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a transcrição ric curtos passagens para efeitos de apresentação, cr/dca ou discussão das ideias c opiniões
contidas no livro. Esta excepção nuo pode, porém, ser interpretada como permitindo a transcrição dc
textos cm recolhas ontológicas ou similares, da qual possa resultar prejufzo para o interesse pela obra.
Os infractores são passíveis dc procedimento judicial.
AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica fPnrfni

DE

Jurisprudência e Legisprudência
Princípio da aplicação da lei penal favorável
Crimes e Contra-Ordenações
Alteração do tipo legal de crime
O caso julgado e a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável
Normas processuais penais materiais
Presunção de inocência, prisão preventiva e indemnização

3A EDIÇÃO REVISTA E ACTUALIZADA

Coimbra Editora

2008
4
C omposição e impressão
oimbra Editora, Limitada

ISBN 978-972-32-1594-6 - 3." edição revista


(ISBN 972-32-0799-0 - 2.' edição)

Depósito Legal n.° 277 415/2008

Junho de 2008
o à Dinha, minha mulher
o à Mónica e à Andrea, minhas filhas'
o à Mariana, à Rita e ao André, meus netos

o recordando o Homem e o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes


e o Amigo, Professor Baptista Machado
PREFÁCIO

Em Janeiro de 1990, foi publicada a i . " Edição desta monogra-


fia Sucessão de Leis Penais; em Dezembro de 1997, foi publicada a
2." Edição. Cada uma destas edições teve várias reimpressões.
Agora, em fins de 2007/princípios de 2008, é chegado o momento
de elaborar uma 3." Edição, devidamente revista, actualizada e aumen-
tada, que tenha em conta as alterações legislativas e a evolução juris-
prudencial verificadas após a 2." edição.

1. Logo na 1." Edição, em 1990, procurei chamar a atenção


para a necessidade e imperativo jurídico-penal e jurídico-constitu-
cional — necessidade e imperativo derivados do sentido e exigência
do próprio Estado de Direito — de o Legislador Ordinário ter a
indispensável prudência na criação das leis penais, acautelando os
princípios e ponderando as consequências práticas das suas decisões
legislativas, nomeadamente em matérias penais. A este cuidado e pon-
deração chamei Legisprudência.
Como parece evidente, sem legisprudência não pode haver boa
(isto é, justa e eficaz) jurisprudência. Aquela é conditio sine qua non
desta.
A verdade, porém, é que esta indispensável prudência legislativa
tem sido, na prática, esquecida.
Exemplo flagrante de falta de legisprudência temo-lo nas recen-
tes alterações dos Códigos Penal e do Processo Penal, no tocante à
vacatio legis. Com efeito, tendo em conta as consequências jurí-
dico-práticas que imediatamente decorreriam da entrada em vigor
das respectivas leis (n.° 48/2007, de 29 de Agosto, e n.° 59/2007,
8 Sucessão de Leis Penais

de 4 de Setembro), é inconcebível que entre a publicação e a entrada


em vigor (15 de Setembro) tenham sido fixados apenas cerca de
15 dias, quando seria razoavelmente exigível um prazo de, pelo
menos, 3 meses. Esta decisão legislativa de apressar (sem que nada
o justificasse) a entrada em vigor de alterações penais bastante pro-
fundas é, objectivamente, reveladora da falta de consciência de que
as leis, nomeadamente as penais, têm por destinatários todos os
cidadãos, ao mesmo tempo que demonstra, objectivamente, falta
de "consideração" para com aqueles que têm a função de aplicar
as leis.
E diga-se que a tentativa de justificar um tão exíguo prazo de
vacatio legis, com a afirmação de que os representantes dos Magis-
trados Judiciais e do Ministério Público, e da Ordem dos Advogados
já, há muito, estavam a par dos trabalhos e das alterações, que a
exoticamente denominada "Unidade de Missão para a Revisão dos
Códigos Penal e do Processo Penal" iria propor ao Governo, é impro-
cedente. Pois que, todos o sabemos, as comunidades dos Juízes,
dos Procuradores da República e dos Advogados estavam, natural-
mente, "a leste" dos trabalhos de proposta de revisão, que estavam
em marcha. Além disto, não se-pode esquecer que entre aquilo, que
é proposto por um qualquer "grupo de trabalho", e o texto final, a
aprovar pela Assembleia da República ou pelo Governo com autori-
zação legislativa, pode ir uma enorme distância. Assim, aòs cidadãos
em geral e aos "realizadores" da Justiça, em especial, só é exigível
que conheçam e preparem a aplicação da lei, nomeadamente a penal,
depois de esta ter sido publicada no Diário da República.
Também há falta de Legisprudência na prática, que se vai ins-
talando, de não se fazer preceder as leis, que operam revisões rela-
tivamente amplas e profundas, da respectiva Exposição de Motivos,
onde se apresente as razões que, na perspectiva do Legislador, leva-
ram às alterações legais. Tais Exposições de Motivos, embora não
vinculem o ihtérprete-aplicâdor da lei, não deixam de ter a sua impor-
tância como um dos factores da respectiva interpretação.
Mas o legislador, que aprovou a Lei n.° 48/2007, de 29 de Agosto
— lei de revisão do Código de Processo Penal, que alterou nada
mais/nada menos que 191 artigos e que acrescentou 3 —, e a Lei
Prefácio 9

n.° 59/2007, de 4 de Setembro — lei de revisão do Código Penal, que


alterou cerca de 116 artigos e que aditou 14 —, resolveu, pura
e simplesmente, não inserir qualquer Exposição de Motivos, onde
se indicasse quais foram as traves-mestras ou ideiasrforça de tão
profundas alterações. Com a agravante de, em relação ao Código
Penal, ter eliminado a Exposição de Motivos constante do Decreto-Lei
N.D 48/95, que tinha procedido a uma revisão significativa do texto
primitivo do Código Penal de 1982.
É justo dizer que a dita "Unidade de Missão para a Revisão
das Leis Penais" tinha inserido, no Anteprojecto de Revisão do
Código Penal, apresentado ao Governo no dia 19 de Abril de 2006,
a respectiva Exposição de Motivos (o mesmo tendo feito, relativa-
mente ao Anteprojecto do Código de Processo Penal). Mas a verdade
— e é isto que releva negativamente para o Legislador — é que, na
lei, nada ficou sobre os motivos das alterações.
Uma boa técnica legislativa, que é uma das dimensões-exigên-
cias da Legisprudência, implica, no meu entendimento, que uma lei
de revisão global de um Código contenha a Exposição de Motivos,
passando a fazer como que parte desse código. É que o cumpri-
mento desta exigência técnica permite-nos ficar a par da dinâmica evo-
lutiva do respectivo Código e, assim, a par da evolução das mutações
sócio-culturais, que estiveram na origem das sucessivas revisões glo-
bais. Aspecto que não deixa de também ter a sua importância na
inteipretação-aplicação da lei.
Diga-se, por último, quanto à exigência de Legisprudência, que
também é aconselhável que os trabalhos de revisão global de um
Código sejam realizados por comissões integradas por especialistas
dos diferentes sectores do Direito (Universidade, Magistraturas Judi-
cial e do Ministério Público, e Ordem dos Advogados), especialistas
que, além de o serem, têm de ter a consciência da importância da fun-
ção que assumiram.
E os trabalhos preparatórios realizados por estas comissões
devem ser publicados em Actas respectivas, actas que devem expor
as argumentações dos vários intervenientes, e não se traduzirem numa
espécie de "folha de presenças", resumindo-se a acolitar a proposta
do presidente da comissão...
10 Sucessão de Leis Penais

Em resumo: a aprovação de um novo Código deve conter um


Preâmbulo; a aprovação de uma Revisão global de um código deve
conter uma Exposição de Motivos; e os Trabalhos Preparatórios
devem ser publicados em Actas.

2. Entendo que o diálogo entre a doutrina e a jurisprudên-


cia é mutuamente enriquecedor, sendo, em última análise, benéfico
para o cidadão e para o próprio Estado-de-Direito, que tem na rea-
lização da Justiça uma das suas componentes. Mas a eficácia deste
diálogo depende da abertura, da franqueza, da frontalidade e da
honestidade intelectual dos dois interlocutores. Um tal "diálogo"
não significa falta de consideração de um pelo outro. Os pré-juízos
é que devem evitar-se.
Assim, nesta 3.a edição, procurarei dar maior atenção aos acór-
dãos dos nossos Tribunais Superiores. Isto não significa um menor
apreço pelos Tribunais de Primeira Instância, mas resulta apenas do
facto de as Decisões destes Tribunais serem de mais difícil acesso.
Entre outros pontos, procurarei debater as questões relaciona-
das com a "conversão" de crimes em contra-ordenações e vice-versa;
com a "passagem" de crime público a semi-público e vice-versa;
com o problema da ponderação unitária ou diferenciada; e com as con-
sequências da criação ou eliminação de condições objectivas de puni-
bilidade, na perspectiva de sucessão de leis penais.

3. A actualização prende-se com a figura do caso julgado penal


enquanto obstáculo à aplicação retroactiva da lei penal mais favorá-
vel. Este obstáculo que, desde a i . " Edição, em Janeiro de 1990, con-
siderei inconstitucional, foi, agora, eliminado pelas Leis n.° 48/2007,
de 29 de Agosto, e n.° 59/2007, de 4 de Setembro.
Mas, se é de aplaudir a eliminação do caso julgado penal como
impedimento à aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, já,
inversamente, é criticável que o legislador não tenha estabelecido
regras precisas quanto ao âmbito dessa retroactividade, quanto aos pro-
cedimentos a realizar, quanto aos prazos para a re-determiiiaçao da
pena (nomeadamente, estando em causa pena de prisão), e que tenha
feito depender da iniciativa do "condenado" o procedimento para a
Prefácio 11

re-determinação da pena ou para a descriminalização (ou não) do


facto, em consequência da entrada em vigor da lei nova.
Esta lamentável e inexplicável lacuna (tanto mais lamentável
quanto parece que da chamada "Unidade de Missão para a Reforma
do Código Penal e do Processo Penal" faziam parte membros das
Magistraturas Judicial e do Ministério Público, que, obviamente,
deveriam ter acautelado esta componente prática, que é conditio sine
qua non de uma efectivação razoável desta poKtico-criminalmente
justa decisão legislativa) irá, provavelmente, causar grandes dificul-
dades e divergências na aplicação do princípio às situações concre-
tas, para além de poder gerar injustiças relativas evitáveis.
De esperar é que o legislador, o mais depressa possível (ele que
tão apressado foi quanto à entrada em vigor das recentes e profun-
das Revisões dos Códigos Penal e do Processo Penal), preencha esta
lacuna prático-processual. S&Jnão clarificar e estabelecer, rapida-
mente, estas indispensáveis refras práticas, a "culpa" não é da con-
sagração legal do princípio (que é, em si mesmo considerado, uma
exigência político-criminal e constitucional), mas sim da imprudên-
cia do legislador. Pois é evidente que não basta a consagração legal
de um princípio, sendo exigível a criação das regras para a sua apli-
cação prática.
SIGLAS

ADPCP — Anuário de Derecho Penal y Ciências Penales.


B E D U C — Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
BMJ — Boletim da Ministério da Justiça.
CEDH — Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
CEJ — Centro de Estudos Judiciários.
CJ — Colectânea de Jurisprudência.
CP — Código Penal.
CPP — Código de Processo Penal.
CRP — Constituição da República Portuguesa.
DJ — Direito e Justiça.
ED — Enciclopédia dei Diritto.
GA —Goltdammer's Archiv fiii^S$rafrecht.
IP — índice Penale.
JDC — Jornadas de Direito Criminal.
JDPP — Jornadas de Direito Processual Penal.
JUS — Juristische Schulung.
JZ — Juristenzeitung.
NJW — Neue Juristische Wochenschrift.
RC — Relação de Coimbra.
RDE — Revista de Direito e Economia.
RDES — Revista de Direito e de Estudos Saciais.
RE — Relação de Évora.
RG — Relação de Guimarães.
RIDPP — Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale.
RL — Relação de Lisboa.
RLJ — Revista de Legislação e de Jurisprudência.
RMP — Revista do Ministério Público.
ROA — Revista da Ordem dos Advogados.
RP — Relação do Porta.
RPCC — Revista Portuguesa de Ciência Criminal.
14 Sucessão de Leis Penais

STJ — Supremo Tribunal de Justiça.


TC — Tribunal Constitucional.
TEDH — Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
ZStW — Zeitschrift fur die gesamte Strqfrechtswissetischqft.
ÍNDICE-SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
Págs.
I. Legisprudência e Jurisprudência 33

1. Complementaridade da doutrina, jurisprudência e legislação.... 33


2. Noção de legisprudência: saber jurídico e técnica legislativa.... 33
3. Crítica da falta de legisprudência 34
4. Do sistema ao caos, da coerência normativa ao arbítrio, da
justiça ao pragmatismo economicista 35
5. Reconhecimento, ao mais alto nfvel do Estado, da inconti- .
nência e incoerência legislativas 36
6. Apreciação crítica de algumas decisões legislativas: crime
continuado; limite máximo da pena de prisão e limite máximo
da pena da pluralidade de crimes (cúmulo jurídico); respon-
sabilidade penal das pessoas colectivas pelos crimes referidos.
no n.° 2 do artigo 11° do Código Penal (introduzida pela Revi-
são de Seter#ro de 2007) 36

II. Desorientação face aos Princípios da Aplicação da Lei Penal no -


Tempo ( 42.

1. Da proclamação de fidelidade ao princípio da legalidade penal


às suas verdadeiras implicações práticas 42
2. Doutrina, legislação e jurisprudência parecem bastar-se com
a proclamação 42

m. Relevância Teórico-Prática do Problema da Vigência Tempo-


ral da Lei Penal 43

1. Dignidade da Pessoa Humana, Estado-de-Direito e ratio do


princípio da legalidade e respectivos corolários 43
16 Sucessão de Leis Penais

Págs.
2. O princípio da legalidade nas Declarações dos direitos huma-
nos e nas Constituições 44
3. A necessidade da perspectiva material jurídico-constitucional
e político-crimmal 45

IV. A Falta de Legisprudência e a Inexistência de uma Teoria


Geral da S u c e s s ã o de Leis P e n a i s como F a c t o r e s da
Seguinte Contradição: reconhecimento teórico do princí-
pio m a s frequentes violações na praxis legislativa e juris-
prudencial 45

1. Dinâmica social e dinâmica legislativa 45


2. Inexistência de uma teoria geral da aplicação da lei penal no
tempo 46

V. Motivação, Objecto e Método da Presente Investigação 47

1. Do sentimento jurídico à racionalização jurídica 47


2. As duas partes do presente estudo 48
3. O método: os parâmetros histórico, jurídico-constitucional e
político-criminal 49

VI. Apreciação Crítica de algumas Decisões Judiciais 49

1. O Dec.-Lei n.° 454/91 (lei penal da emissão de cheque sem


provisão) e a desorientação e subversão de princípios jurí-
dico-penais fundamentais 49
2. Homicídio causado por condução automóvel com excesso de
velocidade, antes de 1 de Outubro de 1994, e a errada qua-
lificação pelos tribunais como homicídio por negligência gros-
seira 61
3. O crime de abuso de confiança fiscal e a desorientação
quanto à qualificação da exigência de notificação, pela
administração tributária, do sujeito passivo, introduzida
pela Lei n.° 53-AJ2006, de 29 de Dezembro, e quanto às
consequências jurídico-penais resultantes desta nova exi-
gência 68
Índice-Sumárío 17

1." PARTE

O PRINCÍPIO D A APLICAÇÃO
DA LEI PENAL FAVORÁVEL

1.° CAPÍTULO
A PROIBIÇÃO D A RETROACTIVIDADE
D A LEI PENAL DESFAVORÁVEL
(CRP, ART. 29.°, N. os 1-1 ;n PARTE, 3-1." PARTE,
4 - 1 ° PARTE; CP, ARTS. 1.°, N.° 1, E 2.°, N.° 1)
Págs.
I. Caracterização Sumária do Estado Absoluto, sob os Aspectos
Jurídico-Político e Jurídíco-Penal 91

1. N o plano político: absolutização do poder 91


2. No plano jurídico-penal: arbitrariedades legislativas e judiciais...' 92
3. Manifestações esporádicas contra o arbítrio judicial antes do
séc. xvxii 92

D. Fiuidamento Polítieo-Jurídico: o Estado-de-Direito e a Génese


Histórico-Política da Proibição da Retroactividade da Lei Penal
Desfavorável — á Segurança Individual como Garantia Polí-
tico-Constitudonal 93

1. A Constituição Portuguesa de 1822 e as sequentes diligên-


cias para a elaboração de um código penal 93
2. O píqpeiro código penal português (1852) e a proibição da
retroactividade da lei penal 94
3 . SILVA FERRÃO e a proibição da retroactividade como garantia
política fundamental 95
4. S O U S A PINTO e a abolição da categoria dos «crimes extraor-
dinários» («crimes naturais»), para impedir a arbitrariedade
judicial (nullum crimen serie lege scripta) 95
5. S O U S A PINTO e a exigência do nullum crimen sine praevia
lege como corolário da ratio de segurança jurídico-individual
ínsita no princípio da legalidade 96
6. HENRIQUES DA SILVA: a Revolução Francesa como marco do
protesto contra a arbitrariedade judicial do Antigo Regime.... 97
7 . HENRIQUES DA SILVA: OS direitos individuais na origem histó-
rica da proibição da retroactividade 98
2
18 Sucessão de Leis Penais

Hl. Fundamentação Político-Criminal da Proibição da Retroacti-


vidade da Lei Penal Desfavorável: o Princípio da Culpa como
Fundamento e Limite da Pena e o Sentido da Prevenção Geral
de Intimidação da Pena 98

1. Razão de ordem 98
2. À fundamentação jurídico-política acresce a perspectiva polí-
tico-criminal 99
3. A prevenção geral de intimidação (a pena como «coacção psi-
cológica» — FEUERBACH) 99
4. A Escola Clássica ( K A N T e HEGEL) e o princípio da culpa
como fundamento da proibição da retroactividade 100
5. A ultima ratio comum à ratio jurídico-política e à ratio polí-
tico-criminal da irretroactividade: a dignidade da pessoa indi-
vidual 100
6. A persistência da ratio jurídico-política e as oscilações histó-
ricas da ratio político-criminal — A Escola Positiva, dadas a
negação da «culpabilidade» e a desvalorização da «preven-
ção geral», teria levado à negação prática da proibição da
retroactividade, se não fosse a consciência jurídico-política... 103
7. Conclusão: a ratio política de segurança jurídica individual
contra a arbitrariedade punitiva constituiu, constitui e consti-
tuirá um impedimento à subversão do princípio da irretroac-
tividade desfavorável, subversão a que certas e conjunturais
concepções político-criminais poderiam conduzir 105
8. HENRIQUES DA SILVA como exemplo de discernimento jurí-
dico-político e jurídico-penal: apesar da sua adesão à «socio-
logia criminal», manteve-se consciente dos riscos que, para
os direitos individuais, adviriam da renúncia às exigências do
princípio da legalidade penal e, por isso, manteve-se fiel à
proibição da retroactividade in peitts ; 105
9. Crítica da «pena relativamente indeterminada» cuja matriz
ideológica político-criminal se situa no positivismo crimino-
lógico dos fins do séc. xix 108
10. Crítica de uma posição de BELEZA DOS SANTOS, que, em 1 9 3 0 ,
defendia a aplicação da lei em vigor no momento do julga-
mento, mesmo que desfavorável 112

IV. O «Tempus Delicti» (CP, Art. 3.") 112

1. A relevância prática desta questão é fulcral 112


Índice-Sumário 19

Págs.
2. O critério unilateral da conduta: razões essencias e razões
suplementares 113
3. Os problemas — e respectiva resolução — das condutas típi-
cas «duradouras» (crimes permanentes, crimes habituais, cri-
mes de omissão); ainda os casos do crime continuado, da
comparticipação e da «actio libera in causa» 117
4. As propostas para o caso de a L.N. ser uma lex severior 119
5. A solução imposta jurídico-política e político-criminalmente:
deve aplicar-se a lei antiga, a não ser que a totalidade dos pres-
supostos da lei nova se tenham verificado na vigência desta... 120

2.° CAPÍTULO

A IMPOSIÇÃO D A RETROACTIVIDADE
DA LEI PENAL FAVORÁVEL
(CRP, ART. 29.°, N.D 4-2." PARTE;
CP, ART. 2.°, N.DS 2 E 4, CPP, ART. 371 .°-A)

I. A Génese Político-Criminal da Retroactividade Favorável 125

1. Razão de ordem: a ratio originária da proibição da retroacti-


vidade foi a de garantia política (segurança jurídico-penal indi-
vidual) 125
2. O fundamento da retroactividade da lei penal favorável foi, ini-
cialmente, político-criminal: a concepção preventiva da pena... 126
3. A discussão doutrinal que, durante todo o séc. xix, envolveu o
problema da retroactividade, ou não, da lei nova favorável: a
«Escola Clássica», a «Escola Positiva» e a «Escola Moderna».,. 127

31. O Estado-de-Direito Material e a Integração da Retroactividade


da Lei Penal Favorável no Quadro dos Direitos Fundamentais
da Pessoa : ...:.... 131

1. Razão de ordem: a inversão das razões determinantes da irre-


troactividade «in peius» (ratio jurídico-poiítica; posteriormente,
mais ratio político-criminal) e da retroactividade «in melius»
(ratio político-criminal; posteriormente, mais ratio jurídico-
-política) 131.
2. Pós-Guerra, Estado-de-Direito Material e protecção e promo-
ção dos direitos fundamentais; no campo jurídico-pènal: prin-
cípio da indispensabilidade da pena e da aplicação da «lex
mitior» 132
20 Sucessão de Leis Penais

Pãgs.
JEL, Estado-de-Direito Material; Concepção Preventivo-Etica da
Responsabilidade Penal; Constituição da República Portuguesa
(Aits. I.0,. 18.° e 29.°, N.° 4-2." Parte); Imposição da Retroacti-
vidade da Lei Penal Favorável 134

1. O art. 18.", 2-2." parte, da CRP: o princípio da máxima res-


trição da pena 1 134
2. Os arts. 18." e 29." da CRP e o art. 40." do CP assumem e
consagram uma concepção preventivo-ética da pena 135

IV. O Princípio da Aplicação da Lei Penal Favorável 137

3." CAPÍTULO

A SUCESSÃO D E LEIS PENAIS E O PRINCÍPIO


DA APLICAÇÃO D A L E I PENAL MAIS FAVORÁVEL
(CRP, ART. 29.°, N.° 4-2." PARTE; CP, ART. 2.°, N.° 4)

I. Estado-da-Questão: Precisão dos Conceitos e Delimitação do


Objecto 139

1. Vigência formal da lei penal; retroactividade e ultraactividade... 139


2. Sucessão de leis penais em sentido restrito 139
3. Sucessão de leis penais em sentido amplo 140
4..A delimitação do âmbito do n." 4 e do n." 2 do art. 2° do
Código Penal : 141
5. A relevância prática da delimitação 142
6. Os pressupostos da sucessão de leis penais em sentado restrito... 143

II. Crime —> Contra-Ordenação; Contra-Ordenação -> Crime... 144

A) Crime -> Contravenção ou Contravenção - » Crime 146

1. Sucessão de leis penais stricto sensu: aplicação da lei


que for mais favorável 146
2. A necessidade de atender à situação jundico-penal
concreta 146
3. O regime geral das contravenções; conversão de crime --
em contravenção :. 147
4. Conversão de contravenção em crime 148
5. Conclusão 148
fndice-Súmárío 21

Págs.
6. Referência às posições de B E L E Z A DOS S A N T O S e de
E D U A R D O CORREIA 148

B) Crime —> Contra-Ordenação ou Contravenção ->.Con-


tra-Ordenação 150

1. A L.N, é despenalizadora, logo eficácia retroactiva da


despenalização 150
2. A questão fulcral e decisiva da natureza jurídica das
contra-ordenações 151
3. A autonomia material essencial entre crime (e con-
travenção) e contra-ordenação, no sistema jurídico
português : 159
4. Referência aos problemas criados — e ainda não resol-
vidos — pelo Dec.-Lei ti." 232/79, de 24 de Julho, e
pelo Dec.-Lei n" 4U-AJ79, de 1 de Outubro 164
5. A situação actual e o modo de resolução das ques-
tões derivadas da conversão de crime (e antes: ou
contravenção) em contra-ordenação 175

C) Contra-Ordenação -*• Crime ou Contra-Ordenação - » Con-


travenção 194

1. A L.N. é penalizadora; logo, só aplicável às condutas


praticadas depois da sua entrada em vigor 194
2. Quanto às condutas anteriormente praticadas, o pro-
blema tem de ser resolvido de acordo com os princí-
pios que regem a vigência temporal da lei con-
tra-ordenacional: Dec.-Lei n.° 433/82, arts. 2.° e 3.°.... 194
3. Regime transitório 196

D) Apreciação da actual redacção do n.° 2 do art. 3.°, do


Dec.-Lei n.° 433/82 196

Hl. Alteração do Tipo de Ilícito: Despenalização da Conduta (CRP,


Art. 29.°, N.° 4-2." parte afortiori; CP, Art. 2".°, N.° 2) ou Aplica-
ção da Lei Penal Mais Favorável (CRP, Art. 29°, N.° 4-2." parte;
CP, Art. 2.°, N.° 4; CPP, Art. 371.°-A)? ! 198

A) Actualidade, complexidade e relevância da questão 198

1. Actualidade 198
2. Complexidade: exemplificação 199
3. Relevância jurídico-prática 207
22 Sucessão de Leis Penais

Págs.
B) Pressupostos da questão 208

1. Que tanto a L.A. como a L.N. sejam leis penais; que


não se tenha extinguido toda a responsabilidade penal
decorrente do facto praticado na vigência da L.A 208
2. Verificados estes pressupostos, a questão existe 208

C) Critérios adoptados, na doutrina e na jurisprudência estran-


geiras, para a definição da L.N. como lei despenalizadora
ou somente como lei modificadora da responsabilidade
penal do facto concreto praticado na vigência da L A 209

1, A teoria do facto concreto: «prius punibile, posterius


punibile, ergo punibile»; sua recusa 209
2, A teoria da «continuidade do ilícito» 210

a) a sub-teoria da «identidade do núcleo do ilícito»;


sua recusa 210
b) a sub-teoria da «continuidade do tipo de ilícito»;
sua recusa 212

3, A teoria de que o critério da identidade ou não entre


a L.A. e a L.N, tem de assentar na estrutura e cons-
tituição do tipo legal 215

a) Alargamento da punibilidade por supressão de ele-


mentos especialízadores constantes da LA 217
b) Redução da punibilidade por adição de elementos
especializadores ao tipo legal da LA. Aqui, e só
aqui, há divergências entre os defensores do ade-
quado critério da continuidade normativo-típica... 218

aa) A tese de que nunca há uma verdadeira rela-


ção de identidade (continuidade) norma-
tivo-típica entre a L A . (geral) e a L.N. (espe-
cial), donde a afirmação da despenalização
das condutas praticadas na vigência da L A .
(SCHROEDER, R U D O L P H I ) . — A seu favor: as
razões jurídico-políticas e político-criminais
em que se fundamenta; contra: o radicalismo
da conclusão, que não é imposto pelos fun-
damentos 219
Índice-Sumário 23

Pngs.
bb) A tese de que há sempre uma verdadeira
relação de identidade normativo-típica entre
a L A . (geral) e a L.N. (especial), donde a
afirmação da persistência da punibilidade
(JAKOBS, PADOVANI)... Deve ser recusada,
pois contraria os princípios jurídico-políticos
e político-criminais que o regime da sucessão
de leis penais tem que respeitar 222

D) Orientação proposta 224

1. Acolhimento do critério da continuidade normativo-


-típica 224
2. Concordância com as posições unânimes dos dois sec-
tores da tese da continuidade normativo-típica: per-
manência da punibilidade do facto, sempre que a L.N.
se traduz num alargamento da punibilidade; despena-
lização, quando a alteração do tipo legal consiste numa
permuta de elementos constitutivos das factualidades
típicas 225
3. Orientação proposta para os casos em que a L.N. adi-
cionando à factualidade típica da L.A. novos elemen-
tos, vem restringir a punibilidade; — a importân-
cia da distinção entre especialização e especificação;
— a formulação da orientação proposta ' 227

IV. Condições Objectivas de Punibilidade: adição (CRP, Art. 2 9 ° ,


n.° 4, 2." parte, a fortiori, e CP, Art. 2.°, n." 2); eliminação
(CRP, Art. 29.°, n." 1; CP, Arís. 1.°, n.° 1, e 2.", n." I) 234

1. Como pressupostos adicionais de punibilidade 234


2. A sua qualificação dogmática e político-criminal 236
3. Consequências da alteração das condições objectivas de puni-
bilidade em matéria de sucessão de leis penais: adição = des-
penalização; eliminação = penalização 238

V. Alteração das Causas de Justificação '(CRP, Art. 29.°, N.° 4;


CP, Art. 2.°, N.° 2) 240

VI. Lei Intermédia (CP, Art. 2 ° , N.° 4) 243

1. Noção; retroactividade e ultraaetividade 243


24 Sucessão de Leis Penais

Págs.
2. Aplicabilidade 244
3. Razões da aplicação da lei intermédia mais favorável 245

VII. Determinação da Lei Penal Mais Favorável: Ponderação Con-


creta e Diferenciada (CRP, Art. 29°, N.° 4-2? Parte; CP, Art. 2.°,
N.° 4; CPP, Art. 371 °-A) 246

1. As duas questões 246


. 2. a) Ponderação concreta 246
b) A consideração da opção do arguido 247
3. Ponderação diferenciada 248

a) A opção da generalidade da doutrina e da jurisprudência


pela ponderação unitária 248
b) A perspectiva político-criminal e a consequente refutação
da ponderação unitária 249
c) Crítica da motivação do Assento do STJ, publicado em
17 de Março de 1989 252

4. Conclusão 256

vm. Lei Temporária (CP, Art. 2 ° , N.° 3) 256

1. Noção 256
2. Pressupostos da caracterização de uma lei penal como lei tem-
porária: situação de emergência e calendarização do termo de
vigência.
Referência aos problemas suscitados pelas leis penais em
branco e sua resolução 256
3. Crítica da corrente distinção doutrinal entre leis temporárias em
sentido restrito e leis de emergência 259
4. O regime especial da lei temporária (CP, art, 2.", n.° 3) não
é uiriá excepção — que seria inconstitucional — ao princípio
da retroactividade da lei penal favorável. — Referência às
leis penais económicas 260
5. A lei temporária pode ser uma lex severior 262
6. Hipóteses de verdadeira sucessão de leis pedais temporárias 267

IX. Medidas d e S e g u r a n ç a (CRP, Art. 29.°, 1, 3 e 4; CP,


Arts. 1.°, N.° 2, e 2.") 269

1. Sujeição constitucional das medidas de segurança aos princí-


pios da legalidade e da jurisdicionalidade 269
Índice-Sumário 25

Págs.
2. Aplicação retroactiva da lei posterior mais favorável 270
3. A ratio jurídlco-política da proibição da retroactividade des-
favorável 271
4. Aplicação do princípio da lei mais favorável às medidas de
segurança não privativas da liberdade para imputáveis 274

4.° CAPÍTULO

O CASO JULGADO E A APLICAÇÃO RETROACTIVA


DA LEI PENAL MAIS FAVORÁVEL (CRP, ARTS. 29.°, .
N.° 4-2." PARTE, 18.°, N.° 2-2." PARTE, 2S2.D, N.° 3,
E 13.°, N.° 1; CP, ART. 2.°, N.° 4; CPP, ART. 371.°-A)

I. A Situação Anterior a 15 de Setembro de 2007, data d a


entrada em vigor da actual 2." parte do n." 4 do art. 2." do CP,
e do art. 371.°-Á do CPP: inconstitucionalidade do obstáculo
do caso julgado à aplicação retroactiva da lei penal mais favo-
rável (CRP, arts. 29.°, n." 4-2." parte, 18.°, n." 2.-2° parte, 282.°,
n.° 3, e 13.°, n.° l-2. a parte) 275

A) Caso Julgado Penal, Ne Bis In Idem e. Proibição da Retroacti-


vidade da Lei Penal: a ratio comum de garantia política na ori-
gem da afirmação histórica destes princípios (Séc. XVIII-
-2." metade) 275

1. O desconhecimento destes princípios no Estado Absoluto 275


2. A ratio de garantia política do cidadão frente à arbitrária per-
seguição penal e a consagração constitucional do princípio ne .
bis in idem, a partir dos fins do séc. xvm 276
3. Da absolutização do caso julgado penal — determinada por
uma compreensível (para a época) motivação de reacção con-
tra a próxima-passada arbitrariedade persecutória penal — a sua
relativização (à sua função de garantia política) e, portanto, ã
compatibilização do caso julgado, na sua dimensão negativa do
ne bis in idem, com a retroactividade da lex mitior 277
4. O processo de relativização (funcionalização) do caso julgado
penal no direito penal português do séc. XIX 277
5 . L É V Y M A R I A JORDÃO e a cedência do caso julgado à aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável 279
6. A Nova Reforma Penal de 1884 e o mais profundo debate
e afirmação da compatibilização do princípio do caso jul
26 Sucessão de Leis Penais

Págs.
gado penal com o princípio da retroactividade da lex mitior,
— A clareza e a consistência da argumentação de LUCIANO DE
CASTRO 280
7. Os argumentos de HENRIQUES DA S I L V A contra a excepção do
caso julgado à retroactividade da lei penal mais favorável.... 283
8. BELEZA DOS SANTOS e a denúncia da concepção «fetichista» do
caso julgado penal 283

B) Doutrina Actual: Caso Julgado Penal e Caso Julgado Civil;


Recusa da Acrítica Perspectiva Pancivilística do Caso Julgado... 284

1. O princípio ne bis in idem como direito e garantia fundamen-


tais contra a dupla punição, contra a arbitrariedade punitiva... 284
2. Seria contraditório com a ratio de garantia política do ne bis
in idem invocar o caso julgado para impedir a aplicação de
uma lei penal mais favorável 285
3. Conclusão: o caso julgado em si mesmo não tem dignidade
constitucional; quando é assumido constitucionalmente (CRP,
art. 29.°, n.° 5), é-o na função de garantia jurídico-penal do
cidadão, razão pela qual nunca conflitua com o princípio cons-
titucional da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável
C CRP, art. 29°, n." 4-2.a parte) 286
4. O STJ não tinha, pois, razão quando afirmava que «a intangi-
bilidade do caso julgado é princípio constitucional em vigor»... 287
5. Refutação da reducionista perspectiva pancivilística do caso jul-
gado. A distinção material entre caso julgado penal è caso jul-
gado civil 288
6. A distinção entre caso julgado penal (ou análogo) e caso jul-
gado civil (ou análogo) resulta da distinção material entre res-
ponsabilidade penal e responsabilidade civil 291
7. A doutrina e a afirmação da distinção referida no número
anterior 292
8. O STJ esquecia a irrecusável autonomia e especificidade do
caso julgado penal face ao caso julgado civil e, assim, invo-
cava, como fundamentos da sua errónea posição quanto ao
caso julgado penal, razões que só são pertinentes para o caso
julgado civil 295

C) O Princípio da Igualdade (CRP, Art. 13.°, N.° 1-2." Parte):


A Ressalva do Caso Julgado Penal (CP, Art. 2 ° , N.D 4-Parte
Final) — existente antes das Leis N.° 48/2007 e N." 59/2007
Índice-Sumário 27

Págs,
— como Fonte de Injustiça Material Relativa e de Desigual-
dades Evitáveis na Aplicação da Lei Penal Mais Favorável... 296

1. Razão de ordem 296


2. A ressalva do caso julgado provoca desigualdades que, além
de político-criminalmente reprováveis e mesmo contraditó-
rias, são objectiva e desnecessariamente injustas 298
3. O princípio da igualdade não fundamenta a imposição da
retroactividade da lei penal mais favorável; porém, uma vez
consagrada a retroactividade da lex mitior, o princípio consti-
tucional da igualdade proíbe a fixação de limites (como é a
excepção do caso julgado) à sua aplicação retroactiva, os quais
impliquem que situações idênticas sejam tratadas desigualmente 301
4. A doutrina constitucional sobre o princípio da igualdade con-
duz à afirmação da inconstitucionalidade da excepção do caso
julgado estabelecida no n.° 4 do art. 2 ° do Código Penal 302
5. O argumento da necessidade de evitar injustiças relativas, que
constitui um dos principais fundamentos da ultraactividade da
lei intermédia, aplica-se integralmente à negação da meneio- .
nada ressalva do caso julgado 303
6. A doutrina e a recusa da excepção do caso julgado, com fun-
damento na necessidade de evitar injustiças relativas 304

D) Considerações Processuais 305

1. A questão-de-facto mantém-se intacta; há apenas que deter-


minar quais os efeitos jurídico-penais resultantes da entrada em
vigor da L.N. mais favorável 305
2. Reabertura do processo para a re-determinação da pena concreta 308
3. Referência à condenação em pena de multa 309

E) Apreciação Critica da Posição de Figueiredo Dias/Costa Andrade 312

II. A Situação a partir de 15 de Setembro de 2007, data da


entrada em vigor da actual 2." parte do n.° 4 do art. 2." do CP,
e do art. 371.°-Á do CPP: aplicação retroactiva da lei penal
mais favorável, mesmo que já tenha transitado em julgado a
sentença condenatória 318

A) Síntese das considerações feitas, no anterior n.° I, e das con-


clusões delas resultantes 318
" í,
1. As penas príBcipais 318
28 Sucessão de Leis Penais

2. As penas acessórias e as medidas de segurança não privativas


da liberdade aplicáveis a imputáveis 321
3. Aplicação retroactiva oficiosa 321
4. Redução proporcional à redução da pena legal 322
5. Os efeitos da pena 322
6. As penas de substituição 322

B) A solução estabelecida pela Lei n.° 48/2007 e pela Lei


n.° 59/2007 323
1. A solução dada pela Lei n.° 59/2007 323
2. A solução dada pela Lei n.°- 48/2007 324

C) Apreciação crítica da solução radical da plena retroactividade


de qualquer lei penal mais favorável, estabelecida pelo
art. 371."-A do CPP 326
1. A alteração das penas de substituição 326
2. Crítica da extensão a estas penas de substituição (sobrecarga
dos tribunais) 327
3. A necessidade de respeitar o princípio da igualdade 328
4. O esquecimento dos efeitos da condenação numa determinada
pena 335
5. Esboço de uma proposta legislativa 1 336

D) Apreciação crítica da posição de Paulo Pinto de Albuquerque 339

2." PARTE

A SUCESSÃO D E LEIS PROCESSUAIS PENAIS


MATERIAIS E O PRINCÍPIO D A APLICAÇÃO
DA LEI PENAL FAVORÁVEL

1." CAPÍTULO
A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEI PENAL
FAVORÁVEL À SUCESSÃO DE NORMAS PROCESSUAIS
PENAIS MATERIAIS (JURISDICIONAIS, PROCESSUAIS
E DE EXECUÇÃO DA PENA)

I. Especificidade e Autonomia do Direito Processual Penal 347


1. A doutrina e jurisprudência tradicionais restringiam o pro-
blema do conflito temporal de leis penais ao direito penal
denominado material 347
Índice-Sumário 29

Págs.
2. A mesma doutrina e jurisprudência afirmavam o princípio da
aplicação imediata (tempus regit actum) para as normas juris-
dicionais, processuais e de execução das penas 347
3. A consciência jurídico-política e político-criminal vai, pro-
gressivamente, pondo em causa a doutrina tradicional 348
4. Remissão para a prescrição do procedimento criminal. 349
5. A distinção estrutural e funcional entre o direito e processo
penais e o direito e processo civis 350

BE. Normas Processuais Penais Materiais e Normas Processuais


Penais Formais . 351

1. O menosprezo das razões jurídico-política e político-criminal


da aplicação da lei penal favorável e a aplicação indiscrimi-
nada do princípio da aplicação imediata às normas processuais
penais 351
2. A persistência do seguinte vício metodológico: partir de argu-
mentos formais e superficiais para decidir da natureza jurí-
dica (material ou processual) das normas penais, e deduzir,
formal e conceitualisticamente, desta qualificação a afirma-
ção do princípio da aplicação da lei favorável ou da aplicação
imediata.,.; 352
3. Contra a superficial e conceitualístico-formalista perspectiva tra-
dicional está em crescendo uma corrente que acolhe uma cri-
teriosa perspectiva material 358

HL À Sujeição das Normas Processuais Penais Materiais ao Prin-


cípio Constitucional da Aplicação da Lei Penal Favorável:
proibição da retroactividade desfavorável e imposição da
retroactividade favorável 362

1. A ratio jurídico-política de garantia do cidadão determina a


aplicação da proibição da retroactividade desfavorável às nor-
mas processuais penais materiais; a ratio político-criminal
conduz à aplicação retroactiva das normas processuais penais
favoráveis 362
2. Conclusão: os princípios da proibição da retroactividade des-
favorável e da imposição da retroactividade favorável {CRP,
art. 29.", CP, àrt. 2.", n.° 4, CPP, art. 371."-A) aplicam-se às
normas processuais penais materiais 364
30 Sucessão de Leis Penais

Págs.
3, A conclusão referida, no número anterior, é corroborada pela
doutrina jurídico-constitucional 365

IV. Tempus Delicti (CP, Art. 3.°) 368

1. É fulcral e decisiva a determinação do tempus delicti, para


garantir o cumprimento da ratio de segurança jurídico-indi-
vidual que também se afirma relativamente às normas pro-
cessuais penais materiais desfavoráveis 368
2. A questão do tempus delicti, relativamente às normas proces-
suais penais materiais, tem sido ignorada pela doutrina 369
3. Pressupostos da existência de um verdadeiro conflito tempo-
ral de normas processuais penais materiais 370
4. O momento-critério da determinação da lei (norma) competente
é o tempus delicti 371
5. Recusa da pretensão de situar o momento-critério no momento
em que se inicia o processo 372
6. É preciso desfazer o equívoco em que a doutrina tem caído e
que se traduz no seguinte: confundir o problema da fixação do
termo a quo da contagem do prazo com o problema — intei-
ramente diferente — da determinação da lei processual penal
material competente (aplicável) 374
7. Demonstração do equívoco apontado no número anterior 376

2.° CAPÍTULO

APLICAÇÃO D O PRINCÍPIO D A LEI PENAL


FAVORÁVEL À SUCESSÃO DE LEIS
SOBRE A PRESCRIÇÃO

I. Normas Processuais Penais Materiais 379

II. Causas de Interrupção ou de Suspensão da Prescrição 382

3.° CAPÍTULO

APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO D A L E I PENAL FAVORÁ-


VEL À SUCESSÃO D E LEIS
SOBRE A QUEIXA E A ACUSAÇÃO PARTICULAR

I. Pressupostos Processuais (Positivos) da Responsabilização


Penal 385
Índice-Sumário 31

Págs,
II. Crítica da Atribuição de Natureza Exclusivamente Processual 387

HL Passsagem de Crime Público a Semipúblico (ou Particular) e


vice-versa ; 389

IV. Distinção entre Direito de Apresentação da Queixa e Direito


de Desistência da Queixa: Condição de Procedibilidade; Causa
de Extinção do Processo 389

1. A minha posição : 389


2. Apreciação crítica das divergências, existentes na jurispru-
dência, sobre esta matéria 391

V. Termo a quo da Contagem do Prazo 407

VI. Oposição à Desistência da Queixa 409

4.° CAPÍTULO

PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA DO ARGUIDO


(CRP, ART. 32.°, N.° 2) E PRISÃO PREVENTIVA
(CRP, ART. 28.°, E CPP, ARTS. 191.° E SEGS.)

