição


terá, necessariamente, que ser imprecisa.

Embora apóstolos da precisão e da objetividade, os cientistas


curvam-se diante da realidade dos fatos e definem raça do seguinte
modo: “Raças são populações mais ou menos isoladas, que diferem
de outras populações da mesma espécie pela frequência de
características hereditárias”.

Observemos que a definição permite chamar de raça a qualquer


agrupamento humano que apresente características hereditárias,
com frequências diferentes de outros grupos. As características
hereditárias, cujas frequências variam de uma raça para outra,
não são específicas em qualidade e não têm aplicação universal.
Além disso, essas características dependem do isolamento, cujo
grau também é variável (mais ou menos isoladas), e tanto pode ser
geográfico como social, religioso, político, econômico etc.

O ponto fundamental do conceito de raça é o fato de que as


populações, em cujas características se elaboram as classificações
raciais, pertencem à mesma espécie. Em outras palavras, o mais
fundamental aspecto biológico das raças está naquilo que as une e
não naquilo que as separa.

Quando o homem deixou a vida nômade e se organizou em


sociedades primitivas, os grupos raciais já existiam.

Os primeiros conflitos humanos não surgiram por causas religiosas


ou raciais, mas por disputas econômicas, entre pastores e
agricultores e, mais tarde, também, entre grupos de agricultores,
em disputas pela canalização da água dos rios, para benefício
agrícola.

Não é sem razão que a mais antiga referência, a discriminação


racial, data de aproximadamente 2000 a.C., e consta de um marco

82 PEDAGOGIA
erigido acima da segunda catarata do Nilo, proibindo qualquer
negro de atravessar além daquele limite, salvo com o propósito
de comércio ou de compras. Fica óbvio que a discriminação era
fundamentalmente de ordem econômico-política, usando a raça
como referencial.

Alguns povos antigos praticaram uma forma de preconceito coletivo,


que não era necessariamente racial. Os gregos consideravam
bárbaros todos os povos não-gregos. Aristóteles chegou mesmo a
propor a hipótese da existência do escravo nato, admitindo que
alguns já nascem para escravo e outros para senhor.

Por outro lado, os persas consideravam-se superiores ao resto


da humanidade, e assim também pensavam sobre si mesmos os
germanos, os normandos, os romanos e os bárbaros das estepes
da Ásia. Porém, esses relatos, assim como o antagonismo entre
hebreus e samaritanos, entre cristãos e muçulmanos etc., não são
vistos pelos estudiosos como exemplos de racismo. De modo geral,
existe coerência de opiniões, reconhecendo que, antes do século
XV, as divisões antagônicas da humanidade não eram originadas
por idelogias racistas.

Após o surgimento do homem como espécie, não havia produção


organizada de alimentos, e os bandos nômades de homens e
mulheres primitivos perambulavam para alimentar-se. Os grupos
eram pequenos e isolados, porém se misturavam quando um deles
decrescia, tendendo, pois, ao desaparecimento.

Seguindo essa vida de bandos nômades, a humanidade passou


cerca de 9/10 de sua existência. Somente há 10.000 anos, quando
as mulheres descobriram que podiam cultivar a terra para produzir
alimentos (revolução agrícola), é que os bandos tornaram-se
sedentários e agricultores.

Para alguns geneticistas, a primeira onda de mistura de povos


acompanhou os agricultores que difundiram o emprego do arado,
instrumento utilizado no preparo da terra para o cultivo. Partindo
do Oriente Próximo, o uso de arado propagou-se para a Europa,
Arábia, Irã, Índia, China e regiões nordeste e leste da África.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 83
Mais tarde, os bárbaros (pastores) que habitavam as estepes da
Ásia domesticaram o cavalo, inventaram o carro de guerra e, com
essas inovações, espalharam-se com assustadora rapidez pela
Europa, Ásia Ocidental, Índia e China, proporcionando mais uma
onda de mistura entre povos.

Posteriormente, os bárbaros das estepes descobriram o ferro e


a fabricação de armas. Com esse novo poder bélico, marcaram
a História com invasões, conquistas e misturas tribais, durante o
período do domínio de persas no Irã; filisteus, hebreus e arameus
na Síria e na Palestina; frígios e dórios na Grécia.

Durante os séculos seguintes, os bárbaros das estepes aperfeiçoaram


o controle do cavalo, inventando os estribos e, consequentemente,
criando a cavalaria de guerra por volta do ano 850 a.C.

Com o poder das cavalarias, irromperam hordas de bárbaros


invasores e rapidamente devastaram a Europa e a Ásia, promovendo
nova onda de mistura entre os povos.

O testemunho genético dessas misturas é encontrado, hoje,


através do estudo da distribuição geográfica dos grupos sanguíneos
nas populações da Europa. O sentido da diminuição da frequência
do tipo de sangue B é o mesmo das migrações de conquistas dos
bárbaros, tendo nas estepes da Ásia as frequências mais elevadas.

Não se esgota com os bárbaros a história das misturas dos povos


na Europa. A história dos grandes impérios e suas conquistas é
também a história das misturas entre povos e raças.

Os egípcios, cuja expansão territorial máxima ocorreu em 1479


a.C., dominaram fenícios, cananeus, hititas e assírios, entre
outros. Por sua vez, os egípcios da época eram descritos como de
estatura baixa, morenos, cabelos e olhos pretos, nariz levemente
aquilino, apresentando evidências de miscigenação com negróides,
semitas e asiáticos.

As sucessivas dominações da região Mesopotâmia, por diversos


impérios, deixaram o saldo de várias misturas nos povos da região.
No ano 3000 a.C., a Mesopotâmia foi ocupada pelos sumérios e

84 PEDAGOGIA
subsequentemente conquistada pelos amonitas, cassitas, assírios,
caldeus, persas e, finalmente, gregos, em 330 a.C.

Os gregos, além da conquista, estimulavam o casamento de seus


soldados com as mulheres dos povos conquistados. O próprio
Alexandre Magno desposou duas princesas aquemênidas e celebrou
o casamento de mais de 10.000 de seus soldados segundo o rito
persa.

Finalmente, a expansão do império romano acrescentou mais


mistura à população europeia, já historicamente misturada.

Por motivos culturais e religiosos, os judeus proclamam seu


isolamento reprodutivo, mesmo depois da grande diáspora que os
distribuiu em grupos por vários países.

Todavia, estudos antropológicos demonstram semelhanças entre


judeus e não-judeus vivendo na mesma região, e os geneticistas,
através de cálculos de frequências gênicas, concluíram que existe
mistura racial entre os judeus a uma taxa média de 1% de genes
por geração.

A descoberta das Américas, as navegações para as Índias e a


colonização da África criaram as condições apropriadas para o
desenvolvimento de uma ideologia sobre preconceitos de raça e
de cor.

Todavia, além desses fatos, as mudanças sociais e econômicas


ocorridas na Europa, à época, foram até mais favorecedoras
do nascimento do racismo. O processo de industrialização e a
inquietude social que ele gerou exigiram da organização capitalista
da sociedade uma nova perspectiva para seus membros.

Tanto na França como na Inglaterra, no fim do século XVIII e início


do XIX, a palavra raça passou a mudar de significado. Enquanto
isso, nas colônias do Novo Mundo, colonizadores europeus e seus
descendentes acreditavam na subumanidade dos nativos, mesmo
depois da bula papal emitida em 1537 por Paulo III, declarando os
selvagens como homens verdadeiros e possuidores de alma.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 85
Na metade do século XIX (1855), Gobineau, que mais tarde veio
a ser considerado o “pai do racismo”, publicou na Europa o seu
trabalho intitulado “Ensaio sobre as desigualdades das raças”. O
trabalho de Gobineau explorava fundamentos biológicos para as
diferenças raciais, tendo encontrado ampla receptividade entre a
comunidade científica.

Não menos influente na formação de uma concepção racista da


sociedade, foi a obra de Charles Kingsley, que, segundo alguns,
chegou a criar uma filosofia racial no século XIX.

Durante as décadas de 1850 a 1870, as ideias de raça e racismo


se consolidam na Europa. A partir dessa época, generalizou-se
a crença de que certos povos, por questão de raça, não tinham
a capacidade para progredir como tantos outros, e os europeus
passaram a reconhecer grandes diferenças entre os brancos e as
outras raças, definindo-os como superiores.

Ao fim do século XIX, na Inglaterra, já existiam inquestionáveis


evidências de hostilidades aos negros.

O trabalho de Darwin intitulado “Origens das Espécies”, impôs


grande desafio às ideias racistas através da teoria da evolução,
a qual não apenas afetava a crença na origem separada de cada
espécie, mas também admitia que as raças não eram permanentes
e podiam mudar com o tempo.

