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: ow MANUELA CARNEIRO DA CUNHA © ; P £0s Mortos e os Outros ‘Uma andlie do sistema feneréio © da nogio de pessoa entre of fadios Krahs ‘ eos BB cc mm sero CAME ) EDITORA HUCITEC ‘fo Paulo, 1978 em isn, 1078, de Masia Manuel Ligti Clemo do Capa Byotor te ‘plc, nerdoy pel Elta etme, Cena Tes Alateds Js ibd 01150 Str Ploy 9s. Caps de Lily Dr. Fone An Maia Neyer {alg Wanna Caro Cia (ede Se dagen). Sei Ge sited Sto Poulos nono Shee Ne CHAMADA Hoes eee toma 088 Ser + cra aes tt BBOOOLS FIFE i P, — ual a diesenga fundamental entre uma coletiva de fmprensa e uma Comissio de Inguerto? RE que ume peocura evil as perguntes © 9 outa tents extrait teiposts, P. — Como asin? R. — Na prinita tinea 6 uma cca implisncis com “os que guefem saber demi’: na segunda ima. om ‘oe ave quetem dast de senor”. Na primeiry hi tm j cucoto. de" perpunas; na segunda une ease ‘de resposs, (| Mute Fernandes, Veja, 6 de abril de 1977 Sumirio wesc di ‘po Agadsomertos Definite etre de mate Rr ctu da sete RS se es gs 2 pennidade ds wore © GsNenhos do monde Onto a eigom dee ie caper fo wom 9 pie Wsaie A eee i. sora acl Qe em MY, REPARTIGNO DAS TAREFAS FUNERAKIAS 0 LUT. Sn Tstogs de siteny de pertagies maton og ¢geortade Epi cre i poh (Oe cade temp dia 2 pias do A Rimtiae nein dow pps Cai 1: 08 nITOS DE uty fins © pte faut Gage rte fala! 6 clon be LuTo eet ai cia vB ree Si ies Ea aks EES Atel ol nant cs senile nome ie ot fac SSE alt i i ps Cpls Vis © ENTERKO SECUNDABIO ede ae Fes nts» face val Copii Vit:"BSCATOLOCIS, Rees « rflesio Aetoes So 4 memes dy 8 Spe nla! Tenor o's cinintincic 1X clined dais 2c 3p A ipooona de siea doy menos Bintmier pesmi in YI, MERANGA B CULTO DOS ANCESTRANS: SUS ™iNentaneia 1 bene 6 do ‘aati ni iain Concise: O8 MORTOS SiO OUTHOS REFERENCIAS BIBLIOGRAPICAS wn Introdugao Objetvas € estatéias ho € doplo: tentar evidenciar as oS Telatvas 20s mores, tar eselarecer aspecios di a = - estou entre os indios Kea © Estes dois proptiitos exigem estrtégias de abordagem 9 primero podera ser apreenddo através de uma andlise ala do claboredo coajunto ritual ¢ jutieo que Go. as tigbesfunerias, das descrigdes exeatlozias, dos pression, “de una einoisologia, enim do conjunto de representagbes: que ‘ica Hie de mote. © segundo porém, s6 pode ser indietamente buscado. nas parecem recair nos avarentos, nos gananciosos. Nesse sentido, ticeiro é a antitese do chefe enquanto fundo de redistribuigéo: chefe adquire prestigio pela generosidade, 0 feiticeiro adquire pela tentativa de acumulagio, E suas reivindicagdes sio ez a primeira instancia da extorsao do “tributo” que caracteriza ‘poder (P. Clastres 1973). O feiticeiro ocuparia entéio a Gnica psicfo de poder na sociedade Krahé, mas sendo 0 poder incom- tivel com a sociedade primitiva, tio logo proclamado, ele é olido (7): 0 feiticeiro vai, ¢ esta é a sua vertigem, de encontro gua morte, Assim 0 feiticeiro seria ele proprio um quisto irredutivel a0 gxo das trocas € seu feitigo, substincia estranha no corpo da fima, é sua limpida metdfora inscrita no corpo humano: 0 0 & © proprio feiticeiro, EB como este, cle & extirpado e simado. *' Respondemos, mediante a premissa de que o discurso do corpo ‘algo sobre a sociedade, & nossa questo inicial, do porqué da enga ser tida como um rapto do kard pela parentela e 0 feitigo mo uma invasio do corpo por uma substincia estranha. Mas ita uma segunda pergunta: por que levam a morte? Se no corpo se imprime o simbolismo da sociedade, entio