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As crianças tiranas

Jacques-Antoine Malarewicz
(excertos adaptados)

Quando as crianças não são apenas pequenos príncipes, quando se transformam, sem
que para tal tenham necessidade de crescer, em reis que só olham para eles próprios,
reinam sem partilha e impõem a violência aos que os cercam, e chegam ao ponto de se
conduzirem como verdadeiros tiranos. Trata-se da manifestação mais espectacular da
demissão de alguns adultos perante a sua progenitura.

Se nos baseamos nas crianças que estão a cargo de algumas instituições, enumeram-se
actualmente cerca de dezassete mil crianças tiranas em França e estes números têm
tendência para crescer. Os pais, incapazes de impor limites aos filhos, são bem mais
numerosos do que há algumas dezenas de anos, e, hoje em dia, ousam falar das suas
dificuldades a profissionais, juízes, médicos ou polícias para lhes pedirem ajuda.

As referidas crianças são tanto meninas como rapazes, oriundos de todas as classes da
sociedade. Por vezes, quando se tornam autónomos e começam a falar, estas crianças
injuriam os pais, desobedecem sistematicamente, manifestam por eles um grande
desprezo e até chegam ao ponto de lhes bater e infligir feridas por vezes graves. Tudo
isso para melhor impor os seus desejos e a sua lei, para rejeitar qualquer
constrangimento e obter rapidamente tudo o que desejam. Este comportamento
generaliza-se perante os outros irmãos e adultos. A escolaridade passa a ser
frequentemente impossível e a vida familiar insuportável.

Apesar da sua gravidade, estes distúrbios podem prolongar-se durante vários anos,
tanta é a vergonha dos pais em reconhecer o seu fracasso e, por via disso, em partilhar
o seu sofrimento. Progressivamente, a família retrai-se, cortam-se os laços com avós,
tios e tias. Frequentemente, é a escola e a polícia, aos quais os pais não podem evitar
de apelar, que conduzem os progenitores a pedir ajuda efectiva.

Alguns destes pais acabam por apresentar queixa contra o próprio filho, abandonam o
domicílio familiar para se refugiarem em casa de amigos ou de um outro membro da
família. Para estes adultos desamparados, parece não haver solução para o problema,
já que as transgressões e as violências são sistemáticas, grosseiras e banalizadas.

Se nada é feito, estas crianças, quando adolescentes, mergulham rapidamente na


delinquência e só têm como interlocutores a justiça e as paredes do hospital
psiquiátrico. Vivem num mundo onde são juízes em causa própria; definem sozinhos, e
como se fosse uma evidência, as regras do jogo e não concebem outra realidade que
não seja a que determinam. O outro transforma-se imediatamente em ser hostil,
rejeitam qualquer das regras inerentes à vida em comum. Colocam-se fora da
sociedade ou à margem da normalidade psíquica.
É quase sempre em casos de urgência que os pais consultam o psicoterapeuta. Estão, o
que parece ser compreensível, sentem-se totalmente desamparados e não sabem
explicar o que aconteceu para chegarem a tal situação. De facto, cada um é vítima
neste tipo de situação.

Em primeiro lugar, tais crianças sofrem de uma grande solidão. Porque, por definição,
o tirano está sempre só. Elas foram apanhadas e mantêm-se, frequentemente desde a
mais tenra idade, num círculo vicioso onde, perante a angústia que experimentam por
não sentir nenhum limite ao seu comportamento, só podem responder por via de um
aumento da violência. Este aumento atenua – por um período – a sua angústia, antes
que ela seja novamente reactivada por uma nova ausência de limites.

Para eles, qualquer limite é uma provocação ou uma ameaça, e a isso só sabem
responder com uma nova provocação. Procuram constantemente afirmar e reafirmar
uma força e um poder que só os angustia mais. Pensam poder ocultar a sua extrema
fragilidade com a rudeza e a violência do seu comportamento.

Estas crianças apercebem-se com frequência deste encadeamento, mas são incapazes
de o denunciar ou abandonar, por causa do orgulho e omnipotência efectiva que lhes
oferece essa profunda solidão. Confrontar-se com um adulto competente, ou seja,
capaz de lhes fazer frente, é para elas um alívio, mesmo que se trate de uma
experiência dolorosa, ao mesmo tempo temida e desejada. Elas põem constantemente
em palco a omnipotência que é normal cada criança sentir e não se estruturam no
confronto com a realidade a que o outro, ou seja, o adulto, a deve submeter e lhe deve
impor.

Os outros irmãos sofrem com a demissão dos pais: suportam muito mal a constante
desqualificação do pai e da mãe. Sentem-se divididos: participar na disputa de poderes
ou, por outro lado, socorrer os pais que sentem estar em perigo. Neste último caso,
passam a ser vítimas do tirano, que sobre eles exerce a violência. Crescem com
ausência de pontos de referência familiar e só encontram no meio escolar os limites
inexistentes ou desrespeitados em casa. Irmão e irmãs vivem divididos entre os bons e
os maus, ou a má. Isso desequilibra totalmente a família no seu todo, na medida em
que qualquer hierarquia adultos-crianças desaparece, substituída por alianças, ditas
verticais, entre o pai ou a mãe e alguns dos seus filhos.

Os pais ficam desamparados. Geralmente, tentaram tudo, desde a compreensão e a


revolta à conciliação e à violência. Mas como encontram pela frente algo mais forte do
que eles, abandonam a luta invadidos por um sentimento de impotência.
Paradoxalmente, essa é a solução que lhes parece a mais razoável. Baixam os braços
perante a própria violência que se habituaram a interiorizar, o que acentua a sensação
de impotência.

Este pai ou esta mãe, por vezes os dois, mostram, por vezes sem o saberem, uma
fragilidade através da qual o futuro tirano se infiltra com força e determinação. Esta
fragilidade pode corresponder a uma crise no seio do casal, ou à falta de confiança que
cada um tem nele próprio, como pai e, de forma mais alargada, como indivíduo. Ora, a
característica de qualquer criança é a de testar constantemente a solidez dos seus pais.

Quando sente que ela não é suficientemente sólida, terá tendência a protegê-lo ou a
protegê-los ou assumirá o poder sobre estes adultos, antes de procurar alargar o seu
poderio a outros territórios familiares. Ou esta fragilidade é evidente ou, então,
esconde-se na infinita variedade do quotidiano. Ao longo do dia, qualquer progenitor
sabe que vai ter que aceitar vários confrontos com a criança. Se esta criança é
particularmente frágil, até por razões genéticas, a fragilidade do adulto entra em
ressonância com a da criança, o que multiplica a sua angústia. Como já o dissemos, é
com esta tomada de poder tirânico que a criança acalma a sua angústia.

Estes adultos são as vítimas de uma sociedade que os ensinou a identificarem-se com
as suas crianças e adolescentes, ao ponto de os temerem e de se submeteram aos seus
menores desejos. Estes adultos já não sabem como ser pais, já não sabem afirmar-se e
deixam-se arrastar pela impotência e renúncia.

As crianças tiranas devem progressivamente aprender – e não apenas reaprender – o


que é um limite, ou seja, a existência do outro. Elas descobrem a alteridade numa
idade onde a questão já devia estar resolvida. Nesse sentido sofrem de uma
imaturidade escondida sob a aparência de segurança que lhes é dada pela violência
que exercem. Quanto aos pais, devem percorrer o longo caminho que os levará da
impotência à competência. Habituaram-se a evitar qualquer confronto, temem ser
humilhados e não estarem aptos a assumir a sua autoridade.

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