Não tardou, todavia, para que os acadêmicos criassem o


“darwinismo social”, admitindo que o preconceito racial
favorecia a evolução, porque, bloqueando as possibilidades de
misturas, estaria se preservando a “qualidade da raça superior”.
O surgimento do “darwinismo social”, à época, demonstra, mais
uma vez, que até a elaboração das explicações científicas são
influenciadas pelas ideias predominantes na sociedade.

Ainda estão bem vivas na memória da humanidade as trágicas


consequências da doutrina racial nazista.

Alimentados por lendas e mitos, mas, principalmente, pela


necessidade de certa forma de hegemonia que compensasse a

86 PEDAGOGIA
ausência de unidade territorial e política, os germanos nórdicos
vinham, há séculos, cultivando a autoglorificação através da
pureza do sangue e da superioridade da raça. Essa tradição fanática
exacerbou-se sob a forma de patriotismo, com a unificação da
Alemanha no fim do século XIX, e degenerou com as teorias racistas
da época.

Na obsessão pela superioridade racial, os alemães deformaram a


teoria da seleção natural de Darwin e admitiram que a eles caberia
o direito de selecionar os mais aptos para a sobrevivência. Em meio
a tamanha insensatez, Adolf Hitler bradava: “A raça germânica é
superior a todos as outras e a luta contra o estrangeiro, contra
o judeu, contra o eslavo, contra as raças inferiores é uma luta
sagrada”

Por todos esses fatos, percebe-se não ter sido difícil para os
dirigentes do III Reich conduzirem os nazistas aos extremos da
violência contra outros povos. Sob o pretexto de sanear a raça,
os alemães arvoraram-se na prática da procriação dirigida e do
extermínio dos inferiores.

É importante não esquecer como o preconceito racial de alguns


pode gerar a violência e a morte de muitos.

O racismo não desapareceu com o progresso dos povos. No mundo


atual, observam-se formas variadas de racismos, que vão desde
sua institucionalização, por força de lei, até as formas mais sutis
de novos disfarces.

Nem mesmo o revolucionário avanço da genética, nas últimas


décadas, ou o progresso tecno-científico da atualidade conseguiram
desmobilizar o racismo.

Mesmo que a crença geral nos fundamentos biológicos para o


racismo tenha experimentado algum esvaziamento, novas formas
de concepção do “outro” estão surgindo. O “outro” é aquele que
é estranho, diferente não apenas na aparência, mas também nos
valores, crenças, estilo de vida, posição social etc. (como veremos
com o etnocentrismo).

ANTROPOLOGIA | unidade 3 87
Assim, a prática do racismo tornou-se, na sociedade moderna, não
apenas mais abrangente, como também mais diversificada em suas
formas de negar a dignidade, a igualdade e o respeito à pessoa
humana. Nas populações caracterizadas por secular mistura racial
(Brasil, Havaí, México etc.), as formas de racismo adquiriram a
peculiaridade de uma existência conscientemente camuflada e
institucionalmente negada.

Na África do Sul, o racismo institucionalizado (apartheid) teve


início com a chegada dos colonizadores holandeses em 1652,
seguidos pelos britânicos e franceses. Através dos séculos, esses
colonizadores brancos criaram na África do Sul todas as formas
possíveis de despojar e oprimir os habitantes negros em proveito
de seus interesses.

O saldo do apartheid durante várias décadas foi uma minoria de


brancos (4,5 milhões) possuindo 87% das terras, 75% da renda
nacional, 27/1000 de mortalidade infantil e um gasto educacional
anual de 700 dólares por aluno. Ao lado, convivendo 19 milhões de
negros, possuindo apenas 13% das terras; menos de 20% da renda
nacional; 40/1000 de mortalidade infantil e um gasto educacional
anual de 5 dólares por aluno.

O racismo no mundo atual persiste, sendo uma forma de


escravidão moderna que fere as pessoas na essência de sua
dignidade, impedindo-as de compartilhar dos bens sociais, para
desenvolvimento pessoal e coletivo. Racismo é não apenas
escravidão, mas também crime de morte, quando subtrai até as
condições sociais mínimas para a sobrevivência.

Um pouco de conhecimento da história biossocial da espécie


humana é suficiente para demonstrar que raça pura é um mito.

As evidências científicas levam a concluir sobre a unicidade biológica


da espécie humana, aliada à ideia de sua origem monofilética. Isto
é, toda a humanidade constitui uma única espécie, a qual tem
origem única.

88 PEDAGOGIA
Para compreender essas afirmações, é preciso levar em conta as
referências à grande dispersão da espécie humana sobre a Terra,
ocorrida antes do surgimento das raças.

Assim, em toda parte passível de habitação terrestre, durante


os milênios posteriores ao povoamento geral, grupos humanos
ficaram sob o efeito dos climas locais, dando origem às raças.

Mesmo que esses grupos humanos ficassem absolutamente isolados


uns dos outros, eles jamais seriam “puros” em relação uns aos
outros, porque todos provêm de origem genética comum.

Mesmo se admitirmos que alguns grupos ficassem absolutamente


isolados durante milênios e milênios, no passado e no futuro, a
expectativa, dentro do que se conhece em biologia, é que eles se
transformariam em espécies diferentes e não em “raças puras”.

Isso é dito para demonstrar que a ideia de raça pura é preconcei-


tuosa, mesmo quando imaginamos modelos improváveis de isola-
mento. Em outras palavras, é impossível uma raça ser ou tornar-se
pura, pois a espécie humana só se prolifera através dos intercru-
zamentos, e, através deles, todos os povos trocam características
genéticas.

Basta recordar que 70% dos genes são iguais em todas as raças
e que os 30% que variam o fazem sem perda das características
básicas. Além disso, a história registra que a ocorrência de mistura
entre povos e raças foi a regra geral nos últimos milênios.

AS DEFINIÇÕES SOBRE CULTURA

Caminhando um pouco mais no entendimento das concepções de


etnocentrismo e relativismo, para compreender as diferenças entre
os povos humanos, estamos avançando no esforço de definição do
que é cultura. O conceito de cultura vai incorporando, em seu
processo de desenvolvimento, o movimento dinâmico dessas
concepções nas teorias antropológicas.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 89
A primeira dificuldade diz respeito a diferentes usos do termo e a
diferentes níveis de abstração envolvidos na discussão do conceito
de cultura.

A palavra cultura, na linguagem corrente, possui muitos sentidos,


muitas acepções. O uso e o abuso do termo, em seu significado mais
amplo ou mais restrito, recomenda um esforço de compreensão
sobre a amplitude do seu campo semântico, de modo que distinga
a análise antropológica das análises que o senso comum associa à
palavra cultura.

Aurélio Buarque de Holanda, no seu Dicionário da Língua Portuguesa,


registra para o verbete cultura os seguintes significados:

“Cultura: (do lat. Cultura) S. F.

1. ato, efeito ou modo de cultivar;

2. cultivo;

3. o complexo dos padrões de comportamento, das crenças,


das instituições e de outros valores espirituais e materiais
transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade:
civilização; a cultura ocidental; a cultura dos esquimós;

4. o desenvolvimento de um grupo social, uma nação etc., que é


fruto do esforço coletivo pelo aprimoramento desses valores;
civilização, progresso. “A Grécia do séc. V a.C atingiu o mais
alto grau de cultura de sua época”;

5. atividade e desenvolvimento intelectuais, saber, ilustração:


Ministério da Educação e Cultura; a cultura do espírito.

6. apuro, esmero, elegância;

7. criação de certos animais, em particular os microscópicos:


cultura de carpas; cultivo de germes; “Cultura física.
Desenvolvimento sistemático do corpo humano por meio de
ginástica e desportos”.

A primeira informação se refere à origem etimológica da palavra


cultura, proveniente da língua latina. A seguir, o dicionário de

90 PEDAGOGIA
Aurélio registra seis núcleos de significações correntes da palavra,
com conteúdos significativos diferentes. O primeiro núcleo de
produção de sentido se organiza em torno da ação de cultivar,
referindo modos genéticos de produzir, seja no sentido cumulativo
de tipo específico de saber, (cultura musical, cultura religiosa,
cultura literária), seja no sentido de um modo característico e
distintivo de ser em sociedade (cultura esquimó, cultura xavante,
cultura maranhense, cultura afro-brasileira); seja no sentido de
produção material (plantas e animais).

O segundo núcleo, mais específico, refere-se à ação de cultivar


a terra, de plantios especializados (cultura do capim-jaraguá,
cultura da cana-de-açúcar, cultura de soja).

O terceiro núcleo se organiza em torno de um esforço conceitual.


Aurélio apresenta uma definição do fenômeno da cultura humana.
É o conceito descritivo, sinalizando a complexidade do fenômeno,
o caráter normativo e padronizante da cultura; algumas de suas
dimensões como a esfera religiosa e suas representações coletivas
(crenças); o caráter dinâmico e cumulativo da cultura. Ao sublinhar
que toda cultura é coletivamente transmitida, realça o caráter
de herança social cumulativo e, finalmente, a interdependência
entre a cultura e a sociedade que a detém.