a de um homem “significa” a morte da sociedade, ou pelo os de uma sociedade igual a si mesma. Ora, 0 que diz a teoria 6, sendo que a conjungao excessiva com o circulo familiar detrimento da vida piblica assim como a negagio da tiprocidade comprometem irremediavelmente a sobrevivéncia da Bmunidade. Na morte de um homem enquanto discurso simbilico ora a inquictacio do grupo. (6) Note-se a este respeito que niio hi porters mégicos inatos ou entes. O feiticeiro 6 um curador pervertido, isto é que usa os dons Ihe foram conferides em beneficio préprio. (7) Ou nfo ser ‘edade primitiva, confo i oer, ria uma sociedade primitiva, conforme diria P. Clas B88 (1973), que define esta como sendo"uma sociedade “contra o estado", 17 A proximidade da morte wa amy ma pa tek te eu teflexivo eu (enfatico) morto + nominalizador yakrainare prever + negacio amy ma pa téktxd amkré —_akrepeinare reflexivo eu morte dia_—_saber + negaglo geha ra tapi aetéhtx—geha—amkré6 ama quando jé ——perto sua-morte quando dia a vocé depois huyarénare contar + negagio “Eu, eu nao adivinho a minha morte; eu nao sei o dia da morte; quando jd esté préxima sua morte, o dia ndo the conta”, No entanto, sio varios os pressdgios da morte: nunca porém a propria morte, mas sempre a alheia, ou mais precisamente a morte de um consangiifneo ou de um membro da casa. E ainda nfo qualquer morte, mas apenas morte por “doenca”. Novamente esto aqui ligadas as nocdes de parentela e de doenga, Assim, quando se avista um peixe morto dentro de Agua, entristece-se pois ha de morrer um parente, O mesmo prenuncia a visio de uma jibéia viva (hokati). Se se ouvir o txaktxakti (descrito como “ima mucura que ndo fede”) atrés da propria casa, alguém ha de morrer nesta casa; se uma coruja (panré) entrar ou gritar atrés da casa, estaré chupando o miolo de um dos moradores que ha de ficar doente, definhar e morrer; se alguém, sem estar dormindo, vir o kard de um parente vivo, 0 dono do karé vagabundo nao sobreviveré mais de um ano... Desprezando aparentemente os pressdgios do txaktxakti ¢ da coruja, que podem anunciar a morte de consangiiineos ou de afins, os Krahé afirmam que sO se prevé a morte dos parentes consangiifneos. A veracidade do prességio 6 aliés reconhecida a posteriori mediante por vezes verdadeiras acrobacias genealdgicas {que permite reconhecer consangiiineos em pessoas normalmente tidas como nio parentes. Pudemos seguir assim a malabaristica 18 HE redefinigéo de um sogro em termos de consangiiinidade, ao * perguntarmos a um informante que nos queria responder afirmati- Famente se o pressdgio do peixe morto na 4gua era aplicdvel a ©. Nota-se portanto que a mantica, ao contrério das técnicas > gerapéuticas, ndo requer especialistas: cada qual é qualificado para a perda de seus proprios parentes, ‘A oniromancia, por sua vez, também pode indicar a proximidade da morte, Assim, segundo o estilo de Pend, que ‘golocava a apédose antes da prétase, se um homem fosse morrer, ggutro sonharia com toras pequenas de buriti; se uma crianga fivesse para morrer, sonhar-se-ia com tora grande de buriti, parece ser uma alusio ao ritual de fim de luto, mas nio bemos infelizmente se realmente o tamanho das toras varia, te-se que os pressigios contidos nos sonhos podem se referir a quer pessoa da aldeia, Sem entrarmos aqui numa anilise dos contetidos dos ssdgios, que nos levaria demasiado longe (mas que teria um yresse evidente), notemos simplesmente a oposigéo do prességio fdo diagndstico. Enquanto o primeiro nfo requer