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O que aconteceu às crianças?

Nova Cidadania II, Número 5, Julho/Setembro 2000


S. João do Estoril, Ed. Principia, Pub. Universitárias e Científicas
Excertos

O que Aconteceu às Crianças?

Kay S. Hymowitz

Há nove meses, dois rapazes aparentemente banais, oriundos de famílias normais da


classe média, entraram no liceu que frequentavam numa zona próspera perto de
Denver, dispararam e mataram 12 dos seus colegas assim como a professora, antes de
virarem as pistolas contra si próprios. Foi uma fractura na vida contemporânea
americana, uma perda definitiva da inocência que levou os pais e os professores a
encararem as suas crianças com um sentimento desconhecido, feito de ansiedade e de
dúvida. Claro que já tinha havido outros tiroteios em escolas. No entanto, Columbine –
cujo nome se instalou rapidamente no léxico – despertou com toda a força um medo
latente: apesar de estarmos numa fase de expansão económica sem precedentes, algo
de errado poderia estar a acontecer com as crianças da nação.

O que perturbou os americanos nos acontecimentos de Columbine foi a combinação


da viciosidade extraordinariamente consciente do massacre com a pertença à classe
média típica dos seus perpetradores e com o sítio da exacção. Pode-se explicar a
violência em escolas dentro das cidades. A pobreza e a delinquência urbana conjugam-
se desde os tempos da Londres de Dickens. Aliás, apesar de ninguém o querer admitir
publicamente, muitos americanos poderiam praticamente fechar os olhos aos tiroteios
de Jonesboro (no Arkansas), ou de West Paducah (no Kentucky). O próprio Mark Twain
não ensinou à nação que aquela gente das colinas e das baladas poderia, às vezes,
tornar-se um pouco irracional?

Mas Columbine foi diferente. Columbine forçou-nos a perguntar se não estaríamos a


negar a existência de uma doença no coração da cultura da classe média a que
pertence a maioria das crianças americanas. “Onde estavam os pais?”, perguntaram
alguns, intrigados; “Como será que dois adolescentes conseguiram reunir um tal
arsenal nos seus próprios quartos sem que o pai ou a mãe reparassem nisso?”; “Que
género de escola instituímos?” interrogaram-se outros, quando foi dito que os dois
protagonistas faziam vídeos e redacções sobre os seus ignóbeis fantasmas no âmbito
dos respectivos trabalhos de casa, sem que ninguém ficasse particularmente alarmado
com isso.

Neste Outono, artigos provenientes de duas fontes invulgares (porque


implacavelmente convencionais), o
Frontline da PBS e a revista Time, começaram a dar-nos respostas a estas perguntas.
Os artigos oferecem – através de uma análise profunda da vida quotidiana das crianças
da classe média nas suas interacções com a família e com a escola – uma visão realista
das raízes da alienação e da futilidade dos adolescentes que culminaram em
Columbine. Completam um retrato devastador dos adultos, que não se mostram
negligentes nem opressores no sentido convencional das palavras, mas que, além das
casas ostentadoras e de diversões em profusão, não têm nada de substancial a
transmitir aos seus filhos. Embora os autores e os realizadores não compreendam
inteiramente aquilo que descobriram, o retrato que pintam corrobora a suspeita de
que Columbine possa ser o espelho do vazio emocional e espiritual da própria cultura
da classe média americana contemporânea, que os adolescentes em crise enchem com
os seus fantasmas mais grotescos, geralmente repletos de raiva.