A definição de cultura como “complexo de padrões” passa uma


idéia de cultura como sistema simbólico, como expressão de
escolhas de um grupo humano, no sentido de organização de sua
vida social, ou seja, de arranjos de vida que permitem a existência
do grupo como coletividade.

O conceito de cultura registrado por Aurélio, conquanto defina


alguns aspectos significativos da cultura, não é um conceito
científico. Trata-se de uma definição que se encontra num patamar
mais abrangente que o significado popular da palavra cultura,
sem chegar, todavia, a alcançar nível de reflexão teórica, que um
conceito científico exige.

O quarto núcleo de significação indicado no dicionário de Aurélio


explicita uma relação de equivalência entre cultura, civilização

ANTROPOLOGIA | unidade 3 91
e progresso, uma equivalência do senso comum que, na verdade,
é problemática, porque pode levar à falsa ideia de que cultura
se restringe a civilização, que, por sua vez, remete à ideia de
progresso, termo usualmente associado a desenvolvimento
material e técnico.

As diversas acepções da palavra cultura registradas por Aurélio


se referem a um ou mais aspectos particulares da cultura de um
povo, mas não chegam a construir o sentido antropológico do
conceito de cultura, nem mesmo no item três, que apresenta uma
proposição descritiva pretensamente generalizante.

Antes de abordar o conceito antropológico de cultura, é desejável


pavimentar o caminho, chamando atenção para diferentes níveis
de abstração que o sentido antropológico do termo cultura se
reveste. Quando se pensa antropologicamente o que é cultura,
tem-se a humanidade como referência.

O conceito antropológico de cultura aborda a humanidade como


totalidade, cuja distinção se caracteriza pela capacidade de criar
e desenvolver modos extraordinariamente diversos de ser e de
existir em sociedade, como coletividades particulares.

A totalidade (humanidade) envolve as diversas coletividades


existentes nas várias regiões do mundo, em épocas diferentes
ou contemporâneas. Cada modo particular de ser e de existir,
característico de uma coletividade, constitui uma realidade
particular e específica. O conceito antropológico de cultura é,
no nível da totalidade (como valor e experiência humana), uma
generalização teórica que abrange as diversidades culturais da
humanidade e que, por isso mesmo, constitui suporte teórico de
referência para o conhecimento de qualquer coletividade humana.
O conceito de cultura é o conceito fundamental de toda análise e
explicação antropológica.

Aqui nos aproximamos da segunda dificuldade: os paradoxos


implícitos na unidade da espécie humana e sua extraordinária
diversidade cultural. A humanidade é uma só, mas suas expressões
empíricas são muito diversas.

92 PEDAGOGIA
A humanidade é composta por todos os humanos, mas os humanos
podem ser árabes, chineses, brasileiros, guajajaras, canelas. Os
árabes, os chineses, os brasileiros, os guajajaras, os canelas têm
em comum o fato de terem sua cultura particular. Ter cultura
própria torna todos esses homens iguais na sua humanidade, na sua
capacidade de simbolizar. Ter cultura é universal como experiência
humana, todavia, cada realidade cultural particular é única.

As culturas possuem a qualidade paradoxal de serem


estáveis, de se perpetuarem, ao mesmo tempo que
são dinâmicas, que envolvem constantes processos
de mudança (Laplantine, 1999, p. 62).

As culturas condicionam os indivíduos de sua coletividade, mas


estes não têm consciência plena de ação cultural. A cultura
transcende à capacidade de apreensão de cada indivíduo.

O estudo científico de uma cultura abarca um processo de


compreensão do povo que a detém, de entendimento das opções
feitas para organizar sua vida social. Cada cultura específica
é uma configuração particular, expressando nas ações de seus
indivíduos e grupos a diversidade cultural em suas múltiplas
possibilidades.

Esse processo de conhecimento do outro, esse empenho em decifrar


as diferentes formas de viver em sociedade e de compreendê-
las é um modo de conhecer nossa própria realidade cultural. No
esforço de conhecer o outro, nos conhecemos também, pois é
reconhecendo no outro o ser, ou o não-ser, que reconhecemos em
nós mesmo o que somos e o que não somos.

Observando, por exemplo, a relação de respeito que os grupos


indígenas têm com suas crianças, é que reconhecemos, mais
facilmente, que esse valor não é fundamental em nossa cultura. Do
mesmo modo, observando a ausência de divisão e hierarquização
sociais em muitas sociedades indígenas, reconhecemos, com mais
clareza, a divisão de classes em nossa organização social. O outro
é o nosso espelho. Ao olhá-lo, vemo-nos melhor, pois reflete nossa
própria imagem invertida, como já o dissemos.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 93
Esse jogo de espelhos, que a diversidade cultural promove, faz
da reflexão antropológica uma ampla vertente de humanismo. O
enfoque científico da Antropologia, ao propor o estudo do homem
por inteiro, confere-lhe o estatuto de ciência sintetizadora,
na medida em que proporciona às outras ciências sociais e às
chamadas humanidades um marco de referência mais abrangente,
de síntese da experiência humana.

Pela diversidade de seus materiais, certa complexidade e rigor dos


seus métodos e técnicas, a Antropologia amplia a perspectiva de
uma abordagem integrativa do homem, sua unidade biológica e
imensa diversidade cultural.

Como ferramenta teórica de construção do conhecimento


antropológico, o processo de construção do conceito de cultura
reflete o movimento de constituição da Antropologia, ao mesmo
tempo como ciência social e como vertente de humanismo.

A distinção entre as ciências decorre, basicamente, do modo como


os cientistas pensam, concebem, definem, problematizam seu
objeto de conhecimento, bem como dos conceitos e categorias
com que se propõem abordá-lo, analisá-lo, sistematizá-lo, explicá-
lo ou interpretá-lo.

Como já tivemos oportunidade de ver anteriormente, a


Antropologia, tendo como objeto o homem, distingue-se das
outras ciências que também estudam o homem por apresentar
como questão central a diversidade cultural.

Já ressaltamos que, ao longo de sua trajetória como ciência, a


Antropologia vem tentando resolver o paradoxo da unidade
biológica do homem, que contrasta com a imensa variedade
cultural que a espécie humana foi capaz de produzir, num espaço
de tempo. Esse dilema permanece como tema e problema da
Antropologia, estimulando a investigação do homem e de sua
diversidade cultural.

Todo campo de conhecimento, porém, assenta as bases teóricas


de investigação em dado conceito que constitui a pedra de toque
de toda produção do saber que lhe é próprio.

94 PEDAGOGIA
A iniciação científica, no campo da Antropologia, leva-nos a idas e
vindas sobre algumas concepções fundamentais, com as quais estão
sendo feitas todas as construções do conhecimento antropológico.
Aprender Antropologia é envolver-se na compreensão da
diversidade cultural humana. Por isso mesmo, quando estudamos
Antropologia, estamos o tempo todo lidando com as concepções
de cultura e diversidade.

Etnocentrismo e Relativismo

As diferentes culturas não existem isoladas no espaço e no tempo.


Indivíduos de culturas diferentes estabelecem contatos entre si, ao
longo da história da humanidade. A situação de contato apresenta,
então, uma possibilidade de trocas, entre portadores de diferentes
culturas que são estimulados a lidar com sua diversidade.

Ao estabelecer a relação de contato, cada sociedade ou grupo


social tende a tomar a sua cultura, os valores da sociedade a que
pertence, como referência da explicação que constrói sobre a
diversidade. O observador, estranhando o outro, o que é de fora,
é levado a pensar a diversidade e tende a associar e a fixar a
diferença percebida naquele que não pertence a seu grupo.

Em tal perspectiva, a relação de contato se configura sob o enfoque


da diversidade cultural, numa relação entre nós (os do grupo social
e cultural a que se pertence) e os outros (aqueles de fora, que não
fazem parte do nós e, portanto, não pertencem a nosso grupo).

A percepção da diferença nos permite a distinção entre nós e os


outros. A diferença apreendida é olhada e pensada por nós como
esquisita, exótica, intolerável.

As diferenças podem nos surpreender, escandalizar-nos, horrorizar-


nos, ou até nos encantar. As diferenças étnico-culturais tendem
a nos provocar tensão, desconfiança, medo e pânico que se
expressam em repulsa, nojo, irritação, intolerância, aversão.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 95
Ao usar os valores da sociedade a que se pertence para formular
julgamentos sobre o outro, confere-se à cultura particular
o caráter universal de referência. A esse modo de lidar com a
diferença, de estabelecer relação com o outro, é que chamamos
de etnocentrismo.

A diferença nos incomoda, ela nos descentra, porque afeta nossas


certezas, nossa segurança e nossa identidade. Nós procuramos
resolver o incômodo atribuindo-a ao outro, localizando-a no outro,
responsabilizando o outro pela “desordem”, pelo “desequilíbrio”
que ela traz à nossa visão de mundo, aos nossos valores, aos nossos
conceitos.

