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O Complexo do Principezinho – A negação da morte

Acima de tudo, Jovem!


Jacques-Antoine Malarewicz

Como qualquer outra, a nossa sociedade constrói-se a cada momento a partir, e à


volta, de certos valores, que têm um carácter de evidência tal que não parecem poder,
nem mesmo dever, ser postos em causa. Insensivelmente, e no espaço de uma
geração, da década de 1970 aos nossos dias, a juventude transformou-se no valor
central à volta do qual a nossa sociedade de consumo se constrói e desenvolve.

Esta necessidade de promover a juventude manifesta-se não apenas no discurso


político mas também na vontade de satisfazer novas expectativas. A esperança de vida
não cessa de aumentar nos países mais ricos, a necessidade de filiação faz com que a
procriação seja cada vez mais artificial e a morte tende a desaparecer da nossa
paisagem mental. De curativa, a medicina acabou por se transformar em preventiva,
adaptou-se a todas estas novas solicitações.

E, sobretudo, mudou profundamente a nossa relação com o tempo e com a sua


duração. Temos, agora, tendência a fundirmo-nos intimamente ao instante, ao
presente imediato. Isso permite libertarmo-nos dos danos da idade. Reencontramos,
frequentemente, esta cultura do imediatismo nos períodos de guerra onde a incerteza
do amanhã dá um novo sabor ao quotidiano. É, aliás, possível que estejamos em
guerra contra os nossos medos.

A negação da morte
A glorificação da juventude faz-se «naturalmente» na negação e ignorância do
envelhecimento e da morte. Vivemos assim numa sociedade que tem cada vez mais
tendência a negar a morte e a apagar as suas manifestações mais aparentes. Morrer
transformou-se em objecto de escândalo. Os rituais que acompanham o
desaparecimento de uma pessoa têm tendência a apagar-se ou, pelo menos, a perder
o essencial do valor simbólico e emocional que antes tinham. Estes rituais têm
tendência a tornarem-se cada vez mais breves e confidenciais. Já não há furgões
mortuários nas ruas, os cortejos funerários desfilam geralmente ao ritmo da circulação
rodoviária afogados no anonimato das auto-estradas e dos grandes eixos.

As crianças são elas próprias protegidas da realidade da morte e só a percebem


através de uma experiência essencialmente virtual. A nossa existência, essencialmente
urbana, já não as põe em contacto com o sofrimento e o desaparecimento de animais,
como podia ser o caso num mundo rural. A morte de um cão ou de um gato, a ida para
o matadouro de uma vaca ou de um cavalo assumiam, noutros tempos, um sentido
imediato, eram acontecimentos que continham, manifestamente, um valor de
aprendizagem.

Actualmente, as crianças recebem imagens de cadáveres via televisão ou cinema, mas


esses mortos são constantemente banalizados, «virtualizados» e, sobretudo, são
cadáveres que vêm de longe[1]. Na maioria das situações, é a violência que prevalece.
Isso faz com que a criança sinta dificuldade em imaginar outras circunstâncias que
provoquem a morte. Ela só pode ser o resultado de uma acção brutal, num contexto
de lutas, de guerras ou de terrorismo. Os cadáveres de que as crianças se podem
aperceber através dos media não lhes são explicados já que os próprios adultos
acabam por ignorar essas imagens, ou por má consciência ou por ser mais cómodo.

Os jogos de vídeo banalizam e desdramatizam a morte. Cada personagem dispõe


geralmente de várias «vidas», o que exclui qualquer fim fatal e definitivo. O inexorável
não existe – seria muito difícil de aceitar – mas a sua ausência não permite a
aprendizagem de um limite que não pode ser ignorado.

Mais uma vez, os adultos transmitem às crianças a sua própria apreensão da morte.
Por exemplo, quando ouço pessoas que estão a viver um luto, espanto-me com o
vocabulário por elas utilizado. Raramente falam de «morte», mas sim de
desaparecimento ou perca. A palavra «morte» nunca é pronunciada ou então
raramente. Diz-se que esta ou aquela pessoa «nos abandonou», ou ainda que se
«retirou», que «partiu».

Na mesma ordem de ideias, vejo cada vez mais pais que pedem uma consulta para o
filho – cuja idade varia geralmente entre cinco e dez anos –, o qual, segundo eles, fala
frequentemente de morte. No espírito de determinados adultos passou a ser
insuportável que as crianças possam utilizar um termo que eles já abandonaram. Vêem
aí, rápida e facilmente, uma manifestação patológica e, consequentemente, um
comportamento inquietante que justifica, aos seus olhos, uma ida ao psiquiatra.

De facto, quando uma criança sente que pronunciar a palavra «morte» é mal aceite
pelos pais, até quase se transformar em provocação, ela tenderá a servir-se da palavra
como arma de manipulação. Esta criança não está doentiamente obcecada pela morte,
apenas utiliza um poder que lhe é dado pelos pais no medo que têm em afrontar, eles
próprios, a existência da morte.

A criança tem necessidade de «conhecer» a morte, tal como lhe é necessário descobrir
todas as declinações da vida; isso significa que tem necessidade de se confrontar com
a realidade total. Geralmente, esta aprendizagem faz-se por volta dos seis, sete anos,
ao mesmo tempo que conhece o tempo e, consequentemente, a duração. O finito e o
infinito assumem então um sentido para a criança, ela integra a existência de um limite
que deveria transformar-se no próprio exemplo de qualquer limite.

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