especialistas e & Ambito doméstico e consangiiineo (pelo menos em teoria), 0 ndo é da competéncia exclusiva dos curadores e situa-se amente fora deste Ambito, j4 que se afirma que 0 curador Teconhece o feitigo quando a vitima the é aparentada, Os conselhos do moribundo » A iminéncia da morte é manifesta quando 0 félego fica curto ho “vira” e fica branco. Ao pressentir a morte, o Krahé ha ispensar seus uiltimos conselhos e decisdes que deverdo ser indos. Kotoi, na véspera de morrer, enquanto ainda podia falar, tou seus genros a tratarem bem suas mulheres, a no baterem filhos, quando ela j4 14 nao estivesse para impedi-lo. Neste momento, 0 moribundo tem poder de dispensar o ige do perfodo de luto que, como veremos, especialmente O80 para o vitivo, Se nada disser, a duragdo da viuvez ficard a tio dos parentes do defunto. Ao morrer, Poyoy pediu ao marido nfo tornasse logo a casar, que cuidasse do filho pequeno. O jo submeteu-se a uma longa viuvez. que s6 findou quando a prvera the pediu que casasse com a irma da morta. Ft Quando Estévéo, que nao tinha filhos, estava morrendo, dito A mulher que suas quatro reses deveriam ficar para ela. 19 Infelizmente para ela, s6 a mulher ouviu. Entdo os consangiiineos do morto pegaram trés reses e deixaram s6 uma para a vitva ¢ a filha de criago. Os problemas sucess6rios séo relativamente recentes (vide capitulo VIII) e constitui uma extenso dos conse- Thos tradicionais do moribundo o dispor-se da propriedade ao chegar a morte. O mito de origem da morte ‘A origem da morte, como de todos os males que afligem a humanidade, remonta a Pédleré, Lua, que forma com seu amigo formal, Péd, o Sol, 0 par de demiurgos, cujas andangas siio longa- mente contadas em um ciclo de episédios miticos. Recolhemos, do episédio da morte, duas versGes, ambas com curiosas ressondncias malthusianas: “Porque foi Pédleré que resolveu de morrer. Péd nfio queria, ‘Ai Pédleré morreu. Se nfo morrer, a terra nfo agiienta todo o mundo. E pra ir morrendo e desocupando a terra para os mais novos ficarem no lugar dos mais velhos” (Zé Aurélio). “Se fosse 6 0 Péd, néio tinha esse negécio de morrer gente. Morria um, punha na sombra do pau (4rvore), de tarde acordava. Pédleré morreu. Péd pos na sombra do pau e de tarde ele voltou. Péd morreu. Pédleré fez cova, enterrou. Assim néo volta mais. Pédleré no quer que 0 povo aumenta senfio a terra nao agiienta, fica muito pesado” (Pascoal). Uma versio mais completa é a de H. Schultz (1950:63). Quanto & versio provavelmente Ramkokamekra-Canela de Nimu- endaju (1946:244), 6 singularmente pobre ¢ s6 contém o episédio da morte transitoria de Pédleré, no explicando portanto a origem de uma morte irreversivel. O mito de origem da morte no poderia ser aqui analisado in extenso, pois as anélises estruturais, para serem exaustivas, tendem a transbordar perigosamente quaisquer limites que se Ihes queira impor. Restringir-nos-emos aqui a levantar alguns pontos. Sio dois titos funerérios que, no mito, dio conta do cardter diverso da morte: uma morte seguida de ressurreicio e uma morte irremedidvel, para que as geragGes se slicedam ¢ nao mais coexistam. De certa forma, poderiamos dizer que através da morte definitiva, um tempo linear se instaura. A oposigéo nfo reside tanto no par vida-morte, quanto no tema do “eterno retorno” 20 .do-se ao tema do “nunca-mais”, ou seja numa forma atenuada erdeslocada da oposicao primeira. Paralelamente, as oposigdes em jogo nos dois tipos de funerais so também oposigdes em que um