Antes do contato, tem-se um conceito de homem, de humano, de


humanidade, fundado na própria tradição cultural. O outro tem
modos de ser, de pensar, de fazer e de sentir que contrariam,
confundem as nossas referências.

O problema que a diferença apresenta é imediatamente reduzido


a uma questão de pertencimento e, como o outro não pertence ao
nosso grupo social, à nossa cultura, o problema é o outro. Temos
dificuldade em pensar o contrário. Recusamo-nos a perceber que,
a partir dessa mesma lógica, o outro pode igualmente nos explicar.
Nós somos também o outro, vistos a partir do ângulo do grupo
a que não pertencemos. A postura etnocêntrica implica não ver
o outro como igual. O outro é diferente, não é igual, e, neste
sentido, é sempre considerado inferior.

Diferença étnico-cultural não significa necessariamente desigual-


dade ou inferioridade. Quando, porém, pensamos a diferença
como atributo do outro e nos tomamos como centro de referência,
qualificamos o outro como desigual, produzimos a desigualdade e
a inferioridade.

Duvida-se, até, se o outro é humano mesmo, ou se é tão humano


quanto nós achamos que somos. Foi o que ocorreu quando a
América foi descoberta. Os europeus viam os índios como seres
exóticos. Tão diferentes, seriam homens? Pertenciam à mesma
espécie? Pareciam homens mais falavam língua esquisita. Andavam

96 PEDAGOGIA
nus (não tinham pudor), eram pagãos (não tinham Deus). Pareciam
homens, mas com costumes tão diferentes. Seriam humanos?

O índio não foi o primeiro a expor a questão da diferença, pois os


europeus já tinham contato com africanos e com asiáticos, desde
a antiguidade. O índio era a realidade incômoda, com a qual o
europeu defrontava e com a qual era preciso lidar. Na Europa
os índios e a América passavam a ser a novidade. O assunto era
palpitante, as opiniões se dividiam. A igreja, preocupada em
expandir seu raio de influência, interessada em assegurar sua
participação no projeto colonial com a tarefa missionária de
conversão dos gentios, usando sua autoridade, decretou que os
índios tinham alma, logo eram humanos.

Se os índios fossem negados como humanos, não teriam alma. Não


tendo almas para converter, não haveria motivo para a participação
da Igreja na colonização. Por isso, foi promulgada a bula papal
que declarava que o índio tinha alma, ou seja, de acordo com as
concepções da época, que o índio era gente.

Segundo Everardo Rocha, doutor em Antropologia Social e professor


da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ
(1991, p.7).

Etnocentrismo é uma visão de mundo onde o nosso


próprio grupo é tomado como centro de tudo, e
todos os outros são pensados e sentidos através dos
nossos valores, nossos modelos, nossas definições
do que é a existência. No plano intelectual, pode
ser visto como a dificuldade de pensarmos a
diferença; no plano afetivo, como sentimento de
estranheza, medo, hostilidade etc..

O etnocentrismo resulta de uma visão de mundo baseada em


valores de um grupo, para definir os outros. Pode emergir tanto na
relação de uma sociedade com outra sociedade, como na relação
de um grupo com outro grupo no interior de uma mesma sociedade.

Tanto num caso como no outro, o etnocentrismo se expressa na


opinião, no conceito prévio que se forma sobre o outro, sem maior
conhecimento.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 97
É um pré-conceito étnico-cultural. Ideologicamente se configura
como ideia preconcebida do outro, cuja formulação não leva em
conta a sua realidade difenciada. Na prática, o etnocentrismo é
um critério parcial de inclusão e exclusão.

Em qualquer de suas expressões, o etnocentrismo envolve certo


conteúdo de narcisismo autoritário. Todo grupo, toda sociedade,
constrói uma ideia positiva de si mesmo, uma autoimagem
reforçada e estimulante da autoestima, todos os povos são mais
ou menos etnocêntricos.

Em duas de suas expressões mais hostis, o etnocentrismo


historicamente vem dando suporte a extremada violência contra o
outro: o racismo e a intolerância religiosa.

A intolerância religiosa tem estado na base de conflitos armados


entre grupos étnicos, tanto no passado como no presente.

É o caso, por exemplo, dos conflitos ocorridos na Irlanda do


Norte, entre católicos e protestantes e na guerra da Bósnia, entre
muçulmanos e cristãos, e no Brasil atual, onde os evangélicos
desqualificam as práticas religiosas de matrizes africanas com
os mesmos argumentos e atitudes que os nazistas alemães
desqualificaram os judeus.

O racismo é, talvez, a mais insidiosa e resistente forma de


etnocentrismo. O nazismo é um etnocentrismo exacerbado.
Fundado numa ideologia racista de superioridade da raça ariana,
o nazismo promoveu o genocídio dos judeus. Todavia, o racismo
tem historicamente escolhido, como alvo preferencial, os negros.
(Enfocaremos mais tarde as noções de raça como conceito
científico).

Na expansão colonial europeia, é o racismo que vai justificar a


escravidão do negro. Em nossos dias, o racismo continua motivando
conflitos em várias partes do mundo. Na África do Sul, o racismo
ganhou contornos críticos, como nos Estados Unidos. Conflitos
raciais emergem periodicamente, com duração e amplitude
maiores ou menores, mas com violência semelhante.

98 PEDAGOGIA
No Brasil, o racismo assume feição cambiante dissimulada, mas
não menos cruel.

Relativismo Cultural

No sentido antropológico, a concepção que vai se contrapor à


rigidez das posturas etnocêntricas é o relativismo.

O relativismo cultural propõe o diálogo, o reconhecimento do


outro. Busca-se compreender o outro por meio de seus próprios
valores. Busca-se conhecer a lógica interna da sua cultura, dos
seus modelos e definições de ser no mundo.

O relativismo cultural postula uma concepção aberta da diferença,


propondo uma perspectiva descentrada do olhar. É uma visão de
mundo sensível a outras formas de viver em sociedade, a novas
alternativas de ser e estar no mundo, a outros referenciais, a
outras experiências de vida humana associativa.

Toda cultura se explica em termos de sua própria lógica. As


soluções culturais, símbolos e significados que uma sociedade
criou ao longo da sua história são compreensíveis quando referidas
à lógica do próprio sistema que as produziu.

A relativização é uma condição preliminar do pensamento


antropológico. O antropólogo estuda as culturas humanas, partindo
do pressuposto de que são equivalentes como valor e como
experiência. A diversidade de modos de ser e existir em sociedade
revela a possibilidade de uma infinidade de modelos, de tramas.

O relativismo permite ao antropólogo libertar-se das limitações


de sua visão de mundo para a compreensão de outros sistemas de
pensamento, de outros modos de relação e de representação.

Com o relativismo, os antropólogos estão mais em condições de


compreender o outro, na medida em que se tornam capazes de um
processo reflexivo, tendo como objeto a própria cultura. Sendo o
outro o objeto intelectual da pesquisa antropológica, a superação

ANTROPOLOGIA | unidade 3 99
do etnocentrismo se exibe como a condição fundamental de
conhecimento.

O olhar antropológico implica no estranhamento do familiar, do


próximo, do conhecido. O processo de relativização envolve pensar
o outro e sua cultura, nos termos de suas próprias referências.

Todavia, o relativismo cultural não se esgota na constatação de que


cada cultura possui seus critérios de classificação e de avaliação,
ou na posição analítica do conhecimento de dentro para fora, ou
na posição “neutra” de que não há superioridade ou inferioridade
entre as diferentes culturas.

No desenvolvimento histórico dessas relações entre culturas,


processos de denominação marcaram e orientaram contatos
entre os povos que as detêm, produzindo relações desiguais e
hierarquizações. Nenhuma cultura é superior ou inferior a outra,
mas os processos históricos que relacionam umas às outras
produziram desigualdades que não podem ser ignoradas.

A concepção de relativismo cultural vem incorporando a reflexão


sobre as culturas, as hierarquias historicamente produzidas,
reconhecendo as desigualdades que afetam os povos, na relação
de dominação entre realidades culturais diferentes.

Sob tal enfoque, o relativismo não se limita ao reconhecimento


da relatividade de critérios culturais, ao entendimento de que
cada cultura particular tem sua lógica interna, que é necessário
conhecer, para que se possa compreendê-la.

Além do distanciamento do olhar, o relativismo envolve


um comprometimento com o outro. O reconhecimento das
desigualdades, nessa perspectiva de relativização, impõe a
participação nos esforços de superação dos processos de dominação.

Tomemos como exemplo as sociedades indígenas sobreviventes


em nosso País. O relativismo cultural implica o reconhecimento
de que cada grupo indígena possui cultura e de que cada uma
dessas culturas indígenas tem seu modo particular de conceber
o mundo, de organizar a sua vida social, de dar sentido a sua

100 PEDAGOGIA
existência. Cada cultura indígena possui suas próprias tradições,
seus costumes, suas práticas, suas regras, seus códigos, seus
processos de simbolização.