Os adultos que aparecem no primeiro e mais importante destes retratos, “As Crianças
Perdidas do Condado de Rockdale”, difundido na série Frontline da PBS em Outubro,
parecem ter tudo o que se pode oferecer às crianças. Situada a 50 km a leste de
Atlanta, Rockdale é, sociologicamente falando, a irmã gémea de Littleton, um subúrbio
florescente e próspero – a “colónia com o desenvolvimento mais rápido das história da
humanidade”, segundo alguns habitantes entrevistados no programa. Tal como em
Littleton, muitos residentes de Rockdale chegaram recentemente à região, e
conseguiram uma vida confortável. É um festival de imagens de ruas amplas com
transversais perfeitas e mansões a aparecer por todo o lado, com tectos dignos de
catedrais e cozinhas espaçosas com bancadas de granito. E, de facto, as mães e os pais
que vivem nestas casas perfeitas fazem muito daquilo que nos dizem que os pais
modernos deveriam fazer: treinam equipas da Little League, vão de férias com a
família, preparam o jantar para as crianças. No entanto, ficam completamente
perdidos quando se trata de transformar as suas mansões em lares onde as crianças
possam aprender a ter vidas que façam sentido. Desprovidos de crenças fortes,
provavelmente privados de experiências significativas que possam transmitir aos
filhos, têm no centro das suas vidas um vazio indeterminável que contrabalança
exactamente a opulência das suas casas. O título daquele programa Frontline podia
perfeitamente ter sido “Os Adultos Perdidos do Condado de Rockdale”.

O programa foi motivado pela erupção de casos de sífilis que acabou por levar
funcionários dos serviços de saúde a tratar 200 adolescentes. O facto mais notável não
era que 200 adolescentes de um grande subúrbio tivessem relações sexuais com
parceiros sucessivos. Era a maneira que escolheram para terem tais relações. (…) O
sexo em grupo era banal, tal como eram os seus protagonistas de 13 anos de idade. Os
miúdos vêem o canal Playboy na TV Cabo e brincam imitando tudo o que vêem.
Experimentaram quase todas as combinações de actividade sexual possíveis e
imagináveis – vaginal, oral, anal, rapariga com rapariga, vários rapazes com uma só
rapariga, ou várias raparigas com um só rapaz (o único tabu sendo a homossexualidade
entre rapazes). Durante certas bebedeiras, uma rapariga podia ser “passada à volta”
num jogo. Um número significativo de crianças tinha mais de 50 parceiros. Certas
crianças praticavam aquilo a que chamavam uma sandwich – enquanto uma rapariga
tem sexo oral com um rapaz, é penetrada pela vagina por outro rapaz e pelo ânus
ainda por outro.
De acordo com os realizadores, foi a profunda solidão daquelas crianças que as levou a
procurar uma família de “substituição” na companhia dos seus pares. Ninguém pode
negar que aquelas crianças estavam sozinhas. Algumas eram órfãs virtuais de lares
desfeitos e que não funcionavam. Outras eram simplesmente filhos de pais a tempo
parcial, que estavam ausentes de casa durante grande parte do tempo para pode rem
proporcionar aos filhos casas luxuosas, carros, telemóveis e roupas das últimas
colecções para adolescentes. A maioria das orgias de sexo eram organizadas depois da
escola, entre as três e as cinco da tarde, em casas abandonadas pelos adultos, que
estavam a trabalhar. Outras vezes, as crianças saíam discretamente de casa depois da
meia-noite, sem acordar os pais exaustos.

No entanto, torna-se cada vez mais claro que o vazio na vida daquelas crianças não se
limita às horas de trabalho dos pais. A solidão que experimentam ultrapassa o simples
facto de serem deixadas sozinhas. Os seus pais, mesmo em casa, parecem desligados.
Segundo o produtor, um dos problemas reside no facto de que aquelas famílias
passam a maioria do tempo coladas ao televisor. (…)

A câmara segue um rapaz chamado Kevin nas suas deslocações da cozinha (que tem
televisor, como é óbvio) para o seu quarto na casa com piscina da família, onde tem,
inexplicavelmente, dois televisores, ambos enormes, e ambos a mudar
constantemente de canal durante as entrevistas. De facto, neste programa, os
televisores estão quase sempre a funcionar em casa enquanto decorrem as
entrevistas, um detalhe que não é típico só desta região. Um estudo da Fundação
Kaiser publicado pouco depois da difusão do programa “As Crianças Perdidas do
Condado de Rockdale” revela que dois terços das crianças têm um televisor no seu
quarto e que 58 por cento dos pais aceitam ter o televisor ligado durante o jantar.