dos termos parece figurar de modo atenuado: sombra (da rvore) vs. trevas (e nfo, por exemplo, luz/trevas). eoberto de folhas vs. fechado (no buraco) (e néo descoberto/ fechado). superficie da terra vs. subterraneo (e nfo céu/subterrineo). Jé se poderia alids suspeitar disso pela presenga nfo de um demiurgo tnico, mas de um par, Sol e Lua, com aspectos \. dioscdricos ¢ no qual um dos personagens, Lua, tem componentes “), de um “trickster”. Lévi-Strauss sugeriu, com efeito, na “Gesta de Asdiwal” ¢ na “Estrutura dos Mitos” (1958 [1955] e 1970), que , Mtricksters” © diéscuros sao tipos de mediadores que unem ou _justapdem opostos por vezes inconcilidveis: se 0 mito jé se inicia f com diéscuros ou “tricksters” € que, por assim dizer, j4 nao estamos “no inicio”, na oposigdo maior vida-morte, mas sim “no meio”, faum par transformado, ; Uma palavra para precisar em que sentido Lua pode ser fatento do ciclo de Sol e Lua ressalta que Sol merece mais o epiteto 0 que Lua, que é antes o eterno enganado. Mas se entendermos “trickster” aquele que altera uma ordem pelas suas trapalhices, epiteto convém a Lua que, de modo bastante maniqueista, tor de todos os inconvenientes na criagdo. O plano de Sol teria o um mundo edénico, sem trabalho humano e sem morte didvel. Lua, por seus “faux-pas” ou seus contra-argumentos, abortar esse projeto. A criagio da ordem, neste mito, € pois a dialética entre Péd e Pédleré, mas onde é sempre o primeiro em sanciona a nova ordem querida ou involuntariamente ovocada por Lua. Dois episddios tém porém status especial: , Lua toma a iniciativa dos dois Gnicos ritos mencionados Bifeste ciclo mitico: 0 do resguardo pelos recém-nascidos © 0 dos ‘titos funerérios. Sol propde um resguardo curto, para que “nossos filhos nfo emagrecam”, mas Lua argumenta que a populacéo ‘fumentaria depressa demais, 0 que poderia ser paliado pela F Proibigio temporaria de relagdes sexuais. Lua pratica o resguardo Prolongado e acaba vencendo a oposigio de Sol (H. Schultz 1950:62). O mesmo argumento de controle populacional esté 21 presente, como vimos, nas duas verses que recolhemos de origem dos ritos funerérios, e aqui também Lua inaugura uma modalidade do rito. Talvez esta autoria nao seja fortuita: se é verdade que o “trickster” € um princfpio individualizador (vide mais adiante, : capitulo V), sua presenga nestes dois rituais de separagdo que so os funerais e 0 resguardo de parto poderia atestar os limites que i} | se colocam dentro de uma unidade familiar para que emerja ou desaparega um individuo (vide capitulo VI). Mas por estes | caminhos nfo nos aventuraremos mais adiante. CAPITULO 1 O Desenrolar do Enterro O lugar da morte e a posse do morto | Ha uma sintaxe no espago krahé: Jugar da morte é lugar ‘ofigem, vimo-lo no capitulo I; as saidas e entradas devem ~O Krahé procura assim morrer na casa materna, e nesse fiuito poder4 se submeter, j4 agonizante, a penosos transportes. to inclui os homens casados que, quando adoccem sio levados s consangilineos para sua casa de origem. “No se deixa r pa casa da esposa nfo, a ndo ser que nfo tenha mais ihflia...” Se sua mie estiver viva, um homem jé maduro, ¢ até fe do grupo doméstico em que vive, voltara para junto dela, fis evidentemente o problema acaba se ligando ao estégio do m velho nao tenha mais parentes suficientemente proximos fia por demais enraizado na sua familia de procriago, em ‘casa da qual ele j4 se tornou o chefe, para voltar morrer em y casa de origem. Neste caso, contrariamente a0 que