A relativização das culturas indígenas, contudo, não se restringe


ao reconhecimento de que índio tem cultura, ou de que a cultura
indígena deve ser avaliada conforme seus próprios critérios.
Envolve também o reconhecimento do processo de hierarquização
dessas culturas em relação a nossa e da sua situação de
desigualdade, resultantes do processo histórico de dominação dos
povos indígenas, desde o início da colonização do Brasil.

Envolve nosso comprometimento com os esforços de superação


das desigualdades, refletidos nos direitos específicos que a
Constituição de 88 lhes reconhece: o direito à terra, o direito a
sua cultura, o direito à diferença com respeito e dignidade.

DIFERENCIAÇÃO ÉTNICO-CULTURAL E EDUCAÇÃO: a


trasmissão da cultura

O Estudo da cultura envolve, necessariamente, um estudo da


sociedade como um sistema de símbolos e significados, como
sistema de comunicação.

Por sua vez, o enfoque da cultura como construção histórica, como


produção social, implica sua abordagem como uma dimensão do
processo social. A cultura, ao mesmo tempo que é produção social,
produz a sociedade, constituindo um plano independente da
vida social, com sua própria dinâmica, envolvendo seus próprios
mecanismos de comunicação e de transmissão.

Os processos de transmissão da cultura dão suporte ao processo


de socialização. É através da cultura que uma sociedade socializa
seus membros.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 101


O processo de socialização do ser humano se dá a partir do
seu nascimento. A família, biológica ou adotiva, é a instituição
social responsável pela transmissão do discurso cultural e de
suas estruturas básicas de significação. O aprendizado de como
ser membro de uma sociedade tem como referência um processo
educativo socialmente definido.

Enquanto processo cultural, a socialização é concebida como


processo de construção da pessoa. Marcel Mauss, um eminente
antropólogo francês, entre muitas de suas importantes
contribuições à teoria da cultura, foi o primeiro a desenvolver a
noção de pessoa. Desde então, a construção da pessoa tem sido
um tema recorrente na Antropologia pela sua centralidade nos
processos de identidade e de transmissão da cultura.

Toda cultura define seus processos de construção social da pessoa.


A família é o foco de construção da pessoa, na sua identidade
social e na sua expressão linguística. Assim, em cada sociedade
ou grupo étnico, o processo de definição da pessoa passa por
etapas específicas, possibilitando o seu reconhecimento enquanto
membro pertencente ao grupo, desde as primeiras etapas da vida.

Considerando as dimensões do mundo, com toda a diversidade


de povos e culturas, podemos imaginar que essas situações se
dão das formas mais diversificadas possíveis, ainda que se possa
encontrar alguma correspondência, mesmo em sociedades que
nunca mantiveram nenhuma forma de contato.

Na nossa sociedade, o processo de socialização se dá inicialmente


na família, e depois na escola formal.

A família é a referência principal de modelagem do indivíduo, pois


é ali que ele vai receber os primeiros ensinamentos da sua cultura
desde o nascimento, pois o próprio parto é definido culturalmente,
os primeiros contatos com a mãe ou com outras pessoas da família,
situação que também varia de acordo com a cultura do grupo.
Na família, desde a fase da infância, o indivíduo vai aprender os
princípios básicos da socialização, ouvir histórias, aprender as
lendas, os costumes, valores etc., que vão lhe dar suporte moral
para se tornar membro dessa cultura até a fase adulta, onde terá
também a responsabilidade de repassá-la a outros.

102 PEDAGOGIA
A educação escolar desempenha também um papel crucial
na construção social da pessoa. A escola é a instituição social
destinada à preparação para a vida pública, para o trabalho, para
a maturidade. Cabe socialmente à escola preparar o indivíduo,
masculino ou feminino, para assumir a posição concreta de adulto,
econômica e socialmente produtivo dentro da sociedade.

A escola é, enquanto instituição social de transmissão da cultura,


parte da sociedade e da cultura. Em seu interior, os diversos
processos de identificação continuam operantes, ela reproduz
a representação social do mundo e as representações sociais de
pessoa.

Neste sentido, os educadores têm um papel crucial no processo


de formação do indivíduo. Precisam estar familiarizados com
as concepções pedagógicas e metodológicas mais atualizadas,
devendo com isso estar qualificados para orientar a formação dos
alunos na direção da superação dos preconceitos e discriminações,
estimulando a convivência harmoniosa e o respeito às diversidades
étnicas e culturais, de gênero, crenças etc.

Essa dimensão da educação escolar incide decisivamente no


processo pedagógico, e pode ser responsável pelo sucesso ou
insucesso dos grupos humanos no processo escolar.

DIMENSÃO CULTURAL DA ESCOLA

A passagem da vida familiar para a vida escolar é uma experiência


marcante para a grande maioria das crianças. A criança se percebe
e adquire consciência de si, a partir das relações que estabelece
com a realidade do meio familiar. Suas referências, seus valores,
sua visão de mundo, permitem-lhe uma representação de mundo
e de si, cujos focos de significação são compartilhados. Essas re-
ferências e os vínculos que constroem permitem a certeza do seu
enraizamento cultural.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 103


Na escola, a criança vai se defrontar com um meio social mais
amplo, com um mundo com referências e valores diferenciados,
um meio social com focos de significação dominantes, nem sempre
iguais aos do seu meio familiar.

O confronto com essa realidade pode ser uma experiência


gratificante ou aversiva. Na escola, a criança pode se sentir
estimulada ou reprimida, livre ou oprimida.

Tanto as salas de aulas, quanto os demais espaços da escola onde


se estabelece a convivência com outros indivíduos, iguais ou
diferentes, reproduzem o universo significativo da cultura como
dimensão do processo social. Nesses espaços, os alunos apreendem
novas dimensões significativas e com elas apreendem o mundo
culturalmente significativo e aprendem a ser nesse mundo, a se
tornar parte dele.

O recorte das diversificações internas da sociedade vai sendo


percebido e internalizado. Esse micro universo é regido por
normas, por regras que estabelecem limites. A relação com esse
universo se dá, inicialmente, pelo deslocamento dos significados
do meio familiar. O professor é identificado como autoridade e os
colegas são identificados como pares.

A sala, além de lugar de aprendizagem escolar, é também lugar


de aprendizagem social. O funcionamento da classe é social
e culturalmente regulado. A criança aprende a se comportar,
discrimina as expectativas do professor, dos pares, da própria
família e se esforça para responder a elas.

Dos processos de interação que vivencia, emergem novas regras.


Procura a convergência entre essas regras e as do meio familiar
e muitas vezes verifica divergências. Certas regras, ora têm
validade, ora não, dependendo das circunstâncias. Percebe com
mais clareza a manipulação. A criança enfrenta novas exigências
e novos conflitos.

Na interação, a criança apreende intenções, e, cada vez mais, os


papéis e as representações das diferenças assumem importância
nos processos de discriminação.

104 PEDAGOGIA
Os seus quadros de referência e os de seus pares apresentam, ou
não, pontos de convergência e, para muitas crianças, apresentam
uma dolorosa divergência com os quadros dominantes de referência.

A sala de aula é, também, um palco de conflitos. As diferenças


raciais, as diferenças de origem regional ou de origem urbano-
rural, enfim, as diferenças étnico-culturais, configuram conflitos
de valores de pertencimento, interferindo no reconhecimento
recíproco entre os colegas de classe, podendo assumir feição
limite de processos de rejeição, de discriminação.

Os dados estatísticos, no Brasil, têm revelado, nas últimas décadas,


que o não reconhecimento da diferenciação étnico-cultural é uma
das causas do insucesso escolar.

As representações coletivas sobre capacidades intelectuais de


negros e índios apontam na direção de que a tendência do insucesso
escolar se explica pela diferença em si. A competência intelectual
de índios e negros é tradicionalmente depreciada.

Os índios são considerados incapazes de civilização. O discurso


social sobre o índio, passa a ideia de que ele possui uma mentalidade
primitiva, pré-lógica, ingênua, infantil. Se o índio é socialmente
considerado selvagem, incapaz de civilização, fica implícita sua
incapacidade também para a escolarização.

Essas explicações são preconceituosas, etnocêntricas, fundadas na


lógica do evolucionismo vulgar, das teorias racistas de explicação
da diversidade de caracteres físicos dos humanos.

Da mesma forma, os negros são considerados como intelectualmente


inferiores. As teorias racistas do Conde Gobineau, diplomata
francês no Brasil, durante o segundo império, foram muito
divulgadas e se tornaram populares. Para Gobineau, os negros
eram fisicamente bem dotados, portanto, apropriados ao trabalho
pesado, que requeria esforço físico. Sobre tais concepções se
assentam representações positivas de dotes físicos do negro, ter
boa voz, bons dentes, mais resistência física, mais potência sexual,
mais sensualidade, mais ritmo, bom ouvido.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 105


O pressuposto é que, por ter essas qualidades, o negro se destaca
no futebol, na música, na dança. Não se leva em conta que são
práticas culturais populares que os negros sempre puderam
realizar, desde o contexto da escravidão.