I. Motivação e Objecto do Capítulo.


Razão de ordem e remissão para o 1." capítulo; a sucessão de leis
sobre a prisão preventiva (pressupostos, prazos, termos da con-
tagem, etc.) rege-se pelo princípio da aplicação da lei mais favo-
rável: proibição da aplicação retroactiva da lei desfavorável e
imposição da retroactividade da lei favorável ao arguido 411

II, Refutação de uma Possível Objecção à Aplicação Retroactiva


de L J í . que Encurte o Prazo da Prisão Preventiva 412

HL Do Desvirtuamento da Função Processual da Prisão Preven-


tiva à Neutralização do Princípio Constitucional da Presunção
de Inocência do Arguido e, consequentemente, à Violação
«Ope Legis» ou «Ope Judieis» do Direito da Liberdade Indi-
vidual...., 417

1. A necessidade de resistir ^..tentação de transformar, na prá-


tica, a prisão preventiva num. meio de intimidação ou numa
expiação antecipada da pena 417
32 Sucessão de Leis Penais

Págs.
2. A inconstitucionalidade da prisão preventiva «ope Iegis» 420
3. O prazo limite da prisão preventiva é absoluto. Assim, a
libertação não pode ficar dependente da prestação de caução.
De igual modo, é inconstitucional estabelecer a prisão pre-
ventiva como alternativa à não prestação de caução, quando tal
resulta da incapacidade económica do arguido em prestá-la 423

IV. Dever de reparação dos danos causados por prisão preven-


tiva injustificada 423

1. Evolução do regime-legal 423


2. Inconstitucionalidade das alíneas b) (exigência de erro) e c)
(dualidade de absolvições) do n.° 1 do art. 225." do CPP...... 429
3. Propostas 431

BIBLIOGRAFIA 433
INTRODUÇÃO

I. Legisprudência e Jurisprudência

1. O jurista que, com atenção e conhecimentos especializados,


analisar a jurisprudência penal, notará que, por vezes, as decisões
judiciais não respeitam os princípios fundamentais da dogmática jurf-
dico-penal e da política criminal. O esquecimento destes princípios
traduz-se, não raramente, na lesão prática dos direitos individuais
que aqueles princípios visam garantir.
Poderá haver a tentação de imputar, exclusivamente, a respon-
sabilidade por tais decisões aos magistrados. Mas uma tal respon-
sabilização teria tanto de unilateral como de injusto. É que, para
além da responsabilidade que também cabe à doutrina, parece-me
que a maior quota pertence ao legislador.

2. Não pode haver uma jurisprudência penal justa e eficaz,


se esta — a Jurisprudência — não for precedida de uma legispru-
dência.
Legisprudência pressupõe e significa bom senso, racionalidade
jurídica, coerência normativa, domínio da dogmática e da técnica
legislativa em geral e do ramo do direito em que o legislador inter-
vém em especial, rigor e precisão linguística — o que exige domí-
nio da estrutura e da semântica da língua. Digamos que, tal como
a jurisprudência — aplicação da lei —, também a legisprudência
— criação da lei — pressupõe a virtude prática da «prudência», isto
34 Sucessão de Leis Penais

é, pressupõe uma «arte» e uma «sabedoria», ou, se preferirmos, uma


técnica legislativa (') e um saber jurídico.

3. Ora, legisprudência é o que, efectivamente, não tem acon-


tecido entre nós. A míope mundividência tecnocrática do nosso
tempo, com a sua arrogante e «pragmática» autosuficiência, tem con-
tribuído, decisivamente, para o caos legislativo e, consequentemente,
para uma baixa da qualidade da justiça penal.
As leis multiplicam-se, irracionalmente; atropelam-se, contradi-
zem-se e, deste modo, se neutralizam; à codificação reflectida, par-
ticipada, unitária, coerente e relativamente estável sucede-se a subs-
tituição dos códigos penais com a mesma facilidade como se de leis
extravagantes se tratasse; o casuísmo legislativo impera, com uma pro-
liferação infindável de leis avulsas. Este fenómeno, pelo seu exagero,
desagrega o sistema e corrói a ordem jurídica, especialmente a jurí-
dico-penal, ao mesmo tempo que gera a insegurança jurisprudencial
e a desconfiança do cidadão face ao direito e aos tribunais (2).
Tal procedimento contraria a dignidade e correspondente res-
ponsabilidade do legislador enquanto órgão (função) nuclear do
Estado-de-Direito.

(') Sobre a importância da técnica legislativa para a realização do direito,


ver J. J. GOMES CANOTILHO, Teoria da legislação geral e teoria da legislação penal
— sep. do número esp. do BFDUC «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Eduardo Correia» ( 1 9 8 4 ) ; A . MENEZES CORDEIRO, «Da sistematização das leis como
problema de política legislativa», in Legislação (cadernos de ciência de legislação)
( 1 9 9 3 ) , 7 - 2 4 ; M . A . LOPES ROCHA, « A função de garantia da lei penal e a técnica
legislativa», in Legislação (cadernos de ciência de legislação) ( 1 9 9 3 ) , 2 5 - 4 3 ; H. HILL,
Einfiíhrung in die Gesetzgebungslehre ( 1 9 8 2 ) .
(2) Neste sentido, escreve J . HELLMER, «Bemerkungen zuni strafrechtlichen
Staatsschutz aus der Sicht der Identitãtstheorie», in Gedãchtnisschrift filr Hilde
Kaufman (1986), 752: «O turbilhão das alterações legislativas não só contraria, de
um modo evidente, os princípios fundamentais do Estado-de-Direito, segundo os
quais o cidadão deve conhecer as normas jurídicas, especialmente as do direito
penal, a fim de poder orientar a sua conduta por elas (um direito penal, que o deixe
na escuridão, transforma-se num puro acidente) mas também impede a criação de uma
consciência da identidade. (...) Uma lei que é alterada, frequentemente, perde o seu
carácter ético e induz à convicção de que a sua fundamentação ética é muito super-
ficial».
Introdução 35

Sem querermos ser injustos, a verdade é que parece que os Gover-


nos, especialmente os Ministros da Justiça, parecem fazer da sua assi-
natura num Código Penal um ponto alto da sua passagem pelo Poder;
mas se assim for, estar-se-á diante de uma «vã glória» (vanitas vani-
tatum), pois que logo um dos seus sucessores se encarregará de apa-
gar essa memória, gravando a sua própria num novo código penal.
Poderá também suceder que as Comissões de Reforma não
assumam as suas funções com o sentido de responsabilidade que
estas exigem.
Seja como for, o que parece inaceitável, por prejudicial para o
Direito, para a Sociedade e para o Cidadão, é que amplas reformas
do Código Penal se sucedam a uma velocidade que não permite
— aos cidadãos, e, talvez, nem sequer aos próprios "realizadores" da
justiça penal — a sedimentação/interiorização das respectivas orien-
tações de conduta e dos valores, que são inerentes às normas jurídico-
penais e que constituem a sua razão de ser. Na verdade, o actual
Código Penal de 1982, além de uma multiplicidade de revisões de
alcance limitado, já foi objecto de, pelo menos, três amplas reformas:
a de 1995, a de 1998 e a recente de 2007. E, qual agravante desta
velocidade estonteante ou da falta de cuidado na elaboração dos pro-
jectos, mal esta Reforma de Setembro de 2007 entrou em vigor, logo
o Ministro da Justiça anuncia, segundo refere a comunicação social,
prováveis alterações dos códigos penal e de processo penal, a entra-
rem em vigor, possivelmente, em 2009.

4. O legislador actual parece, pois, ter assimilado, de forma


irracional, a tendência da contemporânea metodologia jurídica, que vai
no sentido da acentuação do discurso juiídico-problemático face ao
monolitismo da anterior dogmática sistemático-dedutiva. Tal salutar
viragem metodológica parece ter sido asssumida por muitos como a
passagem do sistema ao caos, da coerência normativa ao arbítrio, da
justiça ao pragmatismo eficientista.
De forma alguma, tal viragem metodológica pode permitir a
perversão da sua própria ratio, do seu sentido. O que se pretendeu
— e se exige — foi que o Direito, de sistema fechado à realidade pas-
sasse a sistema aberto aos apelos e problemas da vida; partisse des-
36 Sucessão de Leis Penais

tes para a sua elaboração dogmático-científíca; fosse penetrado pela


verdadeira ratio da norma e, assim, cumprisse a função qiie lhe com-
pete: a ordenação clara, coerente, justa e eficaz dos concretos conflitos
que surgem na convivência humana.
A unidade e coerência normativas do sistema jurídico e de cada
um dos seus subsistemas não é obstáculo, bem pelo contrário, é con-
dido sine qua non da justiça e da eficácia do direito. Só a coerên-
cia, só a precisão, a clareza e a adequada publicitação da lei impe-
dirão que esta — a lei — constitua uma «armadilha» para os que têm
menos «competência de acção», isto é, para os mais desfavorecidos
económico-socialmente e, portanto, culturalmente, e que os «hábeis»
encontrem nela (na lei) possibilidades de «manobra», defraudando
a própria ratio legislativa.

5. As críticas proferidas, na cerimónia de abertura do ano judi-


cial em 11 de Janeiro de 1989, por Mário Soares, então Presidente
da República, e por Cunha Rodrigues, Procurador-Geral da Repú-
blica, permanecem, infelizmente, válidas.
Precisou o Procurador-Geral da República: o Direito é, «hoje,
uma teia complicada e, em larga medida, inacessível ao comum dos
cidadãos. O' princípio de que a ignorância da lei não aproveita a
ninguém assenta, cada vez mais, numa ficção: a de que os cidadãos
conhecem as regras jurídicas a que devem obediência». «A produ-
ção jurídica distanciou-se das exigências de uma correcta acção
codificadora» e «a perda de rigpr e de coerência dos sistemas jurí-
dicos tomou difícil a interpretação das normas».
Disse o. Presidente da República: a segurança jurídica dos cida-
dãos e a consolidação do Estado Democrático exigem «ainda cui-
dados especiais de clareza, síntese e contenção na produção legislativa
e na publicitação, divulgação e esclarecimento das normas jurídi-
cas, a fim de que o princípio da não invocabilidade da ignorância da
lei possa ter sentido actual e ser respeitado, em benefício dos cida-
dãos e da sociedade».

6. Seja este o lugar para fazer uma referência crítica à figura do


crime continuado, ao limite máximo da pena aplicável ao concurso
Introdução 37

de crimes, e à responsabilidade penal das pessoas colectivas pelos cri-


mes referidos no n.° 2 do artigo 11°, entre os quais se encontram, por
exemplo, os de "maus tratos" (art. 152.°-A), de "violação de regras
de segurança" (art. 152.°-B) e, até, os crimes de "coacção sexual"
(art. 163.°), de "violação" (art. 164.°) e de "abuso sexual"'(arts. 165.°
e 166.°).
Tanto o regime legal punitivo do chamado crime continuado
como o limite máximo da pena aplicável ao concurso de crimes
afrontam o bom senso da comunidade ético-social e são, político-
criminalmente, inaceitáveis. E, no meu entendimento, a mesma
afronta ao bom senso e à razoabilidade político-criminal também é
patente na consagração, legal da responsabilidade criminal-penal das
pessoas colectivas pelos crimes mencionados no n.° 2 do art. 11.°,
alguns dos quais acabei de referir.

. Relativamente ao crime continuado, sempre me pareceram, e


continuam a parecer, inaceitáveis dois pontos.
Em primeiro lugar, acho, político-criminalmente, inaceitável a
consagração legal do regime da "absorção" pura e simples (CP,
arts. 30.°, n.° 2, e 79.°), mesmo que estejam em causa bens jurí-
dicos patrimoniais. Com efeito, a "justificação", que já vem de
Eduardo Correia, e que se reconduz à ideia de que haverá uma
menor censurabilidade na repetição das sucessivas infracções, deve-
ria levar ao regime da exasperação (elevação dos limites mínimo e
máximo ou, pelo menos, do limite máximo) ou, no mínimo dos
mínimos, ao regime da absorção agravada (elevação do limite
mínimo), e não ao sistema de absorção pura e simples, como se, em
termos.de pena abstracta ou legal, as infracções sucessivas fossem
irrelevantes. Pois que, se, em relação às sucessivas infracções, pode
ser legítimo falar de uma progressiva diminuição da culpa, a verdade
é que esta, posto que em diminuição progressiva, não deixa, pura e
simplesmente, de existir (assim, o refere a parte final do n.° 2 do
art. 30°). Donde ser,político-criminalmente (i. é, na perspectiva da
prevenção), inadmissível que, em termos legais (abstractos), a plu-
ralidade de infracções seja tratada como se só uma infracção tivesse
sido praticada.
38 Sucessão de Leis Penais

Em segundo lugar, não se compreende o disposto no n.° 3 do


art. 30°, que se traduz na afirmação legal de que também poderá
haver crime continuado, no caso de «crimes praticados contra bens
eminentemente pessoais», desde que esteja em causa a «mesma
vítima».
É certo que este tem sido o entendimento de grande parte da dou-
trina. Mas esta posição irrazoável, seguida por parte da jurispru-
dência, não desculpa o legislador. Pois que este, além de não ter rejei-
tado, como devia, tal entendimento, ainda foi ao ponto de dar expresso
acolhimento legal a uma tão rejeitável posição. E isto torna-se tão
mais incompreensível quanto é certo que tal acolhimento expresso se
operou numa altura em que a opinião pública (e, neste caso, com
razão) esperava precisamente o contrário: esperava que ficasse legal-
mente claro que, no caso de "bens eminentemente pessoais" (p. ex.,
no caso de abusos sexuais de crianças), não havia possibilidade de
"crime continuado", quer as vítimas fossem diferentes ou se tratasse
da mesma vítima.

Quanto ao limite máximo da pena aplicável ao concurso


de crimes, também o legislador de 2007 andou, no meu entendi-
mento, mal. Na verdade, não parece razoável que, por exemplo,
o limite máximo da pena aplicável a uma pluralidade de homicí-
dios qualificados (CP, art. 77.°, n.° 2) seja igual ao limite máximo
da pena aplicável a um homicídio qualificado (CP, art. 132.°,
n.° 1). Prevendo a lei para um determinado crime uma certa pena,
não parece razoável que a pena legal estabelecida para uma plu-
ralidade de comissões (seja em concurso real ou ideal) deste mesmo
crime tenha o mesmo limite máximo. Se o legislador entende que
nunca, em hipótese alguma, pode ser aplicada uma pena superior
a 25 anos de prisão, então não deveria nunca estabelecer para um
crime, por mais grave que ele o seja, uma pena com o limite
máximo de 25 anos de prisão. É que, ao estabelecer b mesmo
limite máximo quer esteja em causa um só crime ou vários crimes,
está, precisamente em relação aos mais graves dos crimes, a con-
sagrar o recusável sistema da pura e simples absorção, quanto ao
limite máximo.
Introdução 39

Façamos, agora, algumas considerações sobre a inovação legis-


lativa (art. 11°, n.° 2) que alargou a responsabilidade penal das pes-
soas colectivas a crimes, como, por exemplo, de coacção sexual ou
de violação.
É do conhecimento geral que, desde a substituição do Absolu-
tismo Real pelo Estado de Direito, um dos princípios fundamentais
do Direito Penal era o princípio da pessoalidade/individualidade da
responsabilidade penal.
A evolução económico-social levou, porém, a que, a partir de
meados do séc. XX, se começasse a sentir a necessidade de tam-
bém responsabilizar punitivamente as pessoas colectivas, para além
da sua normal responsabilidade civil.
Neste sentido, entendeu-se que o instrumento adequado, para
tal responsabilização punitiva, era o, então embrionário, "Direito de
Ordenação Social". Foi este, entre outros factores (entre os quais se
destacou a necessidade de evitar uma hiper-criminalização, bem como
a de retirar do direito penal as contravenções que não tivessem a
suficiente "dignidade penal"), o que levou à criação das chamadas (por
"inspiração" alemã) contra-ordenações, ou seja, do Direito de Orde-
nação Social.
Sucedeu, porém, que, nos anos oitenta do séc. XX, surgiram
vozes a clamar que o Direito de Ordenação Social não era suficiente
para prevenir e punir os comportamentos ilícitos no âmbito das pes-
soas colectivas, nomeadamente no campo empresarial. E, se vários
autores o começaram a pensar (no nosso, como em vários outros
países), logo, de seguida, se começou a pensar na ultrapassagem,
por antiquado, do (princípio da exclusividade da responsabilidade
penal individual (societas non delinquere potest). Havia que criar,
também para as pessoas colectivas, a responsabilidade criminal-penal.
Pareceu a estes autores que, afinal, o punitivo Direito de Ordenação
Social não era suficiente, apesar de as coimas e de as sanções aces-
sórias contra-ordenacionais serem, materialmente, tão (caso das san-
ções acessórias) ou mais (caso das coimas) gravosas que as sanções
penais (pois que não se pode meter na prisão uma construção, uma
"ficção" jurídica, isto é, uma pessoa colectiva); e apesar de já exis-
tir a responsabilidade penal por "actuação em nome de outrem".
40

Uma vez "feita a aposta" na criação da responsabilidade penal das


pessoas colectivas, houve que, a todo o custo, "vencer" as dificulda-
des colocadas pelas irrenunciáveis, para um Direito Penal que pretenda
"salvar a face", questões da acção e da culpa. Mas, quando se entra
no caminho das "ficções", não há problema que se não resolva: e,
assim, fabricaram-se construções dos conceitos _de acção e de culpa
(ético-penal) que, na minha opinião, são muito pouco consistentes.
Dito isto, a título de introdução à "nossa" novidade da respon-
sabilidade criminal/penal das pessoas colectivas por crimes como os
de abuso sexual ou de violação (CP, art. 11°, n.° 2), tenho apenas que
dizer que para mim (como para outros que sempre consideraram a
criação da responsabilidade penal das pessoas colectivas como arti-
ficiosa, dogmática e político-criminalmente inconsistente e mesmo
contra natura, para além de, social e economicamente, desnecessá-
ria) se trata somente de mais uma (infeliz) inovação, que vem na í=-
È
sequência do caminho iniciado pelo "pecado original" da consagra-
ção legal da responsabilidade criminal/penal das pessoas colectivas.
Para aqueles que viram na criação da responsabilidade penal
das pessoas colectivas a grande "arma" contra os ilícitos bometidos
no âmbito destas, penso que apenas se terão que resignar, por muito
que, porventura, lhes desagrade esta inovação da responsabilidade
penal das pessoas colectivas por crimes como os de "abuso sexual"
ou "violação".
Uma palavra final sobre esta inovação legislativa de 2007 e os
chamados "crimes de mão própria".
Costuma dar-se a seguinte definição de crimes de mão própria:
são aqueles crimes em que autor só pode ser a pessoa que, por si
mesma, tenha executado a respectiva acção típica. E, como exem-
plos desta tradicional categoria de crimes, destacam-se certos crimes
sexuais (abuso sexual, violação, etc.).
Vários Autores (2"A) acolhem, ainda hoje, esta categoria de cri-

P - A ) p o r exemplo, FIGUEIREDO D I A S , Direito Penal — Parte Geral, tomo I,


Coimbra Editora, 2004, p. 288, onde, claramente, defende a categoria dos ditos cri-
mes de mão própria, definindo-os da seguinte forma: são «os dpos de ilícito em que
Introdução 41

mes ditos de "mão própria". Figueiredo Dias, por exemplo, escreve


que o regime especial destes crimes reside 110 seguinte: só podem ser
considerados autores destes crimes «aqueles que levam a cabo a
acção através da sua própria pessoa, não através de outrem»; e, logo
a seguir, afirma, consequentemente, que, nestes crimes, não é possí-
vel a autoria mediata, nem a co-autoria relativamente àqueles com-
participantes que não tenham chegado a executar por próprias mãos
a conduta típica.
A minha posição relativamente a estes ditos "crimes de mão
própria" está desenvolvida em Direito Penal, Parte Geral — Teoria
Geral do Crime, vol. II, 2004, págs. 83-96. Aí, procuro demonstrar
que esta tradicional categoria dos chamados "crimes de mão pró-
pria" não tem qualquer autonomia dogmática, nem qualquer justifi-
cação político-criminal; e defendo que também nestes crimes, que, tra-
dicionalmente, foram englobados nesta categoria supostamente
autónoma, são possíveis as diferentes espécies de autoria: autoria
mediata, co-autoria e instigação, bem como a própria comissão por
omissão.
Relacionando o tema da responsabilidade penal das pessoas
colectivas por crimes sexuais com o tema dos ditos "crimes de mão
própria", a minha posição é clara: quanto ao primeiro tema, acho
criticável uma tal responsabilidade (responsabilizados penalmente
serão, natural e obviamente, os dirigentes e/ou os responsáveis direc-
tos que forem considerados culpados por acção ou omissão própria),
pois que entendo que a responsabilidade penal das pessoas colectivas
é in se recusável, por princípio e por desnecessidade social; relati-
vamente ao tema dos chamados "crimes de mão própria", entendo que

o preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles que levam a cabo a
acção através da sua própria pessoa, não através de outrem», e dando como exem-
plos os «arts. 165." e 166.": só quem pratica, por si mesmo, o acto sexual incrimi-
nado pode ser considerado autor».
Observe-se, porém, que este Autor, na 2." edição, de 2007, págs. 305, 771
e seg., 852 e seg„ atenuou muito a sua posição, parecendo reconhecer a inconsis-
tência dogmática e, sobretudo, a ausência de legitimação político-criminal para o tra-
tamento especial destes acriticamente assumidos (por muitos autores) e ditos "crimes
de mão própria" — tratamento que tem tanto de especial como de injustificado.
42 Sucessão de Leis Penais

não constituem qualquer categoria especial, podendo ser praticados por


uma pessoa individual, sob qualquer forma de autoria (mediata,
co-autoria ou instigação) e por omissão.
Já, em relação aos autores que defendem a responsabilidade
penal das pessoas colectivas e, simultaneamente, só aceitam a auto-
ria directa ("por mãos próprias") em certos crimes sexuais, terão que
resolver a seguinte contradição: como se pode negar a responsabili-
dade penal (a título de autor mediato, co-autor ou instigador) do
vigilante directo da criança ou adolescente, vigilante que, p. ex., ins-
tiga outra pessoa a abusar do menor (ou "fecha os olhos" aos actos
de abuso sexual praticados sobre este menor) e, ao mesmo tempo, afir-
mar a responsabilidade penal da respectiva pessoa colectiva pelo
crime de abuso sexual ou de violação cometido sobre esse menor?...

II. Desorientação face aos Princípios da Aplicação da Lei Penal


no Tempo

1. No domínio específico e nuclear da sucessão de leis penais,


a confusão, as hesitações e as contradições do legislador e dos tri-
bunais são relativamente frequentes.
É certo que tanto o legislador como os tribunais afirmam a sua
fidelidade, de princípio, às exigências da proibição da retroactivi-
dade da lei penal desfavorável. Mas tal «declaração de fé» é clara-
mente insuficiente e não chega para proteger, eficazmente, os cida-
dãos nos seus direitos fundamentais. Como diz A . S P O T O W S K I ( ) , 3

«o reconhecimento da proibição da retroactividade em si diz pouco;


decisivo é, antes, como esta proibição é entendida e aplicada».

2. É, precisamente, o exacto entendimento e correspondente


aplicação prática dos princípios jurídico-penais e jurídico-consti-
tucionais sobre a eficácia temporal da lei penal que tem sido menos-
prezado pela doutrina e pelo legislador, com a consequente viola-
ção desses princípios, na prática jurisprudencial.

(3) «Das Riickwirkungsverbot im polnischen Recht», in Festschrift fur Jescheck


zum 70. Geburtstag 1. Hb, Beriin: Dtmcker § Humbiot (1985), 236.
Introdução 43

HL Relevância Teórieo-Prática do Problema da Vigência Tem-


poral da Lei Penal

1. É indiscutível e indiscutida a importância nuclear do princí-


pio da legalidade e dos seus corolários: nullum crimen nulla poena
sine lege scripta (lei em sentido formal), sine lege praevia (proibi-
ção da retroactividade da lei penal desfavorável), sine lege precisa
(tipicidade, cognoscibilidade objectiva ou determinabilidade), sine
lege stricta (proibição da aplicação analógica desfavorável) ( 4 ).
A fundameníalidade jurídico-política e jurídico-penal deste prin-
cípio radica na necessidade, demonstrada pela experiência histórica,
de preservar a dignidade da pessoa humana, pedra angular do
Estado-de-Direito, frente ao exercício ilegítimo e arbitrário do «ius
puniendi» (5). É que mesmo o Estado dito de Direito não está imune

(4) Sobre o originário entendimento iluminista do princípio da legalidade


penal, cuja formulação latina —, «nulla poena sine lege, nulla pena legalis sine cri-
mine, nullum crimen sine poena legali» — é devida a FEUERBACH, e sobre o
entendimento actual que atribui à mesma fórmula quase inalterada uma intenção
normativa diferente, ver o recente e precioso estudo de A . CASTANHEIRA NEVES,
O Princípio da Legalidade Criminal: o seu Problema Jurídico e o seu Critério Dog-
mático.
Relativamente aos quatro corolários do princípio, convém referir que, embora
seja, hoje, inegável a sua complementaridade e interdependência — no sentido de
que só a eficácia cumulativa de todos eles possibilita o cumprimento da sua ratio
de garantia política —, não se deve todavia, esquecer, numa perspectiva histórica,
que eles não tiveram o mesmo objectivo imediato nem se afirmaram simultaneamente.
— Cf. VOLKER KREY, Keine Strafe ohne Gesetz, Berlin-New Jork: W . Gruyter
(1983), 1 e 129-139.
(3) Assim, CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito Penal Português (1981), 90-128;
EDUARDO CORREIA, Direito Criminal I (1971), 129-163; ID., O Princípio da Lega-
lidade..., 7-8 e 10-53; FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal — sumários das lições à
2." t. do 2." ano da Faculdade de Direito de Coimbra 1974/75 (policopiado), 89-94;
CASTANHEIRA NEVES, Direito Penal — sumários das lições à 1." t. do 2." ano da
Faculdade de Direito de Coimbra 1974/75 (policopiado), 101-111; ID., O Princí-
pio... (n. 4), 7-8 e 10-53; J. SOUSA E BRITO, A Lei Penal na Constituição — sep. de
«Estudos sobre a Constituição», 2.° v., Lisboa: Petrony (1978), 197-254; H.-H. JES-
CHECK, Tratado de Derecho Penal — P.G., 1." v. — trad. de S. Mir Puig e
F . Munoz Conde — Barcelona: Bosch (1981), 171-189; PHILIP KUNIG, in Grundge-
setz-Konmientar, Bd. 3, 2. Auíl., Munchen: Beck (1983), 676-693; R. SCHMITT,
«Der Anwendungsbereich von § 1 Strafgesetzbuch (Art. 103/Abs. 2 Grundgesetz)»,
44 Sucessão de Leis Penais

à tentação de utilizar o «direito de punir» em função dos seus objec-


tivos de poder político.
Foi esta necessidade de prevenir a instrumentalização da pes-
soa humana — cujos direitos fundamentais são afectados pelas san-
ções penais — que levou à consagração universal e já bicentenária
do princípio da legalidade penal «como elemento fundamental do
Estado-de-Direito e parte integrante da nossa consciência jurídico-
-penal» ( s ).

2. Assim se justifica, plenamente, a consagração do princípio da


legalidade penal nas mais destacadas e universais Declarações de
Direitos Humanos (7), a sua elevação à dignidade constitucional (8)
e a sua colocação à cabeça dos mais recentes Códigos Penais (9).

224; K R E Y (n. 4); RODRIGUEZ MOURULLO, Derecho Penal P.G., Madrid: Civitas
(1977) 9: o princípio da legalidade penal nas suas quatro exigências é «consubstancial
ao Estado-de-Direito»; J. CEREIO M I R , Curso de Derecho Penal Espaiíol — P.G., I,
Madrid: Tecnos (1976), 156: «... um dos pilares fundamentais do direito penal libe-
ral e utn expoente do Estado-de-Direito»,
( 6 ) MEZGER apud C . N E V E S , Direito Penal... (n. 5 ) , 1 0 3 .
(7) Constituição de Maryland (1776), arts. 14 e 15; Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão (1789), art. 8.°; Declaração Universal dos Direitos do
Homem (1948), art. 11°; Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950), art. 7 °
(8) Constituição da República Portuguesa, art. 29°; Constituição da Alema-
nha Federal (Grundgesetz), art. 103-il; Constituição Espanhola, art. 2 5 . ° - l C o n s -
tituição Italiana, art. 25°
(3) Assim, Código Penal Português de 1982, arts. 1° e 2 ° — Lê-se na «Acta
da 2." sessão da comissão revisora do Anteprojecto da Parte Geral», in BMJ, 140
(1964), 272: O princípio da legalidade penal «é uma pedra angular de todo o Código
Penal e fica bem, portanto, à cabeça deste».
— Quanto à data (designação), entendo que é mais correcto designar o CP
vigente por Código Penal de 1983, pois que foi em 1 de Janeiro de 1983 que ele
entrou em vigor e é esta data que deve ser considerada decisiva. Também o CP ale-
mão vigente é designado por Código de 1975 por ter entrado em vigor em 1
de Janeiro de 1975, apesar de a lei que o aprovou ter sido publicada em 2 de Março
de 1974. Todavia, passo a designá-lo por CP de 1982, apenas para evitar confusões,
uma vez que ele é quase sempre referido por CP de 1982.
CAVALEIRO DE FERREIRA (n. 5), 87: «É no princípio da legalidade, que encima
os princípios regedores do Direito Penal, que se verifica mais expressivamente a defesa
do homem concreto e dos direitos que ao homem em si mesmo se reportam».
— Código Penal Alemão (StGB) de 1975, §§ 1 e 2.
— Código Penal Suíço (apesar de datar de 1937), art. 2.
Introdução 45

3. Mas — como já salientámos e mais profundamente demons-


traremos — uma coisa é a afirmação teórica do princípio, outra a sua
efectiva concretização. Na verdade, a doutrina, o legislador e a juris-
prudência têm-se bastado e têm descansado à sombra do reconheci-
mento teórico universal, da consagração constitucional e jurídico-penal
do referido princípio, acabando por se esquecer de analisar, apro-
fundadamente e em todas as suas dimensões, o princípio numa pers-
pectiva jurídico-material teleológica. Só esta perspectiva é capaz
de conduzir à determinação rigorosa das múltiplas implicações do
princípio, tanto a nível do direito penal substantivo como do direito
penal processual. Só uma perspectiva material jurídico-constitucional
e político-criminal impedirá que o princípio da legalidade seja, fre-
quentemente, iludido pelo legislador e pela jurisprudência, acabando
por ficar reduzido a uma pura garantia formal ( 10 ).

IV. A Falta de Legisprudência e a Inexistência de uma Teoria


Geral da Sucessão de Leis Penais como Factores da Seguinte
Contradição: apesar do reconhecimento da grande importân-
cia teórico-prática dos princípios da aplicação da lei penal no
tempo, não.são raras as violações destes na práxis legislativa e
jurisprudencial

V e j a m o s quais as principais causas desta perigosa contradição

1. Dinâmica social e dinâmica legislativa. — A celeridade das


mutações económico-sociais e culturais do tempo presente conduz,
naturalmente, a uma certa instabilidade das leis, procurando estas
adequar-se às novas realidades. Compreensível é, portanto, uma
razoável dinâmica legislativa que se traduza na captação normativa
dos aspectos novos e relevantes da vida social.

( I0 ) Assim, entre outros, G.-A. MANGAKIS, «Uber die Y/irksamkeit des Satzes»
nulla poena sine lege», in ZStW (1969), 997-9 e 1006.
— Se nos tivéssemos contentado com um simples reconhecimento formal,
não atendendo à sua verdadeira ratio material, então as medidas de segurança ainda
não estariam sujeitas aos princípios da legalidade e da jurisdicionalidade (CRP,
art. 29.°, e CP, arts. l.°-2. e 2.°-l.).
46 Sucessão de Leis Penais

Mas é, precisamente, nestes tempos de rápida mutação social,


com a correspondente mutação legislativa, que os princípios que
regem a sucessão de leis penais, ao mesmo tempo que revelam a
sua importante função ( n ) , mais riscos correm de ser violados.
O desrespeito destes princípios traduz-se na violação dos direi-
tos fundamentais, mesmo que sob a capa da legalidade formal e com
o pretexto dos «superiores interesses do Estado».
Os riscos, que o cidadão corre nesta situação de acelerada muta-
ção social, são potenciados quando à natural dinâmica político-legis-
lativa acresce a não natural falta de legispradência e de jurisprudên-
cia no autêntico, originário e rico sentido desta expressão, isto é, a
falta de uma clara consciência — por parte do legislador e de alguns
magistrados — das verdadeiras implicações práticas do princípio da
legalidade.
É preciso acentuar: se a dinâmica social determina a dinâmica
legislativa, não determina, porém, nem muito menos justifica a pre-
cipitação, o voluntarismo e a inconsciência do legislador e do julgador.

2. Inexistência de uma teoria geral da aplicação da lei penal


no tempo. — É um facto que não existe um levantamento tenden-
cialmente abrangente dos múltiplos problemas que esta matéria coloca
e, consequentemente, não há um tratamento unitário e sistematicamente
coerente dos respectivos problemas e das implicações práticas decor-
rentes dos princípios reconhecidos jurídico-penalmente e jurídico-
-constitucionalmente (12).

(u) Assim, CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, 2 ° v., Lisboa:


Danúbio ( 1 9 8 6 ) , 5 2 : O problema da aplicação da lei penal no tempo «é, actual-
mente, extremamente importante, dada a instabilidade das leis. Têm variado em ritmo
cada vez mais rápido as leis penais e processuais de modo que diferentes incrimi-
nações ou diferentes penalidades ou ainda diferentes causas de extinção da respon-
sabilidade penal, podem colidir, na pretensão da sua aplicabilidade em razão do
princípio da retroactividade da lei penal mais favorável ao delinquente». — Também,
JESCHECK ( n . 5 ) , 1 0 8 ; SPOTOWSKY ( n . 3 ) , 2 3 5 .
(12) Tal inexistência é também reconhecida e criticada por R . SCHMITT (n. 5 ) ,
223, e H . - L . SCHREIBER, «Zur Zulãssigkeit der riickwirkenden Verlangerung von
Veijãhrungsfristen friiher begangener Delikte», in ZStW ( 1 9 6 8 ) , 3 5 1 . Ambos criti-
cam o facto de a literatura jurídico-penal não ter dedicado a devida atenção à rele-
Introdução 47

Esta inexistência, esta lacuna doutrinal (13) está associada e


resulta da difundida e simplista visão que reduz, acriticamente, b
problema do conflito temporal das leis penais às normas do direito
penal material e, dentro destas, ao preceito sancionatório. .
A doutrina em geral — e, na sua peugada, a jurisprudência —
tem esquecido o problema da sucessão de leis penais processuais de
conteúdo material (14), tem negligenciado o problema da sucessão de
leis que se traduz na alteração da constituição da hipótese legal, tem
desvirtuado o conceito de contravenção, está a adulterar o conceito
de contra-ordenação, e tem confundido a ratio do caso julgado penal
com a do caso julgado civil ou administrativo, oferecendo, em con-
sequência desta confusão, uma injustificada e inconstitucional resis-
tência à plena retroactividade da lei penal mais favorável.
É caso para dizer que é diante das «evidências» que devemos ser
mais cautelosos. O que parece como evidente acaba, muitas vezes, por
não ser racionalizado, vindo a perder-se o verdadeiro sentido e a exigência
prática do princípio tido como evidente. É isto mesmo que se tem pas-
sado com a vigência temporal da lei penal: a injustificada redução da com-
plexidade e da variedade dos problemas que tal matéria comporta.
De tudo resulta a urgência de um esforço da doutrina, do legis-
lador e da jurisprudência no sentido de clarificar a ratio do princí-
pio da legalidade, nomeadamente na sua vertente temporal, e de pre-
cisar, da forma mais nítida possível, o regime que ela impõe.