Nimuendaju (1946:126) dos Canela (1), ndo ser também 0 corpo velado na casa pterna (2). Mas a partir dai todas as manifestagées ulteriores, entual refeictio péstuma e o fim do Iuto, serio encabecadas consangilineas de sua casa de origem, mesmo que estas n relativamente afastadas. Claramente, o morto Ihes pertence, ti mais precisamente, pertence 4 casa materna onde seu nome Méré perpetuado, ¢ onde, antigamente repousavam seus restos. Pois ‘Somo dizia Mauss em um artigo sobre ritos funerdrios australianos: fio sio de modo algum os parentescos de fato, por mais préximos Re (1) “Mais ainda,,.., um homem que cai seriamente doente volta ‘BE go mile, normalmente com sox mulher, para Ii lear até seu resti- Ho belecimento. Se houver a menor possibilidade, tum Timbira morzeré na casa " aaterna, onde 0 caddver & invariavelmente exposto” (grifos nossos)”. (2) Mas alguém que, como Kuhok, morre na casa da roga seré transportado para sua casa na aldeia e 6 se comecard o funeral a partir dai. 2 23 que os concebamos, (...) so os parentescos de direito que governam as manifestagdes do luto” (1921:429). Ora o “parentesco de direito” por exceléncia parece ser 0 parentesco consangiifneo na familia de origem ¢ € esta que reivindica 0 morto para si. A presenca da comunidade Ao saber que alguém esté prestes a morrer, acodem & casa dele as mulheres da aldeia, Invadem a casa, silenciosas, e sentadas ou de pé, fitam o moribundo. Embora essa presenca na casa seja comum a todas as mulheres da aldeia, a distincia em que se colocam é reveladora de seu envolvimento enquanto parentes do morto ou estranhas, Os funerais, neste ponto, consistem em uma verdadeira coreografia, onde sio afirmados ostensivamente os agos de parentesco, independentemente dos sentimentos que se possa ter ou dos sentimentos atribuidos pela comunidade (3). Olhar 0 morto e mais tarde “ajudar a choré-lo” concemne a todas as mulheres da aldeia. Os homens virdo mais tarde, e nem todos, s6 aqueles que ld sio chamados.por lagos de parentesco, por suas fungdes piblicas — 0 prefeito e 0 padré (4) virio cxortar a familia — ou pela coparticipacdo em atividades rituais. Portanto, enquanto a participagio feminina parece assegurada, a participagéo masculina @ primeira parte do funeral, que vai da morte ao sepultamento, ser proporcional 2 importncia do morto na vida piblica. Eis porque as mulheres associadas a qualquer grupo de homens ho de contar com a presenca de muitos homens em suas exéquias, Eis porque também os homens presentes aos funerais de uma crianga séo praticamente circunscritos 4 esfera doméstica, e porque, caso limite, 0 atendimento dos homens as lamentagSes é nulo quando se tratar dos funerais de um cachorro. Este seré chorado pelas mulheres da casa “ajudadas” pelas mulheres da aldeia, e enterrado atras da casa de seu dono, dentro de um (8) No caso da morte de Teresn, um de seus gentos — Aleio — era designado pela opiniio piblica como tendo sido seu enfeiticador. No obstante, ole foi requerido para as tarefas que The incumbiam (4) “Prefeito”, termo portugués usado pelos Krahé, & um dos dois homens designados para, durante uma estacto do ano (estagio seca ou estagio das chuvas), coordenarem a3 atividades cotidianas ¢ repartirem a propriedade coletiva (J. C. Melatti 1970:808 ss, 815). Padré, por sua vez, 6 uma corruptela de padre e designa o chefe dos rituais. 