No que se refere a qualidades intelectuais, todavia, o negro,


segundo Gobineau, é pouco dotado. Sobre tal concepção se
assentam representações negativas da inteligência do negro,
considerando-os “rudes”, com dificuldade para aprender.

O problema, na verdade, não se coloca na diferença em si,


negros e índios têm as mesmas capacidades ou incapacidades
de aprendizagem que os brancos possuem. A dificuldade de
aprendizagem é engendrada em nível do distanciamento social e
cultural que o meio escolar lhes impõe.

Crianças negras e índias não se veem refletidas no material


dedático-pedagógico adotado pelo sistema escolar. Aos problemas
e às dificuldades que todos os alunos enfrentam, somam-se
a hostilidade, a discriminação, o desprezo, a humilhação, o
desenraizamento cultural, a opressão que tornam a escolaridade
uma experiência dolorosa, traumática.

A diferenciação étnico-cultural, como fator de insucesso escolar,


coloca o desafio de se pensar a forma como o sistema educacional
trata brancos, negros e índios no Brasil.

Educação dos Negros

Pelo preconceito de ter preconceito, muitos professores não


explicam o seu pensamento sobre as crianças negras com que se
relacionam na sala de aula, ao longo de sua vida profissional. Mas,
certamente, esse pensamento se constitui numa mediação da
relação pedagógica com as crianças negras.

Esse pensamento assume muitas formas de expressão: “a maioria


dos negros tem recalque, é complexado”, por isso não consegue
ter bom rendimento escolar; “negro não pensa no futuro”; “o

106 PEDAGOGIA
negro se discrimina”; “negro foi libertado, teve chances, mas não
progrediu”; “problema do negro é econômico”; “negro é bom de
futebol e de samba”; “negro é feiticeiro”; “a maioria dos negros
é de marginal”. A lista não se encerraria aqui, pois o repertório de
representações estigmatizantes do negro é amplo e variado.

Analisando esse conjunto de representações sob o enfoque de suas


implicações pedagógicas, percebe-se que a ideia resultante é de
que o negro é responsável pela sua posição social de inferiorização.
Isto é, o próprio negro se discrimina, o próprio negro constrói seu
destino.

Sabemos, todavia, que a discriminação racial é, necessariamente,


racista. Logo, a discriminação, o “recalque”, o “complexo”, são
contruídos socialmente, ou seja, são produzidos pela sociedade.
No interior da escola, quando o negro sofre discriminação, isto
não é problema só dele, é um problema da escola, é um problema
pedagógico que deve ser enfrentado.

Quando se reduz o problema da questão racial a uma questão


de classe, a um problema econômico, pretende-se escamotear o
racismo. Sabemos que a maioria das crianças negras que vão à
escola pública pertencem às famílias mais pobres e que as famílias
negras são, em sua maioria, pobres porque a integração do negro
na sociedade de classe se fez sob a determinação do legado da
escravidão.

Sem acesso à escola, sem qualificação para o trabalho, com o


estigma da escravidão e do racismo, ao trabalhador negro coube o
último lugar na escala social.

O problema da educação dos negros coloca-se, portanto, como


um problema real, como um problema educacional que demanda
soluções específicas, para além das necessárias soluções
educacionais para uma escola pública de qualidade, é um problema
central à questão da democratização da educação.

É oportuno, sob tal perspectiva, enfocar o problema sob dupla


dimensão: a dimensão da educação familiar e a dimensão
da educação escolar. As famílias negras enfrentam grandes
dificuldades em educar seus filhos no seio de uma sociedade racista
que culturalmente escamoteia seu racismo.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 107


Em sua grande maioria, as famílias negras tendem a preparar, de
modo equivocado, seus filhos para enfrentar o racismo. Vivendo
numa sociedade etnocêntrica, as famílias internalizam os valores
dominantes, impregnados de preconceito.

Vivendo num mundo de brancos, mesmo resistindo, os negros são


levados a interiorizar os valores culturais brancos, incluindo os
valores estéticos que culturalmente orientam a preferência no
sentido dos caracteres fenotípicos brancos. O negro é levado a
introjetar sua própria imagem sob o ponto de vista do branco.

Caracteres físicos como cor da pele, textura do cabelo, forma do


nariz e dos lábios, são confrontados com o padrão branco. Mesmo
quando a criança negra é estimulada a se ver como bonita, sua
beleza é colocada em confronto como padrão de beleza dominante,
em situação de desvantagem.

Há três orientações educacionais culturalmente engendradas


no interior de famílias negras, sob pressão do meio branco, que
reforçam a indução da desvantagem racial no que respeita à
estética étnica:

1. reforçar o imaginário da sensualidade;

2. exacerbar a noção de limpeza corporal;

3. estimular a autorrepressão sob a forma de submissão a


alisamento dos cabelos ou sob a forma do corpo reprimido,
contido.

Mesmo recebendo orientações na família, sobre o fortalecimento


da autoestima, a criança negra, quando experimenta situações
negativas, seja na escola ou fora dela, discrimina a orientação
recebida em casa e passa a acreditar que a beleza ou a feiura
negra são desvantajosamente valorizadas em relação à beleza ou
à feiura branca.

108 PEDAGOGIA
No que diz respeito à relação com o mundo, as alternativas de
padronização cultural mais frequentes no meio negro em relação
à cor são: a reprodução do racismo dominante, no uso da cor
como forma de repressão e humilhação das crianças pelos adultos;
evitação de estigma da cor pela via de relações clientelísticas,
do branqueamento social, da invisibilidade pela postura discreta
e submissa; conformismo; enfrentamento do preconceito; e luta
pela cidadania.

No que diz respeito à vida familiar, em muitos casos, a tradição


cultural, pela via da religiosidade, das práticas culturais
associativas dá à criança negra as referências positivas para se
perceber no mundo. Todavia, a dominação social e a polaridade
racial configuram a impropriedade dessas referências, diluindo
na insegurança a identidade negra, fragmentando-a no ser-no-
mundo, no confronto com as práticas racistas. A passagem da vida
familiar para o meio social mais amplo é, para a criança negra,
uma experiência dolorosa. A fragmentação da consciência negra é
uma das mais perversas faces da discriminação racial.

De modo geral, a escola, na perspectiva de reprodução social,


não se coloca como seu o problema da discriminação e educação
dos negros. Uma educação que se pretende democrática, de
qualidade, co-responsável pela libertação, não pode se eximir da
sua responsabilidade em relação à problemática etnico-racial.

A educação dos negros não pode ser pensada como paralelismo ou fora
da sociedade. O negro é membro da sociedade e, como tal, tem direito
e deve estar incluído democraticamente no processo educacional.

A educação dos negros sob o enfoque crítico, relativizador e


transformador das relações raciais, tanto em nível prático como
ideológico, através dos movimentos sociais, especialmente do
movimento negro, emerge da própria sociedade que constitui.

A abertura da escola à parceria do movimento negro, confere um


sentido político a sua ação pedagógica, no sentido da educação
para a cidadania, na perspectiva da superação dos preconceitos e
da discriminação racial.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 109


A sociabilidade racista introjetada produz a subordinação
aquiescente do negro. Ele aceita a dominação, acaba por se
ver sob a ótica racista, procurando nos interstícios das relações
raciais, formas individuais de compreensão social, pela diminuição
das desvantagens de ser negro.

Pensando-se como o branco pensa, em conformidade com os


valores dominantes, o negro não se dispõe a se organizar pela
filiação racial, não se dispõe a se expor como membro de raça,
alinhando-se ao discurso dominante de que é o próprio negro que
tem preconceito e que, dividido e desorganizado, reproduz os
mecanismos racistas de dominação.

A atuação do movimento negro, ainda que pontual e intermitente,


tem sido propulsora de ganhos reais no sentido da democratização
das relações raciais no Brasil.

No plano social mais amplo, o movimento conseguiu, na Consti-


tuição de 1988, a prescrição da prática do racismo como crime
inafiançável (Art. 5, inciso XLII); a proteção das manifestações das
culturas afro-brasileiras (Art. 215, parag 1º); o tombamento, como
patrimônio cultural brasileiro, dos documentos e sítios dos anti-
gos quilombos (Art. 216, inciso V, parag. 5º); reconhecimento da
propriedade definitiva da terra aos remanescentes das comunida-
des dos quilombos que nela permanecem (Art. 68 das Disposições
Transitórias).

O reconhecimento de direitos específicos foi um passo importante


da sociedade no sentido da democratização das relações raciais e
esse passo foi uma conquista do movimento negro.