V. Motivação, Objecto e Método da Presente Investigação

1. A motivação inicial foi o sentimento (pré-compreensão?)


jurídico de que a excepção (o limite) do caso julgado ao princípio da

vância das questões práticas levantadas pela aplicação da lei penal no tempo e
salientam a necessidade de um debate sobre a verdadeira ratio das disposições cons-
titucionais sobre esta matéria.
(13) Referimo-nos à inexistência de uma como que teoria geral e não à abor-
dagem isolada de alguns aspectos do problema, pois que, como veremos na altura
própria, algumas dimensões desta complexa questão têm sido estudadas.
( w ) No âmbito processual penal, o problema tem-se limitado, praticamente, aos
prazos de prescrição do procedimento criminal.
48 Sucessão de Leis Penais

retroactividade da lex mitiar (CP 1886, art. 6.°, 2.a-parte final; CP


3982, art. 2.°, 4.-parte final) provocava, injustificadamente, situações
de clamorosa injustiça material relativa e violava a Constituição
{CRP, art. 29.°, 4.-2." parte) ( I5 ).
Do sentimento jurídico — que desempenha um papel algo seme-
lhante ao que cabe à imaginação no domínio das ciências naturais —
havia que passar à reflexão racional, em ordem à confirmação, ou não,
daquela pré-compreensão: é a indispensável fase da racionalização
jurídica (!6).
Iniciada a investigação com aquele objectivo limitado, senti a
conveniência de alargar, consideravelmente, o âmbito da investi-
gação.

2. O objecto desta monografia analisar-se-á em duas partes: a


primeira versa a validade ou eficácia temporal das normas jurí-
dico-penais; a segunda parte debruça-se sobre a aplicabilidade do
princípio da lei favorável às normas que, embora vulgarmente con-
sideradas pertencentes ao direito processual penal, condicionam a
questão decisiva da responsabilidade penal (queixa e acusação par-
ticular; prescrição do procedimento criminal) ou conflituam directa-
mente com os direitos fundamentais do cidadão e com o princípio

( 1 5 ) É , desde há muito, esta a minha opinião: cf. TAIPA DE CARVALHO, Sumá-


rios das Lições de Direito Criminal 1981/82, Universidade Católica Portuguesa
— Curso de Direito no Porto, p. 85.
(16) Sobre a importância e o papel da «pré-compreensão» ou «sentimento
jurídico» e sobre a necessidade e indispensabilidade da racionalização jurídica, ver
J. ESER, Vorverstãndnis und Methodenwahl in der Rechtsfindung, 1972, p. 171 ss.;
G . ZACCARIA, VArte dell'Interpretazione, Padona: Cedam, 1990, p. 22 ss.: Á pré-com-
preensão «não é um conceito metodológico», mas sim um «início da compreensão
jurídica» e, portanto, carece da racionalidade metódica da argumentação jurídica;
J. FARIA COSTA, O Perigo em Direito Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 140:
«a pré-compreensão é a mera mas essencial situação ou estádio, juridicamente esta-
bilizado, que nos (pro)jecta para a lei (texto legai), para os princípios normativos e
mesmo para a própria unidade sistemática»... p. 140, 148,162: a pré-compreensão
é circular mas não viciada; círculo, pois é ponto de partida e de chegada, mas não
fechado pois passa (deve passar) pela racionalização (argumentação) jurídica; PAS-
CAL, Pensées: «São dois excessos igualmente perigosos: excluir a razão e admitir ape-
nas a razão».
Introdução 49

constitucional da presunção de inocência do arguido até ao trânsito


em julgado da sentença condenatória (prisão preventiva).

3. Quanto ao método, seguirei três parâmetros que, nesta maté-


ria do princípio da legalidade penal, não podem ser esquecidos: o his-
tórico, o político-criminal e o jurídico-constitucional.

YI. Apreciação Crítica de algumas Decisões Judiciais

Entre a primeira edição (1990) desta monografia sobre a «suces-


são de leis penais» e a sua actual revisão, parece relativamente nítida
uma crescente atenção e preocupação dos tribunais em concretizarem
as implicações da ratio do princípio da aplicação da lei penal favo-
rável, integrando neste princípio também as normas processuais penais
materiais.
Apesar desta preocupação, é natural que continue a haver deci-
sões judiciais merecedoras de crítica.

1. Pela agitação provocada nos meios jurídicos e económico-


-sociais, merece destaque a polémica desencadeada pelo Dec.-Lei
n.° 454/91, de 28 de Dezembro,
Desde a entrada em vigor deste diploma legislativo, em 29
de Março de 1992, até à publicação do «acórdão de fixação de juris-
prudência obrigatória», em 7 de Abril de 1993 ( l7 ), multiplicaram-se
as posições dos interessados em manter a penalização dos cheques sem
provisão, emitidos antes da entrada em vigor do referido decreto-lei,
e as daqueles que procuram resolver esta questão de sucessão de
leis penais — decorrente da substituição dos arts. 23.° e 24.° do
Decreto n.° 13 004, de 12 de Janeiro de 1927 (na versão do Dec.-Lei
n.° 400/82), pelo art. 11.° do Dec.-Lei n.° 454/91 - na perspectiva
jurídico-penal, «abstraindo das implicações de ordem comercial ou
financeira que [foram] dramatizadas na comunicação social e que

(n) Diário da República, 1.° série-A.


50 Sucessão de Leis Penais

levaram até a que, mesmo a nível oficial, se mostrasse «preocupação»


pela posição que os tribunais viessem a assumir» (18).
O mais criticável, na maioria das posições defensoras da manu-
tenção da punibilidade das anteriores emissões de cheque de valor
superior a 5000$00 e sem provisão, foi a distorção de uma reali-
dade jurisprudencial com quase dez anos de existência e a subversão
de princípios jurídico-penais fundamentais, quer materiais quer pro-
cessuais, como meios ou (pseudo) argumentos (aparentemente) legi-
timadores da solução prática pretendida.
Parece evidente que o primeiro a falhar foi o legislador: este,
motivado pela recorrente e justa crítica de que a prisão por emis-
são de cheque-garantia equivalia a uma inconstitucional prisão por
dívidas, pretendeu descriminalizar a emissão e entrega de cheque
(sem provisão) como garantia de pagamento de dívida; porém,
por deficiência técnico-legislativa, acabou por ver frustrada a sua
intenção.
A Procuradoria Geral da República também adoptou um com-
portamento juridicamente não razoável. É que, ao dar instruções ao
Ministério Público, logo no dia imediato à entrada em vigor do refe-
rido Dec.-Lei n.° 454/91, contra a solução da despenalização das
anteriores emissões de cheque sem provisão (de valor superior
a 5000$00), veio, por um lado e dado o imediatismo da orientação,
pôr em causa a competência jurídico-inteipretativa dos respectivos
magistrados, e, por outro lado, «coagi-los» a uma solução que não só
lesava o princípio fundamental da igualdade de tratamento de casos
iguais como também esquecia o princípio básico da máxima restri-
ção penal, além de «esquecer» que a extinção dos procedimentos
criminais pelas anteriores emissões de cheque sem provisão não era
sinónimo de extinção das eventuais dívidas, pois que aos respectivos
credores permanecia a faculdade de instaurar a acção cível de cobrança
de dívidas.

(18) Transcrição de EDUARDO M A I A COSTA, «NOVO regime penal do cheque


— Sucessão de leis (comentário dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça,
de 16 de Abril de 1992 e de 7 de Maio de 1992)», in RMP, 1992, n.° 50, p. 171.
Introdução 51

Mas se esta intervenção da Procuradoria Geral da República


parece ter sido claramente precipitada, ela não deixou de ser demons-
trativa da imperfeiçãd deste diploma legislativo e/ou da provável
justeza jurídica da tese da despenalização, mesmo que esta tivesse,
por efeito indirecto, a afectação das expectativas daqueles (indiví-
duos ou sociedades) que vêem no cheque um meio fácil de cobrar
dívidas.
Cabe, em terceiro momento, fazer uma referência à doutrina.
São do meu conhecimento três estudos sobre as implicações jurí-
dico-penais da entrada em vigor do Dec.-Lei n.° 454/91: um artigo de
Germano Marques da Silva, um parecer de Jorge Figueiredo Dias e
um comentário jurisprudencial de Eduardo Maia Costa.
Consideremos a posição defendida por GERMANO MARQUES DA
19
SILVA ( ), na perspectiva que, hic et num, interessa e que é a da
sucessão de leis penais.
Diz este Autor que a melhor teoria é a do facto concreto ( 20 ).
— Mas penso que não, e, no local sistematicamente adequado (21),
desenvolvo os princípios e argumentos que invalidam esta antiga
posição, que adquiriu a seguinte formulação latina: prius punibile, pos-
terius punibile, ergo punibile.
Desde já, porém, devo referir o seguinte: nos países onde, dife-
rentemente do nosso, a questão da alteração do tipo legal tem mere-
cido uma atenção proporcional à sua complexidade e à sua rele-
vância prática, a chamada teoria ^ o facto concreto vem sendo,
fundamentadamente, recusada. Os exemplos que, no local pró-
prio (22), apresento são suficientemente claros no sentido da recusa
da teoria do facto concreto, tanto sob o ponto de vista da função
orientadora da norma penal como sob o aspecto político-criminal,
não esquecendo que tal recusa é imposta pela própria ratio do prin-
cípio da legalidade.

(19) «Do regime penal do cheque sem provisão (Decreto-Lei n.° 454/91, de 28
de Dezembro)», in DJ (1991), 173-197.
(P) «Do regime penal...» (1991), 197.
0») Y. 1° Parte, 3.D cap., m, C, 1.
P ) V. 1.° Parte, 3." cap., HL.
52 Sucessão de Leis Penais

GERMANO MARQUES DA SILVA escreve (23) que o argumento da


junção orientadora da norma penal não procede, porque esta função
é desempenhada pela lei do tempus delicti. Ora, sobre isto há que
esclarecer o seguinte: sendo exacto que a lei que orienta o compor-
tamento é aquela que está em vigor no momento da conduta, tal não
significa que, para a resolução do problema da responsabilização ou
irresponsabilização penal do infractor, se possa deixar de ter em
conta uma eventual diferente orientação dada por uma lei posterior.
Assim, por exemplo, se A realiza um aborto numa clínica privada, num
momento em que a respectiva lei punia tal conduta, quer fosse pra-
ticada em hospital privado ou público, mas se, posteriormente à prá-
tica do facto, entra em vigor uma lei que passa a permitir um tal
aborto, desde que praticado em hospital público, não deverá ser
excluída a punibilidade do aborto praticado pela mulher A, apesar de
o facto concreto ser abstractamente punível tanto face à lei antiga
como face à lei nova? Parece evidente que sim, pois que se, na
altura em que ela interrompeu a gravidez, estivesse em vigor a lei
nova, natural e provavelmente que o teria feito num hospital público.
Outro exemplo: B pratica o crime de emissão de cheque sem.
provisão numa altura em que a lei em vigor não prevê a extinção da
correspondente responsabilidade penal por virtude do pagamento
voluntário do valor titulado e dos juros compensatórios e morató-
rios; quando já em julgamento, entra em vigor uma nova lei que
determina a extinção do procedimento criminal e, consequentemente,
da responsabilidade penal, se o emitente-arguido efectuar o paga-
mento até ao início da audiência de julgamento. Ora, parece evidente
que o pagamento feito pelo arguido, quando soube do benefício penal
consagrado pela lei nova, não pode deixar de produzir os efeitos
jurídico-penais que, a partir do início de vigência da nova lei, passa
a produzir o pagamento efectuado antes do início do julgamento.
Isto é assim, apesar de o facto concreto ser punível tanto face à lei
antiga como — considerada a situação abstratamente — face à lei
nova.

(?) «Do regime penal...» (1991), 197, n. 5.


Introdução 53

Donde poder afirmar-se que a teoria de facto concreto, de con-


creto tem o nome, pois que, verdadeiramente, ela discorre em termos
abstractos, estabelecendo um corte entre o facto e o seu agente, o que
tem de recusar-se, dado que punidos não são os factos em si, mas os
seus agentes,'
Observa, ainda, GERMANO MARQUES DA SILVA (Z4) que o argu-
mento da potenciação de situações de injustiça relativa contra a teo-
ria do facto concreto não pode considerar-se relevante, invocando o
facto de situações de injustiça relativa sempre as haver como, por
exemplo, no caso da extinção da responsabilidade por amnistia.
Tal consideração é, porém e em meu entender, perfeitamente
inócua. É que do facto de haver situações cuja injustiça relativa é
impossível evitar não pode extrair-se a conclusão da irrelevância do
princípio da igualdade do tratamento jurídico-penal de casos mate-
rialmente idênticos, quando tal é possível. Passar da impossibili-
dade da realização absoluta da igualdade relativa para a irrelevância
do argumento da justiça relativa, mesmo quando a realização desta
é possível, constitui uma extrapolação lógico-materialmente incor-
recta e injusta.
Quando o Autor invoca a figura da amnistia, está a servir-se de
um mau exemplo. Isto, porque a distinção que o Código Penal
de 1982 (quer na versão originária, art. 76.°, n.° 4, quer na de 1995,
art. 75.°, n.° 4) estabelece entre amnistia própria (quando a lei de
amnistia entra em vigor antes do trânsito em julgado da sentença) e
amnistia imprópria (quando a lei de amnistia entra em vigor depois
do trânsito em julgado da sentença condenatória) é incorrecta e
injusta. Como já escrevi na l. a edição (25), esta distinção — que foi
uma infeliz inovação do legislador de 1982, mantida pelo legislador
de . 1995 — não só causa injustas e evitáveis situações de injustiça rela-
tiva como também contribui para descaracterizar a verdadeira natu-
reza jurídica da amnistia.
Relativamente a esta concreta sucessão de leis penais (Decreto
n.° 13 004, arts. 23.° e 24.°, e Dec.-Lei n.° 454/91, art. 11.°), não

C24) «Do regime penal...» (1991), 197, n. 5.


(*) 1990, p. 11.
54 Sucessão de Leis Penais

parece pertinente a seguinte observação de GERMANO MARQUES DA


26
SILVA ( ): «Quanto à valoração retroactiva de circunstâncias que
no momento da prática do facto não eram elementos do crime,
dir-se-á apenas que a valoração é feita favor rei». — É qpe a ques-
tão principal refere-se aos já condenados por sentença transitada em
julgado (no momento em que entra em vigor a lei especializadora ou
especial, isto é, a lei que estabelece a exigência do prejuízo patri-
mqnial para a criminalização do cheque sem provisão) e não aos
que estão ou ainda vão ser julgados. Ora, relativamente àqueles,
entre os quais poderão encontrar-se condenados por uma emissão
de cheque que era crime mas que agora não o é (os condenados por
uma emissão de cheque que não causou prejuízo), a teoria do facto
concreto ou da «dupla incriminação» (27) aceita a manutenção da
execução de uma pena de prisão, de alguém que praticou um facto
que deixou de ser crime, contrariando, assim, o princípio da máxima
restrição da pena. Da nova lei só beneficiariam aqueles que, embora
também não tenham causado prejuízo patrimonial, todavia viram o
seu julgamento realizar-se já quando estava em vigor a nova lei,
talvez porque se serviram de todas as manobras dilatórias do processo
ou porque tiveram a sorte de o seu processo correr em tribunais
sobrecarregados.

Consideremos, agora, a posição de FIGUEIREDO DIAS ( 2 8 ) .


Devo começar por observar que o trabalho deste Autor põe de
lado a questão importante daqueles que emitiram cheques sem pro-
visão e que já tinham sido condenados, no momento em que entrou
em vigor o Dec.-Lei n.° 454/91. Sendo natural esta exclusão, uma
vez que a esses casos não se referia a consulta, tal implica, porém,
a não ponderação de um aspecto decisivo para a resolução da alter-
nativa seguinte: a lei nova foi despenalizadora (CP, art. 2°, n.° 2) ou
apenas estabeleceu um regime punitivo diferente (art. 2°, n.° 4)?

(26) «Do regime penal...» (1991), 197, n. 5.


f") Na designação de FIGUEIREDO DIAS, «Crime de emissão de cheque sem
provisão — Sucessão de leis penais, Dec.-Lei n.° 454/91», in CJ, 1992-m, 72.
p8) «Crime de emissão...», 70-72.
Introdução 55

Diferentemente do Autor, penso que, antes do Dec.-Lei


n.° 454/91, o bem jurídico directa e primeiramente tutelado pela cri-
minalização da emissão de cheque sem provisão era a confiança
pública no cheque e não o património do tomador (directo ou deri-
vado) do cheque. A tutela patrimonial estava também subjacente à
ratio do tipo legal, mas só secundariamente. A recusa do paga-
mento do cheque por falta de provisão bancária não configurava o ele-
mento típico «prejuízo patrimonial», mas era uma mera condição
objectiva da punibilidade do crime de emissão de cheque sem pro-
visão, crime este que se consumava com entrega do cheque, isto é,
com a sua colocação em circulação.
Relativamente à afirmação de que a minha tese da continuidade
normativo-típica, «além de contrariar a letra e o espírito do art. 2 °
do CP, nunca foi avançada na literatura portuguesa», apenas eu me
excluindo «dessa unanimidade» í29), penso dever contrapor o seguinte.
Quanto à unanimidade referida por FIGUEIREDO DIAS, nunca vi tal
unanimidade, pela simples razão de que o tema da alteração legisla-
tiva dos elementos constitutivos do tipo legal nunca foi tratado, argu-
mentativamente, pela doutrina portuguesa. Quanto à afirmação de que
a minha posição contraria a letra e o espírito do art. 2 ° do Código
Penal, trata-se de uma mera afirmação que não basta para infirmar
uma posição que, apesar de ser obviamente discutível, procura ofe-
recer uma solução apoiada em princípios jurídico-constitucionais e
jurídico-penais fundamentais (30). E só com o apelo a estes princí-
pios é que se poderá tomar consciência dos problemas que a altera-
ção legislativa do tipo legal provoca e, assim, poder descobrir qual
o verdadeiro sentido e alcance da letra e do espírito do referido
art. 2.° do Código Penal.
Julgo que a designação «dupla incriminação», utilizada por
FIGUEIREDO DIAS, não é senão uma diferente expressão da mesma
posição defendida pela tradicional teoria do facto concreto. Assim,
as mesmas considerações, que desenvolvi contra a posição de

P 9 ) «Crime de emissão...», 66-n. 4, 71 e 72.


(3D) V. infra, 1." Parte, 3.° cap., m.
56 Sucessão de Leis Penais

Germano Marques da Silva, são aplicáveis à posição de Figuei-


redo Dias.
Também não me parece defensável a conclusão do Autor de
que entre o art. 23° do Decreto n.° 13 004 (após a redacção confe-
rida pelo Dec.-Lei n.° 400/82) e o art. 11.°, n.° 1, do Dec.-Lei
n.° 454/91, não houve qualquer alteração típico-legalmente relevante
(desempenhando o Dec.-Lei n.° 454/91, art. 11.°, n.° 1, a mera fun-
ção de «interpretação autêntica»), e de que, portanto, entre as duas nor-
mas houve e há uma estrita sucessão de leis penais ( 31 ), a resolver,
como tal, pelo n.° 4 do art. 2.° do Código Penal. Em minha opinião,
o crime de emissão de cheque sem provisão não era, antes dó Dec.-Lei
n.° 454/91, um crime (directamente) contra o património, nem o pre-
juízo patrimonial era um elemento integrante do respectivo tipo legal,
elemento este que se verificaria, segundo FIGUEIREDO DIAS, com a
recusa do pagamento integral do valor do cheque. Para mim (32), o
prejuízo patrimonial não era elemento do tipo legal, e o não paga-
mento por falta de provisão (que não é sinónimo de prejuízo), com
a respectiva anotação bancária, era uma exclusiva condição objectiva
de punibilidade.
Nas relações entre o crime de burla e o crime de emissão de che-
que sem provisão, deve não esquecer-se o seguinte: se, até áo Dec.-Lei
n.° 454/91, as diferenças eram, como vimos, muitas e importantes
(quer quanto ao bem jurídico directamente protegido e quer quanto
à constituição de cada um dos respectivos tipos legais), hoje, após o
referido decreto-lei, elas são muito menores, mas continuam. Pois que,
enquanto o tipo legal de burla tem como um dos seus elementos
objectivos e, portanto, pressupõe que o artifício fraudulento seja causa
do acto praticado pelo burlado e causador do prejuízo patrimonial, já
o tipo de crime de emissão de cheque continua a prescindir desta
conexão causal. Assim, não há crime de burla, mas sim crime de

(31) Sobre a distinção entre a sucessão de leis penais em sentido amplo e em


sentido estrito, cf. infra, 1." Parte, 3." cap., i.
(32) Como para a jurisprudência unânime e para a doutrina, tanto anterior
como posterior ao Dec.-Lei n.° 454/91. Cf., p. e., GERMANO MARQUES DA SILVA, «Do
regime penal...» (1991), 175 ss.; ID., Crimes de emissão... (1995), 44 s., 84 ss.
Introdução 57

emissão de cheque sem provisão, em todos os casos em que o che-


que seja emitido e entregue para pagar uma obrigação ou uma dívida
anteriormente contraída. É evidente que há casos em que a emissão
de cheque sem provisão pode configurar um verdadeiro crime de
burla (33).
Conclui-se que, mesmo depois do Dec.-Lei n.° 454/91, o crime
de emissão de cheque sem provisão continua a ter autonomia estru-
tural e funcional face ao crime de burla.
Dito isto, esperemos que mais uma lei, que se anuncia para
breve, sobre a emissão de cheque, não venha a criar problemas como
aqueles que o Dec.-Lei n.° 454/91 provocou. Mas se a sinuosa his-
tória legislativa do cheque se repetir, que não se repitam, ao menos,
as distorções jurídicas que parte da jurisprudência — a culminar com
a incorrecta interpretação vinculativa constante e imposta pelo Acór-
dão n.° 6/93 (34) — cometeu, mas se apliquem os princípios, sem
cedência a grupos ecoriómico-sociais pressionantes.
Talvez que a melhor reforma legislativa do cheque sem provi-
são seja a pura e simples revogação de toda a legislação penal sobre
a emissão de cheque sem provisão (35). Mas se tal acontecer, que não
se venha dizer que, afinal, tudo ficou na mesma, em relação às ante-
riores emissões de cheque sem provisão, argumentando-se que aquilo
que a legislação penal do cheque (Dec.-Lei n.° 454/91) dizia era
pura redundância do que já dizia e diz o tipo legal de crime de burla.
Tal «argumentação» serviria, novamente, para manter procedimentos

P ) Sobre a distinção entre crime de emissão de cheque e crime de burla, ver


GERMANO MARQUES DA SILVA, Crimes de emissão... (1995), 89 s.; R. F. SUAREZ
MONTES, «Estafa mediante cheque en el Código Penal de 1995», in ADPCP (1995),
700 ss.
P4) Diário da República, 1." série-A, de 7-4-1993.
P s ) Assim, R. F. SUÁREZ M O N T E S , «Estafa mediante cheque...» (1995),
704 ss., do qual transcrevo a seguinte passagem: «a criminalização penal do cheque
nunca foi aceite de forma pacífica, porque não está clara a sua legitimidade nem
sequer a sua conveniência ou utilidade. A nível internacional, a opinião é desfavorável
(à criminalização). Muitos dos países de economia.liberal, como Inglaterra, Alemanha
ou Estados-Unidos, não penalizam a emissão de cheque irregular, salvo se se empre-
gar como meio de burla. Outros países, que acolheram o crime de emissão de che-
que, mostram hoje um caminho regressivo, como acontece em França».
58 Sucessão de Leis Penais

penais por um crime que deixou de existir, e para manter presas


pessoas por factos que foram descriminalizados.

EDUARDO MAIA COSTA publicou dois comentários jurispruden-


ciais (36) sobre as implicações jurídico-penais da substituição dos
arts. 23.° e 24.° do Decreto n.° 13 004 pelo art. 11.° do Dec.-Lei
n.° 454/91. Trata-se, em minha opinião, de dois estudos claros, coe-
rentes, jurídico-penalmente fundamentados, que tiveram em conta a
doutrina anterior ao Dec.-Lei n.° 454/91 e que não distorceram a
realidade jurisprudencial sobre o regime penal do cheque, afirmada
e reafirmada até à entrada em vigor do referido Dec.-Lei n.° 454/91.
Estando eu inteiramente de acordo com a fundamentação e com
a solução defendida por E. MAIA COSTA para este caso de sucessão
de leis penais, não se torna necessário fazer, aqui, a análise siste-
matizada do problema, mas apenas remeter o leitor para os referidos
estudos.

Não pode, porém, deixar de se criticar vivamente que os citados


acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (incluindo o «acórdão de
fixação de jurisprudência»!) tenham sacrificado tudo para conseguir
evitar a efectiva despenalização das anteriores emissões de cheque sem
provisão. De facto, estes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
não só renegaram dez anos da sua realidade jurisprudencial, como
foram ao ponto de afrontar princípios jurídico-penais fundamentais,
como os da (investigação da) verdade material, do in dúbio pro reo
e da tipicidade, para além de confundir os conceitos de valor e de pre-
juízo, e de transformar uma mera condição objectiva de punibilidade
em elemento do tipo de ilícito.
Que o crime de emissão e entrega de cheque sem provisão foi
tratado pela jurisprudência praticamente unânime e constante como
crime contra o bem jurídico «confiança social» na credibilidade do

P s ) «Novo regime penal do cheque — Sucessão de leis: comentário dos acór-


dãos do STJ, de 16 de Abril de 1992 e de 7 de Maio de 1992», in RMP, 1992, n.D 50,
p. 157 ss.; «Regime penal do cheque — Sucessão, de leis: comentário do acórdão do
STJ (Plenário das secções criminais), de 27 de Janeiro de 1993».
Introdução 59

cheque, como crime de cujo tipo legal não fazia parte o resultado
«prejuízo patrimonial», sendo o não pagamento do valor titulado no
cheque pura condição objectiva da punibilidade, eis uma realidade afir-
mada e reafirmada por todos os tribunais, tanto pelos de primeira
instância como pelas Relações e pelo Supremo Tribunal de Justiça,
mesmo depois do Dec.-Lei n.° 400/82, mas realidade que, depois da
entrada em vigor do Dec.-Lei n.° 454/91, o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 16 de Abril de 1992 f37), vem renegar, quando
afirma: «O certo é que, logo, e — insista-se — sobretudo depois da
intervenção do Dec.-Lei n.° 400/82, de 23 de Setembro, o crime de
emissão de cheque sem provisão não pode deixar de ser encarado
como delito contra o património, como delito de dano e como delito
de resultado».
Como comentário, apenas há que dizer que este acórdão carece
de honestidade intelectual ou de memória, pois que — independen-
temente do facto de só a partir do Dec.-Lei n.° 454/91 o crime de
emissão de cheque sem provisão ter passado a ser um crime contra
o património e de resultado — é mais do que evidente que sempre
a jurisprudência anterior ao Dec.-Lei n.° 454/91 considerou este crime
como contra a confiança social na circulação do cheque, e como
sendo irrelevante a existência, ou não, do prejuízo do tomador. Que
o STJ dissesse que a jurisprudência andou enganada durante tantos
anos, vá que não vá; mas que venha negar a evidência da realidade
dos factos, isto é que é inaceitável. Até parece que o STJ estava a
decidir o primeiro caso de emissão de cheque sem provisão depois
da entrada em vigor do Dec.-Lei n.° 400/82!...
Se o acórdão do STJ, de 16 de Abril de 1992, para evitar a
conclusão da despenalização, seguiu o caminho da negação da rea-
lidade jurisprudencial, já o acórdão do STJ, de 7 de Maio de 1992,
e o assento («acórdão de jurisprudência obrigatória») n.° 6/93, de 27
de Janeiro de 1993 (3S), adoptaram — com o mesmo objectivo prá-

P ) Cf. RMP, 1992, n.° 50.


P8) Respectivamente, in CJ, 1992, III, p. 8 ss., e Diário da República,
1° série-A, de 7-4-1993.
60 Sucessão de Leis Penais

tico de impedir a despenalização — o caminho juridicamente perverso


de distorcer os princípios fundamentais referidos.
Assim, ignorando os dois acórdãos que o princípio da tipici-
dade tem por ratio a certeza jurídica e por consequência a exigência
da precisão e clareza na descrição legal da factualidade, vêm falar de
elementos típicos presumidos, ínsitos, implícitos ou conaturais, depois
de ter reconhecido que «o causar prejuízo patrimonial a outrem com
a referida emissão não era elemento constitutivo do aludido crime
como resultado» (Ac. de 7-5-1992), e vêm fazer recair sobre o
arguido o ânus da prova da inexistência de prejuízo patrimonial,
afirmando que «a natureza de título de crédito atribui-lhe um espe-
cial valor probatório que obrigará o arguido — para evitar o seu jul-
gamento ou condenação — a necessitar de um cuidado especial em
demonstrar a inexistência do respectivo cheque (queria dizer «pre-
juízo»)» (Ac. de 7-5-1992).
E o «acórdão de jurisprudência obrigatória», de 27-1-1993, bem
como o acórdão de 25-2-1993, que pretendeu aclarar o sentido do
anterior acórdão, não fizeram mais do que reincidir nos vícios e
contradições já assinalados e criticados, apenas — como mais um
expediente para evitar a todo o custo a despenalização e como uma
tentativa (falhada) de ocultar esses vícios e contradições — inven-
tando que o prejuízo patrimonial era uma condição objectiva de
punibilidade.
Ora, como comentou EDUARDO MAIA COSTA, o prejuízo patri-
monial, antes do Dec.-Lei n.° 454/91, nunca foi condição objectiva
de punibilidade e muito menos elemento do tipo de ilícito do crime
de emissão de cheque sem provisão.
Juridicamente coarctados por uma tal «jurisprudência obrigató-
ria», alicerçada numa fundamentação perversa tanto penal como
mesmo constitucionalmente, não admira que os acórdãos, que se
vêm sucedendo, repitam a lamentável fundamentação da conclusão da
não despenalização. Assim, p. e., lê-se no Ac. do STJ, de 5 de Abril
de 1995: «O acórdão de 27 de Janeiro de 1993, ao fixar a referida
jurisprudência, obrigando os tribunais judiciais e, por conseguinte,
também este Supremo Tribunal de Justiça (art. 441.° do Código de
Processo Penal), não pode deixar de se repercutir na decisão do pre-
Introdução 61

sente recurso. Aliás, tal acórdão, aclarado foi pelo já referido de


25 de Fevereiro de 1993, do qual se respeitam os seguintes passos:
«Se um dos fundamentos é o de que o prejuízo patrimonial é cona-
tural do não pagamento de um cheque por falta de provisão,- aos tri-
bunais apenas caberá investigar e decidir se, no caso concreto, se
prova ou não (decisão que poderá resultar, tão só, do princípio in
dúbio pro reó)».
Cabe objectar — como, com clareza, já o fez EDUARDO MAIA
COSTA — que, se o prejuízo fosse conatural, não havia que provar
nada. E se for discutida, no plano probatório, a existência do prejuízo,
então, na dúvida, não podia ser nada pro reo, mas sim contra reuni...;
e repare-se na contradição do que, a seguir, se transcreve com o que
se acabou de transcrever. — Prossegue o acórdão: «Se o prejuízo
patrimonial é conatural do não pagamento de um cheque por falta de
provisão, está naturalmente presumido um prejuízo (elemento de
infracção) cuja existência (e não existência) pode ser ilidida por
prova em contrário. Em posterior aresto deste Supremo Tribunal
tem-se entendido que da indicação de todos estes elementos de inter-
pretação resulta, sem sombra de dúvida [?!], que o referido «Assento»
se encontra perfeitamente clarificado e é insusceptível de ser objecto
de interpretação diversa».

2. Consideremos um segundo exemplo dé inobservância, pelos


tribunais, dos princípios que regem a sucessão de leis penais. Está
em causa o homicídio causado por condução automóvel com
excesso de velocidade, antes de 1 de Outubro de 1994, e cujo jul-
gamento seja posterior a essa data..
É sabido que, até 30 de Setembro de 1994, a morte causada
por excesso de velocidade na condução automóvel estava prevista e
punida pelo Código da Estrada de 1954, art. 59.", al. b) — último
parágrafo. Esta disposição legal — lei do tempus delicti, relativa-
mente aos acidentes de automóvel mortais, devidos a excesso de
velocidade, ocorridos antes de 1-10-1994 — classificava este homi-
cídio (devido a excesso de velocidade ou a manobra perigosa) como
homicídio por culpa ou negligência (simples) e estatuía a pena de pri-
são de seis meses a dois anos e multa correspondente.
62 Sucessão de Leis Penais

Dentro do mesmo art. 59." do Código da Estrada de 1954,


havia uma outra disposição, concretamente o corpo do artigo e
al. b), que estabelecia e exigia como pressupostos da qualificação
como homicídio por culpa grave ou negligência grosseira a existência
de excesso de velocidade e a habitualidade (dó condutor) na con-
dução imprudente. Para esta morte causada por excesso de veloci-
dade (ou por manobra perigosa) de um condutor hábituamente impru-
dente estava fixada a pena de prisão de um mês a três anos e multa
correspondente.
O conceito e o correspondente juízo de culpa (negligência) grave
(grosseira) tinha na habitualidade da condução imprudente um seu
pressuposto ou elemento essencial. Donde a conclusão de que a
morte causada por acidente de viação devido a (apenas) excesso de
velocidade (ou manobra perigosa) não podia ser qualificada como
homicídio por culpa grave ou negligência grosseira, mas apenas como
homicídio por culpa ou negligência.
O conceito de culpa grave ou grosseira só não exigia a carac-
terística pessoal da imprudência habitual na condução automóvel,
quando o acidente mortal resultasse da embriaguez do condutor
(Código da Estrada de 1954, art. 59.°, al. aj).
Constituindo o Código da Estrada, art. 59°, al. b) — último
parágrafo, a lei do tempus delicti, relativamente aos acidentes de
viação mortais devidos a excesso de velocidade, ocorridos até 1
de Outubro de 1994 — data em que este artigo tal como o respec-
tivo Código da Estrada de 1954 deixou de vigorar — e estabele-
cendo a referida disposição a pena de prisão de seis meses a dois anos
e multa correspondente, será esta a pena aplicável, excepto se, pos-
teriormente a 30 de Setembro de 1994, tiver entrado em vigor uma
(nova) lei que descriminalize a respectiva conduta ou que, conti-
nuando a considerar tal conduta como crime, estabeleça uma pena que,
face ao caso concreto sub judice (homicídio por acidente de viação
por excesso de velocidade), venha a manifestar-se como mais favo-
rável ao arguido.
Em 1 de Outubro de 1994, o Código da Estrada de 1954 foi
revogado pelo Dec.-Lei n.° 114/94, de 3 de Maio, arts. 2 ° e 8°, e,
assim, também foram revogadas as disposições penais deste Código,
Introdução 63

concretamente as que previam e puniam os homicídios causados por


acidentes de viação: o homicídio por culpa (negligência), isto é, homi-
cídio causado por excesso de velocidade ou por manobra perigosa
(art. 59.°, al. b) — último parágrafo); o homicídio por culpa grave
(negligência grosseira), isto é, o homicídio causado por embria-
guez do condutor (art. 59.°, al'. a)), mesmo que em relação a este não
se possa imputar a habitualidade da condução imprudente, e o homi-
cídio por excesso de velocidade ou por manobra perigosa, desde que
o respectivo condutor seja qualificado de habitualmente imprudente na
condução automóvel (art. 59.°, corpo do artigo e al. b): «Será punido
com prisão de um mês a três anos e multa correspondente o condu-
tor que, com culpa grave, cause a morte de alguém. A culpa grave,
para efeitos do disposto neste artigo, supõe sempre a verificação do
excesso de velocidade e da prática habitual de condução imprudente»).
Revogadas estas disposições penais, que constituíam uma lei
especial relativamente às correspondentes disposições do Código
Penal de 1982, art. 136.°, n.os 1 e 2, que constituíam a lei geral, e não
tendo as referidas disposições especiais sido substituídas por outras
disposições especiais (o nosso Código da Estrada eliminou todas as
normas relativas a crimes e penas), passaram, então, as condutas,
antes subsumíveis ao art. 59.° do Código da Estrada de 1954, a serem
regidas pela lei penal geral, isto é, pelo art. 136.° do Código Penal
de 1982; mas só as condutas praticadas a partir de 1 de Outubro
de 1994, pois que, relativamente às condutas praticadas antes desta
data, a lei, em princípio, aplicável continuará a ser o art. 59.° do
Código da Estrada de 1954, pois que, em relação a estas condutas,
é a lei do tempus delicti.
Ora, tal como a lei especial do art. 59.° do Código da Estrada
de 1954 (em vigor até 30-9-94), também a lei geral do art. 136." do
Código Penal de 1982 (que, relativamente às condutas previstas na
lei especial do art. 59.° do Código da Estrada, só começou a vigorar
em 1-10-94) prevê duas espécies de homicídio (em consequência de
acidente de viação) por negligência: homicídio por negligência (ou
culpa, na terminologia utilizada pelo Código da Estrada de 1954) e
homicídio por negligência grosseira (ou culpa grave, na terminolo-
gia utilizada pelo Código da Estrada de 1954).
64 Sucessão de Leis Penais

Portanto, relativamente ao caso concreto em análise, isto é, relati-


vamente à morte causada por excesso de velocidade de um condutor não
considerado como habitualmente imprudente na condução (acidente
mortal ocoirido antes de 1-10-94) a relação de continuidade norma-
tivo-típica existe entre o Código da Estrada de 1954, art. 59°, al. b)
— último parágrafo, e o Código Penal de 1982, art. 136°, n.° 1. Isto
é, a morte causada por acidente de viação, ocorrido antes de 1 de Outu-
bro de 1994, devido ao excesso de velocidade praticado por um condutor
não habitualmente imprudente (isto é, em relação ao qual não se tenha
feito prova do seu passado de condução habitualmente imprudente),
jamais poderá ser qualificada como homicídio por negligência gros-
seira, jamais poderá subsumir-se ao n.° 2 do art. 136.° do Código Penal
de 1982,.havendo necessariamente, de ser considerada como Homicídio
por negligência, não podendo, portanto e por outras palavras, deixar de
se subsumir ao n.° 1 do art. 136.° do Código Penal de 1982.
Valorar o facto em causa como homicídio por negligência gros-
seira constitui uma violação da proibição da qualificação retroactiva;
constitui, portanto, uma violação do princípio da proibição da apli-
cação retroactiva de uma lei penal desfavorável.
Nunca se pode, com base numa lei posterior à prática do facto,
vir qualificar este como praticado por negligência grosseira ou grave,
quando a lei em vigor no momento da sua prática o considerava
apenas como praticado por negligência. Dizendo a lei do tempo do
delito que não basta o excesso de velocidade para se afirmar a culpa
grave ou negligência grosseira, não pode o intérprete-julgador vir,
retroactivamente, afirmar, contra o legislador do tempus delicti, uma
negligência grave ou grosseira, em relação a condutas que este só
considerava como praticadas com simples culpa ou negligência.
Que, uma vez revogado o Código da Estrada de 1954 e relati-
vamente a homicídios provocados por excesso de velocidade come-
tidos depois da revogação daquele Código e da entrada, em vigor
(para as hipóteses antes abrangidas pelo referido Código da Estrada)
do art. 136.° do Código Penal de 1982, possa o tribunal qualificar
como grave ou grosseira a culpa ou negligência do condutor que
provoca a morte de uma pessoa devido a excesso de velocidade, eis
o que é possível e legítimo, tudo dependendo da apreciação do jul-
Introdução 65

gador sobre as circunstâncias concretas de cada caso. — Mas esta é


uma questão inteiramente diferente da que se está a analisar.
A conclusão de que o acidente de viação mortal, devido a excesso
de velocidade e oconido antes de 1 de Outubro de 1994, não pode ser
considerado como homicídio por negligência grosseira e, portanto, não
pode ser subsumido ao n.° 2 do art. 136.° do Código Penal de 1982
reforça-se ainda com a seguinte consideração: se o julgador considerar
a culpa ou negligência deste agente como grave ou grosseira, então
que qualificação irá atribuir à culpa daqueles condutores que, durante
a vigência do art. 59.° do anterior Código da Estrada, tiverem causado
a morte de uma pessoa devido a condução em estado de embriaguez
(al. a) do art. 59.°) ou devido a excesso de velocidade de condutores que,
dado o seu passado, sejam declarados habituais na condução automó-
vel imprudente (al. b) dó art. 59.°)? — Ter-se-ia de inventar a qualifi-
cação de gravíssima ou grosseiríssima para a negligência e de inventar
uma pena mais grave do que a estabelecida pelo n.° 2 do art. 136° do
Código Penal de 1982. Como, obviamente, tal criação não é possível,
então, ao considerar-se a culpa ou negligência (somente) como grave ou
grosseira, estar-se-á a parificar as qualificações da culpa do condutor que
provoca a morte devido a excesso de velocidade, e a culpa do condu-
tor que, além do excesso de velocidade, é habitualmente imprudente na
condução (e do que causou a morte conduzindo em estado de embria-
guez). Ora, uma tal parificação constituirá uma subversão e uma aberta
contradição das disposições jurídico-penais vigentes à data dos dife-
rentes homicídios (só com excesso de velocidade; excesso de velocidade
mais habitualidade na condução imprudente, ou condução em estado de
embriaguez) que estatuem penas diferentes: prisão até dois anos e multa
correspondente; prisão até três anos e multa correspondente. Tal afron-
tamento e violação dos juízos legais diferenciadores de responsabili-
dades penais não os pode cometer o julgador.
— Ora, a jurisprudência posterior a 30 de Setembro de 1994 (39)
não tem respeitado, em geral, estes princípios da sucessão de leis

