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Amigos imaginários

Mário Cordeiro

Os amigos imaginários surgem cerca dos três anos e «morrem» por volta dos
seis. Mas é preciso que seja sem dor e por vontade da criança. Enquanto o
«amigo» existir, os pais não devem alimentá-lo nem negá-lo.

«Vá, Piloto, anda!» Quando Catarina deu a ordem, logo na noite de Ano Novo,
todos ficaram a pensar que a pequenita tinha escorropichado alguns copos de
champanhe: «Vá, Piloto. Deita-te. Lindo. Agora senta-te.» Por mais que
olhassem, todos os presentes de várias gerações não conseguiam ver
o Piloto nem descortinar porquê essa reacção súbita da Catarina. Mais: «Cães
num apartamento, nunca!», dissera o pai, com toda a razão. E a presença súbita e
inexplicável – e ainda por cima fantasmagórica – do Piloto no meio daquela noite
que se supunha ser feliz foi um duro golpe na família.

No dia 2 estavam na consulta. Urgente. Aterrados. Depois de mais de uma hora


de conversa perceberam o que se passava, e que o Piloto os iria acompanhar – a
eles e à Catarina – durante alguns meses, quiçá anos. Como apoio nas alturas em
que estivesse mais triste, em que o dia corresse pior, em que a insegurança fosse
maior, lá estaria o Piloto. Vigilante, atento, amigo, fiel. Como se querem e
desejamos amigos…

«Já não tenho medo!» Uma declaração destas é quase um acto constitucional!
Mas foi o que o João Pedro disse quando a mãe, já conhecedora dos hábitos do
filho, o avisou, como em todas as noites, que deixaria a luz do corredor acesa.
«Não?», perguntou a mãe, um pouco a medo. «Não!», respondeu o filho, de
quatro anos, com uma enorme segurança, «o Filipe toma conta de mim».

A mãe tinha-se divorciado e agora vivia com um namorado, mas não era Filipe,
era Pedro. «O Pedro…», disse, com alguma reserva. «Não, mãe. Não é o teu
Pedro, é o Filipe!» «O Filipe?», perguntou a mãe, completamente baralhada e
apreensiva. «O Filipe, mãe, aquele que tem o cabelo loiro e que vive no armário
das camisolas» – e vendo a hesitação da mãe, acrescentou, seguro: «Podes apagar
a luz, mãe. O Filipe está aqui!»

Muitos são os pais que se confrontam com este tipo de situações, que parecem
surgir de repente, do meio do nada. A ideia inicial é que a criança esteja a gozar
com eles, a provocá-los. Depois, que esteja a mentir ou a querer enganá-los. Ou a
insinuar que eles, pais, o deveriam levar algures ou a casa de alguém.
Finalmente, o receio de que seja um sinal ou sintoma de doença, nomeadamente
de alguma perturbação mental ou psicose. As reacções não podem ser, em
qualquer destas hipóteses, muito razoáveis…
Uma coisa é certa: eles existem. E existem mesmo, não é apenas na cabeça da
criança – ou antes, claro que é isso, mas a dimensão do fenómeno tem um
alcance muito superior. Os amigos imaginários costumam «nascer» aos três anos
e manter-se até aos seis, altura em que se estabelece uma fronteira mais clara
entre a realidade e a fantasia.

Os amigos imaginários são um factor protector, um escape normal e saudável


para o stress. E quando têm o seu lugar próprio, mas não interferem com os
amigos reais, não há qualquer motivo para ter receios de que algo de
«extraterrestre» possa estar a passar-se. Sendo do foro íntimo da criança, devem
ser geridos por ela e, por essa razão, não devem ser trazidos para a praça pública.
Os pais não devem dar demasiada importância ao assunto. Responder «ai sim?»,
«que engraçado». Interjeições e pequenas frases que, no fundo, não exprimem
um apoio declarado mas também não castram a existência do amigo. O equilíbrio
entre o não desfazer o mito e não alinhar na novela é por vezes complicado, mas
é a única atitude eficaz e benéfica.

Dizer à criança que «um dia» seria uma óptima ideia escrever (quando o souber
fazer) ou desenhar as histórias dos amigos ajuda a fazê-la entender o percurso
que «matará» o amigo, mas no momento próprio e sem dor.
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