Em diversos Estados, o Movimento Negro vem conseguindo atuar no


âmbito da educação escolar em projetos relacionados a currículo,
programas, livro didático, formação de professores. Em todo País,
a luta dos movimentos negros pela democratização da educação
vem alcançando resultados. Mas esse é o começo de uma longa
caminhada marcada por avanços e recuos.

Lidar com as diferenças numa sociedade e cultura etnocêntricas


é muito difícil. A questão da identidade é, por isso, uma questão
crucial. A compreensão de que nós, brasileiros, somos plurais,
somos diferentes e que na nossa diversidade temos objetivos

110 PEDAGOGIA
comuns, objetivos que se realizam como de interesse comum se as
nossas diferenças são consideradas, é uma tradição epistemológica
de educação e diversidade que precisamos construir.

Um grande começo é, sem dúvida, a abertura da escola à expressão


da cultura afro-brasileira, do modo como os negros se põem no
mundo, o modo de ser negro na situação de pluralidade étnico-
cultural com negros e com outros étnicos. Essa abertura implica
um esforço de reconstituição da ação pedagógica no sentido de
descontaminá-la do racismo, do branqueamento, da opressão.

No que respeita à diferença racial, a educação escolar tem se


demonstrado uma educação de exclusão de negros e de formação
de morenos.

A necessidade de superação desses entraves à formação do negro


no processo educacional, em termos de fortalecimento da auto-
estima e de reconhecimento de cidadania, nos acena em direção
à importância da parceria entre as escolas e os movimentos
populares, como oportunidade de trocas e enriquecimento mútuo.

As escolas precisam do saber dos movimentos para enfrentar


o desafio de sua democratização e os movimentos precisam da
escola para construção de uma modelagem conceitual, aberta
a múltiplas referências, a múltiplos saberes, garantindo aos
afro-brasileiros reconhecerem-se nela como atores sendo, no
processo pedagógico, uns com os outros ensinando, aprendendo,
construindo, pois conhecer é apreender diferenças, diversidades,
identidades, no processo social, encontrando-se o sentido desse
processo, embora vivendo-o de modo diferençado.

Outras Minorias Sociais

Da mesma forma que negros e índios, a pesquisa antropológica no Brasil


se estende ao conhecimento de outros grupos que revelam formas
específicas de organização social, definidos como minorias étnicas
ou sociais. Esses grupos estão situados tanto no que se define como
sociedades tradicionais como em espaços da modernidade, ou seja,

ANTROPOLOGIA | unidade 3 111


segmentos rurais ou urbanos, que constroem sua identidade a partir do
autorreconhecimento como pertencente a este ou àquele grupo.

Existe uma grande quantidade de “outros”, no Brasil, que são


definidos etnocêntrica e preconceituosamente, a partir dos padrões
valorativos da sociedade dominante. As formas de organização
desses grupos são objeto legítimo da análise antropológica,
a partir de cujas pesquisas pode-se desvendar muito de suas
especificidades e diferenciações, bem como de suas articulações
internas e com a sociedade envolvente.

São trabalhadores rurais de diversas categorias: sem terra,


lavradores, pescadores, quebradeiras de coco-babaçu etc.; são
grupos urbanos de roqueiros, regueiros, blocos carnavalescos,
imigrantes, mulheres, homossexuais, quilombolas etc.; grupos de
culturas tradicionais, religiosos, componentes da cultura popular,
enfim, tantos e tantos outros e outras, que enfrentam situações
de discriminação em seu dia a dia, que reivindicam direitos de
participação social e reconhecimento de cidadania.

A definição desses grupos como minoria étnica ou social está


relacionada ao não reconhecimento da sua importância no processo
de formação da sociedade. No entanto, são indivíduos, pessoas,
que se organizam enquanto grupo específico, visando fortalecer
suas identidades e adquirir visibilidade como protagonistas da
história.

Na verdade, são homens e mulheres que, independentemente das


suas características étnicas, sociais, ou sexuais, estão presentes,
atuando nos diversos setores da sociedade, contribuindo, enfim,
com a dinâmica das transformações socioculturais, portanto,
devem ser respeitados em sua condição de membro de uma
sociedade humana, com os mesmos direitos de cidadania que
dizem respeito a todos.

Cabe à educação, contribuir de forma coerente para a superação


dos preconceitos que envolvem as relações da sociedade com esses
indivíduos, mostrando que as desigualdades são consequências
das contradições da sociedade de classes, e não por qualquer
incapacidade do indivíduo. É preciso enfatizar que a hierarquização

112 PEDAGOGIA
dos povos em categorias sociais é fundamentada em interesses
políticos e econômicos que ferem a democracia e a dignidade
humana. No caso da sexualidade, é preciso ressaltar que a opção
sexual é uma escolha que não compromete em nada a sua condição
de ser humano.

Enfim, cabe aos educadores e educadoras enfatizar, a partir das


concepções antropológicas, que em uma mesma espécie, todos os
indivíduos têm as mesmas potencialidades para produzir trabalho,
saberes e conhecimentos, para repoduzir-se biologicamente, etc.,
o único empecilho para o desenvolvimento dessas potencialidades
é de ordem social, fundamentada em racismos, sexismos e
preconceitos, que devem ser extirpados das relações humanas
baseadas em princípios democráticos.

As escolas precisam do saber dos movimentos para enfrentar


o desafio de sua democratização e os movimentos precisam da
escola para sua construção.

“Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens, um pastor


se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar, no Xingu, seu
trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou
para os selvagens espelhos, pentes etc.: modesto, comprou para si
próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de ascender
luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até
dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. ...Tempos
depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava
a todos os lugares... e mostrava-se admirado do colorido e estranho
objeto que o pastor trazia no pulso ... um dia, por fim, vencido por
insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem
jeito e a contragosto, ao jovem índio.

... Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe,


muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior
de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o
pastor divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e
contas coloridas, tendo no centro o relógio. ... Quase indistinguível

ANTROPOLOGIA | unidade 3 113


em meio às penas e contas e, ainda por cima pendurado a vários
metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma função,
contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no rosto do pastor.

Passados mais alguns meses, o pastor foi de volta para casa. Sua
tarefa seguinte era entregar seus relatórios aos superiores e,
naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação que iria
apresentar em um congresso sobre evangelização, falando sobre
‘A catequese e os selvagens’. Na hora de sair, como que buscando
inspiração de última hora, examinou detalhadamente as paredes
do seu escritório. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares
e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria
ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé
na porta, ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que
aquele índio foi fazer com o meu relógio (ROCHA, Everardo. O QUE
É ETNOCENTRISMO. p. 11-12)

Discuta e analise o conteúdo do texto acima, à luz


dos conceitos de Cultura, relativismo cultural e
etnocentrismo.

Utilizando os instrumentos teóricos da antropologia,


escolha uma escola, faça um relato etnográfico sobre
o cotidiano dos alunos e professores, em seguida faça
uma reflexão acerca do preconceito em sala de aula.

Pesquise o conteúdo dos livros didáticos, e analise


de que maneira esse conteúdo utilizado no ensino
fundamental contribui com o reforço ou superação das
práticas e atitudes discriminatórias e preconceituosas
em relação aos diferentes.

114 PEDAGOGIA
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Antropologia. Cuiabá: EdUFMT, 2000.
Vol. I, II, III E IV.

BEATTIE, John. Introdução à antropologia social. 2. ed. São Paulo:


Companhia Editora Nacional, 1977.

BRACE, C. Loring. Os estágios da evolução humana. Rio de Janeiro:


1970.

CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e antiracismo na educação:


repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2001.

DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia


social. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Editora: Record, 2003.

KLUCKHON, Clyde. Antropologia: um espelho para o homem. Belo


Horizonte: Editora Itatiaia, 1972.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 11. ed. São Paulo:


Brasiliense, 1999.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14ª


ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

MAIR, Lucy. Introdução à Antropologia Social. 4. ed. Rio de Janeiro:


Zahar, 1979.

MELLO, Luís G. Antropologia cultural: iniciação, teoria, temas.


Petrópolis: Vozes, 1982.

OLIVEIRA, Iolanda de. Desigualdades raciais: construção da infância


e da juventude. Niterói: Intertexto, 1999.

PELTO, Pertti J. Iniciação ao estudo da antropologia. 7. ed. Rio de


JANEIRO: ZAHAR, 1984.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 115


Tempo de matar (1996)

Sinopse: Em Canton, no Mississipi, dois brancos espancam e estupram


uma menina negra de dez anos. Eles são presos, mas quando estão sendo
levados ao tribunal para terem o valor da sua fiança decretada o pai da
garota (Samuel L. Jackson) decide fazer justiça com as próprias mãos e
mata os dois na frente de diversas testemunhas, além de acidentalmente
ferir seriamente um policial. Ele é preso rapidamente, mas a cidade
se torna um barril de pólvora e, além do mais, a defesa tem de se
defrontar com um juiz que não permite que no julgamento se mencione
a razão que fez o pai cometer o duplo homicídio, pois o julgamento é
de assassinato e não de estupro.