No entanto, uma dieta à base de Simpsons e de Dawson Creeks é mais um sintoma do


que uma causa das doenças da classe média. A verdade é que – ainda que os
realizadores não tenham conseguido apontar o problema – aqueles adultos fugidios
livraram-se da tarefa universal que incumbe aos pais: a de encaminhar e de forjar os
jovens. E assim fizeram, não por falta de tempo, devido ao trabalho, nem por verem
televisão, mas porque não têm as ferramentas culturais necessárias para cumprir tal
missão. Sabem que têm de gostar dos filhos; sabem que têm de suprir as suas
necessidades e fazem as duas coisas com abundância. Os realizadores são claramente
– e com razão – críticos da maneira como esses adultos consideram que os bens
materiais representam a soma e a substância da obrigação parental. Mas quando se
trata de re cursos culturais, daqueles que despertam a consciência moral e as
aspirações louváveis das crianças, que as ajudam a desenvolver um forte sentimento
sobre si p róprias, esses pais mostram-se profundamente empobrecidos. E aqui, os
realizadores só podem especular em vão.

No entanto, a incapacidade dos realizadores para definirem essa escassez constitui


uma parte da história de Rockdale tão importante como as festas de sexo e a epidemia
de sífilis, porque reflecte um estado de confusão mais geral quanto ao
empobrecimento cultural que vitima os jovens actuais. Um retrato específico, de um
pai e da sua filha, demonstra pateticamente que quer os pais, quer a comunicação
social andam desorientados. Amy, uma adolescente pálida de voz suave, que sorri
timidamente enquanto conta a sua história, teve claramente todos os benefícios de
uma infância privilegiada. Vemos excertos de vídeos familiares e álbuns de fotografias
feitas por pais maravilhados perante aquela menina de tranças a bater numa bola
durante um jogo da Little League, a armar um sorriso com o seu cesto da Páscoa nas
mãos e com o seu amoroso vestido domingueiro, aconchegada sobre os joelhos do pai
com um sorriso igualmente radioso. De facto, o pai da Amy fez tudo aquilo que os
livros dizem que é p reciso fazer. (A mãe da Amy recusou ser entrevistada.) Treinou a
sua equipa de beisebol; a família passava as férias junta; parece ter toda a razão
quando declara: “éramos íntimos”. Mas – acaba por admitir, num momento que
parece ser de grande revelação – viam demasiada te levisão. “Temos televisores em
todas as divisões da casa”, diz ele. “Vejo os meus programas. A minha mulher vê os
dela … a maior parte do tempo que passávamos juntos não estávamos juntos.”
Instado, diz, destroçado: “Acho que devíamos ter falado mais.”

Será que isto pode explicar que aquela menina activa e amada se tenha tornado numa
adolescente tão desesperadamente só que, encorajada por dois rapazes, iniciou uma
relação sexual brutal em frente do seu horrorizado sobrinho de três anos, e que se
deixou utilizar por “amigos” que ela percebia que apenas gostavam de si “porque tinha
carro”? Parece ser aquilo em que temos de acreditar. Noutra cena, uma especialista
em saúde conta, com uma frustra ção muito sentida que, obviamente, se espera que
compartilhemos, qual foi a reacção das famílias de Rockdale quando falou da epidemia
de sífilis numa reunião pública. Um padre virou-se para ela e exclamou, referindo-se
aos pais: “Eles não vêem? Eles não vêem que são eles? Não falam com os filhos!” Esta
perspectiva corrobora sem dúvida a sabedoria dominante dos especialistas. Por
exemplo, a Fundação Kaiser, juntamente com a Children Now, iniciou uma campanha
cujo lema é “Falar com as Crianças sobre Assuntos Sérios”, o que assume que o
problema que os adultos enfrentam actualmente é o de não conseguirem “partilhar os
seus próprios valores e, sobretudo, criar uma atmosfera de comunicação aberta com
os filhos sobre todos os assuntos”. (…) Não interessa, desde que estejam a falar e a
expressar os seus “valores”. Falar e partilhar valores mostra que os adultos “tomam
conta”.