0») Cf., p. e., Ac. do STJ, de 5-1-1995, ili CJ - Ac. da STJ, 1995-1, p. 165 ss.;
Ac. da RC, de 6-4-1995, in CJ, 1995-ra, p. 59 ss.
66 Sucessão de Leis Penais

penais, relativamente aos acidentes de viação mortais devidos a excesso


de velocidade ou manobras perigosas praticadas por condutores não
declarados habituamente imprudentes na condução automóvel.
Com efeito, os tribunais, ao qualificarem, retroactivamente, como
grosseira a negligência dos condutores que causaram a morte devido a
excesso de velocidade (ou a manobras perigosas), com base no n.° 2 do
art. 136° do Código Penal de 1982, estão a violar o princípio da proi-
bição da aplicação retroactiva da lei penal desfavorável, visto que a lei
do tempus delicú (Código da Estrada de 1954, art. 59.°, al. b) — último
parágrafo) considerava essa culpa como negligência simples.
Assim, por exemplo, o acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de
Abril de 1995, se esteve bem, quando considerou equivalentes o con-
ceito de «culpa grave» do art. 59.° do Código da Estrada de 1954 e
o conceito de «negligência grosseira» do n.° 2 do art. 136° do Código
Penal de 1982, já esteve mal quando esqueceu que o art. 59° do refe-
rido Código da Estrada distingue entre culpa grave e culpa não grave
(culpa simples) e estabelece como pressupostos ou requisitos da culpa
grave (ou negligência grosseira, na designação do Código Penal de
1982, versão originária e versão revista em 1995) o excesso de velo-
cidade e a habitualidade de condução imprudente (só não exigindo este
segundo pressuposto para o caso de embriaguez). Ao ter dado como
provado que «o arguido é habitualmente prudente» (40), veio, em con-
tradição com a exigência cumulativa estabelecida na parte final da
al. b) e em contradição com o último parágrafo desta mesma al. b) do
art. 59° do Código da Estrada de 1954, a qualificar a culpa ou negli-
gência do respectivo arguido como grave ou grosseira e, deste modo,
a aplicar-lhe o n.° 2 do art. 136.° do Código Penal de 1982, quando
devia ter aplicado o n.D 1 deste mesmo artigo e Código.
É que a continuidade normativo-típica existe entre aquela dis-
posição do Código da Estrada e este n.° 1 do Código Penal; e, quanto

C°) Prova que não é necessária para a configuração do homicídio como homi-
cídio por negligência (simples), pois que, mesmo que não fosse feita esta prova, o
agente só podia ser punido por homicídio por negligência (simples); a punição por
homicídio por negligência grosseira ou grave é que pressupunha e exigia a prova de
que o condutor era habitualmente imprudente.
Introdução 67

à pena, uma vez que a estabelecida pelo n.° 1 do art. 136.° do Código
Penal de 1982 é mais favorável ( 41 ), seria esta a que devia ser apli-
cada (42).
Esta jurídico-penalmente inaceitável qualificação retroactiva do
facto (acidente de viação mortal devido a excesso de velocidade ou
manobra perigosa) como homicídio por negligência grosseira, quando
a lei do momento da prática da conduta o configurava apenas como
homicídio por negligência (simples), resulta da circunstância de os tri-
bunais, também de forma jurídico-penalmente inadmissível, se terem
esquecido de que nunca se pode afastar da sucessão de leis penais e
da consequente ponderação de qual delas é concretamente a mais
favorável precisamente a lei do tempus delicti. Pois que esta é aquela
que, em rigor, define o ilícito e a correspondente culpa, e que só
por razões político-criminais é que poderá vir a não ser aplicada,
quando uma lei penal posterior descriminalizar o facto ou estabele-
cer uma pena mais leve. Portanto, a lei do tempus delicti, a não
haver uma descriminalização da conduta, nunca pode deixar de entrar
na ponderação das leis que se sucedem no tempo.
A jurisprudência (43), embora reconhecendo que o art. 136° do
Código Penal de 1982 só passou a vigorar, para os acidentes de via-
ção mortais, a partir de 1 de Outubro de 1994 (44), acaba, nas suas

( 4l ) Enquanto o limite máximo da pena de prisão é de 2 anos, em ambas as


disposições, já o limite mínimo é apenas de 1 mês no Código Penal, sendo de 6 meses
no anterior Código da Estrada. .Acresce, ainda, que, enquanto o C. E. estabelecia
a aplicação cumulativa da pena de multa, já o Código Penal de 1982 não previa qual-
quer pena de multa.
(«) Estas críticas aplicam-se inteiramente ao Ac. do STJ, de 5-1-1995, o
qual, também esquecendo a lei do tempus delicti, qualificou um acidente de viação
mortal, em consequência de manobra perigosa, como homicídio por negligência
grosseira, aplicando ao condutor (que não foi considerado como habitualmente
imprudente) o n.° 2 do art. 136.° do Código Penal, quando devia ter aplicado o n." 1
do artigo.
(43) Quer a anterior a 1 de Outubro de 1995 — data da entrada em vigor do
Dec.-Lei n.° 48/95, que aprovou o Código Penal revisto — quer a posterior a esta data.
f 4 ) Acórdão do STJ, de 5-1-95: «desaparecidos do novo Código da Estrada
os ilícitos criminais, há que verificar se o elenco de factos provados, integradores de
ilícitos criminais previstos no Código da Estrada revogado, pode ser subsumido à pre-
visão dos tipos criminais do Código Penal em vigor... Compreende-se, portanto, que,
68 Sucessão de Leis Penais

decisões, por colocar inteiramente de lado o art. 59°, al. b) — último


parágrafo, do Código da Estrada (lei do tempus delicti relativamente,
aos acidentes de viação mortais, praticados até 30 de Setembro
de 1994, e provocados por excesso de velocidade ou por manobras
perigosas de condutores não qualificados de habitualmente impru-
dentes), como que ficcionando que tais acidentes já ocorreram depois
da entrada em vigor (para estes acidentes) do art. 136° do Código
Penal de 1982, isto é, como que ficcionando que eles ocorreram
depois de 30 de Setembro de 1994, ou como que ficcionando que o
art. 136° do Código Penal de 1982 começou a vigorar, para estes aci-
dentes, logo em 1 de Janeiro de 1983.
E, depois da entrada em vigor do Código Penal de 1982 revisto
em 1995, isto é a partir de 1 de Outubro de 1995, continua a juris-
prudência, ou pelo menos parte dela, a tratar e a decidir os casos
de acidente de viação.mortais, ocorridos na vigência do art. 59° do
Código da Estrada de 1954, como se esta lei do tempus delicti tivesse
perdido toda e qualquer relevância, relativamente a esses acidentes.
E, assim, tem a jurisprudência feito a ponderação só entre o art. 136°
do Código Penal de 1982 e o correspondente art. 137° do Código
Penal revisto em 1995, pondo de lado o art. 59.° do Código da
Éstrada, que, relativamente a estes acidentes! é a lei do tempus delicti
e, como tal, nunca pode ser excluída da ponderação. Esquecem,
assim, os tribunais que, relativamente aos acidentes de viação mor-
tais ocorridos até 1 de Outubro de 1994, o art. 136° do Código
Penal de 1982 é uma lei intermédia.

3. Vejamos, agora, as dificuldades e contradições jurídico-penais


a que se assistiu, no ano de 2007, nos acórdãos dos nossos Tribunais

revogada a lei especial, tenha lugar a aplicação da lei geral, no pressuposto de que a
conduta em causa preencha todos os elementos de um determinado tipo nela previsto».
Acórdão da RC, de 6-4-95: «Assim e perante o estatuído no artigo 2.°, n.° 2,
do Código Penal, a factualidade, que ficou provada em audiência de julgamento, só
poderá caracterizar-se como criminosa se merecer esta qualificação pela lei penal geral
(Código Penal) que, com a revogação da lei especial (Código da Estrada anterior),
assumira pois a plenitude da sua vigência anteriormente restringida por esta dispo-
sição ou lei'especial».
Introdução 69

Superiores, na questão das consequências resultantes da alteração


introduzida pela Lei n.° 53-A/2006, de 29 de Dezembro, no n.° 4
do art. 105.° da Lei n.° 15/2001, que contém o Regime Geral das
Infracções Tributárias. Estamos a falar, portanto, do crime de abuso
de confiança fiscal.
O crime de abuso de confiança fiscal está tipificado no art. 105.°
da Lei n.° 15/2001, de 15 de Junho.
Em 1 de Janeiro de 2007, entrou em vigor a Lei n.° 53-A/2006,
de 29 de Dezembro, lei esta que, pelo seu artigo 95.°, alterou o n.° 4
do art. 105.° da referida Lei n.° 15/2001.
A anterior (a 1 de Janeiro de 2007) redacção deste n.° 4 era a
seguinte: «Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis
se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal
de entrega da prestação.».
A redacção, vigente a partir de 1 de Janeiro de 2007 (introdu-
zida pela referida Lei n.° 53-A/2006, art. 95.°), passou a ser a seguinte:
«Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a)
Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de
entrega da prestação; b) A prestação, comunicada à administração
tributária através da correspondente declaração, não for paga, acres-
cida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de
30 dias após notificação para o efeito.-».
Estamos, pois, diante de uma questão de sucessão de leis penais.
Questão cuja resolução passa pela determinação da qualificação da lei
nova (o art. 95.° da Lei n.° 53-A/2006) como lei descriminaliza-
dora/despenalizadora das infracções de abuso de confiança fiscal,
que até 31 de Dezembro de 2006 eram consideradas pela lei então
vigente como infracção criminalmente punível — caso em que se
terá de aplicar o n.° 2 do art. 2.° do Código Penal — ou como lei que,
continuando a considerp os mesmos factos como infracção crimi-
nalmente punível, tão somente veio estabelecer um regime mais favo-
rável — caso em que se aplicaria o n.° 4 do art. 2.° do Código Penal.

Dado que sobre esta concreta questão já me debrucei, desen-


volvidamente, no livro O crime de abuso de confiança fiscal — as
consequências jurídico-penais da alteração introduzida pela Lei
70 Sucessão de Leis Penais

n,° 53-A12006, de 29 de Dezembro, Coimbra Editora, 2007, cabe,


aqui, apenas indicar os tópicos da minha posição nesta questão, e
referir as inconsistências e contradições dos acórdãos dos nossos tri-
bunais superiores no tratamento deste preciso caso — crítica que já,
desenvolvidamente, a fiz na segunda parte do mencionado livro.

Da transcrição, acima feita, das redacções anterior e da vigente


a partir de 1 de Janeiro de 2007, resulta, com clareza, que a não
entrega das prestações tributárias (i. é, o IR e as contribuições para
a Segurança Social deduzidos, e o IVA cobrado), no prazo de 90 dias
a contar do termo do prazo legal de entrega, constituía crime de
abuso de confiança fiscal. Até 31 de Dezembro de 2006, era, jurí-
dico-penalmente, irrelevante que, relativamente a estas prestações, o
respectivo devedor tributário tivesse apresentado, ou não, a corres-
pondente declaração.

A partir de 1 de Janeiro de 2007, com a entrada em vigor da


nova redacção do n.° 4 do art. 105° da Lei n.° 15/2001, a omissão
da entrega das respectivas prestações tributárias, que tenham sido
comunicadas à administração tributária, passou a só constituir uma
infracção criminalmente punível, quando se verificar (além do decurso
do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da pres-
tação) uma nova condição: a notificação, pela administração tribu-
tária, para que tal entrega seja feita e a persistência do devedor tri-
butário na omissão da entrega da prestação.
É, portanto, inequívoco que, a partir de 1 de Janeiro de 2007,
deixou de constituir crime de abuso de confiança fiscal (permanecendo
e alargando-se o âmbito da contra-ordenação) a não entrega das
prestações tributárias declaradas, durante o prazo dos 90 dias con-
tados a partir do termo do prazo legal de entrega. A partir desta data,
a criminalização/penalização do abuso de confiança fiscal exige a
verificação de um outro e novo elemento-pressuposto: a notificação
e a persistência na omissão da respectiva entrega.

A inevitável consequência, relativamente às omissões de entrega


de prestações declaradas, que antes de 1 de Janeiro de 2007, já se
Introdução 71

tinham consumado como crime de abuso de confiançafiscal,segundo


a lei antiga (isto é, sobre as quais já tinham decorrido os referidos
90 dias), é a de que, por imperativo constitucional (CRP, art. 29.°,
n.° 4, 2." parte) e legai (CP, art. 2.°, n.° 2), têm de ser, retroactiva-
mente, consideradas e declaradas descriminalizadas.
A tentativa ou esforço que a maioria das decisões dos Tribunais
Superiores tem desenvolvido no sentido de obstar à descriminaliza-
ção/despenalização das condutas omissivas, cujo "tempus delicti" se
situou antes de 1 de Janeiro de 2007, é algo que não se compreende.
Com efeito, a entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 2007, da lei
nova (a redacção da alínea b) do n.° 4, introduzida pelo art. 95° da
Lei n.° 53-A/2006) provocou, ipso iure, a despenalização criminal des-
sas omissões.
E é, jurídico-constitucionalmente, inaceitável a invocação de
que, ao ordenar-se a feitura da notificação, se está a fayorecer os
respectivos ômitentes tributários, com o (pseudo) argumento de que
uma tal "possibilidade", contida na lei nova, permite ao arguido (se
já iniciado o procedimento criminal) ou futuro arguido extinguiro pro-
cedimento criminal e, consequentemente, a responsabilização penal.
Esta argumentação assemelha-se, objectivamente, a um artifí-
cio, a um como que sofisma jurídico. Pois que tal raciocínio tra-
duz-se, objectivamente, num "presente envenenado", uma vez que
não é outra coisa do que vir "ressuscitar" como crime uma conduta
(uma omissão) que, em 1 de Janeiro de 2007, tinha sido descrimi-
nalizada. Assim, quando a maioria dos acórdãos dizem que é de
aplicar, retroactivamente, a lei nova, com a invocação de que é mais
favorável, o que, realmente, estão a fazer é uma aplicação retroactiva
in malam partem, aplicação que se traduz em recriminalizar o que já
tinha sido descriminalizado. Estão, por outro lado, a converter uma
norma deseriminalizadora numa mera condição de prosseguibilidade
(relativamente aos processos já em curso, no momento em que entrou
em vigor a lei nova) ou numa condição de procedibilidade (relati-
vamente às omissões cujo procedimento criminal ainda se não tenha
iniciado). Isto é, em vez de aplicarem, como o teriam de fazer, o n.° 2
do art. 2.° do Código Penal, aplicam, inconstitucionalmente, porque
in malam partem, o n.° 4 do referido artigo e código. E, com esta
72 Sucessão de Leis Penais

argumentação viciada, é caso para objectar, perguntando: e o que irão


fazer aos casos que já tenham transitado em julgado em 1 de Janeiro
de 2007? — Vão manter a condenação penal por um facto (omissão)
que deixou de ser considerado infracção fundamentadora de res-
ponsabilidade penal, isto é, que deixou, de constituir uma infracção
criminalmente punível?
Saliente-se que, em relação às omissões de entrega cujo tem-
pus delicti ocorreu (i. é, cujo prazo dos já referidos 90 dias se esgo-
tou) antes de 1 de Janeiro de 2007, a nova lei é descriminalizadora,
e, portanto, aplica-se o n.° 2 do art. 2." do Código Penal. E, relati-
vamente às omissões cujo tempus delicti ainda não se tenha verificado
antes de 1 de Janeiro de 2007, o que se aplica é o n.° 1 do art. 1°
do Código Penal, e não o n.° 4.

O que acaba de se expor não pode deixar de conduzir à con-


clusão e consequência jurídico-penal (CP, art. 2.°, n.° 2) e jurídico-
constitucionalmente (CRP, art. 29.°, n.° 4-2.a parte) imposta: todas as
omissões de entrega de. prestações tributárias declaradas, cujo tempus
delicti (i. é, cujo prazo de 90 dias referido na redacção anterior do
n.° 4 do art. 105.°) ocorreu antes de 1 de Janeiro de 2007, foram
descriminalizadas/despenalizadas e, portanto, deve ser declarado
extinto o respectivo procedimento criminal e, nos casos em que já tiver
havido condenação penal transitada em julgado, têm de cessar a-exe-
cução e os seus efeitos penais.

A generalidade dos acórdãos dos nossos Tribunais Superiores,


influenciados por uma errónea interpretação do n.° 2 do art. 5.° da Lei
n.° 105/2001 (lei que contém o Regime Geral das Infracções Tribu-
tárias, e artigo e número que estabelece o tempus delicti das infracções
tributárias omissivas), interpretação teleológico-racionalmente errada
que os arrastou para uma incorrecta determinação do tempus delicti
do crime de abuso de confiança fiscal (44"A), e, simultaneamente,
arrastados por uma deformada compreensão da natureza, fiindamento

(44-A) ver TAIPA DE CARVALHO, O Crime de Abuso de Confiança Fiscal,


Coimbra Editora, 2007, p. 46 ss.
Introdução 73

e função político-criminal das condições objectivas de punibilidade,


acabaram, em termos práticos, por transformar, ilegal e inconstitu-
cionalmente, um pressuposto-elemento ou, se preferirmos, uma con-
dida sitie quq non da punibilidade criminal de uma conduta (omis-
siva) num mero pressuposto processual, concretamente, numa condição
de procedibilidade ou de prosseguibilidade.

E quando, depois de já vários acórdãos terem operado esta


inconstitucional metanóia, alguns acórdãos, parecendo ter reconhecido
que tal transformação era juridicamente inaceitável, então recorre-
ram a uma metanóia não menos inaceitável: afastaram a qualificação
como condição objectiva de punibilidade, até então predominante-
mente atribuída à exigência de notificação e da persistência na omis-
são da entrega da prestação tributária, e transformaram esta nova
exigência de pressuposto ou condição de punibilidade e de respon-
sabilidade penal em causa de extinção da responsabilidade penal,
em causa de exclusão da punição. Ou seja, o que era, e é, pressu-
posto ou con-causa (da punibilidade) passou a ser tratado como
(causa de) extinção do efeito; isto é, o que era, e é, "causa de vida"
passou, magicamente, a "causa de morte" da responsabilidade penal,
o que, por outras palavras, equivale a matar algo que ainda não nas-
ceu. — Foi precisamente isto que o Acórdão da Relação do Porto
(processo 0713147), de 11 de Julho de 2007, fez: transformou, incons-
titucionalmente, um pressuposto, uma con-causa da punibilidade cri-
minal (da responsabilidade penal) numa causa de extinção da res-
ponsabilidade penal (44"B).

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (processo 4086/06),


de 7 de Fevereiro de 2007, foi ò primeiro a pronunciar-se sobre esta
questão, dando, assim, o tom para os acórdãos que se haveriam de
seguir í44"0).

(W-B) -yer análise deste acórdão em TAIPA DE CARVALHO, O Crime ... (cit. na
n. 44-A), p. 100 ss.
O 54 " 0 ) Ver análise deste acórdão em TAIPA DE CARVALHO, O Crime ...'(cit. na
n. 44-A), p. 63 ss.
74 Sucessão de Leis Penais

Este acórdão começou por reduzir a questão da qualificação jurí-


dico-penal da nova exigência da notificação, a fazer pela Administração
Tributária, à alternativa: pressuposto processual ou condição objectiva
de punibilidade? — Diga-se, desde já, que este acórdão, como prati-
camente todos os que se lhe seguiram, acentuou, exclusivamente, a
notificação, que, realmente, não depende do devedor tributário, e
esqueceu o elemento essencial que, embora pressuponha aquela noti-
ficação, está na persistência da conduta omissiva da entrega da pres-
tação tributária, apesar da notificação para fazer tal entrega.
Quero, portanto, dizer, que, diferentemente do que se lê neste
como nos outros acórdãos que o seguiram, a nova exigência, intro-
duzida na actual alínea b) do.n.° 4 do art. 105°, tem, também e prin-
cipalmente, que ver com o comportamento do devedor tributário, e,
portanto, com a ilicitude criminal da conduta deste. Pois que, a
partir da alteração introduzida, em 1 de Janeiro de 2007, o abuso
de confiança fiscal, relativamente às prestações declaradas, só passa
de contra-ordenação a crime, se o devedor, apesar de notificado, per-
sistir na omissão de entrega da prestação devida.
Aliás, e apesar de tal invocação nem sequer ser necessária, o pró-
prio Relatório da Lei n.° 53-A/2006 (cujo art. 95° introduziu a exi-
gência' em discussão) indica, claramente, que a razão, que levou o
legislador a estabelecer esta nova exigência da notificação, tem que
ver com a própria natureza e gravidade da conduta e com a censu-
rabilidade das diferentes categorias de omitentes das entregas das
prestações tributárias. Esclarece o Relatório: «Quando a não entrega
da prestação tributária está associada à falta declarativa existe uma
clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração
Fiscal. O mesmo não se poderá dizer, quando a existência da dívida
é participada à Administração Fiscal através da correspondente decla-
ração, que não vem acompanhada do correspondente meio de paga-
mento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de
cobrança coerciva. Tratando-se de diferentes condutas [...], devem,
portanto, ser valoradas criminalmente de forma diferente. Neste
sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos
que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a
situação tributária em prazo a conceder.».
Introdução 75

Sem qualquer indevida extrapolação, poderíamos dizei-, na linha


da explicação dada pelo Relatório, que a conduta daquele que, cons-
cientemente, não declara as prestações tributárias assemelha-se a uma
quase burla tributária; e que muito diferente é a conduta daquele
que, embora não entregue a referida prestação, não deixa de a comu-
nicar. Em relação a este, a não entrega só passará a configurar
crime, se, depois de interpelado para a fazer, persistir na omissão.

Talvez seja de interesse chamar a atenção para eventuais equí-


vocos que poderão resultar da fórmula textual utilizada pelo legisla-
dor para determinar a criminalização das omissões de entrega das
prestações tributárias devidas. Estou a referir-me à expressão utili-
zada no n.° 4 do art. 105.°: «Os factos descritos nos números ante-
riores só são puníveis se [...]».
Com efeito, parece-me que, por vezes, alguns, ou muitos, são
levados a pensar que a expressão só são puníveis indica que as
circunstâncias, que a seguir se descrevem, constituem (meras) con-
dições objectivas de punibilidade. Mas também me parece óbvio
que um tal entendimento, uma tal ilação é errónea, e, portanto, de
recusar.
Há que ter presente que a expressão é punível, tal como a sua
oposta não épunível, pode ter diferentes significados.
Pode significar que a conduta anteriormente descrita só consti-
tui crime, quando se verificar determinada circunstância; hipótese
esta em que a circunstância é elemento constitutivo do próprio tipo
de ilícito; e, neste caso, não se verificando a circunstância, pura e sim-
plesmente não há ilícito criminal. Como pode significar meramente
uma condição objectiva da punibilidade de uma conduta que em si
mesma já é considerada crime, isto é, facto ilícito e culposo; só que,
por determinadas razões político-criminais, o legislador entendeu que
a punibilidade, ou seja, a responsabilidade penal do respectivo agente
só deverá afirmar-se, no caso de uma determinada circunstância se
verificar.
Analogamente se passam as coisas na hipótese inversa, isto é,
quando o legislador utiliza a expressão não é punível. Assim, quando
o legislador, depois de descrever uma certa conduta, diz que esta
76 Sucessão de Leis Penais

não é punível, no caso de se verificar uma determinada circunstân-


cia, esta não punibilidade pode ter diferentes sentidos. Tomemos
dois exemplos. O art. 151.°, n.° 2, estabelece: «A participação em rixa
não é punível [...] quando visar reagir contra um ataque, defender
outrem ou separar os contendores». Ora, parece evidente que, aqui,
o não e punível não quer significar apenas a exclusão da punibilidade,
isto é, da responsabilidade penal (mantendo-se o facto da "interven-
ção" na rixa como ilícito), mas sim a exclusão da própria ilicitude.
Já, no art. 367°, n.° 5, alínea b), a expressão não épunível quer sig-
nificar a desculpação do respectivo agente, configurando, pois, uma
causa de desculpação do favorecimento pessoal.

Parece-me, pois, que o acórdão não tem razão, quando qualifica


o disposto na nova alínea b) do n.° 4 do art. 105° como uma con-
dição objectiva de punibilidade, quando a devia ter qualificado como
pressupósto-élemento do tipo de ilícito do crime de abuso de confiança
fiscal.

Mas, mesmo que, como o fez, qualificasse o acrescentado pela


nova alínea b) como condição objectiva de punibilidade, a conse-
quência da despenalização criminal impunha-se da mesma forma.
Pois que uma condição objectiva de punibilidade é, como a própria
designação , o indica, co-fundamento da punibilidade criminal da res-
pectiva conduta e, portanto, co-fundamento ou conditio sine qua non
da responsabilidade penal do respectivo agente.
Refira-se que este acórdão, como a maioria dos outros que o
seguiram, ao qualificar esta nova exigência da actual alínea b) como
condição objectiva de punibilidade e, ao caracterizar as condições
objectivas de punibilidade nos termos (correctos) em que o fez, não
podia (embora, contraditoriamente, o tivesse feito) deixar de tirar a
conclusão e consequência da despenalização criminal das omissões em
causa; e, portanto, teria de aplicar o n.° 2 do art. 2° do Código Penal,
e não o n.° 4 deste artigo.
Diz o acórdão: «As condições objectivas de punibilidade são
aqueles elementos do tipo situados fora do delito cuja presença cons-
titui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências
Introdução 77

penais». — Ora, se fazem parte do tipo legal (se são elementos típi-
cos) e se são um pressuposto para. que a conduta ilícita possa ser cri-
minalmente punível, então a consequência não pode deixar de ser a
da despenalização criminal de todas as condutas que se tenham con-
sumado antes da entrada em vigor da lei que veio acrescentar esta con-
dição, que, obviamente, não se verificou nessas condutas. E, despe-
nalizadas essas condutas, no exacto momento em que entrou em vigor
a lei que acrescentou à condição, não pode, sob pena de inconstitu-
cionalidade por aplicação retroactiva desfavorável, vir o tribunal res-
suscitar, isto é, recriminalizar essa conduta. Tal seria, para além de
inconstitucional, estar a converter uma condição objectiva de punibi-
lidade numa condição de prosseguibilidade ou de procedibilidade.
Mas foi, precisamente, isto o que o Acórdão fez: transformou aquilo
que ele- próprio considerou uma condição objectiva de punibilidade
numa condição de procedibilidade. Eis, em resumo, uma nítida con-
tradição entre o fundamento e a conclusão-consequência.

— Merece uma referência crítica o recente Acórdão do Supremo


Tribunal de Justiça (processo 07P3220), de 20 de Dezembro
de 2007. Limito esta referência a três breves observações — uma vez
que sobre esta concreta questão já me pronunciei com desenvolvida
argumentação.
Em primeiro lugar, há que dizer — salvaguardado todo o respeito
para com o. Supremo Tribunal de Justiça — que se trata de um acór-
dão que, apostado em defender, a todo o custo, a errada posição
tomada por este Tribunal logo no primeiro acórdão sobre esta ques-
tão, em 7 de Fevereiro de 2007 (Processo 4086/06 — 3), é confuso,
prolixo e cheio de contradições dogmáticas e político-criminais.
Em segundo lugar, não me parece correcto que tenha procurado
"esquecer" o que a doutrina escreveu sobre esta concreta e precisa
questão, após o primeiro Acórdão deste STJ, de 7 de Fevereiro
de 2007. Da mesma forma, não acho bem que este acórdão tenha
feito "tábua rasa" das fundamentações (algumas, muito e bem desen-
volvidas) e conclusões (diferentes das tiradas pelo STJ) defendidas em
vários outros Acórdãos dos Tribunais das Relações, nomeadamente
de Coimbra e do Porto.
78 Sucessão de Leis Penais

Em terceiro lugar, há que criticar várias incorrecções e mesmo


contradições poKtico-criminais, que se sucedem, de forma repetitiva
e envoltas num manto de espesso nevoeiro. Vejamos algumas delas,
apresentando-as sob a forma de objecção-pergunta.

Que compatibilidade dogmática e político-criminal existe entre


a afirmação de que a exigência de notificação (e o não pagamento no
prazo de 30 dias) constitui uma condição objectiva de punibilidade
e a afirmação de que esta mesma exigência de notificação configura
uma causa de extinção da punibilidade?; Em que ficamos?... Afinal,
a nova exigência é uma causa ou pressuposto da responsabilidade
criminal ou, pelo contrário, é uma causa de extinção da responsabi-
lidade criminal? Pois que não vejo como é que a mesma "coisa"
possa ser, ao mesmo tempo, condição-pressuposto da responsabili-
dade penal e causa de morte ou extinção desta mesma responsabili-
dade penal... E acha o STJ que, para a resolução dogmática e polí-
tico-criminalmente correcta desta questão (isto é, das consequências
jurídico-penais da referida alteração legislativa), é irrelevante a
consideração da qualificação e do âmbito de aplicação do n.° 6 do
art. 105.°? — É que o acórdão não se refere, minimamente, a este
número...
Não será exacto afirmar-se que este acórdão — como os vários
outros que este menciona — comete uma contradição entre a "teo-
ria" e a "prática", pois que, embora qualifique a nova exigência
como "condição objectiva de punibilidade", a hrata como mero pres-
suposto processual, atribuindo-lhe apenas o efeito de condição de
prosseguibilidade ou de procedibilidade?!

Transcrevamos mais um parágrafo difuso e confuso deste Acór-


dão, para, em seguida, formularmos algumas perguntas.
«O crime de abuso de confiança fiscal é, de acordo com a norma
do art. 105° do RGIT, um crime omissivo puro que se consuma Ç44"0)

(•«-D) Sobre o "tempus delicti" no crime de abuso de confiançafiscal,ver TAIPA


DE CARVALHO, O Crime ... (cit. na n. 44-A), p. 43 ss.
Introdução 79

no momento em que o agente não entregou a prestação tributária


[...] a que estava obrigado, não se podendo, pois, reconduzir ao
núcleo da ilicitude e da tipicidade o que são condições de exercício
da acção penal, para além do espírito e da letra da lei.» (44:E).
Este parágrafo, que está inserido num todo não menos confuso,
requer que se façam algumas perguntas-objecção: o não pagamento
(entre o termo do prazo legal da entrega e o termo do prazo dos
90 dias) da prestação tributária declarada constituía contra-ordenação
mais crime, ou seja, fundamentava responsabilidade contra-ordena-
cional e responsabilidade penal?!; O que é isso de «núcleo da ilici-
tude e da tipicidade»?! — Parece que o Acórdão esquece que ilici-
tude e tipicidade não são a mesma coisa. Parece que descura duas
coisas: que o ilícito não se confunde com o tipo legal; e que as con-
dições objectivas de punibilidade, embora não integrem o ilícito, são,
todavia, parte integrante do tipo legal e, portanto, são elementos inte-
grantes da infracção criminalmente punível, a que se refere o n.° 2 do
art. 2° do Código Penal. Ainda mais uma observação: afinal, é o pró-
prio Acórdão que, naturalmente sem o querer, vem confundir con-
dições objectivas de punibilidade com condições de procedibilidade...
O que, diga-se, corresponde à forma como, na prática (prática que é,
dogmática e político-criminalmente, errada e inconstitucional), tratou
a nova exigência, e que constitui uma contradição com a sua repe-
tida afirmação da qualificação desta exigência como condição objec-
tiva de punibilidade.

A inconsistência dogmática e político-criminal deste Acórdão


— que segue os anteriores acórdãos do STJ sobre esta questão — é,
realmente, grande e manifesta. Seja-me permitido perguntar: qual é o
sentido da afirmação de que, «na condição de punibilidade expressa-se
o grau específico de violação da ordem jurídica»?! E este Acór-
dão chega ao cúmulo de invocar como argumento (indiscutível!)
contra a descriminalização/despenalização um argumento que preci-
samente vai no sentido oposto, isto é, no sentido da despenalização,

("«) itálico meu.


80 Sucessão de Leis Penais

dizendo o que se transcreve: «E o apelo ao elemento racional e his-


tórico, não deixa qualquer margem para dúvida [!...]: é o próprio
legislador que, ao alterar a norma, consagra no Relatório do Orça-
mento de 2007 a diferença entre o sujeito passivo que, tendo cum-
prido as suas obrigações declarativas, regulariza a situação tributária
em prazo a conceder, e aquele que não cumpre a obrigação declara-
tiva, denotando uma clara intenção de ocultação dos factos tributá-
rios à Administração Fiscal.». Diante disto — e porque a ladainha
já vai longa — só mais uma interrogação: aquelas condutas omis-
sivas do pagamento das prestações tributárias declaradas (em rela-
ção às quais não houve, obviamente, notificação), que, em 1 de Janeiro
de 2007,. já tinham sido objecto de condenação transitada em jul-
gado, constituem, face à lei nova, uma infracção criminalmente puní-
vel? — A resposta parece evidente que tem de ser negativa. E, então,
vai o Tribunal ordenar a reabertura do processo para que seja feita
a notificação e, assim, possam ser recriminalizadas as condutas que
foram descriminalizadas pela lei nova?!... Tal far-nos-ia recordar e
recuar à história do direito penal anterior ao Estado de Direito.
Todavia, há, desde já, que acautelar que o STJ, dada à sua con-
centração exclusiva no n.° 4 do art. 2°, não ceda à tentação de
invocar o novíssimo art. 371.°-A do Código de Processo Penal para
ordenar a reabertura do processo, a fim de se fazer a notificação.
Tal equivaleria ao absurdo dos absurdos jurídico-penais: invocar
uma norma, cujo objectivo político-criminal é "favorecer" o conde-
nado, para o prejudicar. É óbvio que tal seria manifestamente
inconstitucional.
• Que o mais paciente dos leitores me desculpe; é que não posso
deixar de transcrever mais algumas passagens deste sinuoso e impe-
netrável Acórdão. Sem fazer qualquer comentário, mas apenas pondo
em itálico as perífrases mais esquisitas, eis algumas afirmações: «As
condições de que depende, no caso, a punibilidade da conduta («os
factos [...] só são puníveis») constituem, pela natureza com que se
apresentam na estrutura da norma, e pela função e finalidades a que,
aí, estão determinadas, elementos que não integram a tipicidade, a ili-
citude ou a culpa, mas que se ligam apenas, por circunstâncias adja-
centes à natureza elevantemente funcionalista da infracção, à fina-
Introdução 81

lidade da pena, diminuindo a intensidade ou eliminando as necessi-


dades da punição.»; «aquela norma constitui um incentivo ao paga-
mento das prestações em falta» [até parece que estamos mas é diante
de uma amnistia ou perdão genérico condicional!...]; «Os elementos
que não fazem parte do tipo [...] constituem ou pressupostos pro-
cessuais ou condições objectivas de punibilidade.»', as c.o.p. «não
contendem com a natureza do crime, nem com implicações, sequên-
cias e consequências no plano das relações e criminalização-des-
criminalização quando se sucedam diversas condições de punibili-
dade.».