Direção: Joel Schumacher


Gênero: Drama
Elenco: Matthew McConaughey, Sandra Bullock, Samuel L. Jackson,
Kevin Spacey, Oliver Platt, Charles Dutton, Brenda Ficker, Donald
Sutherland, Kiefer Sutherland, Patrick McGoohan, Ashley Judd, To-
nea Stewart, Rae’ven Kelly, Darrin Mitchell, LaConte McGrew, Devin
Lloyd, John Diehl, Chris Cooper, Nicky Katt, Doug Hutchison, Kurt-
wood Smith.

A outra História Americana (1998)

Sinopse: Derek (Edward Norton) busca vazão para suas agruras


tornando-se líder de uma gangue de racistas. A violência o leva a um
assassinato, e ele é preso pelo crime. Três anos mais tarde, ele sai da
prisão, e tem que convencer seu irmão (Edward Furlong), que está
prestes a assumir a liderança do grupo, a não trilhar o mesmo caminho.

Direção: Tony Kaye


Gênero: Drama
Elenco: Edward Norton, Edward Furlong, Beverly D’Angelo, Jennifer
Lien, Ethan Suplee, Fairuza Balk, Avery Brooks, Elliott Gould, Stacy
Keach.

116 PEDAGOGIA
Ilha das Flores (1989)

Sinopse: Documentário. Ilha das Flores mostra pessoas que se

alimentam dos restos de alimentos servidos aos porcos. Um tomate é

plantado, colhido, transportado e vendido num supermercado, mas

apodrece e acaba no lixo. Acaba? Não. ILHA DAS FLORES segue-o até

seu verdadeiro final, entre animais, lixo, mulheres e crianças. E então


fica clara a diferença que existe entre tomates, porcos e seres humanos.

Direção: Jorge Furtado

Gênero: Documenário

Elenco: Paulo José (Narração), Ciça Reckziegel (Dona Anete)

GUERRA DE Canudos (1997)

Sinopse: Em 1893, Antônio Conselheiro (um monarquista assumido) e


seus seguidores começam a tornar um simples movimento em algo grande

demais para a República, que acabara de ser proclamada e decidira por

enviar vários destacamentos militares para destruí-los. Os seguidores

de Antônio Conselheiro apenas defendiam seus lares, mas a nova

ordem não podia aceitar que humildes moradores do sertão da Bahia


desafiassem a República. Assim, em 1897, esforços são reunidos para

destruir os sertanejos. Estes fatos são vistos pela ótica de uma família,
que tem opiniões conflitantes sobre Conselheiro.

Direção: Sérgio Rezende

Gênero: Drama

Elenco: José Wilker, Paulo Betti, Cláudia Abreu, Marieta Severo,


Selton Mello, Roberto Bomtempo, José de Abreu, Tonico Pereira, Tuca
Andrada, Eliezer de Almeida, Denise Weinberg, Ernani Moraes, Jorge
Neves, Dandara Ohana Guerra, Murilo Grossi.

ANTROPOLOGIA | unidade 3 117


Platoon (1986)

Sinopse: Chris (Charlie Sheen) é um jovem recruta recém-chegado a


um batalhão americano, em meio à Guerra do Vietnã. Idealista, Chris
foi um voluntário para lutar na guerra pois acredita que deve defender
seu país, assim como fez seu avô e seu pai em guerras anteriores. Mas
aos poucos, com a convivência dos demais recrutas e dos oficiais que o
cercam, ele vai perdendo sua inocência e passa a experimentar de perto
toda a violência e loucura de uma carnificina sem sentido.

Direção: Oliver Stone

Gênero: Guerra

Elenco: Tom Berenger, Willem Dafoe, Charlie Sheen, Forest Whitak-


er, Francesco Quinn, John C. McGinley, Richard Edson, Kevin Dillon,
Reggie Johnson, Keith David, Johnny Depp, David Neidorf, Mark Moses,
Chris Pedersen, Tony Todd, Corkey Ford, Dale Dye, Oliver Stone.

Macunaíma (1969)

Sinopse: Macunaíma é um herói preguiçoso, safado e sem nenhum


caráter. Ele nasceu na selva e, de preto, virou branco. Depois de
adulto, deixa o sertão em companhia dos irmãos. Macunaíma vive várias
aventuras na cidade, conhecendo e amando guerrilheiras e prostitutas,
enfrentando vilões milionários, policiais, personagens de todos os
tipos.

Direção: Joaquim Pedro de Andrade

Gênero: Comédia

Elenco: Grande Otelo, Paulo José, Dina Sfat, Milton Gonçalves,


Jardel Filho, Rodolfo Arena, Joana Fomm, Myriam Muniz, Maria do
Rosário, Hugo Carvana, Wilza Carla, Zezé Macedo, Maria Lúcia Dahl.

118 PEDAGOGIA
REFERÊNCIAS

AZEVÊDO, Eliane. Raça: conceito e preconceito. São Paulo: Editora


Ática S. A, 1987.

BANDEIRA, Maria de Lourdes. Antropologia, I, II, III, e IV. Cuiabá:


EdUFMT, 2000.

BEATTIE, John. Introdução à antropologia cultural. 2. ed. São


Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.

BOAS. Frans. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Editor, 2004.

BRACE, C. Loring. Os Estágios da evolução humana. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1970.

CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e antiracismo na educação:


repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2001.

DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia


Social. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

GOLDENBERG. Mirian; ESTERCI, Neide e FRY, Peter. (Org.). Fazendo


antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

ANTROPOLOGIA | REFERÊNCIAS 119


HERSKOVITS. Melville. Antropologia Cultural. São Paulo: Editora
Mestre Jou, Tomo I, 1960.

KLUCKHON, Clyde. Antropologia: um espelho para o homem. Belo


Horizonte: Editora Itatiaia, 1972.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 11. ed. São Paulo:


Brasiliense, 1999.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14.


ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

MAIR, Lucy. Introdução à antropologia social. 4. ed. Rio de


Janeiro: Zahar, 1979.

MARCELINO, Nelson Carvalho (Org.). Introdução às Ciências


Sociais. Campinas, SP: Papirus, 1988.

MELLO, Luís G. Antropologia cultural: iniciação, teoria, temas.


Petrópolis: Vozes, 1982.

OLIVEIRA, Iolanda de. Desigualdades raciais: construção da


infância e da juventude. Niterói: Intertexto, 1999.

PELTO, Pertti J. Iniciação ao estudo da antropologia. 7. ed. Rio


de Janeiro: Zahar, 1984.

RAMOS, Marise Nogueira. Diversidade na educação: reflexões e


experiências. Coordenação Marise Nogueira Ramos et al. Brasília,
DF: 2003.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São


Paulo: Brasiliense, 2003 (Coleção Primeiros Passos; 124).

SANTOS, José Luís dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense,


1994 (Coleção Primeiros Passos, 110).

ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Antropologia: o homem e a cultura.


Petrópolis: Vozes, 1991.

120 PEDAGOGIA
UemaNet - Núcleo de Tecnologias para Educação
Informações para estudo

Central de Atendimento
0800-280-2731

Sites
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Universidade Estadual do Maranhão – UEMA
Núcleo de Tecnologias para Educação – UemaNet
Caro Estudante,
No sentido de melhorar a qualidade do material didático, gostaríamos que você
respondesse às questões abaixo com presteza e discernimento. Após, destaque a
folha da apostila e entregue ao seu Tutor. Não é necessário assinar.
Município: ______________________________ Polo: ______________________
Turma: _________ Data: _____/ _____/__________
Responda as questões abaixo de forma única e objetiva
[O] - ótimo, [B] – bom, [R] - regular, [I] - insuficiente

1 Qualidade gráfica [O] [B] [R] [I]


1.1 Encadernação gráfica
1.2 Formatação da apostila
1.3 Ícones apresentados são informativos
1.4 Tamanho da fonte (letra)
1.5 Tipo de fonte está visível (Arial, Times New Roman...)
1.6 Qualidade de ilustração

2 Conteúdo [O] [B] [R] [I]


2.1 Coesão
2.2 Coerência
2.3 Contextualizado com a realidade e prática
2.4 Organização
2.5 Programa da disciplina (Ementa)
2.6 Incentiva à pesquisa

3 Atividades [O] [B] [R] [I]


3.1 Atividades relacionadas com a proposta da disciplina
3.2 Atividades relacionadas com a realidade e a prática
3.3 Relacionadas ao conteúdo
3.4 Contextualizadas com a prática
3.5 Claras e de fácil entendimento
3.6 Estão relacionadas com as questões das avaliações
3.7 São problematizadoras e incentivam à reflexão
3.8 Disponibilizam uma bibliografia complementar

O material chega em tempo hábil? sim ( ) não ( )

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