Infelizmente, mais uma vez os realizadores de Frontline levam-nos a concluir que os


adultos não falam com os filhos pela mesma razão pela qual os próprios especialistas
apenas conseguem transmitir sensaborias. Não acreditam que há valores fortes para
partilhar. Estes pais certamente reprovam o sexo em grupo, as doenças transmitidas
sexualmente ou, neste caso, matar colegas. Mas beberam na cultura envolvente uma
ética de não-ajuizamento, que esvaziou de sentimentos e de convicções as suas
crenças nestas matérias. Esta perda de convicção ajuda a explicar o ar triste e insípido
de muitas das entrevistas. “Têm de decidir, se vão tomar drogas, se vão ter relações
sexuais” diz atonicamente a mãe do Kevin, aquele que vive na casa da piscina. “Posso
dar a minha opinião, dizer o que eu sinto. Mas eles têm de decidir por si próprios.” É
difícil de imaginar como é que a partilha dos seus valores vai alguma vez fazer o que
quer que seja pelo seu filho. No fundo, estes valores não têm seriedade nem verdade.
São apenas a sua opinião.
As crianças de Rockdale sabem perfeitamente que os seus pais não têm nada para lhes
dizer. “Na minha família, faz-se o que se quer. Ninguém pára ninguém”, diz
abertamente o Kevin, sem manifestar qualquer rebelião ou arrogância. É verdade, a
mãe do Kevin tentou, numa experiência que nunca renovou, ser uma mãe a sério para
a irmã mais velha do Kevin. Abdicou disso porque achou que “era mais simples deixá-la
fazer o que lhe apetecesse. Damo-nos melhor.” Convencidos de que não existem
valores pelos quais valha a pena lutar, os adultos perdidos de Rockdale abandonaram a
distinção clássica entre pais e filhos e passaram a ser amigos dos filhos e companheiros
de casa. “Somos as melhores amigas do mundo, ou algo parecido”, diz uma rapariga,
falando dos pais. “Quer dizer, posso facilmente dizer como vejo as coisas, o que quero
fazer, e deixam-me fazer o que quiser.” “Não a vejo realmente como uma mãe”,
acrescenta outra rapariga, referindo-se à sua própria mãe. “Toma conta de mim, e
tudo, mas considero-a mais como uma amiga.”

Quando os adultos se convertem em amigos, a infância fica condenada a desaparecer.


A infância não pode existir sem o enquadramento de adultos. As crianças de Rockdale,
ainda pequenitas e incansavelmente dinâmicas, perderam o poder de se
maravilharem, a espontaneidade e o idealismo tradicionalmente associados à infância.
(…)

Porque o niilismo – como Columbine parece ter-nos ensinado – é a resposta provável


que irão encontrar as crianças cada vez mais numerosas que, actualmente, crescem
privadas de qualquer sapiência transmitida sobre as aspirações e os limites da
natureza humana. Deixados sós a reflectir sobre a vida, eles tropeçam inevitavelmente
em experiências contra as quais não têm qual quer tipo de defesa e que acabarão por
deixá-los confusos. Basta pensar no caso da Heather que, quando tinha 12 anos, foi
deixada uma semana sozinha pela mãe celibatária que partiu em via gem de negócios.
A criança meteu-se no álcool e nas drogas. Um dia acordou e descobriu que tinha sido
violada enquanto estava nos copos. “A primeira vez que se tem uma relação sexual,
pensa-se que é porque se quer dizer algo importan te”, afirma ela, aos 14 anos. “Mas,
no fim de contas, a gente repara que não é nada assim. E acaba por não ligar
nenhuma.”

Nos colegas, até a realidade de uma doença grave não provoca efervescência
nenhuma. Quando uma mãe levou a filha à consulta de saúde organizada no condado
para detectar sífilis, estava à espera de um resultado negativo. Era positivo. As crianças
riram-se e congratularam-se. “Achámos que era engraçado”, explicou uma rapariga.
“Ah, apanhaste sífilis?, sabe… era como uma brincadeira de crianças…” A sensibilidade
aniquilada daquelas crianças torna-as impermeáveis a qualquer sentimento de horror,
a qualquer sentimento de prazer nas suas aventuras sexuais. “No fundo, fazer sexo é
uma seca”, declara outra. “Acho que o sexo foi feito para os rapazes porque nós só nos
deitamos, e é do tipo: sai daí de cima, o que estás a fazer?”

Um mês antes de Columbine, o condado de Rockdale foi alvo de tiroteios noutra


escola. Um estudante do segundo ano disparou e feriu seis pessoas na Heritage High
School, um liceu frequentado por algumas das crianças que foram entrevistadas no
programa Frontline. Disse-se que T. J. Solomon, o autor do crime, era depressivo.
Depois de ver “As Crianças Perdidas de Rockdale”, começamos a perceber porquê.