— Houve, porém, Acórdãos f 14 ^) que, partindo da qualificação


da nova exigência (de notificação e da persistência na não entrega da
prestação devida) como condição objectiva de punibilidade, acolhe-
ram a correcta tese da despenalização retroactiva.
Olhando só para a decisão prática do caso sub judice, foram
correctas as decisões, por exemplo, dos Acórdãos da Relação de
Coimbra (processos n.° 59/05.4IDCTB .Cl, de 28 de Março de 2007,
e n.° 17S/04.4IDACB.C1, da mesma data, e n.° 120/04.2IDGRD.C1,
de 18,de Abril de 2007), e da Relação do Porto (processo n.° 0644055,
de 6 de Junho de 2007).
Apesar da correcção das decisões concretas proferidas em todos
estes Acórdãos, há que fazer três observações.
Os Acórdãos da Relação de Coimbra, partindo da qualificação
da nova exigência, introduzida pela alínea b) do n.° 4 do art. 105°
do RGIT, como condição objectiva de punibilidade, afirmaram, cor-
rectamente, que a nova lei, que introduziu esta exigência, é uma lei
descriminalizadora/despenalizadora. E, sendo-o, muito acertada-
mente destacaram que não se pode suspender os processos, a fim
de se fazerem as notificações, pois que tal equivaleria a transformar
uma condição objectiva de punibilidade numa condição de prosse-
guibilidade, o que,, para além de ser in se inaceitável, se traduzia
num "expediente" que configuraria, jurídico-penalmente, uma aplicação

(44-F) Ver TAIPA DE CARVALHO, O Crime ... (cit. na n. 44-A), p. 111 ss.
82 Sucessão de Leis Penais

retroactiva in malam partem. O juridicamente mal esteve apenas no


facto de, em vez de, como teria de ser, fundamentarem, legalmente,
a despenalização retroactiva no n.° 2 do artigo 2 ° do Código Penal,
terem invocado o n.° 4 do referido artigo.
Já, diferentemente, procedeu o mencionado Acórdão da Rela-
ção do Porto: neste, houve coerência jurídico-penal entre a qualificação
da nova exigência como condição objectiva de punibilidade e a fun-
damentação legal da despenalização retroactiva no n.° 2 do artigo 2.°
do Código Penal C44"6).
A terceira observação tem que ver com o Acórdão da Relação
de Coimbra (processo 59/05.4IDCTB.C1), de 28 de Março de 2007.
Este acórdão vem precedido do seguinte sumário: «I. A Lei
n.° 53-A/2006, de 29-12, veio introduzir uma verdadeira condição
de punibilidade relativa ao crime de abuso de confiança fiscal.
H. Devem considerar-se descriminalizadas todas as situações que
preencham os requisitos contemplados pela nova norma, sem que a
condição se tenha verificado.».
De forma metodologicamente correcta, este acórdão coloca a
questão de saber se a nova exigência configurará um elemento cons-
titutivo do ilícito típico ou uma condição objectiva de punibilidade do
crime de abuso de confiança fiscal.- E também, de forma e em ter-
mos correctos, procura estabelecer a distinção/delimitação entre as con-
dições objectivas de punibilidade e os elementos do ilícito típico.
Assim, diz o Acórdão: «A delimitação entre os elementos do ilícito
e a condição objectiva de punibilidade reside neste ponto específico:
na possibilidade de imputar individualmente a circunstância em
causa ao destinatário da norma penal no âmbito dessa norma. O que,
por seu turno, depende da estrutura do ilícito (relação entre a conduta
típica e as consequências), da natureza dos elementos em causa e
da imputação a realizar dentro dos elementos normativos do tipo.
Sendo possível realizar essa imputação individual, dificilmente a cir-
cunstância em causa será estranha ao ilícito. Diversamente, tra-
tando-se duma realidade normativa estranha ao processo de imputação

(44-G) Ver TAIPA DE CARVALHO, O Crime ... (cit. na n. 44-A), p. 123 ss.
Introdução 83

individual do ilícito (pela natureza, estrutura ou relação com o facto)


estará indicada a sua autonomia em relação ao ilícito.».
Pena foi que, depois desta correcta e adequada colocação dos ter-
mos da distinção entre condição objectiva de punibilidade e elemento
constitutivo do ilícito típico, os Autores do Acórdão tivessem ficado
encandeados apenas pela "notificação", esquecendo o comportamento
de persistência na omissão de entrega da prestação tributária. Pois
que é esta persistência (que, obviamente, pressupõe a notificação) o
elemento que, segundo a lei nova, fundamenta a gravidade, a ilicitude
da não entrega da prestação, a censurabilidade criminal do devedor
tributário e, consequentemente, fundamenta a responsabilidade penal.
Apesar de este acórdão não ter aplicado à circunstância, acres-
centada pela lei nova, á correcta distinção que começou por apresentar,
(aplicação que o deveria ter levado a qualificá-la como elemento
verdadeiramente integrante do ilícito do crime de abuso de confiança
fiscal), a sua verdadeira incoerência está no facto de — após ter cor-
rectamente considerado que a nova exigência de notificação e per-
sistência na omissão, mesmo sendo (segundo o acórdão) uma condição
objectiva de punibilidade, implica a descriminalização/despenaliza-
ção de todas as omissões de entrega cujo tempus delicti ocorreu
antes de 1 de Janeiro de 2007 — ter invocado, para a aplicação
retroactiva da lei nova, o n.° 4 do art. 2.° do Código Penal, quando
tinha de ser o n.° 2 deste mesmo artigo.
l. a PARTE
O PRINCÍPIO DA APLICAÇÃO
DA LEI PENAL FAVORÁVEL
1. Entre os problemas estudados nesta parte, permito-me desta-
car alguns. O primeiro refere-se à necessidade de uma delimitação
rigorosa do âmbito do princípio da aplicação da lei mais favorável
(CP, art. 2.°-4.), isto é, à necessidade da precisa caracterização dos
pressupostos de uma verdadeira sucessão de leis penais, distinguindo-a
e delimitando-a do âmbito da intervenção da lei descriminalizadora
(CP, art. 2."-2.).
O desconhecimento prático desta distinção entre lei penal mais
favorável e lei descriminalizadora tem conduzido a decisões legisla-
tivas e judiciais desrespeitadoras dos princípios fundamentais da
denominada «aplicação da lei penal no tempo». (4S).
Seja este o momento para comentar a pouca clareza e precisão dos'
arts. l.°-l e 2 ° do Código Penal.
O Autor do Anteprojecto do CP de 1982 teve, efectivamente, consciência
da complexidade dos problemas que esta matéria tem, afirmando, na apresen-
tação e justificação do art. 1.°, o seguinte: «Parece, porém, que o nosso actual
Código Penal se não deu conta das totais implicações dos princípios que pro-
curou consagrar, além de que os consagrou de forma não unitária, em várias dis-
posições. A tais inconvenientes procurou obstar a redacção do art. 1 ° — um
dos mais difíceis de todo o Projecto e que foi demoradamente ponderado» ( 46 ).
Não tendo especial interesse, aqui e agora, a análise do art. 1." do Ante-
projecto, diga-se, todavia, o seguinte: 1 ° — apesar da preocupação de clareza
e de completude afirmadas, a redacção deste artigo continha muitas imperfeições,
comprovadas pelas múltiplas objecções levantadas por vários membros da comis-
são revisora; 2 ° — não me parece que os arts. 1 ° e 3 ° do Anteprojecto se

(45) Sobre os problemas — e sua resolução — da "conversão" de crimes (ou


de contravenções) em contra-ordenações, e vice-versa, ver 1."Parte, 3° Capítulo,II.
(46) Cf. Acta da 2." sessão (n. 9), 264.
88 1." Parte — O princípio da aplicação

pudessem considerar mais conseguidos que os arts. 5.° e 6.° do Código Penal
de 1886; 3 ° — a única novidade, quanto ao conteúdo, foi a inclusão da dis-
posição relativa às «leis temporárias».
Já tem interesse a apreciação dos arts. l."-l. e 2." do código actual.
E sobre estes penso o seguinte: -1.° — se houve um aperfeiçoamento relativa-
mente ao texto dos arts. 1 ° e 3." do Anteprojecto e do Projecto, parece-me
que, em relação aos arts. 5.° e 6 ° do Código Penal de 1886, não hquve melho-
ria significativa nem na forma nem no conteúdo, excepção feita, quanto ao
conteúdo, à inclusão das medidas de segurança e das leis temporárias; 2 ° — não
há razão para não ter incluído num mesmo artigo o disposto nos arts, l.°-l.
e 2. e 2.°; 3.° — o n.° 3 deste art. 2." deveria vir depois do disposto no n.° 4,
pois que a sistematização actua] pode induzir no erro de se pensar que as «leis
temporárias» só podem ser fundamentadoras da responsabilidade penal (crimi-
nalizadoras), quando, na verdade — e para tal já chamava a atenção SIDÓNIO
RITO, na discussão do Anteprojecto — também podem ser apenas agravantes
da responsabilidade penal, sem perderem, contudo, esse carácter de «lei tem-
porária»; 4.° — o texto é prolixo e, à primeira vista, parece contemplar somente
alguns aspectos do problema da alteração temporal da existência e das condi-
ções da responsabilidade penal, quando, na realidade, estão em causa, neste
art. 2.°, outros aspectos, como o da alteração da constituição do tipo legal (47)
e o da alteração das condições (pressupostos) adicionais da responsabilidade
penal (p. e., queixa, prescrição) (4B).
49
F.-CHRISTIAN SCHROEDER ( ) critica a § 2 StGB (artigo do CP alemão-
-federal correspondente ao nosso art. 2°) pela sua falta de clareza, rigor e sim-
plicidade. Esta crítica é, em minha opinião, aplicável ao nosso art. 2.°
Desde logo, contesta SCHROEDER a designação alemã «zeitliche Geltungs-
bereich», isto é, âmbito de vigência temporal, propondo como mais rigorosa a
expressão «Ãnderung der Rechtslage», o que significa alteração da situação jurí-
dico-penal decorrente da entrada em vigor de uma nova lei.
Critica, ainda, a falta de clareza e de rigor da mencionada disposição alemã.
Como exemplar, apresenta o Autor a redacção do § 81 do StGB da ex-RDA.
Vale a pena transcrever este § 81 do Código Penal da extinta República Demo-
crática Alemã, entrado em vigor em 1968:
«(1) Um facto é punido segundo a lei vigente no momento da sua prática.
(2) Leis, que fundamentam ou agravam a responsabilidade penal, não
valem para factos que foram praticados antes da sua entrada em vigor.

(47) V. infra, 3." cap., in.


(4B) V. infra, 2." Parte.
( ) «Der zeitliche Geltungsbereich der Strafgesetze», in Festschrift fur
P. Bockclmann (1979), 792.
89 1." Parte — O princípio da aplicação

(3) Leis, que extinguem ou atenuam a responsabilidade penal, valem para


os factos praticados antes da sua entrada em vigor.»
Como apreciação, tem de reconhecer-se que se trata de uma formulação do
regime da validade ou eficácia temporal da lei penal que, abrangendo todas as
hipóteses contempladas nos nossos arts. l.°-l. e 2.°-l., 2. e 4. (excepção feita ao
caso das medidas de segurança que, embora devam ter o regime efectivamente
consagrado, todavia, sistematicamente, deviam constar de artigo próprio), é
muito mais simples, clara e rigorosa.
Na verdade, as dificuldades interpretativas, que resultam da falta de rigor
técnico-legislativo do art. 2.°, não se verificariam se a sua formulação fosse
semelhante à do transcrito § 81 do Código Penal da ex-RDA.
O que, como veremos, está em causa nesta matéria é o problema palí-
tico-jurídico e político-criminal da responsabilização penal: trate-se de lei
(des)criminalizadora ou (des)agravadora da pena, trate-se da adição ou supres-
são de condições de procedibilidade ou da alteração dos prazos de preenchi-
mento destas condições. Assim, é mais adequada a expressão «responsabi-
lidade penal» do que a variedade das expressões utilizadas pelos referidos
artigos do nosso código penal: «punido criminalmente», «facto passível de
pena», «facto punível», «nova lei eliminar do número de infracções», «dis-
posições penais»...
Uma redacção como a do n.° 2. do § 81 tem, claramente, virtualidades
para — como deve ser — compreender também a lei nova que elimine uma con-
dição positiva de procedibilidade (p. e., a exigência de «queixa») ou que alar-
gue os prazos dentro dos quais se tem que verificar quer as condições positivas
(ainda, como exemplo, a «queixa») quer as negativas (p. e,, a prescrição do
procedimento criminal) da procedibilidade ou que alargue o prazo de prescrição
da pena.
Todas estas circunstâncias (condições, prazos, etc.), sendo pressupostos
de procedibilidade, não deixam, por isso mesmo, de ser condicionantes da efec-
tiva responsabilidade penai, pois que esta só através do processo penal se pode
concretizar, o processo penal é, verdadeiramente, o «modus existendi» do direito
penal.
Por seu lado, uma formulação como a do n.° 3 do § 81, ao — e bem —
continuar a adoptar a categoria ampla, mas exacta, da «responsabilidade penal»
(extinção ou atenuação desta), permite abranger, directamente, as hipóteses
inversas de lei nova criadora de uma condição positiva de procedibilidade ou
redutora dos prazos. Com efeito, tal nova lei acaba por extinguir, na prática,
a responsabilidade penal de determinados agentes ( s o ).

(50) V. infra, 2." Parte.


90 1." Parte — O princípio da aplicação

2. Entre as questões a que, nesta 1." Parte, procurarei dar espe-


cial atenção, saliento: a "conversão" de uma determinada conduta
de crime em contra-ordenação, e vice-versa; a alteração das condi-
ções objectivas de punibilidade; a inconstitucionalidade do limite do
caso julgado, recentemente expurgada pelas Leis n.° 48/2007, de 29
de Agosto, e n.° 59/2007, de 4 de Setembro.
Não posso deixar de apoiar a eliminação do inconstitucional
obstáculo do caso julgado à aplicação retroactiva da lei nova que
reduza a responsabilidade penal (S1). Problema' diferente é o da
forma como esta eliminação foi. feita: esta, sim, é, como no local
adequado veremos, imperfeita e geradora de dificuldades na sua apli-
cação prática.

(51) V. infra, 4 ° cap. desta 1." Parte.


1.° CAPÍTULO
A PROIBIÇÃO DA RETROACTIVIDADE DA LEI
PENAL DESFAVORÁVEL (CRP, ART. 29.°, N. os 1
- l. a PARTE, 3 - 1." PARTE, 4 - 1." PARTE;
CP, ARTS. N.° 1, E 2.°, N.° 1)

I. Caracterização Sumária do Estado Absoluto, sob os Aspectos


Jurídico-Político e Jurídico-Penal

1. A nítida compreensão da ratio e do alcance do princípio da


legalidade criminal e do seu corolário da proibição da retroactivi-
dade in malam partem pressupõe uma breve referência às relações
indivíduo-Bstado no Ancien Regime.
No plano político, a soberania real afirmava-se como um poder
supremo e absoluto sobre os cidadãos, reduzidos estes à condição
de verdadeiros súbditos. Esta absolutização era revigoràda pela
sacralização do poder, mediante a teoria da origem divina do poder
real. «Titular exclusivo do poder legiferante («quod principi placuit
legis habet vigorem»), colocado acima das suas próprias leis («prin-
ceps a legibus solutus»), administrador e juiz único e supremo» (S2),
naturalmente que não havia lugar para a afirmação institucional de
quaisquer direitos individuais e das correspondentes garantias.

( 5 Z ) TAIPA DE CARVALHO, Condicionalidade Sôcio-Cultural do Direito Penal,


Coimbra (1985), 36 — sep. do número esp. do BFDUC «Estudos em Homenagem
aos Profs. Doutores PAULO MERÊA e BRAGA DA C R U Z » .
92 1." Parte — O princípio da aplicação

O indivíduo estava reduzido à sua dimensão de sujeito, tomado


este termo no seu significado etimológico de quem jaz sob o impé-
rio do rei, de subordinado, de incapaz de reagir político-juridicamente
contra a vontade do poder político (33).

2. No plano jurídico-penal, domínio privilegiado para a ape-


tência instrumentalizadora do poder político, todo este despotismo
institucionalizado se manifestou. Sequência e consequência necessárias
foram, naturalmente, as arbitrariedades legislativas e judiciais: cruel-
dade, casuísmo e classismo das penas, transmissibilidade penal, uti-
lização máquiavélica das medidas de clemência — eis o panorama
temido e temível.
Num tal contexto de sujeição, não havia espaço para qualquer
garantia política do indivíduo contra o «ius puniendi»; não era, portanto,
imaginável qualquer limite à aplicação retroactiva da lei penal (54).

3. Certo que houve, mesmo num tal contexto, leis que estabe-
leceram a eficácia só para o futuro (5S); mas não é menos verdade que
tais leis visaram, normalmente, limitar o arbítrio judicial que não o
legislativo. Outra força e objectivo não podiam ter, pois que o poder
político — o rei — estava acima das suas próprias leis, não podendo
por elas ser vinculado.
A insegurança jurídica individual era, deste modo, permanente.
Assim, K R E Y (5S) escreve: o princípio da legalidade penal, até aos fins
do séc. XVIII, tem algo, mas muito pouco, a ver com o princípio «nullum cri-

(í3) Sobre a caracterização potítico-jurídica do Estado absoluto (sécs. xv-xvin)


e a sua gestação baixo-medieval, ver, p. e., TOMÁS y VALIENTE, El Derecho Penal
de la Monarquia Absoluta, Madrid ( 1 9 7 6 ) ; Orro BACHOF, «Estado de Direito e
Poder Político», in BFDUC, L V I . ( 1 9 8 0 ) , 3 ; TAIPA DE CARVALHO (n. 5 2 ) , 2 6 - 3 8 .
(M) C f . EDUARDO CORREIA ( n . 5 ) , 8 2 - 3 e 1 0 3 - 4 ; TAIPA DE CARVALHO, Con-
dicionalidade... (n. 52), 38-45.
( S I ) SPOTOWSKI (n. 3 ) , referindo-se à história do direito penal polaco, diz que
a proibição da retroactividade da lei criminalizadora foi, quase constantemente, con-
sagrada, desde o séc. xiv, embora a proibição da retroactividade da lei agravante da
pena — «lex severior retro non agit» — tivesse sido, muitas vezes, desrespeitada,
(56) Keine... (n. 4), 3-12.
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 93

men» do Estado de Direito. Algo, pois que já se salienta a função de protec-


ção e de garantia frente ao arbítrio judicial; muito pouco, na medida em que a
subordinação do juiz à lei era ditada por razões de centralização do poder real
e, assim, não impedia a arbitrariedade das decisões deste. Tratou-se, na gene-
ralidade dos exemplos históricos (p, e., Lei das XII Tábuas, séc. v a. C.; Cons-
titutia Criminalis Carolina, séc. xvi), de suprimir, circunstancialmente, a arbi-
trariedade dos juízes, para afirmar o pleno e absoluto domínio do arbítrio
legislativo.
Por isto, conclui K R E Y que a matriz do princípio da legalidade nas
suas quatro exigências é o novo contexto político-cultural do Estado de Direito
Liberal.
Na mesma linha, B A C H O F ( 57 ) afirma: as garantias judiciais, não sendo
desconhecidas do mundo político da Idade Média, «eram, no entanto, muito
incompletas e em qualquer caso, de muito difícil acesso ao comum das pessoas...
e não sobreviveram à época do absolutismo».

EL Fundamento Político-Jurídico: o Estado-de-Direito e a Génese


Histórico-Política da Proibição da Retroactividade da Lei
Penal Desfavorável — a Segurança Individual como Garan-
tia Político-Constitucional

1. Passadas as invasões napoleónicas e constitucionalizados os


ideais liberais na primeira Constituição Portuguesa de 1822, a Lei de
14 de Fevereiro de 1823. «convidava à apresentação futura de um
projecto de Código Criminal, que seja conforme às luzes do século, e
aos princípios estabelecidos na Constituição Política da Mortarchia,
consignando prémios ao seu auctor ou auctores, se mais de um pro-
jecto, julgado digno, viesse ao concurso» (58). Tornava-se urgente
reformar o direito penal constante das Ordenações Filipinas e de legis-
lação extravagante, que possibilitava todas as espécies de arbitrariedades.
Os arts. 9°, 10° e 11." da Constituição Política de 23 de Setem-
bro de 1822, «firmando — como anota HENRIQUES SECCO ( S 9 ) —

(57) «Estado...» (n. 53), 3.


( 5 A ) A , L . S . HENRIQUES SECCO, Memorias do Tempo Passado e Presente
para Lição dos Vindouros, t. II, Coimbra: Imprensa da Universidade (1889), 1-2.
(*>) Memorias... (n. 58).
94 1." Parte — O princípio da aplicação

princípios inconciliáveis com a legislação subsistente ao tempo, de


certo modo estabeleciam as bases para a reforma a emprehender».
Em resultado deste público convite e da comissão cpimbrã, já
anteriormente (18 de Novembro de 1821) criada, foram elaborados
alguns projectos de Código Criminal. Armazenados, contudo, no
silêncio indiferente das gavetas, durante várias décadas, acabaram
por ver a luz da publicação só nos anos oitenta do mesmo século, gra-
ças à diligência do mencionado HENRIQUES SECCO.
Proclama o art. 11 ° de um dos projectos: «Nenhum delicto será
punido senão com a pena estabelecida na lei promulgada anteriormente
da sua perpetração» ( 60 ).

2. Em Portugal, se o sonho da elaboração de um código penal,


que concretizasse os novos princípios do Iluminismo Criminal e as
garantias individuais face ao Estado, foi precoce (61), só tardiamente
foi satisfeita a aspiração, em 1852, com a entrada em vigor do pri-
meiro Código Penal Português.
O Código de 1852 consagrou, obviamente, o princípio da proi-
bição da retroactividade da lei penal (art. 69.°), princípio que se
impunha desde o texto constitucional de 1822.
62
LEVY MARIA JORDÃO ( ), ao comentar este artigo, salientou a
conexão entre o crime e a correspondente pena, conexão indispen-
sável para impedir o arbítrio judicial: «Assim como a lei não quiz que
nenhuma acção fosse julgada criminosa sem que uma lei anterior a
qualificasse como tal (art. 5.°), do mesmo modo determinou que,
sendo assim qualificada, só fosse punida com as penas expressa-
mente determinadas na legislação».

(®) In H . SECCO ( n . 5 8 ) , 1 5 2 .
(61) Já, em 1786, Pasehoal José MELLO FREIRE tinha apresentado um pro-
jecto de código criminal, inspirado nos princípios da filosofia política e penal ilu-
minista, defendidos por MONTESQUIEU e BECCARIA:
Pode ler-se, com interesse, a Introdução ao (projecto) Código Criminal inten-
tado pela Rainha D. Maria I, 3." ed., Coimbra: Imprensa da Universidade (1844),
xvn-xxxi.
(62) Commentario ao Codigo Penal Portuguez, t. 1, Lisboa: Morando
(1853), 169.
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 95

3 . SILVA FERRÃO (63), na linha da matriz histórica do princí-


pio da legalidade penal como garantia política dos cidadãos, escre-
veu, em termos que ilustram o calor político da época: «Sucedeu o
governo absoluto, com quanto paternal, de D. João VI, e em seguida
o do immortal D. Pedro IV, que, realisando o pensamento e a reso-
lução de seu Augusto Pae, qual outro D. Duarte, nos outorgou a
nova Lei Mental, Código Sagrado das nossas liberdades e da orga-
nisação do paiz em todos os ramos da publica administração.
A Carta Constitucional de 1826 nos deu de prompto immensos
benefícios, em relação ao Direito Penal. O arbítrio foi abolido: o
império da lei, e somente da lei, foi restabelecido. A nenhuma se per-
mitiu effeito retroactivo.»

4. A exigência de certeza jurídica, ao serviço da garantia dos


direitos individuais do cidadão, não se podia compadecer com a dis-
tinção — que já remontava ao direito romano — entre crimes natu-
rais e crimes legais.
Escrevia SOUSA PINTO O34): «... porque achámos no Digesto o
título de extraordinariis çrim., aonde se punem como crimes, factos que
não são crimes ordinários, mas extraordinários, isto é, que não estão
qualificados como taes na lei, e todas as legislações antigas seguiram
o mesmo systema, e já vimos que hoje mesmo alguns escriptores
seguem a mesma opinião, como Silvestre Pinheiro e Sancta Anna.»
De seguida, partindo da dificuldade da distinção, com a conse-
quente insegurança do indivíduo frente à arbitrariedade judicial que
a fluidez da distinção potenciava, afirma: «Este systema porem da arbi-
trariedade foi vivamente atacado pelos criminalistas do século xvrn,
que julgaram incompatível com elle a liberdade, e por isso consig-
naram, como já vimos, o da inflexibilidade da lei, que apesar de
todos os defeitos apontados é preferível; porque esses defeitos, como

(63) Theoria do Direito Penal Applicada ao Codigo Penal Portuguez, t. I,


Lisboa: Universal (1856), LIN.
(64) Lições de Direito Criminal Portuguez, Coimbra: Imprensa da Universi-
dade (1861), 54-5.
96 1." Parte — O princípio da aplicação

havemos de vêr, se se não podem remediar de todo, podem modifi-


car-se com o systema do máximo e do mínimo, e das circunstân-
cias atenuantes. É melhor que fiquem fora da esphera da justiça
legal alguns factos que n'ella deviam ser comprehendidos, dó que dei-
xar a incriminação d'elles dependente do arbítrio d'um homem,
legislador ou juiz, porque essa dependendo tornaria illusoria a segu-
rança e a liberdade do cidadão, o qual podia vêr a cada momento
elevadas a crimes as acções mais innocentes, e praticadas na melhor
boa fé.»

5. O mesmo autor, persistindo na ratio de segurança jurí-


dico-política do princípio da legalidade penal, salienta, de seguida, o
lógico corolário do nullum crimen sine praevia lege: «Ainda mesmo
havendo lei, o facto não será. crime, se essa lei não fôr anterior a elle,
como ordena o citado artigo 5.°; porque sendo posterior, verifi-
car-se-hão os mesmos inconvenientes, como se não existisse. Nin-
guém poderia estar seguro de não commeter crimes; e sendo a lei feita
depois do facto, podia resentir-se d'odio ou affeição pelo autor
d'elle. Praticado o facto, não existindo lei, ou existindo uma e jul-
gando-se por outra posterior, seria privar o auctor d'elle, do direito
que tinha adquirido para ser julgado por outra [refere-se, natural-
mente, à lei do «tempus delicti»]. Portanto, não se deve dar à lei
effeitó retroactivo, mas observar a regra: moneat priusquamferiat.»

Na frase «e sendo a lei feita depois do facto, podia resentir-sè d'odio ou


affeição pelo autor d'elle» sugere o Autor uma proibição absoluta da retroac-
tividade da lei penal, incluindo, portanto, a lex mitior: a lei nova favorável
poderia — considera — ser ditada pela «affeição» do legislador para com o
infractor.
SOUSA PINTO acabou, por aceitar a excepção da retroactividade favorável,
de acordo com o art. 70.° do CP 1852 e os princípios político-criminais da
escola correccionalista.
— Esta observação, a propósito de SOUSA PINTO, leva-nos a uma breve
referência à nota 4 2 da pág. 1 8 da importante monografia de CASTANHEIRA
6S
N E V E S ( ), onde este Autor considera que a proibição da retroactividade da

(65) O Princípio... (n. 4).


1." Capítulo — A proibição da retroactividade 97

lei penal se pode fundamentar também na separação dos poderes. Este prin-
cípio, que visa também impedir a interferência do legislador na actividade
jurisdicional, seria parcialmente frustrado pela retroactividade da lei desfa-
vorável.
Ora é provável que, nas primórdios da afirmação do'Estado de Direito, o
princípio da separação dos poderes tenha desempenhado um papel importante
na proibição da retroactividade da lei penal, independentemente de a lei nova
ser desfavorável ou favorável.
Todavia, o que não será rigorosamente exacto é referir a separação dos
poderes apenas à proibição da retroactividade da lex severior, uma vez que
esse mesmo princípio e raciocínio levaria, da mesma forma, à proibição da
retroactividade da lex mitior, o que, praticamente desde os princípios do séc. xix,
não aconteceu. Já o paradigmático código penal napoleónico de 1810, art. 4.°,
consagrava a retroactividade da lei penal favorável.
Não se pode, ainda, esquecer que sempre o poder político-legislativo pôde
interferir na actividade judicial, através das medidas de clemência, concreta-
mente através da amnistia.
Diga-se, por fim, que CASTANHEIRA N E V E S acaba por reconhecer que «o sen-
tido comum de garantia que vai associado à não retroactividade criminal tem a
ver sobretudo com a intenção do ius puniendi estadual em ordem a impedir a
incriminação persecutória ou o «arbítrio ex post» nesse domínio».

6. A adesão de HENRIQUES DA SILVA às grandes linhas do ideá-


rio da escola sociológica criminal italiana não fez com que ele — dife-
rentemente do que aconteceu com muitos dos defensores da Escola
Positiva — perdesse de vista a fundamentalidade do princípio da
irretroactividade da lei criminal desfavorável.
Este culto e dos mais valiosos professores da Escola de Coim-
bra, embora influenciado pela teoria do delito natural de Garofalo,
reconhecia que os chamados «delictos naturaes, isto é, aquelles que
offendem directamente os sentimentos gerais de probidade e pie-
dade», embora teoricamente não precisassem de estar especifica-
dos na lei, todavia, como «a história nos dá' sobejos exemplos do
que pôde o despotismo, quer religioso quer político, é da máxima
conveniência e de necessidade até, o determinar expressamente
quaes são os factos qualificados como crimes. A revolução fran-
cesa, como protesto contra os magistrados do antigo regime, que
arbitrariamente julgavam como crimes extraordinários muitos fac-
tos que normalmente não seriam crimes, estabeleceu o princípio
98 1." Parte — O princípio da aplicação

da fixação e limitação legal», dali irradiando para todas as nações


• civilizadas ( 66 ).

7. Esclarecida a razão do «nullum crimen sme lege scripta» e,


implicitamente, reivindicadas as exigências do «nullum crimen sine
lege precisa» e do «nullum crimen sine lege stricta», HENRIQUES DA
67
SILVA C ) alerta para a importância do «nullum crimen sine lege prae-
via» para os direitos individuais: «Devemos ter sempre presente o
espírito que animou a Revolução Francesa, ao declarar, entre os direi-
tos garantidos do indivíduo, o princípio da não retroactividade da lei.
Esta affirmação revolucionária representa uma larga e penosa
experiencia histórica; é um protesto contra o despotismo e prepo-
tências arbitrárias do velho regimen. Hoje consigna-se em todas as
legislações; porque subsiste sempre a necessidade de reprimir os
desmandos do poder, pois jamais a tyrannia assumiu uma forma tão
dissimulada, inteligente e astuciosa.»

IH. Fundamentação Político-Críminal da Proibição da Retroac-


tividade da Lei Penal Desfavorável: o Princípio da Culpa
como Fundamento e Limite da Pena e o Sentido da Prevenção
Geral de Intimidação da Pena

1. É inegável, como se demonstrou, que o princípio da legali-


dade criminal e, especificamente, o seu corolário da irrectroactividade
in malam partem surgiu, historicamente, integrado nas garantias
jurídico-individuais. Teve, pois, na sua génese, uma motivação e
uma ratio de natureza essencialmente político-jurídica, Logo, à
nascença, foi visto como uma das coordenadas fundamentais do
Estado-de-Direito e, como tal, assumiu, desde o início, dignidade
constitucional ( 68 ).

( S S ) A . HENRIQUES DA SILVA, Sociologia Criminal e Direito Penal — lições ao


anno lectivo de 1904-1905, coligidas pelos alunos A. Dinis da Fonseca e A. C.
Pires de Lima, Coimbra: Imprensa da Universidade (1905), 119-120.
(«) Sociologia... (n. 66), 162.
(6S) Cf. supra, nota 7.
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 99

2. Assumido, lógica e necessariamente, pelo direito penal, foi


este princípio enriquecido pela perspectiva político-criminal. À fun-
ção jurídico-política veio, progressivamente, juntar-se a fundamentação
poKticó-criminal. Decisivos na afirmação da ratio político-criminal
da irretroactividade da lei criminalizadora ou agravadora da pena
foram os contributos da teoria do fim preventivo-geral da pena e do
princípio clássico da culpa.

3. O pensamento da prevenção geral, sobretudo através da teo-


ria, um tanto mecanicista e utilitarista, da coacção psicológica («psy-
chologische Zwang») de FEUERBACH, trouxe um novo fundamento à
proibição da retroactividade. Se a finalidade da pena é prevenir o
crime, por via da intimidação (ameaça penal legal), naturalmente
que a lei que define o crime e estabelece a respectiva sanção (cone-
xão legal entre o crime e a pena) tem de, não apenas ser clara e
precisa, mas também de ser anterior ao facto que a comunidade quer
impedir que aconteça.

Estou a procurar salientar a importância que, desde os fins do séc. xvm,


o pensamento da prevenção geral de intimidação (nomeadamente, a teoria da
«coacção psicológica») teve para a afirmação da irretroactividade da lei penal.
Foi, efectivamente, um contributo intra-sistemático, ou seja proveniente do pró-
prio direito penal, que veio acrescer ao originário e persistente fundamento
político-jurídico-constitucional.
Portanto: prevenção geral «iluminista» como contributo histórica, não
como fundamento.
Não, há, pois, qualquer contradição entre o reconhecimento do papel adi-
cional desempenhado, historicamente, pela teoria da prevenção geral, hoje rotu-
lada de «negativa» (= intimidação), na proibição da retroactividade desfavorá-
vel e a recusa da actual neo-iluminista tentativa (partilhada, em certa medida,
por R O X I N e por JAKOBS, entre outros) de fundamentar o princípio da legalidade
e seus corolários numa reformulada — em função do novo contexto sócio-cultu-
ral — prevenção geral (de integração).
Assim, também CASTANHEIRA N E V E S ( 69 ), de quem transcrevo algumas
breves passagens, anota: assiste-se, hoje, à «restauração do sentido geral dessa
fundamentação.,, através de análoga recuperação da prevenção geral no contexto

(69) O Princípio... (n. 4), 65-70.


100 1." Parte — O princípio da aplicação

dos fins das penas e do direito criminal em geral», «o que tem a ver com o actual
neo-iluminismo de recusa de sentidos ético-axiológicos na incriminação, a favor
de uma sua apenas racional funcionalização social, e não menos com o cepti-
cismo que atinge inclusive o princípio da culpa, em que esta se vê relegada
para um sentido que deixa de a referir a um fundamento ético e a reduz tão-sd
a um pragmático limite de punição num quadro de prevenção». «Será sempre
precária a eficácia preventiva'do direito penal se ele não for sustentado pela ética
social e a esta não remeter» ( 70 ).

4 . A Escola Clássica, com KANT e HEGEL, tornou bem claro


que a retroactividade da lei penal era incompatível com os irrenun-
ciáveis princípios da liberdade e da culpa, pois que estas, sendo
fundamentantes e determinantes da pena, afirmam-se, e só se afir-
mam, na accão praticada ( 7I ). Atribuir eficácia retroactiva à lei
penal desfavorável significaria uma violação da dignidade da pessoa
humana, significaria uma insuportável instrumentalização política
do «ius puniendi» ( 72 ).
O princípio da culpa constitui, portanto, ontem como hoje, um
fundamento simultaneamente jurídico-constitucional e político-criminal
da proibição da retroactividade in peius.
Verificou-se, deste modo, um reforço do fundamento político-
-jurídico da irretroactividade com a fundamentação poMtico-criminal
do direito penal, nomeadamente através do princípio clássico da culpa.

5. Houve, e há, uma coincidência dos fundamentos jurídico-polí-


tico e político-criminal da proibição da retroactividade da lei penal des-
favorável. E, relativamente à ratio jurídico-política de garantia face
ao arbítrio legislativo e judicial e à ratio político-criminal da culpa
como fundamento e limite (máximo) da pena, há não apenas uma con-
sonância prática — coincidência nos resultados da proibição da

(™) Cf., também, J . SOUSA E BRITO (n. 5 ) , 2 1 7 ; TAIPA DE CARVALHO, Con-


dicionalidade... (n. 5 2 ) , 4 7 - 5 7 e 8 0 - 9 .
(") Sobre o entendimento dos postulados da liberdade, da culpa e da pena,
na Escola Clássica, v. TAIPA DE CARVALHO, Condicionalidade... (n. 52), 57-64;.
IDEM, Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, Publicações Universi-
dade Católica, Porto (2003), 46 ss.
C2) C f . CASTANHEIRA NEVES ( n . 4 ) , 7 3 .
1Capitulo — A proibição da retroactividade 101

retroactividade desfavorável — mas também uma verdadeira conso-


nância fundamental, isto é, uma coincidência nas rationes que deter-
minam quer a proibição jurídico-política da retroactividade quer a
proibição político-criminal da mesma retroactividade. Não houve
apenas uma mera histórico-conjuntural complementaridade entre o
fundamento jurídico-político de garantia e o fundamento político-
-criminal da culpa, mas é uma e a mesma ultima ratio comum a
estes dois fundamentos aparentemente autónomos.
Na verdade, tanto a intenção (ratio) jurídico-política como a
intenção (ratio) político-criminal da referida proibição têm a mesma
matriz, se preferirmos, uma ultima ratio comum: impedir a instru-
mentalização político-legislativa e político-judicial da pessoa humana.
Cada um dos fundamentos, embora não afirmados rigorosamente no
mesmo momento histórico, radica, em última análise, na dignidade da
pessoa humana e na consequente exigência de protecção da liber-
dade que define, de modo essencial, essa dignidade ( 73 ).
Bastará pensar no sentido que a doutrina dos direitos naturais
individuais e a legislação, desde a segunda metade do século dezoito,
constante e repetidamente, atribuíram à proibição da retroactividade da
lei penal desfavorável (74) e no sentido que a Escola Clássica, nomea-
damente KANT, imputou ao princípio da culpa, qual obstáculo intrans-
ponível pela tendência do poder político a instrumentalizar a pessoa.
Se assim foi no momento inicial (2.a met. séc. xviu-l. tt met.
séc. xix), parece-me que este entendimento sobre a confluência funda-
mental dos dois princípios jurídico-político e político-criminal continua
— deve continuar — a ser, hoje, irrecusável: a defesa e protecção da
pessoa humana na sua dignidade natural — trate-se de cidadão que
(ainda) não .delinquiu ou de cidadão delinquente — tanto determina a
afirmação do princípio da culpa como pressuposto-fundamento e limite
da pena como determina a proibição da retroactividade in peius.

C3) Creio ir neste sentido a posição de CASTANHEIRA NEVES (n. 4 ) , 7 3 - 7 5


e 82-84. Ver, também, SOUSA E BRITO (n. 5 ) , 2 2 7 ss.
í74) Constituição Francesa de 1793, art. 14.°: «La loi qui punirait les délits
commis avant ou'elle existât, serait une tyrannie; 1'effet rétroaotif donné a la loi
serait un crime».
102 1." Parte — O princípio da aplicação

É entendimento dominante, tanto na doutrina constitucional


quanto na penal, que quer o princípio da culpa quer o princípio da
irretroactividade penal desfavorável são garantias individuais ou, tal-
vez mais correctamente, direitos fundamentais da pessoa humana.
Se o segundo tem formulação explícita nos textos constitucionais
(na nossa, CRP, art. 29.°, 1.-1." parte, 3.-1." parte, 4.-1." parte), o
primeiro — o princípio da culpa — está consagrado, implicitamente,
ao longo de todo o articulado constitucional sobre os «direitos, liber-
dades e garantias», articulado cujas disposições são alimentadas por
uma raiz comum que é a dignidade da pessoa humana, verdadeira
pedra angular de todo o Estado-de-Direito e que, por isso mesmo, vem
logo à cabeça da Constituição (CRP, art. l.°-l. a parte).
Significa isto, em resumo, que uma concepção humanista da
política criminal verá, sempre e independentemente da sua funda-
mentação política, na proibição da retroactividade da lei fundamen-
tadora ou agravante da pena um dos seus princípios essenciais.
Uma tal concepção não deverá esquecer que o direito penal só
se pode justificar no postulado antropológico da liberdade e da cul-
pabilidade e que estas se afirmam e decidem na acção.
Deve, por outro lado, observar-se que a originária fundamenta-
ção jurídico-política, historicamente bem situada, não foi uma super-
ficial fundamentação político-ideológica com toda a relatividade e tran-
sitoriedade que tal implicaria. Se é indiscutível que a proibição da
retroactividade da lei criminalizadora ou da lex severior se afirmou
num contexto ideológico bem determinado, há, todavia, que reconhe-
cer que a essência, a ratio desta proibição (como do princípio da
legalidade penal em todas as suas exigências) transcende e trans-
cendeu essa contingência histórica, na medida em que derivava e
deriva (irradia) da dignidade humana e dos seus correspondentes
direitos naturais. É que os mais elevados e perenes valores desco-
brem-se e reconhecem-se, normalmente, na nebulosidade do cir-
cunstancia] histórico.
Foi isto que se passou com o princípio da legalidade criminal,
concretamente com o seu corolário da irretroactividade da lei penal
desfavorável. A essencialidade humana deste princípio fez com que
ele persistisse na sua afirmação vital, para além da morte da ideolo-
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 103

gia política individualista em que se manifestou e independentemente


das mutações ideológico-políticas destes últimos dois séculos.

Tal não significa que oprincípio tenha uma efectiva vigência em muitos
dos Estados, apesar da sua consagração formal.
Eclipses formais do princípio da legalidade e, portanto, do seu corolário
da irretroactividade desfavorável, houve-os no nacional-socialismo e no estali-
nismo C75).
Já inteiramente diferente foi a disposição do n.° 10 da «Proclamação do
Conselho de Controle» das Forças Aliadas, que estabeleceu a punibilidade
retroactiva dos crimes de guerra, dos crimes contra a paz e contra a humanidade
— disposição retomada pela «Convenção Europeia dos Direitos do Homem»
(art. 7.°-2.) —, pois que se tratava, no geral, de factos puníveis pela consciên-
cia universal e mesmo, o que é mais decisivo, pelo direito dos Estados a que
pertenciam os acusados, não sendo a ordem do superior hierárquico causa de
exclusão do crime.
Refira-se, por fim, que a proibição da retroactividade desfavorável não
foi desrespeitada pela legislação com valor constitucional saída do «Movimento
das Forças Armadas». Na verdade, a Lei n." 3/75 apenas atribuiu à «Junta de
Salvação Nacional» a «competência para promover o julgamento dos responsáveis
políticos do regime anterior, que, no desempenho das suas funções, comete-
ram crimes políticos ou comuns previstos e punidos por lei ao tempo vigente»
(art. 10.°-10.).

6, Esta afirmação de que o fundamento jurídico-político e o


fundamento político-criminal têm a mesma ultima ratio na digni-
dade da pessoa humana não implica que ambos tenham tido a mesma
força dinamizadora e vinculativa da práxis doutrinal, legislativa e
jurisprudencial. Tem mesmo de reconhecer-se que tem sido o fun-
damento jurídico-político, esta ratio de garantia da segurança indi-
vidual, face à sempre presente possibilidade de arbitrariedade legis-
lativa (mesmo nos Estados ditos democráticos e, dentro destes, mais
nos apoiados em «maiorias», pois que o poder até faz esquecer a
transitoriedade dos seus agentes), o que tem garantido a permanente
afirmação da proibição da retroactividade desfavorável.