24 buraco forrado piedosamente de folhas de pati da chapada (5). As ceriménias mortudrias para um cachorro se restringem & famentag&o ao enterro. Este atendimento relativo dos homens é perfeitamente coerente com a divisio sexual de papéis, segundo a qual se espera que o homem seja antes de tudo um membro do pitio, interessado principalmente na esfera politica e cerimonial. ‘Se 0 moto foi personagem importante e, ao mesmo tempo, especialmente ligado a vida ritual, a comunidade pode manifestar-se ainda de outro modo, Se ele tiver morrido de tarde, e portanto 86 deva ser enterrado no dia seguinte, leva-se 0 corpo para 0 phtio, por iniciativa do chefe dos rituais — 0 padré —e durante ‘uma noite inteira cantam-se para alegré-lo cantos do ritual ao Mgual ele era associado ou de que era devoto. A partir deste mento, sabe-se que a parte final deste ritual sera encenada no m do Into (vide capitulo TV). Ao amanhecer, leva-se 0 morto a sua casa e as ceriménias propriamente domésticas continuam nde haviam parado: novamente os consangiiineos retomam as as, Também pode o padré entoar na propria casa do morto ns cantos de um ritual ao qual ele era associado. Se 0 morto nao tiver ligago com ritual algum, um especialista Pérgahok podera, a seu critério, vir cantar com o txé trumento que consiste num cinto ao qual sio suspensas fimeras pontas de cabaca) cantigas deste ritual & cabeceira do fiver. Neste caso, o Porgahok seré celebrado no fim do luto. O corpo € colocado com a cabeca para leste e deitado de fostas. Esta ¢ também a orientagio ideal de quem est4 dormindo, Pos jiraus (camas de varas) estardo assim dispostos. Tolerar-se-A fa eles uma orientacio diversa mas em nenhum caso a cabeca eve ficar para oeste. “A cabeca deve ficar para leste, pro Péd 1) ensinar direito, pra alma (kard) fica sabida, pra saber bir e atravessar na Agua. Se dormir com cabega para oeste, ica doente e morte”, disse-nos Raul, padré da aldeia Pedra Branca, €nquanto outro informante afirmava que quem fica deitado com (5) eachorro parece ser o ‘inico animal doméstico a ser enterrado © & sempre). Os animais domésticos, como em outras_ sociedades Soemam uma categoria de transigéo entre o selvagem e 0 — eS adqui- sm nomes cachorros, araras, papagaios e porcos ou outros bichos que se 2 serem eriados, nlg comides. Galina nfo ganha nome, As re- tas de nominagio, embora desprezem 0 sexo do animal, e se restrinjam @ um 56 nome, ¢ ngo a uma série, sio as mesmas da nomeagGo humana: o dono nunca pode dar nome: 0 nomeador deverd ser pessoa da casa e de Seracdo igual ou superior a do dono. Este nome & de posse do nomeador © até certo ponto, da casa, como um todo. 25 cabeca para oeste fica “ruim do juizo”. Lembremos que o leste é comumente designado como a parte de cima (“pra riba”), sendo © oeste a parte de baixo. A oposigao do dia e da noite, da luz ¢ das trevas, é a primeira experiéncia, segundo Cassirer (1965, vol. 11:96) que imprime orientagdo ao espago e que assim o qualifica. Exigir, para um ‘‘juizo certo”, que o que é de cima (cabega) fique voltado para cima (oriente) é fazer coincidir a espacialidade do corpo, protétipo, “sistema de referéncia ao qual todas as outras distingdes espaciais so indiretamente transferidas” (E. Cassirer ibidem: 90), com 0 macrocosmo; é requerer, em termos espaciais, que o pensamento esteja “bem orientado”, e nesta metéfora perce- bemos a nossa propria intuigdo espacial subjacente. ‘A orientagiio do corpo, para voltarmos a etnografia, nada tem portanto a ver com a orientagao da casa, refere-se diretamente aos dois pontos cardeais krah6, o leste ¢ 0 oeste. Também o corpo seré enterrado nesta