Claro que seria simplificar excessivamente a questão limitarmo-nos a afirmar que os


pais são os únicos culpados pelas doenças dos filhos nos casos do tipo de Rockdale. Os
pais não constituem uma espécie de subcultura com um sistema próprio de crenças e
de hábitos; são cidadãos de uma cultura mais vasta, e quando educam os filhos, fazem-
no conformando-se às exigências dessa cultura. Na edição de Outubro da revista Time,
o artigo de destaque intitulava-se “Uma semana na vida de um liceu: como são
realmente as coisas depois de Columbine”. O artigo ilustra a cultura que funciona
dentro das nossas instituições de ensino. A revista Time decidiu basear o seu diário no
liceu Webster Groves High School, em Webster Groves, no estado do Missouri. Trata-
se de uma cidade com aproximadamente 23000 habitantes, situada 15 Km a sudeste
de St. Louis, que a Time escolheu por ser uma cidade extremamente típica. (Na
verdade, a CBS também tinha escolhido Webster Groves pela mesma razão, num
documentário de 1996). De facto, como em Littletown e em Rockdale, é o carácter
normal de Webster Groves que torna o artigo tão desconcertante.

Tal como no caso dos adultos do condado de Rockdale, os educadores de Webster


Groves (…) consideram que a herança cultural que podia transformar os jovens em
adultos com consciência moral, estética e intelectualmente motivados é opcional,
apenas uma questão de opinião e não de convicções profundamente ancoradas. De
facto, os raros estudantes ponderados e ambiciosos de Webster Groves podem optar
por ler verdadeira literatura e estudar matemática séria. Mas, por outro lado, os que
não estão interessados nisso – ou seja, a grande maioria deles – podem optar por
permanecerem tranquilamente incultos. A consequência é que a escola se torna uma
creche para adolescentes, um serviço de amas-secas que mantém as crianças fora das
ruas. (…)

No dia da visita do jornalista da revista Time, a turma estava a analisar uma historieta
chamada “A Torta de Batata Doce”. A professora descreve a prova da torta de batata
doce, de fiambre da perna, de couve. “O que é que estas coisas têm em comum?”
pergunta a professora, desafiando o seu grupo de estudantes de 15 anos. “Não
querem saber se aprendemos”, responde astutamente um rapazinho. “O importante é
passar.”

Poder-se-ia argumentar que, contrariamente aos pais do condado de Rockdale, os


educadores de Webster Groves têm uma boa desculpa para a sua demissão. Os res
ponsáveis estaduais pela educação afirmaram considerar que ensinar os alunos era
uma tarefa secundária do educador. A sua tarefa principal consistia em erradicar o
abandono escolar que converte a criança numa ameaça social. O Estado do Missouri
atribui gratificações às escolas que conseguiram reduzir a taxa de abandono. No caso
de Webster Groves, isto representava 150 000 dólares, um montante irresistível
quando comparado ao défice do liceu: 1,2 milhões de dólares. No entanto, este
dinheiro também dá aos alunos a oportunidade de fazerem uma chantagem com os
professores. O bónus de frequência, além de condenar os professores a baixarem o
nível do currículo – “se prometer não exigir que leiamos obras acima do nono ano,
prometemos ficar na escola” é o negócio subjacente – também os incapacita de
exigirem disciplina, além de infracções mais perigosas. Os estudantes podem insultar
os professores e chegar atrasados sem sofrer consequências; os professores já sabem
que a direcção não os pode apoiar muito.

A maior parte do corpo docente também já deixou de pedir mais do que 15 minutos de
trabalhos de casa por dia. Uma professora calcula que apenas 15 por cento dos alunos
fazem os trabalhos de casa. As crianças dizem que estudam entre 10 e 30 minutos, no
máximo. (”Aqui estão em segurança e podem aprender durante as aulas, mesmo que
não façam os trabalhos de casa”, explica um assistente do director). Os professores
também dão poucos trabalhos de casa para que as crianças tenham muito tempo para
se dedicarem àquilo que querem fazer prioritariamente: ganhar dinheiro. É comum
para um estudante trabalhar 30 ou até 40 horas por semana num snack-bar ou numa
loja de vídeos. A finalidade não é pôr dinheiro de lado para a universidade; o dinheiro
serve para comprar casacos de cabedal de 400 dólares, e carros cool. Nada na
educação deles põe em causa um tal com portamento.