C75) V., entre outros, PAGLIARO, «Legge Penale nel Tempo», in ED, XXIH,
Strafrecht A.T. 1, Heidelberg: Muller ( 3 9 8 3 ) , 149-50.
1 0 6 3 - 4 ; MAURACH-ZIPF,
104 1." Parte — O princípio da aplicação

O que se acaba de escrever é comprovado pela própria história


da política criminal dos últimos cem anos. Como veremos, de
seguida, foi a persistente consciência política da necessidade de pre-
venir o arbítrio do poder legislativo e do poder judicial que garan-
tiu a contínua afirmação constitucional do princípio da irretroacti-
vidade.
A não continuidade de tal consciência teria permitido que as
novas concepções político-criminais dos fins do séc. xix e princí-
pios do séc. xx tivessem levado à afirmação legal e prática do prin-
cípio da retroactividade da lei penal, mesmo que desfavorável.
Tal não aconteceu porque a ratio político-jurídica da proibição da
retroactividade, devida à sua maior «visibilidade», «sensibilidade»
ou «transparência», a tal se opôs.
Na realidade, o pensamento político-criminal da Escola Posi-
tiva, esvaziado de qualquer seiva ético-axiológica e esquecendo o
postulado antropológico da liberdade humana, negava ou menospre-
zava a culpabilidade e acabava por ver na pena somente o mais efi-
caz meio de defesa da sociedade contra os infractores das suas regras
de conduta ( 76 ).
Negado o fundamento da culpabilidade, a reacção criminal deve-
ria decidir-se e quantificar-se em função do estado de antissocialidade
oú perigosidade delinquente. A lógica consequência desta redutora
perspectiva positivista (biológica e/ou sociológica) — que também
conduziu à desvalorização da prevenção geral — foi a de que a
«pena» aplicável deveria ser a da lei que estivesse em vigor no
momento da decisão (ou mesmo durante a execução), fosse favorá-
vel ou prejudicial ao delinquente. Quer dizer, em vez do princípio
da proibição da retroactividade (desfavorável), o princípio da aplicação
imediata («retroactiva») da lei criminal.
Esta concepção político-criminal que imputava à pena um exclu-
sivo sentido de prevenção especial e uma finalidade de mera defesa
social só não se terá concretizado, ao nível da aplicação da lei penal

C76) Sobre o positivismo naturalista e jurídico da Escola Positiva v. TAIPA DE


CARVALHO, Condicionalidade... (n. 5 2 ) , 6 8 - 7 6 ; IDEM, Direito Penal (n. 7 1 ) , 5 1 ss.
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 105

no tempo, afirmando a sua lógica retroactividade, porque a cons-


ciência política e a doutrina jurídico-constitucional — menos sensí-
vel às mudanças de rumo político-criminal e mais sensível e preo-
cupada com as garantias fundamentais do cidadão — a tal se opôs.
Diga-se que, mesmo dentro dos penalistas que acolheram as
grandes linhas do ideário positivisto-criminológico, os mais avisa-
dos e sensíveis ao valor da liberdade preferiram sacrificar o que pen-
savam ser o melhor, segundo o seu ponto de vista polítíco-criminal,
em favor da garantia política frente à omnipresente tentação de abuso
estadual do ius puniendi. Estes não. tiveram a memória tão curta
que os fizesse esquecer o despotismo do «Antigo Regime» e foram
suficientemente avisados para ter sempre presente a tentação de sub-
verter por dentro o próprio Estado-de-Direito.

7. Isto demonstra que o fundamento político-jurídico da proi-


bição da retroactividade desfavorável, surgindo embora numa deter-
minada conjuntura histórica, revela-se como conatural à pessoa
humana e ao Estado-de-Direito e tem as virtualidades para se afir-
mar como postulado não só político mas também ético-axiológico.
É uma exigência ético-política e ético-penal.
Em conclusão; o apelo à ratio política de segurança jurídica do
indivíduo constituiu, constitui e constituirá um obstáculo à subver-
são do princípio da não retroactividade da lei penal desfavorável,
subversão a que certas concepções político-criminais poderiam con-
duzir.

8. Penso que nada melhor, para ilustrar o que acabo de afirmar,


do que recorrer à posição de HENRIQUES DA SILVA quanto a esta
matéria do primado «prático» da ratio,jurídico-política, nos casos de
eventuais tensões entre a concepção político-jurídica (irrectroactivi-
dade da lei penal desfavorável) e uma concepção político-criminal
que defendesse a retroactividade da lei penal (favorável ou desfavo-
rável).
A atitude deste Autor, face ao problema penal, é eclética. Ape-
sar de influenciado pela Escola Positiva, manteve-se fiel aos princí-
pios fundamentais do Iluminismo Criminal e à defesa das garantias
106 1." Parte — O princípio da aplicação

individuais C77). Foi esta consciência política que o impediu de mer-


gulhar em pleno nas teses radicais do positivismo criminológico ita-
liano, seu contemporâneo.
Porque o meu entendimento sobre este ponto dos fundamentos
da proibição da retroactividade in peius já foi suficientemente exposto,
vou apenas transcrever, resumidamente, o «diálogo» que HENRIQUES
78
DA SILVA C ) «recriou» entre a Escola Clássica e FLORIAN, um dos
principais arautos da Escola Positiva.

Relata HENRIQUES D A SILVA: «Resumidamente, diremos as reformas que


porventura deveriam fazer-se em face das modernas ideias da escola positiva.
FRORIAN, escriptor italiano, publicou sobre este assumpto uma monogra-
phia — a lei penal no tempo — nos n. os 11 e 12 (julho de 1894) do 4 ° anno
da Revista scientifica La scuola positiva, de que daremos notícia e à qual fare-
mos algumas observações.
FLORIAN defende a retroactividade absoluta e amplíssima da lei penal.»
« I . Pará que serve a lei penal? pergunta FLORIAN. Para defender a socie-
dade, para a libertar das tendencias perturbadoras.
Logo as ultimas leis devem ser as melhores, por isso que estão mais em
harmonia com o estado actual da sociedade e portanto mais aptas para defen-
der esta das actuaes tendencias criminosas.
Não é o perigo passado que é preciso conjurar, mas o presente; por isso,
e para a defesa social, deve preferir-se a ultima lei.»
«Portanto, se a nova lei exclue um facto do numero dos delictps e colloca
entre as incriminações outro que o não era, ou modifica a natureza da penali-
dade dum crime, isto quer dizer que um certo facto já não offerece perigo para
as condições sociais, ou se offerece perigo é menor, e que um outro, primeira-
mente inoffensivo, se tomou perigoso.
Da conformidade da defeza social com o perigo, não passado ínas actual,
resulta a plena legitimação do princípiojia retroactividade absoluta da lei penal.
n . Em queliiífere esta doutrina da dos clássicos e dos codigos?
FLORIAN — continua HENRIQUES D A SILVA — critica os argumentos que
a ella se oppõem, julgando-os infundados, e mostrando por outro lado que
os argumentos invocados pelos clássicos, para sustentarem a retroactividade

C7) Pode afiimar-se que, neste aspecto, há grandes semelhanças entre a posi-
ção do nosso HENRIQUES DA SILVA e do alemão, seu contemporâneo, FRANZ von Liszr
— cf. infra, nota 123; cf. supra, n.° 6 da secção u deste 1° cap.
•Cs) Sociologia... (n. 66), 154-7.
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 107

das leis mais suaves_ pódem. _também servir para defender a das leis mais
severas.
a) A lei penal não deve retroagir, diz a escola classica; o criminoso tem j
o direito de ser julgã3õ~pelã"l"éÍ~do tempo em que cometteu o delicto; e um direito |
adquirido, que tem de ser respeitado. • '
Mas, responde FLORIAN, esse pretendido direito é inconciliável na esphera • -. •
do jus penale rigoroso. --' >»• -
O único direito que o criminoso pode ter é ser julgado pelas leis do seu país. •
Aquellè pretendido direito... se é de interesse publico... também não é de
menos interesse social a retroactividade em toda a sua amplitude.
Aqui quem periga é o próprio princípio que dá origem às leis penaes: a con-
veniência e a utilidade sociaes. E deste modo, os clássicos attendem especial-
mente aos .direitos dos indivíduos, esquecendo-se dgs_djreitos_da_s.ocie.dade;
encaram a questão de um modo unilateral.
b) Outro argumento invocado contra a retroactividade absoluta consiste '
na probabilidade de, existindo ella, o legislador por meio de_uma_lei que cria
novas incriminações ou aggrava as existentes, poder fazer perseguições a quem j *—
lhe a^ouwr, - árbitmmmente.. . • \
Responde FLORIAN: Que o perigo invocado e que se pretende evitar não é s, L ,,•...,..
exclusivo da theoria da absoluta retroactividade; com egual critério se poderia -„•<:• > i
prescrever qualquer lei nova que viesse prejudicar adversarios que ainda nao tives- : v- '•
sem delinquido.» (!) — O leitor, tal como eu, deve ter-se quedado interrogativo 'ç<lt
1
e admirado, da mesma forma que H . DA S I L V A , O qual, logo de imediato, inter- ''"'"''"' "'"
vém, contraditando: «Esta observação de FLORIAN não é procedente como facil-
mente se vê. Os adversarios nestas condições podiam evitar facilmente a per-
seguição», não praticando o facto respectivo.
Acrescenta FLORIAN: — Que, se a retroactividade absoluta pôde dar lugar
a perseguição por parte do legislador, como objectam os clássicos, também
a retroactividade da lei penál mais favorável pode dar logar ao vicio opposto:
— o favoritismo.»
Mas FLORIAN, tal como os mais radicais defensores do positivisno crimi-
nológico, sente que a perspectiva preventivo-geral da pena também constitui
um obstáculo à retroactividade da lei penal e, por isso, também tenta, numa lógica
de respeito pela sua exclusiva natureza defensista e preventivo-especial da pena,
argumentar contra a teoria da coacção psicológica de FEUERBACH.
Continuemos o retrato da Escola Positiva tão bem conseguido por HEN-
RIQUES DA S I L V A .
<cc) Ha outra objecção contra a absoluta retroactividade, que é: — appli-
car-se ao delinquente uma lei mais severa, posterior ao seu facto, é injustificá-
V
vel porque o criminoso ainda não soffreu a acção dessa lei, e a coacção psy- ' ~
chologica foi regulada pela lei antigà; ora podemos suppor que', se o augmento . _
do rigor existisse ao tempo do crime, o criminoso não o commeteria.

'•'•V >.!; t
108 1." Parte — O princípio da aplicação

O mesmo se deve dizer na hypothese de uma lei nova vir estabelecer


incriminações não previstas na antiga...» (!).
HENRIQUES DA S I L V A discorda, afirmando: « F L O R I A N confia pouco nos
effeitos intimidativos atribuídos à pena: mas nós acreditamos que muitos indi-
víduos ha, em qualquer agrupamento social, que deixam de praticar o crime
por considerações sociaes ou pelo egoismo de não querer arrostar com as con-
sequências da punição.
Se as penas intimidam, não pôde ser indifferente a maior ou menor seve-
ridade.
Onde não iria o algarismo criminal se de repente se supprimissem os codi-
gos penais?».
— Esquecendo o aproveitamento que o despotismo judicial do Estado
absoluto tinha feito da figura dos crimes naturais, FLORIAN menospreza o valor
da garantia política, da segurança jurídica conatural ao princípio da legalidade
criminal, quando escreve: «a lei não pôde trazer ao espírito do indivíduo nenhuma
noção que lhe seja desconhecida, por isso que essa norma legal, antes de pas-
sar ao papel, já existia na consciência da collectividade. Não é necessária a pre-
venção da lei: — bastam a sanção moral da consciência, da educação, da opi-
nião publica, etc.».

9. Passando ao presente, sem perder o fio à meada, não será


despiciendo alertar no sentido de que o legislador e com ele, ou
mesmo antes dele, a doutrina não subvertam a ratio do princípio da
legalidade criminal e do seu corolário da proibição da retroactivi-
dade da lei penal desfavorável, recorrendo a figuras que de novo
nada têm e cujos inconvenientes político-criminais e possíveis vícios
da inconstitucionalidade parecem mais do que prováveis. Refe-
rimo-nos, à pena relativamente indeterminada cuja matriz ideoló-
gica político-criminal se situa no positivismo criminológico dos finais
do século dezanove.
Na verdade, HENRIQUES DA SILVA, apesar da sua lúcida cons-
ciência da relevância jurídico-política da proibição da retroactividade
desfavorável, não foi totalmente imune a uma certa e subtil perver-
são deste princípio, quando, fazendo uma apreciação global da apli-
cação da lei penal no tempo, concluía, um tanto contraditoriamente
com o que tinha dito: «Entrando na apreciação deste interessante e
grave assumpto, diremos que elle perde muito da sua importância,
desde que o quantitativo das penas não seja tomado em conta, isto é,
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 109

desde que a pena comece a ser indeterminada nas sentenças (79)


como é de suppôr aconteça no futuro em relação às penas restricti-
vas da liberdade.»
Embora sem uma indeterminação absoluta no máximo, HEN-
RIQUES DA SILVA acertou, infelizmente, nas suas previsões. Mas
se ainda se compreende que ele tenha feito esta predição no clímax
do positiyismo criminológico, ou seja nos primeiríssimos anos do
século XX, já parece difícil de compreender que a concretização,
posto que parcial, de tal profecia tenha acontecido em 1 de Janeiro
de 1983.
Já, em Janeiro de 1990 ( 80 ), além de ter afirmado e procurado
demonstrar que esta "pena relativamente indeterminada" era real-
mente, apesar da etiqueta enganadora do nome "pena", um misto de
pena + medida de segurança, critiquei também a enorme amplitude
da duração (possível) da parcela de privação da liberdade, corres-
pondente à medida de segurança.
Na crítica que, então, fiz — e continuo a fazer — à "perigosi-
dade" desta dita "pena relativamente indeterminada",' apresentei dois
"escandalosos" exemplos dos perigos que esta figura pode conter,
nomeadamente por causa da enorme amplitude entre os seus limites
mínimo e máximo. E, para que semelhantes decisões judiciais se não
repitam, interessa recordar um deles.
O Acórdão da Relação de Lisboa, de 23 de Janeiro de 1985,
condenou o réu (na altura, era esta a designação para o actual arguido)
— filho de pai incógnito e abandonado pela mãe aos 18 meses de
idade, tendo vivido e crescido até aos 18 anos em estabelecimentos
da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e da Casa Pia —, que,
aproveitando-se de a queixosa ter deixado a porta da residência
aberta, se tinha apoderado de 3.900$00, na pena relativamente inde-
terminada entre 16 meses e 6 anos de prisão!...

C9) Indeterminada no seu máximo, mas determinada — segundo a previ-


são de H . DA SILVA — quanto ao mínimo considerado indispensável pelas exigên-
cias insupríveis da prevenção geral e da indispensável análise do estado do delin-
quente.
(80) Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1990, p. 9 s.
110 1." Parte — O princípio da aplicação

Na verdade, mesmo que, diferentemente do que o acórdão cri-


ticado fez, se considere, como deve ser, que o acréscimo da medida
de segurança incide sobre os «dois terços da pena de prisão que con-
cretamente caberia ao crime cometido», não pode deixar de se
dizer que é de muito duvidosa constitucionalidade a possibilidade
legal de um tribunal poder aplicar uma privação da liberdade (a tal
"pena relativamente indeterminada") que tanto pode vir a durar 2
ou 6 anos de prisão, 8 meses ou 4 anos e 8 meses, ou, ainda a título
de exemplo, 4 anos ou 10 anos!... Assim, como no caso do "rapa-
zinho" da "Casa Pia", o "desgraçado" que tiver cometido 4 furtos
de pequenas quantias, e pelos quais tenha sido condenado em penas
de prisão de, p. ex., 6 meses, se vier a cometer um 5.° furto, não
está livre de "apanhar" com uma "pena" de prisão que pode durar
6 anos!
E, se, para desgraça total, tivesse sido condenado, por dois fur-
tos simples anteriormente cometidos, em penas de prisão de 2 anos
e 3 meses, então o perigo era maior: podia ser condenado numa
"pena" de prisão que podia durar nada mais/nada menos que
8 anos!!...
Diante deste cenário (que o já referido exemplo do rapaz da
Casa Pia demonstra não ser surrealista), parece-me inconstitucional
— não a "pena relativamente indeterminada" em si — mas os seus
pressupostos e a sua exagerada e desproporcionada amplitude. É
caso para dizer que, com este regime, não há "culpa da não forma-
ção da personalidade" ou "culpa da personalidade" que resista, isto
é, que possa legitimar esta híbrida figura.
Dito isto, é de estranhar que as grandes revisões do Código
Penal de 1982 (a de 1995, a de 1998 e a de 2007) tenham deixado
praticamente incólumes os pressupostos e a enorme indeterminação
desta dita "pena".
Isto faz-nos recordar o regime punitivo (que, acima, critiquei) do
"crime continuado": que contradição è incoerência político-crimi-
nal entre a excessiva e injustificada "brandura" deste e a excessiva
e injustificada severidade do regime da "pena relativamente indeter-
minada"!
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 111

Estas minhas observações críticas dos pressupostos e da exces-


siva amplitude da chamada "pena relativamente indeterminada" obri-
gam-me a discordar de FIGUEIREDO DIAS (80"a), quando, referindo-se
ao regime desta "pena", estabelecido nos arts. 83° a 90° do Código
Penal, afirma que esta «Solução [...] realiza — dentro de pressu-
postos inatacáveis do ponto de vista da regra do Estado de Direito —
aquele monismo prático que a doutrina de BELEZA DOS SANTOS pro-
punha e que justifica que o sistema português das sanções criminais
possa ser considerado, com inteira propriedade, um sistema ten-
dencialmente monista.».

Discordo da transcrição acabada de fazer. Com efeito, estabe-


lecida a aplicabilidade de medidas de segurança não privativas da
liberdade (CP, arts. 100° a 103°) a imputáveis, e a aplicabilidade de
medidas de segurança privativas da liberdade a imputáveis conside-
rados "delinquentes por tendência" (como o demonstra a chamada
"pena relativamente indeterminada"), não vejo como é que se pode
afirmar, com substância, que o nosso sistema penal é um "sistema
tendencialmente monista".
E muito menos penso que o regime da "pena relativamente inde-
terminada" seja inatacável do ponto de vista dos princípios do Estado
de Direito. Pois que, podendo os pressupostos, isto é, as condena-
ções anteriores corresponder a crimes pouco graves (como ocorreu no
caso, acima referido, do "rapazinho" da Casa Pia), crimes cujo limite
máximo da pena legal pode ser de 3 anos de prisão, e podendo
a amplitude da "pena" concreta (a distância entre o limite mínimo
— por exemplo, 2 anos de prisão — e o limite máximo — por
exemplo, 8 anos de prisão) ser igual ao dobro do limite máximo da
pena legal estabelecida para o crime em julgamento, entendo que
fica em causa o princípio constitucional da proporcionalidade (CRP,
art. 18.°/2), que exige uma proporcionalidade em sentido estrito entre
a gravidade das penas ou medidas de segurança e a gravidade do
comportamento criminoso.

(BO-A) Direito Penal - Pane Geral, tomo I, Coimbra Editora (2007), 105.
112 1." Parte — O princípio da aplicação

10, Ainda influenciado pela tese preventivo-especial da Escola


Positiva, também BELEZA DOS SANTOS, em 1 9 3 0 (81), defendeu dou-
trina recusável por incompatível com a irrenunciável segurança jurí-
dica dos cidadãos para cuja defesa e garantia se afirmou e afirma a
proibição da retroactividade da lex severior. Nesta altura, este Autor
concluiu a sua exposição sobre a aplicação da lei no tempo, dizendo,
«na esteira de FLORIAN, que a doutrina mais correcta e mais defen-
sável seria a da aplicação da lei em vigor ao tempo do julgamento,
salvo nos crimes políticos ou político-sociais».

IV. O «Tempus Delicti» (CP, Art. 3.°)

1. A importância prática desta questão é fulcral (82). O pleno


cumprimento das exigências éticas jurídico-política e político-criminal,
que determinam e fundamentam a proibição da retroactividade da
lei penal desfavorável, está dependente da determinação do chamado
tempus delicti, isto é, da fixação do momento em que se considere
cometido o crime.

(si) Lições de Direito Penal — coligidas por Belmiro Pereira, Coimbra: Neves
(1930), 124-5.
Análoga posição secundarizadora da ratio originária e perene do princípio da
proibição da retroactividade desfavorável é revelada, quando trata das «leis inter-
médias» — Cf. infra, 3." cap,, v.
— Parece, assim, não ser inteiramente exacta — pelo menos no tocante à pri-
meira fase da sua docência — a afirmação de EDUARDO CORREIA (n. 5 ) , 1 2 5 : se
PAULO MERÊA combateu o positivismo, «a BELEZA DOS SANTOS havia, depois, de ficar
a dever-se o mais decisivo esforço para superar totalmente, no que às ciências res-
peita, os quadros do pensamento positivista».
(B2) Assim, RODRIGUEZ MOURULLO (n. 5 ) , 1 2 5 ; PAGLTARO (n. 7 5 ) , 1 0 7 4 ; ENZO
Musco, «Coscienza dell'illecito, colpevolezza ed irretroattívità», in RIDPP, xxv
( 1 9 8 2 ) , 7 9 4 : «para uma correcta aplicação do princípio da irretroactividade e da
sua ratio de garantia é de fundamental importância a determinação do momento do
cometimento do crime»; SCHROEDER (n. 4 9 ) , 7 8 7 , onde considera o «tenipus delicti»
(Tatzeit) como questão Moral .da matéria da irrectroactividáde in peius, acrescentando
que a importância do «tempus delicti» ainda por ninguém foi devidamente investi-
gada. — Nota: embora haja razão nesta afirmação de SCHROEDER, há, todavia, que
não esquecer que ele escreveu isto em 1979 e que, por outro lado, como alemão que
é, referir-se-á quase só, senão mesmo exclusivamente, à doutrina alemã...
1." Capítula — A proibição da retroactividade 113

A lei penal desfavorável não pode aplicar-se a factos pratica-


dos antes da sua entrada em vigor. Certo; mas os factos previstos
e descritos na lei criminal são realidades complexas: o preceito pri-
mário ou tipo legal em sentido restrito decompõe-se em vários
elementos, de entre os quais se destaca a conduta e o resultado.
Por outro lado, sabe-se que conduta e resultado podem ocorrer,
por vezes, em momentos muito distantes entre si, sendo possível
que, no tempo intermédio, entre em vigor uma lei que criminalize
o facto ou agrave a responsabilidade penal do agente do facto pra-
ticado.
Torna-se, pois, indispensável, para este efeito da determinação da
lei competente segundo o princípio da irretroactividade desfavorá-
vel, determinar o elemento do crime a considerar decisivo na relação
temporal (anterioridade ou posterioridade) com o início de vigência
da lei penal.

2. Já houve quem defendesse que decisivo era o momento do


resultado; é, contudo, óbvio e, hoje, entendimento unânime, na dou-
trina e na jurisprudência, que o momento de referência é o da con-
duta, sendo irrelevante o momento em que se verifique o resul-
tado (83). A proibição da retroactividade da lei criminalizadora ou
agravante da responsabilidade penal significa, portanto, que esta lei
não pode aplicar-se ao agente de uma conduta praticada antes do
seu início de vigência, mesmo que o resultado dessa conduta (p. e.,
a morte) venha a produzir-se quando essa lei já estava em vigor.
Trata-se, pois, do critério unilateral da conduta.

E corrente dizer-se que a questão do tempus delicti é plurifacetada, isto


é, trata-se de um problema que respeita a diferentes institutos jurídico-penais,
como, p. e., a prescrição do procedimento criminal, a amnistia, e não apenas ao
problema da lei criminalizadora ou agravadora da pena. Assim, não seria pos-
sível uma solução unitária, mas seria indispensável um tratamento diferenciado
que tivesse em conta a teleologia especifica inerente a cada um dos institutos.

(83) Diga-se que tanto é irrelevante o momento do resultado típico como do


resultado «não tipificado». Por isto, é de considerar inútil o emprego do adjectivo
«típico» no art. 3." do CP.
8
114 1." Parte — O princípio da aplicação

Por exemplo, seria diferente o critério estabelecido no art. 3.° — e que, neste
momento, nos ocupa — do critério consagrado no art. 119." (prescrição do pro-
cedimento criminal).
Escreve CAVALEIRO DE FERREIRA (84): «Em conclusão, o conceito de tem-
pus delicti tem natureza teleológica; é um conceito normativo que só parcialmente
coincide com a realidade natural. É fixado em função dos fins próprios do
instituto em que essa fixação interessa».
Afirma, por sua vez, PAGLIARO (B5): «Os estudiosos mais recentes tem
salientado, porém, que o problema do tempus commissi delicti não tem sido
equacionado de modo correcto. Os diversos institutos que fazerii referência
ao tempo do crime têm disciplina diferente e exigências distintas. Não se
pode determinar um tempo do delito que seja válido para todos os institutos
penais» ( 86 ).
— Veremos, na 2." Parte, 1.° cap,, iv, 6. e 7., que não são exactas estas
afirmações.

A fundamentação deste critério unilateral da conduta é múltipla.


Há, porém, que distinguir entre razões essenciais ou absolutamente
decisivas e razões que devem considerar-se suplementares.
a) Razões essenciais: são, precisamente, as mesmas que deter-
minaram e determinam a consagração constitucional da proibição
da retroactividade in peius ( 87 ): a necessidade de garantia jurí-
dico-política da pessoa humana frente à possível arbitrariedade legis-
lativa ou judicial no exercício do «poder punitivo» e os princípios
político-criminais da culpa e da prevenção geral, sobretudo o pri-
meiro.
Não me irei repetir, desenvolvendo, aqui, este duplo fundamento
jurídico-político e político-criminal; a argumentação desenvolvida
em li e Hl deste capítulo aqui se aplica inteiramente.
Reavive-se apenas, como que a contrario, que se fosse rele-
vante, para este efeito, o momento do resultado, era evidente que a

(M) Direito... (n. 5), 122.


(85) «Legge...» (n. 75), 1063.
( !6 ) Cf., ainda, COBO D E L ROSAL-VIVES A N T Ó N , Derecho Penal P.G., Valên-
cia: Universidade de Valência ( 1 9 8 4 ) , 1 8 1 ; E . Musco (n. 8 2 ) , 7 9 5 ; TERESA P . BELEZA,
Direito Penal, 1." v„ Lisboa: AAHDL ( 1 9 8 5 ) , 4 6 5 - 8 .
(87) Assim, também, entre muitos, CAVALEIRO DE FERREIRA (n. 5), 120.
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 115

ratio de garantia política sairia frustrada, pois que o legislador, uma


vez praticada a conduta e antes que ocorresse o resultado, poderia
fazer entrar em vigor uma lei penal persecutória.
É, por outro lado, manifesto que a deslocação do momento da
conduta para o momento do resultado violaria o princípio da culpa:
constituindo a culpabilidade fundamento e limite da pena e sendo o
juízo da culpa um juízo de censura ética pela prática da conduta e não
peia ocorrência do resultado, necessariamente que o momento deci-
sivo tem de ser o da conduta. Digamos, por último, que censuráveis
são os agentes pelas.condutas que deles dependem e não pelos resul-
tados que são, muitas vezes, aleatórios — o que não implica que
consideremos o resultado apenas como uma mera condição objectiva
de punibilidade.

Eis a razão por que pode afkmar-se que a disposição contida no art. 3°
era dispensável, o que não quer dizer que a sua inclusão no novo C. Penal seja
incorrecta. O CP 1886 era omisso quanto a este tempus delicti; todavia, dou-
trina e jurisprudência foram unânimes — como não podia deixar de ser — na
adopção do critério unilateral que o CP 1982 (8B) veio expressamente consagrar.
No sentido da dispensabilidade de tal disposição, C O B O D E L R O S A L e
89
V I V E S A N T Ó N ( ) vão mesmo ao ponto de considerarem a correspondente
norma do direito espanhol (art. 7.° da P.L.O.C.P. e art. 6.° da Proposta de 1983)
como «absolutamente supérflua». Todavia, o novo Código Penal espanhol
de 1995, art, 7 ° , consagrou expressamente o momento da conduta como tem-
pus delicti.
— Ao aspecto da natureza aleatória do resultado fez referência o Autor
do Anteprojecto do novo Código Penal. Assim, na discussão sobre o art. 4.°
(no Código, art. 3 ° ) , respondendo à questão levantada por Guardado Lopes
— questão que consistia em saber se o art. 4.° pretendia estabelecer «uma regra
geral para determinar, em todos os casos, o tempo do delito, ou se o princípio
nele contido vale apenas para a hipótese prevista no artigo anterior [corres-
pondente ao art. 2 ° do Código]» — argumentava: «a norma do art. 4.° procura
valer para todos os casos, e não só em relação ao artigo anterior. A sua justi-

(88) Sobre o conteúdo e significado do (desvalor de) resultado no âmbito do


tipo-de-ilícito, e sobre a sua influência no fim das penas, ver TAIPA DE CARVALHO,
A Legítima Defesa, Coimbra ( 1 9 9 5 ) , 1 0 8 ss.; IDEM, Direito Penal, Parte Geral, II,
Teoria Geral do Crime, Publicações Universidade Católica, Porto ( 2 0 0 4 ) , 5 1 s..
(85) Derecho... (n. 86), 181.
116 1." Parte — O princípio da aplicação

flcação, com este âmbito geral, reside em que o momento do evento, do resul-
tado é aleatório; em direito penal, o que interessa é a vontade manifestada,
porque é esse o momento relevante, para a retribuição, para a perigosidade,
etc. Por isso, a doutrina nele contida deve valer, em princípio, para todos os
problemas e para" todos os efeitos» ( 90 ).
Como breve comentário a esta argumentação, cabe dizer o seguinte: trata-se
de uma fundamentação, em certa medida, superficial, pois que não salienta a
perene e irrenunciável ratio de garantia política da irretroactividade in malam
partem ( s l ) e da necessariamente consequente fixação do tempus delicti no
momento da conduta. Na verdade, mesmo que, por mera hipótese, o resultado
não fosse aleatório, sempre o tempus delicti, para este efeito da não retroacti-
vidade da lex severior, teria de ser p momento da conduta.
Um outro exemplo de uma imperfeita fundamentação da constitucionalmente
necessária coincidência do «tempus delicti» com o «tempus actionis» é-nos
dado por M A U R A C H - Z I P F ( 92 ), quando apenas invocam, como razão da escolha
do momento da conduta, a circunstância de o resultado só muito limitadamente
depender do agente.

b) Razões suplementares: cabem, aqui, argumentos relacionados


com a teoria da norma jurídico-penal, com a natureza pessoal do ilí-
cito penal e com a finalidade preventivo-geral da pena.
Não cabe, neste trabalho, fazer uma explanação destas comple-
xas questões doutrinais; há somente que referir o sentido de cada
um dos argumentos.
Relativamente à teoria da norma jurídico-penal, há que dizer
que a norma penal desempenha — ou deve desempenhar — uma
junção de orientação das condutas ( 93 ). Pressupondo e contendo
implícita uma valoração de determinados bens jurídicos (94), a norma
determina os seus destinatários, os cidadãos, a não praticarem (norma
de proibição) ou a praticarem (norma de imposição) determinadas

(SQ) «Actas», in BMJ, n.° 141, p. 140-1. — Itálico meu.


(") Cf. supra, U e IU-6. deste 1.° cap.
(9Z) Strafrecht (n. 75), 152.
(93) Sobre a função orientadora da conduta, que cabe à norma jurídico-penal,
ver TAIPA DE CARVALHO, A Legítima Defesa ( 1 9 9 5 ) , 1 4 8 ss.; IDEM, Direito Penal
(n. 7 1 ) , ' 2 1 6 s.
(94) Sobre a relação entre norma de valoração e norma de determinação, ver
TAIPA DE CARVALHO ( n . 9 3 ) , 7 9 s s .
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 117

condutas. Quer isto dizer: a violação da norma concretiza-se na


conduta e não no resultado (aleatório).
Este apelo à função de orientação da norma penal — função
que se aproxima do denominado sentido de prevenção geral de inte-
gração — aplica-se mais directamente à lei criminalizadora e não tanto
à lei que somente agrava a pena.
Quanto ao argumento extraído da concepção subjectiva da ili-
citude penal (a teoria do ilícito penal pessoal), pretende-se acentuar
uma ideia próxima da extraída da norma penal como norma de deter-
minação, isto é, a essencialidade da infracção penal radica no desvalor
da acção (da conduta) e não no desvalor do resultado. Na verdade,
não há ilícito penal sem desvalor de acção, enquanto pode haver ilí-
cito penal sem desvalor de resultado ( 95 ).
Finalmente, quanto ao fim preventivo-geral de intimidação da
pena, há que reconhecer que tal dinâmica de coacção psicológica
— como já vimos (96) — também nos leva a considerar como crité-
rio do «tempus delicti» o momento da conduta. A ameaça penal con-
tida na norma jurídico-criminal pretende coagir o agente a omitir ou
praticar determinadas condutas. Poderíamos dizer que se ameaça o des-
tinário da norma por aquilo que dele depende — a conduta —, e não
por aquilo que dele não depende necessariamente — o resultado.

3. Estabelecido que o momento decisivo é o da conduta, não


ficam, contudo, automaticamente resolvidos todos os problemas.
E que, se em grande número de casos, a conduta tipificada na lei apa-
rece circunscrita a um determinado momento, casos há em que a
conduta se protrai por um tempo mais ou menos longo: dias, meses
ou até anos. Pensamos, especialmente, nas hipóteses dos tipos legais
de crime duradouros, dos tipos legais habituais, nos crimes de omis-
são e, ainda, nos casos de crime continuado, de comparticipação e
de actio libera in causa.

( ss ) Sobre o ilícito penal como «ilícito pessoal», ver TAIPA DE CARVALHO


(n. 93), 111 ss., 141 ss. e 352 ss.
(S6) Cf. supra, n.° 3 da secção lll deste 1.° cap.
118 1." Parte — O princípio da aplicação

Mas não exclusivamente. Pense-se, por exemplo, num homicídio cometido


através da ministração sucessiva de quatro pequenas doses de veneno, tendo a
morte ocorrido alguns dias após a última dose. — Sendo o momento da con-
duta o decisivo, questionar-se-á, todavia, a qual dos momentos, pelos quais se
«repartiu» a conduta, se deverá ligar o tempus delicti: ao momento da ministração
da primeira dose?, ao momento em que foi aplicada a segunda?, ao da terceira
dose? ou ao momento em que foi ministrada a última dose? — Repare-se que
uma resposta tem de ser dada, no caso de, entre o momento da primeira dose
e o momento da última, ter entrado (em vigor uma lei que veio agravar a mol-
dura penal estabelecida no art. 132°, 1. e 2,-i).
— Antes de respondermos, é conveniente repetir — apesar de tal ser, em
rigor, desnecessário — que é irrelevante o momento "do resultado (morte), pelas
razões já sobejamente referidas. Se o repito, é para evitar que, precipitada-
mente, alguém, na hipótese de a L.N. entrar em vigor depois da ministração da
última dose mas antes de a morte se. ter verificado, fosse tentado a fazer.o
seguinte raciocínio: provando-se que o agente, no momento em que a lex seve-
rior entrou em vigor, ainda podia ter impedido a morte, diligenciando no sen-
tido de que a vítima fosse imediatamente internada para a necessária desinto-
xicação, então dever-lhe-á ser aplicada a nova lei, pois que a omissão foi
;
praticada na vigência da LJN.
Como deve ser considerado evidente, nada de mais errado, pois tal racio-
cínio estava inteiramente viciado. Viciadoj pois que: não há qualquèr dever de
gar.ante de impedir um resultado criminoso que se quis produzir e que, para o
conseguir, o agente praticou (acção) os actos adequados a tal efeito. Caso con-
trário, em todo o crime de comissão por acção dolosa, teríamos também um crime
de comissão por omissão dolosa, sempre que o agente, posteriormente à acção
que praticou, tivesse ainda possibilidade de impedir o resultado.
Há que não confundir dever de garante (CP, art. 10.°, 2.: omissão'jurí-
dico-penalmente relevante) com desistência (CP, art. 24°) como comporta-
mento voluntário a que a lei, numa perspectiva poKtico.-criminal de salvaguarda
dos bens jurídicos e de uma menor necessidade preventiva geral e especial da
pena, atribui o efeito de exclusão da pena. Numa palavra: o agente envenena-
dor só pode responder por crime de comissão por acção; a norma que ele, efec-
tivamente, violou foi uma norma de proibição e não unia norma de imposição.
— Feito este parêntesis, vejamos qual o momento em que se deve consi-
derar praticada a conduta homicida, para, assim, podermos decidir se ao res-
pectivo agente deveria ser aplicada a L.A. ou a L.N. — A resposta não pode,
em minha opinião, deixar de ser a seguinte: o momento decisivo e, portanto, o
tempus delicti é o momento em que foi ministrada a dose de veneno mortal, isto
é, a dose que, juntamente com as anteriores, converteu a conduta do agente
em conduta adequada a produzir a morte! É neste preciso momento que se
deve considerar praticada a conduta homicida.
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 119

Conclusão: se a L.N. (mais grave) entra em vigor antes do momento da


dose (p, e., a terceira) mortal, aplicar-se-á esta lei ao agente; se entra em vigor
posteriomente, não poderá ser aplicada, sendo, sim, aplicável a L.A.

Apesar da sua diversidade, para os efeitos da determinação do


tempus delicti, há um denominador comum e relevante em todos
eles: a inevitável ou possível «distribuição pelo tempo» da conduta
ou condutas exigidas pelo tipo ou da pluralidade de condutas que,
apesar de cada uma preencher o tipo legal, são, todavia, jurídico-
-penalmente assumidas como uma só unidade (continuação) cri-
minosa.
Pode, desde já, referir-se que este problema da determinação
do momento em que a conduta «duradoura» (naturalística, e juridi-
camente ou só juridicamente) deve considerar-se praticada tem grande
relevância, sobretudo quando a alteração legislativa agrava a res-
ponsabilidade penal, ou seja, quando a L.N., que entra em vigor, no
decurso da execução do facto, é uma lex severior,
Tratando-se delei criminalizadora, é óbvio que não há qual-
quer dúvida: só podem ser consideradas as acções que foram prati-
cadas depois do seu início de vigência; as anteriores são, evidente-
mente, irrelevantes sob o aspecto jurídico-penal, já que o contrário
constituiria uma violação da proibição constitucional da retroactivi-
dade da lei criminalizadora.
Problema também não há, quando a L JST. 'é favorável, quer por-
que despenaliza (descriminaliza) quer porque diminui a responsabi-
lidade penal (lex mitior). Nos dois casos, há, claramente, lugar à
aplicação retroactiva da L.N., porque mais favorável (97).

4. Traduzindo-se a alteração legislativa numa' agravação da


pena, a questão torna-se de grande importância prática e reveste-se
de grande complexidade. Não admira, por isto, que sejam múlti-
plas as propostas de solução. Indicá-las-emos, em síntese, preve-
nindo, desde já, que é indispensável reter o ponto seguinte: sob pena

(") Assim, p. e„ TOMÁS VIVES ANTÓN, Comentários al Código Penal de 1995,


I (1996), 65 s.
120 1." Parte — O princípio da aplicação

de inconstitucionalidade, a solução defendida tem de respeitar o


princípio da segurança jurídica (ratio jurídico-política) e o princípio
da culpa (ratio poHtico-criminal) que fundamentam a irreteoactividade
da lei penal desfavorável ( 98 ).
Eis algumas das propostas apresentadas: aplicar sempre a LA.,
salvaguardando-se, plenamente, a proibição da retroactividade in
peius; aplicar a LJN., no pressuposto de que o momento decisivo é
o da consumação da conduta e esta só se verifica com a prática do
último acto (99); aplicar a LJSL, considerando somente as condutas pra-
ticadas sob a sua vigência (10°).

5. Creio que a solução mais conforme com as rationes da irre-


troactividade da lei penal desfavorável, sem menosprezar a função de
prevenção geral da lei nova — na medida em que aquelas razões o
permitam — é a seguinte: deve aplicar-se a lei antiga, a não ser que
a totalidade dos pressupostos da lei nova se tenham verificado ha
vigência desta (101j.

(SB) Cf. supra, ll e »[ deste 1 ° cap.