posi¢ao. Chorar antes de muitas horas € repreensfvel, pois é condenar © morto a nfo mais poder reviver, é mandé-lo embora para a aldeia dos mekard, vedar-lhe o caminho de volta, consagrar a ruptura, Pois nesse periodo, conta-se, j4 muitos voltaram a vida, quando ainda existiam curadores eficientes, ou gragas & protegio de um keti (6) e & propria continéncia, recusando compartilhar os alimentos ou a vida dos mekard: O irmao da mie de Hoktxi morreu. Quando ia morrendo disse para a mae: ‘Nao chorem. Eu volto ainda”. Morreu. Chegou na aldeia dos mekar®. Ofereceram banana, dgua, correr com tora, Khwérgupu (bolo de mandioca e carne ou peixe, assado no forno de pedras e comida “por exceléncia” dos Timbiras). Foi irma que ofereceu. Ele nao aceitou. “Nao estou com fome. S6 vim ver vocés. Nao gosto de vocés nao”. Chegou keti morto dele e disse: “Ndo oferecam nao, Os arentes dele estéo com saudade”. Levou de volta, Iam parando e ndo escutavam os parentes chorar, Se tivessem escutado, voltavam para tras. Se quer bem ao filho, nao chora logo. Quando chora esté mandando embora...” (7) Kotoi morreu de madrugada e o choro ritual, comegado algumas horas depois, se prolongou, com alguns intervalos, até de tarde ou seja até a saida do corpo. (8) Keti, categoria na qual 6 escolhido o nomeador para ego masculine € que inclui’ entre outras as posicées genealégicas de Im, Pm, PP. (7) O resto desta estéria, contada de noite por Hoktxi a seu genro, serd analisado mais adiante, Vide desenho feito por este, foto 1. 26 bi Depois disto, cada parente que tenha estado ausente no momento das exéquias, dirige-se, ao ser inteirado das més noticias, para a casa do luto onde é recebido com as mesmas lamentagdes € onde ele prdprio chora abundantemente. Espera-se que toda a aldeia participe desse choro através de 4: suas mulheres. E importante notar que enquanto os consangiifneos, homens e mulheres, interpelam 0 morto, as outras carpideiras se oe enderecam, elas, aos sobreviventes enlutados. Isto é consistente ks: com o papel da comunidade (que ser detalhado mais adiante) de & ajudar os enlutados a romper seus lagos com o morto ¢ de ontrabalancar a atragdo que este exerce sobre eles. Chora-se em atitude convencional, sentado sobre o pé querdo, joelho direito fletido apoiando o brago direito dobrado, ye por sua vez sustenta a testa, enquanto escorrem livremente as grimas © 0 ranho (vide foto 2), F) Estas lamentagGes cantadas desenvolvem dois temas: dizem ‘morto quio grande era o afeto que se The tinha quando era vivo fuio pungente é a saudade dele; e pedem-lhe sem transigo que Fesqueca de seus parentes pois estes ndo estiio prontos para fui-lo. Tlustrando o primeiro destes temas, eis um trecho que amos ¢ depois traduzimos do choro fiinebre de Kotoi. Nele se pam os solos dos parentes préximos e 0 coro de carpideiras, B que na palavra coro se implique unissono, mas sim choros Berentes cantados simultaneamente, pelas mulheres tidas como mates longinquas” € que se enderegam ou 20 morto ou aos tes préximos a quem estio “ajudando a chorar”. Eu tenho pena; Tua finada mae jaz, bem morta, Eu estou com pena Por que quando vocé ainda estava viva, ndo me dew seus conselhos? Minha irma cacula jaz Eu estou chorando apesar de nova(8) Eu estou chorando bem. (8) Os jovens tém vergonha (pahain) de chorar. Os velhos sio (no tém vergonha). Veremos mais adiante os diferentes sen- Fanermare {nfo tem vergonba). Vercinos mais adiante os diferentes sa 27

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