Em Webster Groves, como em Rockdale, os adultos – que abdicaram de qualquer


assomo de autoridade que, normalmente, investe os que são mais experientes e
perspicazes – tentam disfarçar a sua negligência alegando que são amigos e colegas
dos seus subordinados. O artigo da revista Time começa com a chegada muito matinal
da directora para um treino físico. A sua T-shirt com o Pateta e a sua roupa em geral
dão uma boa ideia daquilo que iremos descobrir. Dois professores fazem
frequentemente partidas, como aspergir os alunos com pistolas de água do telhado do
liceu, uma brincadeira que levou a vizinhança, aterrorizada porque só via as sombras, a
chamar a polícia. Na semana em que a revista Time visitou a escola, os dois treparam
novamente ao telhado da escola, mas desta vez foi para fazerem baloiçar a cabeça de
um manequim-mulher que baptizaram de Headrietta, ao nível da janela duma turma,
de tal forma que arrancaram gritos histéricos às estudantes. A revista Time comenta,
acerca de um dos dois brincalhões: “É complicado determinar se Yates, professor de
Astronomia e de Física, que também preside ao departamento de Ciências, faz
realmente parte do corpo docente ou se ainda é uma criança.” Os tremendos esforços
de Yates para manter um relacionamento amigável nem sempre funcionam. Os seus
alunos continuam a aborrecê-lo e a chamá-lo ”asshole“, um comportamento que,
segundo a análise autoconfiante de Yates, prova que os alunos estão “à vontade” com
ele.

Ainda que extrema, a evasão de Yates reflecte a maneira como os adultos actuais se
convencem de que estão bem com as crianças. Desde que as crianças permaneçam na
escola, desde que a sua auto-estima não fique ameaçada, desde que a relação de
amizade adulto-criança pareça relativamente serena, então podem-se convencer de
que têm um “bom relacionamento com as crianças.” De facto, os autores de “Uma
Semana na Vida” descrevem os educadores de Webster Groves como adultos atentos
que concedem tempo extra para os jogos de futebol da escola, que participam em
jogos de softball para alunos-professores, que também se disponibilizam para apoiar
um adolescente que acaba de perder a mãe, ou outro cujos pais se estão a divorciar.
No entanto, nada daquilo consegue preencher o vazio deixado pelos seus erros e, sem
dúvida, também pelos erros da maioria dos pais dos seus alunos, nada é feito para que
tenham uma visão de uma ordem moral e intelectual coerente. Uma das principais
tarefas dos educadores de Webster Groves consiste em gerir a decadência engendrada
pela sua própria abdicação. Apesar de a escola não estar equipada com guardas e
detectores de metal, a directora, as suas assistentes e ainda um detective privado
deambulam pelos corredores da escola com walkie-talkies. Os funcionários mandaram
instalar um dispendioso equipamento de detecção no sistema telefónico da escola
depois de um alerta à bomba no ano transacto. O corpo docente frequenta seminários
de gestão de crises para encontrar respostas para emer gências hipotéticas. A escola
está atenta às numerosas crianças medicadas e os professores estão atentos àqueles
que perdem subitamente o interesse ou cujas notas baixam.

Erik Erikson definiu a idade adulta como um período de criatividade, no qual a


maturidade alimenta os jovens vulneráveis e os prepara para uma vida independente.
As reportagens de Frontline e da revista Time levam a pensar que, em muitas partes
dos Estados Unidos, uma tal idade adulta desapareceu. Os adultos não têm estímulos
cul turais significativos que possam alimentar a imaginação vazia dos filhos, não têm
nada que os possa ajudar a ordenar as suas vidas caóticas, informes. Para as crianças
da classe média, uma geração mais rica do que qualquer outra na história da
humanidade, a situação é lúgubre. Estão à procura do sentido da humanidade, e
encontram adultos a olhar fixamente para o chão. O que basta para enlouquecer
algumas crianças.

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