(") Esta proposta depara com a objecção decisiva de que tal solução seria
inconstitucional, quando a agravação da pena, por força da L.N., tivesse em conta
a «parcela da conduta» ainda praticada na vigência da LA.
— Refira-se que o StGB (CP alemão), § 2, Abs. 2., estabelece unia solução
semelhante («Zeitpunkt der Tatbeendigung»), o que nem por isso deixa de ser intei-
ramente recusável, como vimos. Com efeito — cf. SCHROEDER (n. 49), 787 —
nem o código penal, nem a jurisprudência, nem a doutrina alemã podem consideiar-se
exemplares, nesta matéria da eficácia temporal da lei penal.
Assim, tem pouco peso a invocação que FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE,
Direito Penal (1996), 185, faz do CP alemão, § 2,2. Como já se referiu, o CP-ale-
mão mantém-se, nesta matéria, ao nível das posições defendidas no séc. xòc. Veja-se,
p. e., que o referido § 2, 3, refere, como limite à aplicação retroactiva da lex mitior
a decisão e não expressamente o trânsito em julgado; e, relativamente às medidas de
segurança, § 2, 6, ainda permite a aplicaçãoretroactivade medidas de segurança mais
gravosas do que as estabelecidas no momento da prática dos factos!
(is») paj-a u m a breve panorâmica destas diferentes propostas, pode ver-se
PAGLIARO ( n . 7 5 ) , 1 0 7 5 ; RODRIGUEZ MOURULLO ( n . 5 ) , 126-7.
(I01) Coincide ou, pelo menos, está muito próxima da solução aqui defen-
dida, a proposta de COBO D E L ROSAL-VIVES ANTON (n. 86), 182. — Em comentá-
.rio ao art. 7 ° do CP espanhol de 1995 (artigo que se refere ao tempus delicti),
escreve TOMÁS VIVES ANTÓN: « A regra para resolver os casos é a de que a lei
(nova) mais grave só pode aplicar-se aos factos praticados durante a sua vigência.
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 121

Assim, por exemplo, no caso de furto continuado, o tribunal


não poderá aplicar a LJST. mais grave, se, na continuação criminosa
de furtos simples (CF, art. 203.°) e de furtos qualificados (CP,
art. 204.°), nenhum furto qualificado tiver sido cometido durante a
vigência da lei nova que agravou a pena do furto qualificado.
O mesmo se diga para a hipótese de a LJST., agravando a res-
ponsabilidade penal pelo crime, por exemplo, de usura habitual (CP,
"art." 226.°, 4., a)), ter entrado em vigor num momento em que já
tinham sido feitos vários empréstimos usurários, tendo sido, depois
do seu início de vigência, praticado apenas um (102) empréstimo.
— Quanto aos crimes de omissão, uma vez que o dever de
acção pressupõe a capacidade da acção, decisivo é o último momento
em que o omitente ainda tinha podido praticar a acção imposta (crime
de mera omissão) ou a acção adequada a impedir o resultado (crime
de comissão por omissão).

De modo que, se só uma parte dos crimes cuja duração se prolonga no tempo foi
realizada sob a vigência da lei nova mais grave, só essa parte pode ser julgada de
acordo com ela. Pode suceder que essa parte baste paia decidir, por exemplo, a habi-
tualidade (v. g., no caso das violências previstas e punidas no artigo 153 do novo
Código — correspondente aos maus tratos «previstos no CP português, art. 152°, antes
dã revisão de 2007 —, desde que, a partir da entrada em vigor deste, tenha sido pra-
ticado um suficiente número de acções). Pode, todavia, suceder que isso não seja
assim. No exemplo apresentado, pode imaginar-se um caso em que um dos actos
de violência tenha sido praticado antes da entrada em vigor do novo Código e ape-
nas dois, depois: nesta hipótese, a pena do artigo 153, mais grave que a do 425 do
Código anterior, não se aplicaria. Com critério análogo há que operar nos demais
casos de crimes cuja duração se prolonga no tempo: para aplicar as consequências
punitivas da lei nova mais grave, é preciso que a totalidade dos actos que constituem
o seu pressuposto, se realize na vigência da nova lei».
(101) Uma vez que um só empréstimo usurário (ou mesmo dois) não confi-
gura «habitualidade» típica, aplicar a L.N. mais grave seria aplicá-la retroactiva-
mente, pois que o respectivo pressuposto criminal não se verificou na vigência desta
lei. — A revisão de 1995 substituiu a agravante «habitualidade» pela agravante
«modo de vida». O que se diz, nesta nota, não significa que eu considere equiva-
lentes os conceitos «habitualidade» e «modo de vida». Penso que este é mais exi-
gente do que aquele e, por isto, haverá muitas hipóteses que, antes da entrada em
vigor do CP revisto, eram usuras qualificadas e que, depois da entrada em vigor da
revisão de 1995, passaram, retroactivamente, a ser tratadas como usura simples.
Cf. infra, 1Parte, tu.
Assim, R . MOURULLO (n. 5), 127-8; ROSAL-ANTÓN (n. 86), 181-2.
122 1." Parte — O princípio da aplicação

Como refere J A K O B S ( ) , O tempus delicti não depende do


1 0 3

período de tempo que a acção de salvamento (caso de comissão


por omissão) duraria, mas sim do tempo durante o qual a acção
imposta se apresenta ainda como adequada a impedir o resultado.
Num exemplo do mesmo Autor, a' conduta do cirurgião que omite,
contra o seu dever, a intervenção cirúrgica que duraria algumas
horas, mas que, para ter êxito, ter-se-ia de iniciar dentro de poucos
minutos, deve considerar-se verificada nesses breves minutos que,
uma vez decorridos, tornaram uma hipotética (ou mesmo real) inter-
venção inútil.
Conclusão: a L.N. (mais grave) só se aplicará, quando entrar
em vigor antes de esgotada a última possibilidade de intervenção
jurídico-penalmente adequada.
— Comparticipação (autoria mediata, coautoria, instigação e
cumplicidade): decisivo é o momento de cada uma das condutas
consideradas de per se ( 104 ). Assim, por exemplo, se, posterior-
mente ao momento da «promessa» de A, o qual «determinou» B à prá-
tica da conduta x, ou do «auxílio» de C à prática da conduta y por D,
mas antes da prática dos factos xey por B e D, entrar em vigor uma
lei que agrave as penas pelos respectivos crimes, a L.N. nãq pode ser
aplicada nem a A nem a C, enquanto que já é aplicável a S e a f l .
Já se, em vez de uma lex severior, estiver em causa uma lei criminaliza-
dora, poderá levantar-se o problema da responsabilidade penal de A e, porven-
tura, de C, com fundamento — não na acção de «determinação» ou de «auxí-
lio» — em crime de omissão, desde que, como vimos a propósito dos crimes
de omissão recaia sobre A e C (após a entrada em vigor da lei eriminalizadora
dos factos x e y) o dever de garante, o dever de impedir que B e D pratiquem,
respectivamente, os factos x e y, dever que pressupõe que haja a possibilidade
de uma intervenção com probabilidades de eficácia. Penso que, em relação
a A, tal dever existiria.
Mas, como se está a ver, neste caso — a existir dever de acção —, não
haveria qualquer retroactividade da lei eriminalizadora, uma vez que tal omis-

(>03) Strafrecht A.T., Berlin-New lork: W. Gruyter (1983), 78-9, também,


embora sem desenvolver, MOURULLO (n. 5), 129; TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal
(n. 71), 219.
("») Assim, JAKOBS (n. 103), 78.
1." Capítulo — A proibição da retroactividade 123

são constituiria uma conduta adoptada depois da entrada em vigor da lei cri-
minalizadora,

— Refira-se, por último, que, também no caso da chamada actio


libera in causa (CP, arts. 20.°, 4., e 295.°), o momento determi-
nante, para este efeito, é o momento em que o agente se coloca no
estado de inimputabilidade e não o momento (posterior) em que
ele (já transitoriamente inimputável) pratica o facto tipificado na
lei penal.
2 ° CAPÍTULO
A IMPOSIÇÃO DA RETROACTIVIDADE
DA LEI PENAL FAVORÁVEL (CRP, ART. 29.°,
N.° 4 - 2.° PARTE; CP, ART. 2.°, N.QS 2 E 4)

I. A Génese Político-Criminal da Retroactividade Favorável

1. Vimas — e tal foi o objectivo principal do 1.° capítulo (I05) —


que a ratio originária da proibição da retroactividade da lei penal
desfavorável foi jurídico-política: garantia política, isto é, segurança
jurídica do indivíduo diante da possível arbitrariedade legislativa no
exercício do «ius puniendi» estadual (106). É a protecção do cida-
dão (107) que determina a proibição, e não a certeza jurídica, a cer-
teza do direito por si mesma. Esta certeza jurídica éra — e é — um
meio ao serviço da segurança jurídico-penal individual, sendo esta
uma resultante e uma exigência da dignidade da pessoa humana.

(I0S) Assim, KREY (n. 4), 2: «A história de cada uma das exigências do prin-
cípio da legalidade é uma exigência do discurso intelectual, pois permite descobrir
a verdadeira ratio e o âmbito de vigência do princípio, o que sem essa investigação
histórica dificilmente se conseguirá, jjpis os institutos jurídicos não são quadros
sem história [«.Rechtsinstitute sind Keme Gebilde ohne Geschichte»].
(10S) Cf. supra, 1° cap., u.
(I07) Neste sentido permanece válida e adequada a célebre expressão de
von Liszr, segundo a qual o princípio da legalidade penai e, portanto, a proibição
da retroactividade desfavorável é a «magna charta do delinquente». — Veja-se,
sobre o sentido originário e actual da expressão, C. ROXIN, «Franz von Liszt y la con-
cepción politicocriminal dei Proyecto Alternativo», in Problemas Básicos dei Dere-
cho Penal, trad. por LuzóN PENA, Madrid: Reus (1976), 59.
126 1." Parte — O princípio da aplicação

Só, posteriormente, este originário fundamento jurídico-político


foi reforçado pelo princípio ético-político-criminal da culpa (10B).
Esta recapitulação pareceu-me, metodologicamente, necessária
para a compreensão da verdadeira intenção normativa da proibição e
para a consequente delimitação do âmbito desta proibição. E que ubi
cessat ratio cessat eius dispositio. Efectivamente, a ratio da proibi-
ção da retroactividade da lei penal (desfavorável) em nada interferiu
com o problema da retroactividade favorável: nada tinha conta (nem
a favor) esta retroactividade. Tanto assim foi que, apesar de cons-
titucionalmente proibida a retroactividade, logo os primeiros códi-
gos penais estabeleceram a retroactividade in melius., •

2. O fundamento da retroactividade da lei penal favorável foi,


inicialmente, político-criminal. Para além de razões humanitárias (109),
foi a concepção preventiva da pena que determinou a aplicação
retroactiva da lei nova descriminalizadora ou redutora da pena.
Escreveu JORDÃO ( n 0 ) , como justificação do art. 7 0 . ° (cor-
respondente ao art. 6.° do CP 1886 e art. 2.° do CP actual): «Este
artigo 70.° e seu § formam uma excepção ao princípio da não retroac-
tividade das leis; excepção que facilmente se justifica. Quando o
poder social julga que as penas da lei são nimiamente severas, e que
a conservação da ordem social não interessa na sua manutenção, e
estabelece por isso runa nova penalidade, não poderia permitir que a

(10B) Cf. supra, 1.° cap., Ill, 5.


( los ) Segundo PUIG PENA, Derecho Penal, 5° ed., Barcelona: Nauta ( 1 9 5 9 ) ,
1 8 2 , o clássico CARRARA acolheu a razão humanitária.
— Curiosamente, também, o neoclássico BETTIOL, Direito Penal — P, G.,
1.1, trad. de Fernando Miranda, Coimbra: Coimbra Editora (1970), 267 e nota cor-
respondente, invoca a «humaràtatis. causa» para justificar a retroactividade in melius,
dizendo: «a retroactividade das leis penais mais benignas explica-se apenas com
base em razões sentimentais».
— Veremos, em breve, que èsta foi uma fundamentação de recurso, uma vez
que a sua concepção ético-retributiva da pena o impedia de fundamentar polí-
tico-criminalmente (na desnecessidade preventiva) a retroactividade dá lex mitior.
— Para uma adequada crítica da posição de Bettiol nesta matéria, PAGLIARO
(n. 75), 1065.
(>10) Commentario... (n. 62), 170-1.
2." Capítulo — A imposição da retroactividade 127

factos, ainda mesmo anteriores às suas novas leis, fossem applicadas


as penas da antiga legislação, sem uma injustiça flagrante, sem uma
contradição manifesta. Além disso comminando uma pena mais
suave o Legislador renunciou ao direito que tinha de requerer a appli-
cação da pena mais forte... Os primeiros vestígios desta regra appa-
recem em França no último artigo do Código Penal de 1791..., sendo
depois o mesmo princípio applicado e desenvolvido no Decreto de 23
de Julho de 1810» (o art. 4.° do Código Napoleónico).

3. É certo que os primeiros códigos penais consagraram a


retroactividade da lei favorável, descriminalizadora ou simplesmente
redutora da pena. Isto não pode, todavia, desvalorizar a discussão
doutrinal que, durante todo o séc. XIX, envolveu o problema da
retroactividade, ou não, da alteração legislativa in melius. E, pre-
cisamente, este debate que nos revela a fundamentação polí-
tico-criminal da aplicação retroactiva da lei penal favorável.
— A Escola Clássica, reagindo de forma radicalmente idealista
ao utilitarismo penal da 2.a met. do séc. xvm ( n i ) , defendeu uma
rigorosa concepção ético-retributiva da pena. Acolhendo como prin-
cípios fundamentais do direito penal uma liberdade e uma culpa abso-
lutas e, consequentemente, atribuindo à pena um sentido de pura retri-
buição ética ( m ) , afirmava que a responsabilidade penal devia
decidir-se por referência apenas ao momento do delito, independen-
temente de quaisquer considerações de natureza preventiva, indepen-
dentemente da maior ou menor necessidade de intimidação geral ou
de prevenção individual.
Em lógica consequência, a pena só devia ser determinada pela
lei vigente no momento da prática do crime e, portanto, devia

( n l ) Refiro-me, pois, à Escola clássica inspirada na filosofia idealista de


KANT e de HEGEL e que, naturalmente, defendia uma exclusiva concepção ético-retri-
butiva do direito penal, e não ao conjunto das diversas correntes de pensamento,
incluindo o Iluminismo criminal dos fins do séc. xvm e o Correccionalismo de
meados do séc. xix, que FERRI, em fins do séc. xix, resolveu «baptizar» de escola
clássica por contraposição à «sua» escola positiva.
( U2 ) Cf. TAIPA DE CARVALHO, Condicionalidade... (n. 52), 57-64; TAIPA DE
CARVALHO, Direito Penal (n. 71), 46 ss.
128 1." Parte — O princípio da aplicação

excluir-se a retroactividade da lei penal, fosse esta desfavorável ou


favorável ( 113 ). Em rigor, dever-se-ia excluir mesmo a aplicação
retroactiva da lei descriminalizadora.
Numa rigorosa e metafísica concepção ético-retributiva do direito penal,
levada às suas últimas consequências, a pena surgiria como efeito jurídico auto-
mático da prática culposa do ilícito criminal. O processo de determinação con-
creta da pena teria uma função meramente declarativa dos efeitos ipso iure
produzidos no momento do facto, devendo os juízes abster-se de considerações
político-criminais de necessidade de prevenção.
l14
JAKOBS ( ) compara um tal processo ao que se passa no direito sucessório,
em que os efeitos jurídicos produzidos por força da lei vigente no momento da
morte se mantêm inalteráveis ( l l s ) .
No caso da prevenção geral de intimidação como fim exclusivo da pena,
também a. lógica seria a de proibição absoluta da retroactividade e, portanto,
também da aplicação retroactiva da lex mitior. Na verdade, a expectativa de uma
nova lei mais favorável, que se aplicasse retroactivamente, reduziria a capacidade
intimidativa da lei (ameaça) penal. — Só que, também nesta unilateral concepção,
o rigor lógico dos pressupostos acabou por fazer concessões na prática.
É curioso referir, a propósito da diferente natureza da responsabilidade
civil e da responsabilidade penal, as palavras de B. A. S O U S A PINTO ( u 6 ) , refe-
rindo-se a Bentham: «um dos erros de Bentham, que, num capítulo sobre as rela-
ções entre o civil e o penal, diz que, em último resultado, o civil se reduz ao
penal, quando cada um d'elles tem a sua natureza distintca», pois «as penas são
um mal acrescentado a outro mal, e por isso são um sacrifício, que somente se
pode justificar, quando fôr indispensável.»

— Antes da Escola Positiva, já o pensamento correccionalista


recusava a concepção ético-retributiva da Escola Clássica, imputando
à pena um fim de prevenção especial e, nesta linha, defendendo a
retroactividade da lei favorável.
SILVA FERRÃO criticava a concepção ético-retributiva dà pena, nes-
tes termos: «Um princípio novo qual o da expiação ou penitencia,

( n 3 ) V. supra, 1," cap., ra, 8.


(1M) Strafrecht (n. 103), 76.
( I13 ) Cf. nota 109, onde se refere que foram apenas motivações humanitárias
que impediram os clássicos de defenderem, na prática, a proibição da retroactividade
da lex mitior.
(n6) Lições... (n. 64), 56.
2." Capítulo — A imposição da retroactividade 129

introduzido na legislação dos homens por um modo absoluto, exclu-


sivo e com abstracção das necessidades sociaes, converteu, não as
penas em remédio contra o mal do crime, mas com sacrifício do
homem ao pagode infernal dos malefícios».
— Em fins do séc. xix, o positivismo criminológico da Escola
Positiva defendeu, como vimos ( I17 ), a retroactividade absoluta da
lei penal. Negando a liberdade, reduzindo esta a uma ignorância da
necessidade bio-psicológica e/ou sociológica, o pressuposto da reac-
ção criminal era a perigosidade social do delinquente, e a pena não
era determinada senão pela necessidade de defesa da sociedade.
Donde a consequência de que a «pena» (em rigor, medida de segu-
rança) devia ser determinada pela lei vigente no momento da deci-
são (julgamento) ou mesmo na fase da execução, se nova lei entrasse
em vigor. Esta seria a que melhor corresponderia à perigosidade do
delinquente e à necessidade da defesa social.
Em conclusão, o positivismo criminológico advogava a retroac-
tividade da lei penal, mesmo que esta fosse criminalizadora ou
agravadora das reacções criminais. Eis a antítese do princípio da
irretroactividade absoluta propugnado pela exclusiva concepção ético-
-retributiva da Escola Clássica.

Aproveite-se o ensejo para referir que, embora com fundamentos diferen-


tes dos do positivismo criminológico, também o seu contemporâneo positivismo
normativista de BINDING defendeu a retroactividade absoluta da lei penal. Par-
tindo da concepção da norma penal como meramente imperativa e sancionató-
ria da desobediência ao Estado («a norma penal regula só direitos e deveres do
Estado»), defendia que era de aplicar a norma em vigor no momento do jul-
gamento. B I N D I N G foi ao ponto de acusar de «tirania» o princípio nulla poena
sitie lege, invertendo totalmente o sentido em que a palavra tinha sido usada pelos
pensadores e penalistas dos fins do séc. xvra-xix para classificar a tirania do
Estado no exercício arbitrário do «ivss puniendi».
Segundo B I N D I N G , a proibição da retroactividade era uma consequência
da «psychologische Zwangstheorie» de v. FEUERBACH ( L L S ) .

(117) Cf. supra, 1° cap., III, 8.


(11B) Sobre a posição de BINDING face ao princípio da legalidade penal e,
nomeadamente, sobre o corolário quanto à aplicação da lei penal no tempo, ver
KREY ( n . 4 ) , 2 3 - 4 , 6 2 - 5 e 7 8 .
130 1." Parte — O princípio da aplicação

— Na actualidade, JAKOBS ( I I 9 ) — na sequência da sua concepção da


pena como reafirmação das expectativas, como revigoramento da confiança no
direito, confiança que seria condição da eficácia do mesmo direito — considera
que deveria aplicar-se a lei vigente no momento do julgamento. Parece que a
função primordial, senão exclusiva, de uma como que prevenção geral posi-
tiva ou de integração, que JAKOBS imputa à pena, deveria levar a uma retroac-
tividade plena da lei nova.
À retroactividade da lex severior apenas se oporiam, de foima decisiva, as
razões ligadas ao Estado-de-Direito formal, quer dizer, a necessidade de garan-
tia do cidadão frente ao possível arbítrio legislativo.
— Como comentário, parece-nos de dizer que, se a função da pena é
político-criminal (prevenção geral e prevenção especial), não se púde — como
JAKOBS parece secundarizar — esquecer que a sua legitimação, o seu pressu-
posto irrenunciável é a culpabilidade na prática do tipo-de-ilícito. Logo, se é
de recusar a aplicabilidade absoluta da L A . (a do «tempus delicti»), pois que
não defendo uma concepção ético-retributiva da pena — mas sim ético-preven-
tiva —, não pode, contudo, menosprezar-se que o princípio da culpa impede, por
si mesmo, a retroactividade da L.N. desfavorável, o que não significa que a
ratio originária e perene da proibição da retroactividade desfavorável não tenha
sido a de garantia política ( i z o ).

— Posição moderada foi a defendida pela Escola Moderna fun-


dada por FRANZ von LISZT, em fins do séc. xix. LISZT, ao estabele-
cer a distinção entre os três ramos da ciência penal — Direito Penal,
Política Criminal e Criminologia —, traçou os parâmetros adequados
a uma equilibrada solução do problema penal (IZ1). Os direitos indi-
viduais do cidadão eram, segundo este ilustre penalista, garantidos pelo
Direito Penal: este constituía a barreira intransponível na protecção
do cidadão (delinquente ou não) face às necessidades sociais que
cabia à Política Criminal satisfazer através das espécies e da inten-
sidade das penas ( m ) .

('") Strajrecht (n. 103), 78.


( IJ0 ) Cf. supra, 1 ° cap., m, 5. e 6.
( 1JI ) Sobre a concepção político-criminal da prevenção integral da pena de
v. LISZT, cf. ROXIN (n. 107), 37-70; KREY (n. 4), 24-5; E. CORREIA, «A Influência
de Franz von Liszt sobre a reforma penal portuguesa», in BFDUC, 46 (1970), 7 ss.
( ,22 ) F. v. LISZT, Strafrechtliche Aufsatze und Vortrãge, ir, 80: «Em minha opi-
nião, por paradoxal que possa soar, o Código Penal é a Magna Carta do delin-
2." Capítulo — A imposição da retroactividade 131

A finalidade preventiva geral e especial (tendo esta a priori-


dade, embora não o exclusivo) imputada à pena tinha como limite
a garantia política; consagrada no direito penal, que impedia a ins-
trumentalização do indivíduo, que impedia a arbitrariedade do «ius
puniendi» (123). Ao nível do problema da aplicação da lei penal, isto
significava, por um lado e por virtude da já então centenária garan-
tia política, a proibição da retroactividade desfavorável, por outro
e por força da concepção político-criminal da pena, isto é, da pena
fundamentada e determinada pelas necessidades sociais de prevenção
especial (sem esquecer inteiramente a prevenção geral), significava
a retroactividade da lei penal favorável.
Foi, em conclusão, von LISZT quem elaborou, dogmatica-
mente, a fundamentação político-criminal da pena e, consequen-
temente, a ratio político-criminal da retroactividade da lei penal
favorável.

II. O Estado-de-Direito Material e a Integração da Retroacti-


vidade da Lei Penal Favorável 110 Quadro dos Direitos Fun-
damentais da Pessoa

1. Poderá começar por se afirmar que o processo histórico jurí-


dico-cultural que levou à consagração da retroactividade da lex mitior
foi inverso, cronologicamente, do processo que conduziu à plena
fundamentação da irretroactividade desfavorável. Na verdade, como
se viu, o fundamento originário da proibição da aplicação retroac-
tiva da lei penal foi jurídico-político, radicou no' Estado-de-Direito

quente. Protege... não a colectividade, mas sim o indivíduo que se rebela contra
ela. Garante-lhe o direito de ser castigado... só se se verificarem os pressupostos
legais e só dentro dos limites legais.., O Direito Penal é a infranqueável barreira
da política criminal»,
( I23 ) O cuidado que LISZT teve em não sacrificar as garantias individuais afir- '
madas pelo Estado de Direito Liberal e consubstanciadas no princípio «nullum
crimen», faz-nos lembrar o cuidado que o nosso HENRIQUES DA SILVA também teve
— cf. supra, 1 ° cap., IH, 8 —, apesar da sua adesão a muitas das posições da
Escola Positiva italiana.
132 1." Parte — O princípio da aplicação

liberal e na sua inerente exigência de garantia face à arbitrariedade


punitiva do poder legislativo e judicial própria do Estado Abso-
luto (124). Diferentemente, como acabámos de ver, a afirmação da
retroactividade da lei penal não teve uma origem poMco-jurxdica, mas
sim político-criminal. Foram considerações intra-sistemáticas jurí-
dico-penais,. ligadas ao fundamento e fins das penas, que determinaram
a afirmação da retroactividade.
Num segundo momento histórico, os dois princípios da proibi-
ção da retroactividade desfavorável — princípio jurídico-político —
e da imposição da retroactividade favorável — princípio político-
-criminal — foram, inversa e respectivamente, reforçados e assumi-
dos pela perspectiva político-criminal do princípio da culpa (12S) e,
o segundo, pela perspectiva jurídico-política da teoria constitucio-
nal dos direitos fundamentais, no contexto do aprofundamento des-
tes direitos, levado a cabo pelo Estado-de-Direito Material, Donde
resulta que, no actual momento, tanto a proibição da retroactivi-
dade in peius como a imposição da retroactividade in melius devem
considerar-se como garantias ou mesmo direitos fundamentais cons-
titucionalmente consagrados.

2. No pós-guerra, o Estado-de-Direito, embora fiél à sua matri-


cial função gararitística dos direitos individuais, alarga a sua pers-
pectiva, passando a considerar também como sua tarefa a protec-
ção e promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana ( 126 ).
Estes, e especificamente a liberdade, não poderão ser limitados senão
na medida do estritamente indispensável à defesa dos próprios direi-
tos e liberdade constitucionalmente consagrados. Eis a consagra-
ção constitucional, expressa ou implícita, do princípio da máxima res-
trição das normas afectadoras dos direitos e liberdades fundamentais

(124) Cf. supra, 1." cap., u.


(1Z5) Cf.'supra, 1." cap., ra.
(126) Assim, quanto à complementaridade da ratio da proibição da retroacti-
vidade desfavorável e da ratio da retroactividade favorável, a partir da comum
e última função de protecção da liberdade pessoal, própria do Estado-de-Direito,
v . R . SCHMITT ( n . 5 ) , 2 2 4 ; MAURACH-ZIPF ( n . 7 5 ) , 1 5 2 .
2." Capítulo — A imposição da retroactividade 133

e, consequentemente, da exigência da interpretação restritiva destas


normas (1Z7).
No plano jurídico-penal, tal princípio , da restrição mínima dos
direitos fundamentais conduz ao princípio.da indispensabilidade ou
da máxima limitação da pena: a pena e o seu quanto só se justificam,
jurídico-constitucionalmente, na medida do indispensável à salva-
guarda dos «direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»
(CRP, art.,18.°-2;). Um tal princípio constitucional projectado na
«aplicação da lei penal no tempo» vincula à retroactividade da lex
mitior: se o legislador entende que uma pena menos grave e, portanto,
menos limitadora dos direitos fundamentais, máxima da liberdade, é
suficiente para realizar as funções poíítico-criminais de prevenção
geral (de integração e de intimidação) e de prevenção especial (tam-
bém de integração e de intimidação do delinquente (128)), então esta
terá de aplicar-se retroactivamente ( m ) . O contrário seria aplicar
uma pena que, no momento .da aplicação (ou mesmo da execução),
é tida como desnecessária e, portanto, seria inconstitucional.
Em conclusão: o Estado-de-Direito Material, na sua função de
protecção da pessoa humana com a decorrente afirmação da liberdade

( U7 ) Sobre a interpretação restritiva das normas limitadoras dos direitos fun-


damentais ou, talvez mais exactamente, sobre a proibição da aplicacão analógica e
da.interpretação extensiva — pois que, in dúbio pro libertate — v. GOMES CANO-
TILHO, Direito Constitucional, 4." ed., Coimbra:. Almedina ( 1 9 8 6 ) , 1 6 2 ss.; JORGE
MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tv, Coimbra: Coimbra Editora ( 1 9 8 8 ) ,
3 0 6 ss.; VIEIRA DE ANDRADE, OS Direitos Fundamentais, Coimbra: Almedina ( 1 9 8 3 ) ,
126 ss.
(I2B) Sobre esta dupla dimensão da prevenção especial, TAIPA DE CARVALHO,
Condicionalidade... (n. 5 2 ) , 9 9 - 1 0 0 : nota 1 8 0 ; IDEM, Direito Penal (n. 7 1 ) , 8 3 ss.
(129) Assim, MÀURO LEONE, II Diritto Penale nel Tempo — aspetti costituvo-
nali del princípio d'irretroattività, Napoli: Jovene (1980), 22, nota 26-^GIOVAHNLFIAN-
bACA5 «II bene giuridico comme problema teorico e comme critério de politica cri-
niinãle», in RÍDPP (1982), 74: «Se a pena é a arma mais forte de que o Estado dispõe
para limitar a liberdade do indivíduo e se tal liberdade tem um elevado reconheci-
mento na Constituição, dela deriva que o recurso à pena estatal é legítimo apenas
quando aparece como «razoável», isto é, conforme os princípios da «necessidade»
e «conforme ao fim»»; SCHREIBER (n. 12), 352, também acentua a necessidade de
interpretar o preceito constitucional sobre a irretroactividade (GG, art. 103-H) no
contexto sistemático-constitucional dos direitos, liberdades e garantias.
134 1." Parte — O princípio da aplicação

como princípio geral e fundamental, não apenas proíbe a retroacti-


vidade das leis penais desfavoráveis como também impõe a aplica-
ção retroactiva das leis penais favoráveis (13D). Quer dizer: o prin-
cípio constitucional da liberdade, o «favor libertatis», é, hoje, a
matriz comum e o princípio superior de que derivam não só a irre-
troactividade in peius como também a retroactividade in melius.

HL Estado-de-Direito Material; Concepção Preventivo-Ética da


Responsabilidade Penal; Constituição da República Portu-
guesa (Àrts. 1.°, 18° e 29.% N.° 4-2." Parte); Imposição da
Retroactividade da Lei Penal Favorável

1. Os princípios político-criminais e jurídico-polxticos acaba-


dos de referir encontraram expressa consagração na nossa Consti-
tuição de 1976. Se o art. 18." consagra o princípio geral da liber-
dade (e dos outros direitos fundamentais) e o carácter excepcional das
suas restrições, o art. 29.°, visando directamente a aplicação da lei
penal, faz a concretização daquele princípio geral, estabelecendo, na
2." parte do n.° 4, a retroactividade das «leis penais de conteúdo
mais favorável».
Significa isto que, mesmo que não existisse a disposição contida
na referida 2." parte do n.D 4 do art. 29.°, a retroactividade da lex
mitior já se teria de considerar imposta constitucionalmente pela
ratio normativa do disposto no art. 18°, 2.-2." parte (131) que, ine-

(130) Sobre esta complementaridade funcional da ratio política de segurança


jurídica inerente ao Estado-de-Direito Formal — que levou à proibição da retroac-
tividade desfavorável — e da ratio de intervenção mínima do direito penal próprio
do Estado-de-Direito Material — que conduziu ã imposição da retroactividade favo-
rável —, veja-se JESCHECK (n. 5), v. i, 132-3,177 e 183; MOHRBOTTER, «Garantie-
funktion und zeitliche Herrschaft der Strafgesetze am Beispiel des § 250 StGB»,
in ZStW (1976), 935; JAKOBS (n. 103), 77; R. MOURULLO (n. 5), 133.
— Sobre a relação-derivação: Pessoa humana, Estado-de-Direito, princípio da
legalidade criminal (na sua função de 'garantia' e na sua função de 'tutela'),
v . CASTANHEIRA NEVES ( n , 4 ) , 8 3 s s . ; SOUSA E BRITO ( n . 5 ) , 2 2 7 s s . \
(<31) Esta 2." parte, que foi introduzida pela Lei de Revisão Constitucional
de 1982, veio estabelecer, de forma expressa, o princípio da indispensabilidade das
2." Capítulo — A imposição da retroactividade 135

quivocamente, recusa as penas ou o quanto da pena considerados, polí-


tico-criminalmente, desnecessários.

Apesar de a Constituição italiana (1947) não conter um mandato expresso


de aplicação retroactiva da lei penal favorável, entendem vários autores que a
retroactividade da legge puí mitte (CP italiano, art. 2°, commas 2. e 3.) corres-
ponde a uma exigência (implícita) constitucional. Assim, afirma PAGLIARO ( 1 3 2 ) :
«o legislador constituinte não quis estabelecer sic et simpliciter o princípio da
irrectroactividade da norma penal. Ele, como resulta também dos trabalhos
preparatórios, pretendia apenas fazer uma aplicação particular do princípio de
ordem superior relativa à maior tutela da liberdade do cidadão».
Em Espanha, cujo Código Penal, como veremos no 4." cap., consagra,
há mais de cem anos, a retroactividade da lex mitior, mesmo que já tenha tran-
sitado em julgado a sentença condenatória, o Tribunal Constitucional tem defen-
dido que, apesar de não haver uma imposição expressa da Constituição (1978)
nesse sentido, tal retroactividade deriva, por argumento a contrario, do pró-
prio art. 25°, 1., que proíbe a retroactividade da lei penal desfavorável ( 133 ).
— Contra, mas esquecendo totalmente os princípios político-criminais
(e até a razão de segurança jurídica) do Estado-de-Direito Material e invocando
como argumento (?) o caso das «leis temporárias», G. LEYASSEUR (134) tenta jus-
tificar que a disposição (CP belga, art. 2.°-2.) contém uma mera presunção rela-
tiva, podendo, segundo ele, ser contrariada pelo legislador ordinário e — ima-
gine-se (!) — podendo, como presunção iuris tantum, ser contrariada (ilidida)
pelo juiz se este estiver convencido de que a retroactividade in mitius é contrária
à intenção do legislador». E, nesta linha, acrescenta que não há sequer nenhuma
Constituição que imponha a retroactividade favorável. — Se Levasseur profe-
risse, hoje, esta última afirmação — que, diga-se, é absolutamente irrelevante —
diríamos que se enganava rotundamente, sabido, como sabemos, que a nossa
Constituição de 1976 impõe expressamente a retroactividade in melius.

2. Os arts. 18.° e 29° da CRP assumem uma política criminal


que eu designo por preventivo-ética, ou seja, consagram uma con-
cepção preventivo-ética da pena.

r-réstrições dos direitos fundamentais e, assim, o principio político-criminal da indis-


pensabilidade ou da máxima restrição da pena.
O32) Legge... (n. 75), 1064-5.
(I33) C f . ROSAL-ANTÓN (N. 8 6 ) , 1 7 3 .
(>34) «Opinions Heterodoxes sur les Conflits de Lois Repressives dans le
Temps», in Hontmage a Jean Constant, Liège: Faculté de Droit (1971), 203.
136 1." Parte — O princípio da aplicação

Eticidade e prevenção é a dupla dimensão tanto do bem jurí-


dico como da pena. A definição dos. bens ou valores__a qualificar
pelo legislador como bens jurídico-penais, isto é, merecedores de
tutela penal, tem que respeitar este duplo critério (exigência) da eti-
cidade e.da necessidade preventiva da pena. Assim, e de acordo com
o art. 18.°, 2., da CRP, a lei penal só pode ter como «causa» bens, inte-
resses ou valores que, por um lado, sejam apreendidos pela cons-
ciência ético-social como fundamentais à convivência comunitária,
na qual se realiza, a pessoa humana — eticidade dos bens jurídicos
(art. 18.°, 2.-l. a parte) — e que, por outro, encontrem na responsabi-
lização penal o meio indispensável a promover a sua tutela — neces-
sidade da protecção penal daqueles bens (art. 18.°, 2.-2.a parte) (135).
Este pressuposto dual também é afirmado pela Constituição
relativamente à responsabilidade penal. Na verdade, ocorrida a
violação (ou perigo de lesão, nos casos previstos na lei penálj do bem
jurídico-penal, exige-se, ainda, não apenas a culpabilidade do agente
— eticidade da responsabilidade (no respeito da dignidade da pes-
soa humana: art. 1°), mas também a indispensabilidade da pena —
função preventiva da pena (art. 18.°, 2.-2." parte).
À íei penal a aplicar tem, portanto, de ser aquela que menos
afecte os direitos fundamentais (liberdade física, política, profissio-
nal, etc.), mesmo que seja posterior ao «tempus delicti» e ainda que,
como veremos no 4,° capítulo, entre em vigor posteriormente ao
' trânsito em julgado da sentença condenatória.
Há uma correspondência ético-preventiva entre o critério de
definição da «causa» (a ratio: o bem jurídico) da lei penal e o cri-'
tério da determinação do «efeito» (a responsabilidade penai) da vio-
lação da mesma lei penal. A responsabilidade penal pressupõe a
culpa mas determina-se pelas exigências mínimas de uma razoável pre-

(I35) Sobre este duplo pressuposto da qualificação de um valor como bem


jurídico-penal, cf. FIGUEIREDO DIAS, «Direito Penal e Estado-de-Direito Material», in
Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro: Forense ( 1 9 8 2 ) , 4 3 - 4 5 ; ID., «Os Novos
Rumos da Política Criminal e o Direito Penal Português do Futuro» — sep. da ROA
( 1 9 8 3 — n.° 1 ) , 1 4 ; TAIPA DE CARVALHO, Condicionalidade... (n. 5 2 ) , 9 0 - 2 ; IDEM,
Direito Penal (n. 7 1 ) , 6 0 - 7 2 .
2." Capítulo — A imposição da retroactividade 137

venção geral e especial. A culpa legitima eticamente a pena e impede


que as necessidades práticas de prevenção elevem a pena acima
daquele nível que a censurabilidade ético-jurídica permite;_as neces-
sidades de prevenção implicam, dado o princípio da máxima restri-
ção da responsabilidade penal, a aplicação retroactiva da lei nova,
desde que esta seja mais favorável.

IV. O Princípio da Aplicação da Lei Penal Favorável

De tudo parece poder concluir-se que é, hoje, incorrecta a clas-


sificação da proibição da retroactividade como princípio geral da
«aplicação da lei penal no tempo» e da retroactividade da lei mais
favorável como excepção. Deverá antes, e com legitimidade, afir-
mar-se que o princípio é o da aplicação da lei penal favorável (13e).
Compreendia-se que o Código Penal de 1852 e o de 1886 clas-
sificassem como excepções as hipóteses de retroactividade da lei
penal favorável; a matéria da vigência temporal da lei penal era
dominada pela proibição da retroactividade da lei desfavorável, pois
estava ainda bem viva a arbitrariedade legislativa na atribuição per-
secutória de eficácia retroactiva à lei penal. Acresce a esta razão deci-
siva o facto de a política criminal ainda estar, nessa altura, a dar os
primeiros passos.
Hoje, já não se compreende, pelo que vimos, classificar de
excepções as hipóteses de retroactividade favorável (137); assim o

(136) Assim, também A . PAGLIARO (n. 7 5 ) , 1 0 6 4 : «Na verdade o princípio


base, que regula a sucessão das leis penais no nosso direito positivo, não é o da irre-
troactividade. A irretroactividade é um dos corolários de um princípio superior
(favor libertatis), o qual, em homenagem à liberdade do cidadão, lhe assegura o
tratamento penal mais mitigado entre o do momento da prática do delito e os tra-
tamentos estabelecidos por leis sucessivas».
(137) Assim, MAURO LEONE (129), 8 e 51-2, apelida-as de «pseudo-excepções);
SCHROEDER (n. 49), 789-90; Rui PEREIRA, «A relevância da lei penal inconstitucio-
nal de conteúdo mais favorável», in KPCC (1991), 61: «A retroactividade da lei penal
mais favorável, não sendo, conceptualmente, o reverso da irretroactividade, tam-
bém não a excepciona, como se pretende, com frequência».
Incorrectamente, F . MUNOZ C O N D E / M . GARCÍA ARÂN (Derecho Penal — P.G.,
2." ed. (1996), 145) referem a retroactividade favorável como excepção. Também,
138 1." Parte — O princípio da aplicação

parece ter entendido o legislador penal de 1982 que, no art. 2.°, não
as menciona como excepções.

Diga-se que, rigorosamente, excepções nunca o foram, caso contrário


seriam inconstitucionais pois violariam a bicentenária proibição da retroactivi-
dade da lei penal.
Excepções só o poderiam ter sido se tivesse havido hipóteses — o que não
aconteceu — de retroactividade de leis penais desfavoráveis. É que só num caso
destes haveria uma contradição com a ratio (a segurança jurídica) da proibição
da retroactividade (desfavorável).

EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, I, Coimbra: Almedina, 1971, p. 154 — na


linha do Código Penal de 1886, art. 6."
3.° CAPÍTULO
A SUCESSÃO DE LEIS PENAIS E O PRINCÍPIO
DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL MAIS FAVORÁVEL
' (CRP, ART. 29.°, N.° 4; CP, ART. 2.°, N.os 2 E 4)

I. Estado-da-Questão: Precisão dos Conceitos e Delimitação do


Objecto

1. É sabido que toda e qualquer lei tem um início e um termo


de vigência formal. Todavia — referimo-nos à lei penal que é a
que nos ocupa —, a eficácia normativa da lei penal, por força do prin-
cípio constitucional da lei favorável ( 13S ), estende-se, muito fre-
quentemente, para aquém (retroactividade) e para além (ultraactivi-
dade) da sua vigência formal: aplica-se a situações jurídicas criadas
antes da sua entrada em vigor e a situações jurídicas sobreviventes
à cessação da sua vigência formal.

2, O problema do conflito temporal de leis penais pressupõe,


obviamente, uma sucessão de leis penais, isto é, uma alteração legis-
lativo-penal. Há, porém, que ter em conta que a designação «suces-
são de leis penais» pode ser tomada num sentido amplo ou num
sentido restrito.
Sendo assumida, muitas vezes, num sentido amplo, há, todavia,
que reconhecer que tal acepção é metodologicamente incorrecta e

(138) Cf. supra, 2 ° cap., m.


140 1." Parte — O princípio da aplicação

pode conduzia- a consequências (decisões) práticas injustas e mesmo


inconstitucionais. Daqui, a importância teórico-prática da definição
rigorosa de sucessão de leis penais: a caracterização da sucessão de
leis stricto sensu é pressuposto e condição da aplicação (retroac-
tiva) da lei penal mais favorável (CRP, art, 29.°, n.° 4-2." parte;
CP, art. 2.°, n.° 4). Por outras palavras: é conditio sine qua non da
delimitação do âmbito de intervenção do n.° 2 (despenalização do
facto) e do n.° 4 (atenuação da responsabilidade penal: aplicação
retroactiva da lex mitior).

3. As alterações legislativas penais ou sucessão de leis penais


em sentido amplo podem derivar da mutação da concepção do legis-
lador sobre a ilicitude do facto ou sobre a necessidade poMco-criminal
da pena, quer em sentido negativo (lei despenalizadora), quer em
sentido afirmativo (lei penalizadoxa).
A modificação da concepção legislativa sobre a ilicitude- do
facto pode ter origem no bem jurídico tutelado ou a tutelar penal-
mente, ou na modalidade do facto descrito ou a descrever tipica-
mente (139). Ilustremos: o valor protegido era considerado pela LA.
como bem jurídico-penal e deixou de o ser pela LJN., ou porque o
legislador entendeu que, face à consciência ético-axiológica da socie-
dade, tal valor, mesmo que importante, não é considerado como fun-
damental à -vivência pessoal e comunitária (por hipótese, a fideli-
dade conjugal) ou porque, embora o conceba como essencial, entende
que a responsabilização penal não é o meio mais adequado à protecção
de tal valor (por exemplo: a pura e simples despenalização do con-
sumo de estupefacientes ou, então, a «conversão» de crime em con-
tra-ordenação da venda de bens impróprios para consumo, desde que
não constituam perigo para a saúde).
A alteração da concepção sobre a ilicitude do facto pode estar,
por outro lado, associada e dependente da conexão «causal» existente
entre o facto e o bem jurídico-penal. Baseado em dados da expe-
riência, assumidos político-criminalmente, pode o legislador entender

("9) V . SCHROEDER ( n . 4 9 ) , 7 8 9 - 9 0 .
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 141

que determinada acção não constitui per se perigo próximo para o


valor que o respectivo tipo legal visava proteger e, consequente-
mente, substituir a LA., que consagrava um tipo legal de crime de
perigo abstracto pela L.N. que exige, adicionalmente, que a acção
constitua, efectivamente, um perigo de lesão do bem jurídico (tipo
legal de crime de perigo concreto).
As alterações legislativas, a que acabámos de fazer referência, tra-
duzem-se em modificações despenalizadoras (descriminalizadoras).
Não é necessário ilustrar, agora, o fenómeno oposto, isto é, as alte-
rações legislativas penalizadoras, pois basta inverter as razões legais
e o discurso (por exemplo: o facto qualificado pela L.A. como con-
tra-ordenação e que pela L.N. foi criminalizado; ou o facto configu-
rado pela L A . como crime de perigo concreto mas que pela L.N.
passa a ser crime de perigo abstracto).
Além destas alterações legislativas relacionadas com uma dife-
rente apreciação da ilicitude do facto ou com a (des)necessidade da
responsabilização penal, há ainda as modificações legislativas que,
mantendo a ilicitude penal do facto — deixando, portanto, intocado
o preceito primário ou hipótese legal —, e, correspondentemente, a
responsabilidade penal, todavia, por razões político-criminais de pre-
venção geral e/ou especial, alteram o preceito sancionatório da norma
penal, agravando ou atenuando as consequências jurídico-penais.

4. Confrontando-nos com o que escrevemos no número anterior,


verificamos que há hipóteses de alterações legais que, claramente,
se enquadram numa determinada disposição das três do art. 2.° do
Código Penal, excepção feita ao caso especial do n.° 3. Os casos de
pura e simples despenalização e da alteração da qualificação da
hipótese legal de crime para contra-ordenação são, evidentemente,
abrangidos pelo normativo do n.° 2 do art. 2.°: aplicação retroactiva
da LJST. despenalizadora; os casos inversos de penalização de condutas
que eram juridicamente irrelevantes ou que eram qualificadas de
contra-ordenação são, obviamente, abrangidos pelo disposto no n.° 1
do art. 2.°: aplicação pós-activa da L.N. penalizadora. Tanto nuns
quanto noutros, não há, rigorosamente, uma sucessão de leis penais,
uma vez que o facto não é jurídico-penalmente relevante pela L.A.
142 1." Parte — O princípio da aplicação

e pela L.N.; pelo contrário, na perspectiva jurídico-penal, o que


a L,A. afirmava, a L.N. o nega: era infracção penal, deixou de o
ser; não era infracção penal, passou a ser.
Por sua vez, casos patentes de sucessão de leis penais stricto
sensu e, por isso, a implicarem o confronto (ponderação) da respon-
sabilidade penal estabelecida pela L A . e da estabelecida pela L.N.,
são as hipóteses em que, não havendo alteração da factualidade
típica (tipo legal), e mantendo esta a qualificação de infracção penal,
é, porém, alterada a responsabilidade penal dela emergente, isto é, há,
somente, modificação da pena (principal e/ou acessória) e/ou dos
efeitos penais. Regem-se estas hipóteses pelo n.° 4 do art. 2.°: apli-
cação da lei penal mais favorável.
Ficam, todavia, hipóteses de alterações legislativas cuja qualifi-
cação como verdadeiros e rigorosos casos de sucessão de leis penais se
reveste de grande dificuldade: os casos em que as alterações legislati-
vas se traduziram na modificação da estrutura do tipo legal de crime,
isto é, as hipóteses em que tanto a LA. como a L.N. prevêem tipos
legais de crime, mas a L.N. adiciona, subtrai ou substitui circunstâncias
ou elementos do tipo legal de crime consagrado pela LA. Dos exem-
plos já apresentados, é o caso da passagem de tipo legal de crime de
perigo concreto a tipo legal de crime de perigo abstracto, ou o inverso.

5. O problema acabado de referir é de grande importância teó-


rico-prática (M0) e, como tal, será tratado na secção ai deste capítulo.
Trata-se, ao fim e ao cabo, de delimitar o âmbito de aplicação do n.° 2
(descriminalização-despenalização e consequente aplicação retroactiva
da L.N.) e o do n." 4 do CP (de entre as leis penais em confronto,
aplicação da lei penal mais favorável), o que, no caso concreto, sig-
nificará a decisão de pura e simples inexistência de responsabilidade
penal ou — considerandos que se está perante uma verdadeira
sucessão de leis penais — decisão de aplicação da lei penal menos
desfavorável ao agente.
A falta de uma necessária consciência da importância do
problema por parte da jurisprudência, relacionada com a ine-

(>"°) C f . SCHROEDER (N. 4 9 ) , 7 9 3 .


3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 143

xistência de um critério único adequado à resolução da multi-


plicidade dos problemas concretos, tem levado a decisões erradas
e injustas: p. exemplo, aplicando retroactivamente leis de con-
tra-ordenações com fundamento em que são mais favoráveis que as
leis contravencionais (leis penais) que aquelas revogaram, quando, na
realidade, se devia decidir pela pura e simples extinção de toda e
_ qualquer responsabilidade jurídica, uma vez que a L.N., ao despe-
nalizar a conduta, tinha eficácia retroactiva (CP vigente, art. 2.°, 2.,
e CP 1886, art. 6.°, 1."), e, ao criar (converter.o facto em) uma con-
tra-ordenação, não podia aplicar-se retroactivamente (Dec.-Lei
n.° 433/82, art. 3.°, 1.), a não ser que — mas tal não tem acontecido
— a L.N. estabelecesse a sua eficácia retroactiva.

6. A aplicação retroactiva da lei penal mais favorável pres-


supõe, como já se referiu, que se esteja, relativamente ao caso
sub iudice, diante dé uma verdadeira sucessão de leis penais (CP,
art. 2.°, 4.); caso contrário, a L.N. ou será penalizadora (eriminali-
zadora) e só poderá aplicar-se aos factos praticados depois da sua
entrada em vigor (CP, art. 2.°, 1.) ou será despenalizadora, extin-
guindo, assim, retroactivamente, toda a responsabilidade penal (CP,
art. 2.°, 2.).
Os pressupostos da sucessão de leis penais stricto sensu e, con-
sequentemente, da aplicação da lei penal mais favorável são os
seguintes: a) sucessão de leis penais; b} aplicabilidade, ao facto
concreto, quer da lei vigente no momento da prática do fácto («tem-
pus delicti») quer da lei sucessiva; c) que, quando entra em vigor a
lei penal nova, a situação jurídico-penal, criada na vigência da lei
penal anterior pela infracção, não se tenha esgotado plenamente (I41),

(MI) É de registar, desde já, o seguinte: enquanto o Dec.-Lei n.° 433/82, de 27


de Outubro (Regime geral das contra-oidenaçSes), art. 3°, n.° 2, parte final, estabelecia
o caso julgado como impedimento da aplicação retroactiva da lei contra-ordenacional
mais favorável (do que a lei vigente no momento da prática da infracção con-
tra-ordenacional) — «aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se já tiver
transitado em julgado a decisão da autoridade administrativa ou do tribunal»—, já
a redacção actual (conferida pelo Dec.-Lei n.° 244/95, de 14 de Setembro) elimina
o impedimento do caso julgado, estabelecendo que a aplicação retroactiva da lei nova
contra-ordenacional mais favorável só não se fará, quando a decisão ou sentença con-
144 1." Parte — O princípio da aplicação

isto é, que não se tenha extinguido toda a responsabilidade penal


(pena principal, penas acessórias e efeitos penais da condenação);
d) que a lei penal nova, não extinguindo embora a situação jurí-
dico-penal existente à data da sua entrada em vigor, altere os termos
da responsabilidade penal imputada ao agente do facto pela lei penal
antiga, agravando-a ou atenuando-a ( 14z ).

II. Crime -> Contra-Ordenação; Contra-Ordenação -» Crime

1. Na 2.a edição ( 143 ) desta monografia "Sucessão de Leis


Penais", a epígrafe desta secção II, contemplava também as hipóte-
ses de conversão de crimes em contravenções ou vice-versa (suces-
são de leis penais em sentido estrito) e de conversão de contraven-
ções em contra-ordenações ou vice-versa (sucessão de leis penais
em sentido amplo ou, mais rigorosamente, sucessão de leis punitivas).
A consideração de tais hipóteses tinha uma dupla causa: o facto de
o legislador continuar a "criar" contravenções, apesar da repetida
(desde os anos setenta) afirmação da necessidade de eliminar, defi-
nitivamente, do ordenamento jurídico português a figura das contra-
venções e transgressões, substituindõ-a pela figura das contra-orde-

tra-ordenacional tiver sido já executada, no momento em que entrou em vigor a lei


nova — «aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido con-
denado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada» (itálicd meu).
'— Se assim é em relação a decisões ou sentenças cujo objecto principal é apli-
cação de uma sanção pecuniária (coima), que não constitui um mal absoluto (pois que,
em termos práticos, ao «empobrecimento» do condenado corresponde um «enrique-
cimento» do Estado-Administração e, indirectamente, da comunidade social), por
maioria de razão o deverá ser em relação a sentenças penais, mesmo que transitadas
em julgado, desde que a execução ou cumprimento da pena de prisão (ou das penas
acessórias) ainda não se tenha esgotado; por maioria de razão, disse eu, uma vez
que as sanções penais, especialmente a pena de prisão (e excluindo a pena de multa),
são um mal absoluto, pois que elas em si não trazem qualquer vantagem a ninguém.
É este mais um argumento contra aqueles que, acritícamente, continuam a tratar
o limite do caso julgado à aplicação retroactiva da lei penal favorável como um íabu.
Sobre esta questão, ver infra, 4." cap.
(J42) Uma verdadeira sucessão de leis contra-ordenacionais também exige
pressupostos análogos a estes (cf. Dec.-Lei n.° 433/82, arts. l.°, 2." e 3.°, n,° 2).
(143) 1997, p . 114.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável Í45

nações (144); e a necessidade de salientar que a lei que converte uma


contravenção numa contra-ordenação é uma lei despenalizadora e,
neste aspecto, de necessária aplicação retroactiva ( I45 ), e, enquanto
passa a qualificar a respectiva conduta como contra-ordenação, só
pode aplicar-se às condutas praticadas depois da sua.entrada em
vigor, salvo se a própria lei contiver uma norma transitória que esta-
beleça a sua aplicação às condutas praticadas durante a vigência da
lei revogada, que as qualificava como contravenção, isto é, como
infracção penal (146).

2. Apesar de, finalmente, parecer que o legislador assumiu,


realmente, a determinação de efectivar o originário propósito (147) de
substituição da figura jurídico-penal das contravenções pela categoria
jurídico-administrativa das contra-ordenações (indo neste sentido as
recentes Leis n.° 25/2006, de 30 de Junho, n.° 28/2006, de 4 de Julho,
e n.° 30/2006, de 11 de Julho), continua, ainda, a ser necessário con-
siderar a figura das contravenções, nesta matéria de sucessão de leis.
Esta necessidade radica em dois factores.
O primeiro está no facto de as três leis de 2006, acabadas de refe-
rir, estabelecerem um regime transitório (aplicável às contravenções
cometidas antes da entrada em vigor dessas leis, que, por força des-
tas, passaram a ser qualificadas como contra-ordenações) qué tem
feridas de inconstitucionalidade.
O segundo e mais importante factor está no facto de os argu-
mentos invocados (por grande parte dos Tribunais Superiores e,
nomeadamente, pelo Tribunal Constitucional, bem como, segundo
me parece, pela maioria da Doutrina), em favor da não inconstitu-
cionalidade do "regime transitório" estabelecido nestas leis que con-

(144) Sobre os factores da criação do Direito de Mera Ordenação Social e da


eliminação do direito penal das Contravenções, cfr. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal
(n. 71), 147 ss.
(145) Ver, infra, subsecção B).
(WG) Ver n.° 5 da subsecção B).
(147) Propósito que remonta, legalmente, a 1979, com o Dec.-Lei n.° 232/79,
de 24 de Julho.
10
146 1." Parte — O princípio da aplicação

verteram em contra-ordenações condutas anteriormente qualificadas


como contravenções ou transgressões, darem a entender que um tal
"regime transitório" também pode ser aplicado à "conversão" de cri-
mes em contra-ordenações.
Estas razões levam-me a inserir, no fim da Subsecção B), um
n.° 5., onde procurarei refutar estes argumentos.

A) Crime -5- Contravenção ou Contravenção Crime:

1. Quando a alteração legislativa se traduzir na modificação da


qualificação de um facto de crime para contravenção ou vice-versa,
estar-se-á, em princípio, diante de uma rigorosa sucessão de leis
penais. Portanto, alterada a qualificação jurídico-penal, mas consi-
derada a hipótese legal como infracção penal quer pela L.A. quer
pela L.N., e havendo, naturalmente, a par desta modificação da qua-
lificação jurídico-penal (crime -> contravenção ou vice-versa), a alte-
ração da sanção penal, ter-se-á de aplicar, de entre as duas leis penais,
aquela que for mais favorável ao infractor (CRP, art. 29,°, 4.;
CP 1982, art. 2.°, 4.; CP 1886, art. 6.°, 2.") (148).

2. Dissemos que, em princípio, assim tem de ser. Há, com


efeito, que não esquecer que o princípio da aplicação da lei' mais
favorável pressupõe que a situação jurídico-penal concreta, criada na
vigência da L.A., mantenha relevância jurídico-penal face à L.N.,
embora a responsabilidade penal (a espécie ou o quanto de pena ou
os efeitos da condenação penal) tenha sido alterada ( 149 ). Tem,
assim, de se analisar se, em concreto, em vez de uma sucessão de leis
penais, não estaremos antes diante de uma L.N. penalizadora ou des-
penalizadora do facto sub iudice, casos em que se afirmariam, res-

(ii8) Como é sabido,.o art. 6." do CP.1886 referia-se tanto aos crimes como
às contravenções; logo, a considerar-se que o art. 2." do CP 1982 se reporta exclu-
sivamente às sanções penais criminais, tem de se reter como vigente o art. 6° do CP
1886 para as sanções penais contravencionais, por força dos arts. 6°, 1.-1° parte, e 7°
do Dec.-Lei n.° 400/82, que aprovou o Código Penal de 1982.
(149) Cf. supra, 6,1 deste cap.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 147

pectivamente, a proibição da retroactividade (CRP, art. 29°,


l.-l. a parte; CP 1982, arts. 1.°, 1., e 2.°, 1.; CP 1886, art. 6.°, l.a) ou
a imposição da retroactividade (CRP, art. 29°, 4.-2.a parte; CP 1982,'
art. 2°, 2.; CP 1886, art. 6.°, I a ) da L. Nova.

3. Sendo o regime geral das contravenções (cf. CP 1886,


arts. 4.°, 25.°, 33°, 36°) diferente, em vários aspectos, do dos cri-
mes, acontecerá, por vezes, que a L.N. despenalize ou penalize,
consoante os casos, o facto concreto. Só um exemplo: a lei do
«tempus delicti» qualifica o facto como crime, enquanto a lei nova,
vigente no momento do julgamento, passou a qualificar o mesmo
facto como contravenção; se A foi cúmplice da prática do referido
facto por B, a conduta de A deixou de ser punível (cf. CP 1886,
art. 25.°), uma vez que a L.N. acabou por despenalizar, em con-
creto, a cumplicidade de A, ao converter o facto, praticado por B, de
crime em contravenção. Já quanto ao facto praticado pelo autor B,
estar-se-ia diante de uma verdadeira sucessão de leis penais e, como
tal, interviria o princípio da aplicação da lei penal mais favorável que,
é de supor, seria a L. Nova. Todavia, mesmo que por hipótese um
pouco absurda, a pena estabelecida na LJST. fosse superior à esta-
belecida na L.A. — caso em que, evidentemente, se aplicaria a L A .
quanto à pena — não se poderia esquecer que a L.N. sempre se
aplicará retroactivamente em tudo quanto beneficiar o infractor,
como é o caso dos efeitos penais da condenação por crime que,
evidentemente, não se produziriam (p. e,, a não inscrição no registo
criminal (150), a não consideração da condenação penal como pres-
suposto da reincidência criminal), pois que, mesmo que se aplique
a pena da L.A. por ser mais leve, o infractor é condenado como
contraventor e não como criminoso. E, como- se. sabe (CP 1982,
art. 2°, 2.-parte final; CP 1886, art. 6°, 3.a), tal se verificaria mesmo
que tivesse havido julgamento transitado em julgado, no momento
em que entrou em vigor a lei nova descriminalizadora, embora não
despenalizadora.

(I5°) Sobre o registo criminal, v. ANTÔNIO M A N U E L D E ALMEIDA C O S T A ,


O Registo Criminal, Coimbra (1985), espec. 361 ss.
148 1." Parte — O princípio da aplicação

4. Escusado é descrever, agora, uma situação inversa, em que


o facto fosse convertido pela L.N. de contravenção em crime.
É evidente que, quanto à cumplicidade verificada na vigência da
LA., continuava a não ser punível; quanto aos efeitos penais da con-
denação, tais não se produziam, sob pena de violação do princípio da
proibição da retroactividade da lei penal desfavorável; quanto à pena,
embora provavelmente seja mais favorável a da L.A., havia que as
ponderar ( 151 ), pois se, por acaso, fosse mais leve a da lei nova (eri-
minalizadora), era esta que se teria de aplicar, apesar de o agente
dever ser punido como contraventor e não como criminoso, certo
como é que os efeitos da condenação por crime são muito mais gra-
vosos que os quase inexistentes efeitos da condenação por contra-
venção ( 152 ).

5. Do que se vem dizendo se conclui, obviamente, o seguinte:


na hipótese de conversão de contravenção em crime (hipótese mais
verosímil, no actual momento legislativo), mas em que se mantenha
intacta não somente a hipótese legal mas também a respectiva pena
— isto é, quando apenas haja uma mudança na qualificação jurí-
dico-penal — aplicar-se só a lei do «tempus delicti» pois que esta esta-
belece uma responsabilidade penal mais favorável no plano dos efei-
tos da condenação, mantendo-se, quanto à pena, igual à lei nova.
Na hipótese inversa de conversão de crime em contravenção (menos
verosímil) — em que apenas houve mudança na qualificação jurí-
dico-penal — aplicar-se-á retroactivâmente a L.N., pois que é, neste
caso, mais favorável no plano dos efeitos da condenação e de igual
gravidade quanto à pena.

6. Terminemos esta subsecção A dedicada à eficácia temporal


de duas leis penais que se sucedem; mas em que enquanto uma qua-

(151) Cf. infra, v deste 3.° cap., constituindo já este exemplo uma indica-
ção ou mesmo um argumento favorável à ponderação diferenciada e contrário à tese
maioritária da teoria unitária, alternativa ou seja da ponderação em bloco.
(1M) Havendo, ainda, que ter em conta que o prazo de prescrição da pena con-
travencional é nitidamente mais curto que o da pena criminal (cf. CP 1886, art 126.°,
§ 3.°, e CP actual, art. 122°, 1., d)).
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 149

lifiea um facto como infracção penal criminal já a outra qualifica o


mesmo facto (hipótese legal) como infracção penal contravencional,
fazendo uma breve observação a duas posições doutrinais: BELEZA
DOS SANTOS e EDUARDO CORREIA. Estes dois Autores., tal como
153
CAVALEIRO DE FERREIRA ( ), consideram, de acordo com a lei, que
crimes e contravenções são duas espécies da mesmo género infracção
penal, tendo estas duas figuras jurídico-penais por objectivo último
a protecção dos bens jurídico-penais; só que a contravenção assenta
numa ideia.(ratio) de antecipação da tutela desses bens, sancionando,
diferentemente do crime, condutas que só constituem um perigo
remoto (mediato) para um ou vários bens jurídicos, mais ou menos
indeterminados. Logo, a responsabilidade penal tanto pode derivar
da prática de um crime como de uma contravenção. Em conse-
quência — como já analisámos — o princípio da lei penal mais
favorável aplica-se, integralmente, nestas hipóteses de conversão de
contravenção em . crime ou vice-versa, pois que as rationes jurí-
dico-política e político-criminal da aplicação da lei penal favorável
também aqui sé afirmam e impõem ( 154 ).
Concordo, assim, com BELEZA DOS SANTOS (155), quando afirma:
«As normas podem apresentar-se-nos com um duplo aspecto: repres-
sivas e preventivas. Se protegem interesses' duma maneira imediata,
são normas repressivas; se, ao contrário, os protegem duma maneira
mediata, sê-lo-ão preventivas. Analisando o artigo 3 ° do Código
Penal (de 1886), facilmente se deduz a distinção que o nosso código
faz entre crime e contravenção. Aquele infringe uma norma repres-
siva, esta uma norma preventiva. Quanto à gravidade não há dife-
rença rigorosa, pois muitos casos há em que os crimes são menos
graves que as contravenções. Assim: é.mais grave a pena da con-
travenção por detenção de substâncias explosivas do que a pena a apli-
car pelo crime de simples ameaça ou ultrages à moral pública».

(IH)Direito Penal... (n. 5 ) , 2 1 3 - 2 2 7 ; HENRIQUES DA SILVA (n. 6 6 ) , 2 3 5 - 6 ;


BELEZA DOS SANTOS, Elementos de Direito Penal — coligidos por Â. Marques e
M. Moutinho — Coimbra: Neves ( 1 9 2 7 ) , 4 - 7 ; EDUARDO CORREIA (n. 5 ) , 2 1 7 - 2 2 9 .
(154) Cf. supra, 1.° e 2," caps. e, em especial, as secções m e ív do 2 ° cap.
(155) Elementos... (n. 154), 4-5.
150 1." Parte — O princípio da aplicação

Poucos anos depois, aplicava estas ideias à questão da lei penal no


tempo, dizendo (156): «o considerar-se um facto como crime ou con-
travenção importa julgar ou não puníveis certos agentes, certas for-
mas imperfeitas de infracção penal, estabelecer tal ou tal prazo de
prescrição, julgar ou não atendíveis certas circunstâncias.
Por isso, esta questão deve resolver-se à luz do art. 6° (do CP
de 1886, correspondente ao actual art. 2°) e seus números.
A lei nova não se aplicará, excepto na parte em que deixe de
incriminar certos factos, ou em que se estabeleçam penas ou efeitos
delas mais favoráveis ao réu. Por isso, se a nova lei considerar o facto
como contravenção e a anterior o considerava como crime, a lei
nova aplicar-se-há: à tentativa e frustração que deixarão de ser puní-
veis; aos cúmplices e encobridores que não serão responsáveis.»
Discordo, porém, do modo globalizante e indiscriminado como
157
.EDUARDO CORREIA ( ) se referia ao mesmo problema: «Deve apli-
car-se a nova lei se esta transforma o facto de crime em contraven-
ção; não se aplicará retroactivamente a nova lei no caso inverso.
É que, neste último caso, trata-se, praticamente, de uma nova
incriminação, enquanto no primeiro se trata de excluir um certo facto
do domínio das regras relativas ao crime.» — Compreende-se que a
ideia subjacente à afirmação do autor é correcta, a formulação é que
é incorrecta pois não atende à possibilidade de a pena contravencio-
nal ser, excepcionalmente, superior à pena criminal e, além disso,
parece esquecer que responsabilidade penal criminal e responsabili-
dade penal contravencional são espécies do mesmo género respon-
sabilidade penal.

B) Crime -> Contra-Ordenação

1. A L.N. é despenalizadora, logo eficácia retroactiva da des-


penalização (CRP, art. 29.°, 4.-2.a parte; CP 1982, art. 2.°, 2.;
CP 1886, art. 6.°, l.tt).

(156) Lições... (n. 81), 131-nota 1.


(157) Direito Criminal (n. 5), 162.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 151

A conversão da qualificação jurídico-legal de uma conduta de


infracção penal (crime ou contravenção) em infracção de natureza
administrativa (contra-ordenação) foi e continua a ser uma questão
não resolvida, apesar do seu enorme alcance prático. Não é ousado
afirmar que, também aqui, se jogam as garantias individuais do cida-
dão para cuja defesa se afirmou e consagrou constitucionalmente a
proibição da retroactividade da lei penal desfavorável. Razões mais que
suficientes são estas para que se procure equacionar, devidamente, o pro-
blema e se apresentem as soluções claras que princípios já centenários
impõem, sem se ceder aos falaciosos argumentos da praticabilidade
dos complexos sistemas sociais dos nossos dias. A rendição da dou-
trina e da jurisprudência a tais «argumentos» constituirá meio caminho
para que o poder político, sob o peso da sua ambição e a pressão das
circunstâncias, subverta os mais genuínos princípios-fundamentos do
Estado-de-Direito, sob a aparência da legalidade.
E urgente, portanto e em minha opinião, enfrentar o problema
e resolvê-lo no respeito dos princípios fundamentais do Estado-
-de-Direito (formal e material) sobre esta matéria da vigência ou efi-
cácia temporal da lei penal.

2. Sendo — devendo ser — indiscutido o princípio da aplica-


ção da lei penal favorável, tendo em conta as suas rationes jurí-
dico-política e político-criminal (15S) e esclarecidos os pressupostos
da sucessão de leis penais stricto sensu ( 159 ), a questão fulcral e
decisiva passa a centrar-se na natureza das contra-ordenações:
constitui o ilícito de mera ordenação social um ilícito essencialmente
distinto do ilícito penal ou tratar-se-á apenas de uma distinção não
essencial, não material, mas apenas de grau, sendo a infracção penal
e a infracção contra-ordenativa espécies do mesmo género de infrac-
ções de direito público sancionatório?
a) Se a resposta for a de que a contra-ordenação é uma infrac-
ção de natureza administrativa, distinta, na sua natureza essencial e

(m) Cl supra, 1." e 2.° caps.


(15S) Cf. supra, n.° 6 da seo. I deste 3.° cap.
152 1." Parte — O princípio da aplicação

nos fins do seu sancionamento (punição), da infracção penal — o


crime e mesmo a contravenção —, não pode existir a mínima dúvida
de que a conversão legislativa de uma infracção penal numa con-
tra-ordenação constitui uma despenalização da respectiva conduta e,
necessariamente (CRP, art. 29.°, 4.-2." parte; CP 1982, art. 2.°, 2.; CP
1886, art. 6°, 1°), tem eficácia retroactiva; jamais, a partir da entrada
em vigor da lei que alterou a qualificação, poderá aplicar-se a L.A.
e, tendo já sido aplicada em sentença transitada em julgado, cessam
a execução da pena e os efeitos penais da condenação. A respon-
sabilidade penal, derivada do facto praticado antes do início de vigên-
cia da L.N., extingue-se plenamente.
Problema diferente — mas que já não respeita à vigência tem-
poral da lei penal — é o da eficácia temporal da LJST., na medida em
que passou a qualificar o facto (a hipótese legal) como contra-orde-
nação. Ora o princípio geral é o de que a lei que «cria» contra-
-ordenações só se aplica aos factos praticados depois da sua entrada
em vigor (Dec.-Lei n.° 433/82, art. 3.°, 1. — eficácia pós-activá).
Todavia, não está constitucionalmente consagrada — pelo menos de
forma expressa — a proibição da retroactividade da lei sobre con-
tra-ordenações.
Assim, se a lei que altera a qualificação do facto de crime (ou
de contravenção) para. contra-ordenação, não estabelece, mediante
norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do
seu início de vigência, tais acções que, necessária e constitucional-
mente, são despenalizadas, também não podem ser julgadas como
ilícitos de mera ordenação social. Tomaram-se, portanto, juridicamente
irrelevantes.

Foi o que aconteceu com o Dec.-Lei n." 349-B/83, de 30 de Julho, que con-
verteu várias infracções penais (crimes e contravenções) de natureza monetária,
financeira e cambial em contra-ordenações. — Diga-se, contudo, que o Acór-
dão n.° 56/84, de 12 de Junho, do Tribunal Constitucional (16°) acolheu, atra-
vés de uma fundamentação contraditória — contraditória em si mesma e con-

(16°) Na 3,a Parte da 2." ed., analisámos este acórdão, a propósito da deter-
minação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei penal.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 153

traditória com a afirmação doutrinal e legislativa de que as contra-ordenações


não têm natureza jurídico-penal — e de uma argumentação confusa, a tese
errónea de que a sucessão de uma lei contraordenacional a uma lei penal cons-
titui uma sucessão de leis penais stricto sensu, confundindo lei despenaliza-
dora (lei que altera a qualificação jurídica de uma hipótese legal de crime ou con-
travenção para contra-ordenação) com lex mitior, isto 6, confundindo o problema
da sucessão de leis penais com o problema da sucessão de leis de direito san-
cionatório público. Ora — como veremos — o nosso direito autonomiza a
infracção penal face à contra-ordenação. Logo, a relação entre lei con-
tra-ordenacionál e lei penal não é uma relação de grau — como defende a dou-
trina e jurisprudência alemãs dominantes na actualidade — isto é, não é uma rela-
ção de mais ou menos, mas uma relação de distinção essencial, digamos, um
problema de ser ou não ser infracção penal.
Donde, contra o que diz o acórdão, uma lei que' converte uma infracção
penal em contra-ordenação é uma lei despenalizadora (CP 1982, art. 2.°-2.;
CP 1886, art. 6.°-2.") e não uma simples lei mais suave — lex mitior (CP 1982,
art. 2.°-4.; CP 1886, art. 6.°-2.°).

Se, pelo contrário, a lei, que converte a infracção penal era con-
tra-ordenação, estabelecer, por disposição transitória (151), a sua efi-
cácia retroactiva, no sentido de tornar extensivo o seu regime e as coi-
mas respectivas aos factos praticados na vigência da lei antiga
(evitando, assim, a impunidade geral dos factos ainda não julgados),
podem não levantar-se, mas também poderão surgir problemas de
constitucionalidade da norma transitória. — Embora tais problemas
não façam parte integrante do presente estudo, há, todavia, que aler-
tar para dois pontos importantes.
Primeiro: a eventual inconstitucionalidade da atribuição de efi-
cácia retroactiva, quando as sanções, apesar de não terem natureza
penal (coima e sanções acessórias), se traduzirem num prejuízo (sacri-
fício) paia o infractor maior do que aquele que lhe adviria da apli-

( 16i ) Repare-se que uma tal disposição legal, na medida em que contraria o
princípio geral da irretroactividade das leis sobre contra-ordenações consagrado na
lèi-quadro destas infracções (Dec.-Lei n." 433182, art. 3.°), carece de autorização legis-
lativa, sob pena de inconstitucionalidade (orgânica). — Acrescente-se, porém, que,
no caso de «conversão», parece-me evidente que tal autorização já era indispensá-
vel, também pelo facto de tal diploma versar sobre penas, embora no sentido da des-
penalização.
154 1." Parte — O princípio da aplicação

cação (constitucionalmente impossível) da lei penal revogada por


esta lei que ex novo criou a contra-ordenação.

Tem de se ter sempre presente a verdadeira ratio da proibição da retroac-


tividade da lei penal desfavorável: a garantia ou segurança jurídica do cidadão
face à arbitrariedade do poder punitivo estadual (cf. supra, 1.° cap.).
É, por outro lado, necessário ter consciência de que o legislador ordiná-
rio pode, abusando do facto de a Constituição não proibir expressamente a
retroactividade da lei sobre ilícitos de mera ordenação social, violar fraudu-
lentamente a proibição da retroactividade da lei penal desfavorável, convertendo
a infracção penal em contra-ordenação e estabelecendo, simultaneamente, a
retroactividade da aplicação das coimas (e sanções acessórias?!) objectivamente
mais graves que as penas estabelecidas na lei penal anterior.
Nesta hipótese, haveria de afirmar-se, inequivocamente, a inconstitucio-
nalidade material de tal norma. É que, não apenas era violado o princípio da
segurança jurídica mínima — subjacente a todo o Estado-de-Direito e à Cons-
tituição O6'-) —, como também era claramente violado o princípio da proibição
da retroactividade da lei penal desfavorável (CRP, art. 29°, 4.-1." parte). O legis-
lador ordinário, por essa via, podia, simultaneamente, evitar a imposição cons-
titucional da retroactividade da lei favorável (despenalizadora) e neutralizar a proi-
bição constitucional da retroactividade da lei desfavorável, servindo-se para tal,
de uma diferente qualificação jurídico-legal da conduta, bastando, pois, um
diferente nomen iuris.
— Diga-se que nunca as sanções acessórias (dadas as suas afinidades
com as penas acessórias) poderão ser aplicadas retroactivamente; quanto à san-
ção principal — a coima — nunca poderá o seu montante ser superior ao mon-
tante da multa estabelecida na lei penal revogada.
Á não ser assim, o nosso sistema jurídico, que afirma a autonomia e
distinção material entre infracção penal e contra-ordenação, acabaria por ofe-
recer menor segurança jurídica do que a garantida por um sistema que apenas
afirme, uma diferença gradual. Neste, ao negar-se uma distinção material
entre infracção penai (crime) e ilícito de ordenação social, afirma-se, natu-
ralmente, um verdadeiro fenómeno de sucessão de leis, no sentido de que a
relação entre lei penal e lei contra-ordenacional é uma mera relação de mais
e menos, isto é, coloca apenas um problema de determinação da lex mitior:

(I62) Veja-se a doutrina, neste sentido, seguida pelo Tribunal Constitucional


e, já antes, pela Comissão Constitucional, in Pareceres da C.C., 8° v.: p, 107 e 131,
1 6 ° v.: p. 2 5 7 ; Acórdãos do T.C., 1." v.: p. 1 7 3 . — Cf. JORGE MIRANDA, « O Preâm-
bulo da Constituição», in Estudos sobre a Constituição, 1 ° v. ( 1 9 7 7 ) , 1 7 .
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 155

por outras palavras, crime e contra-ordenação serão espécies do mesmo género


infracção de direito público sancionatório, razão pela qual — desviado o cri-
tério da infracção penal para a infracção pública sancionável — entre lei penal
e lei constitutiva de contra-ordenação haveria uma verdadeira sucessão de
leis (do mesmo género), funcionando somente o princípio da aplicação da lei
mais favorável.
— Além do que já referimos há pouco, veremos, em breve e mais em
pormenor, o problema no direito alemão.
Relativamente ao problema no direito italiano, diz PADOVANI (1S3) que
um sector autorizado da doutrina italiana defende a irrectroactividade da lei
sobre infracções administrativas e que também, embora incidentalmente, em
tal sentido já se pronunciou a Corte Costituzionale. Ora-, prescrevendo o comma
2." do art. 2." do CP italiano a eficácia retroactiva da lei dèspenalizadora (extin-
ção do procedimento penal e cessação da execução da pena e dos efeitos penais
da condenação), resultaria da conjugação dos dois princípios uma insanciona-
bilidade geral, da qual o Autor discorda. Assim, para evitar tal impunidade,
defende uma disposição transitória para estes casos de conversão de infracção
penal em infracção administrativa que, segundo ele, constituem uma «suces-
são imprópria»: permanência do juízo de ilicitude sobre o facto, embora, agora,
não ilicitude penal.
Esta posição do Autor — que, nas hipóteses de conversão da infracção
penal em infracção de mera. ordenação social, é também a única que o nosso sis-
tema constitucional (CKP, art. 29.°, 4.-2." parte: «...leis penais...») e ordinário
(CP 1982, art. 2.°, 2.; CP 1886, art. 6.°, 1." e 3.°) permitirá como meio de evi-
tar a impunidade referida — também não deixa de levantar, na prática, problemas
de injustiça relativa. Vejamos apenas um exemplo: AsB cometem no mesmo
dia, posto que em locais diferentes, a mesma infracção penal. No dia em que
entra em vigor a lei que altera a qualificação jurídica do facto de infracção
penal para ilícito de mera ordenação social, A já tinha sido objecto de conde-
nação penal transitada em julgado, estando, nesse preciso dia, a cumprir o
2 ° dia de prisão dos 50 em que foi condenado. Logo, tem de ser imediatamente
posto em liberdade e não pode, agora, pelo mesmo facto, ser julgado por con-
tra-ordenação (funciona o ne bis in idem, pois que protege (favorece) o A).
Diferentemente, o B ainda não foi condenado pela infracção penal que
cometeu, no mesmo dia que A praticou a sua. Logo, já não vai ser julgado por
crime (ou contravenção) mas sim por contra-ordenação, para a qual se estabe-

('«) «Tipicità e Sucessione di Leggi Penali», in RIDPP (1982), 1382-3. V.,


também, P. NUVOLONE, «Despenalizzazione Apparente e Norma Penali Sostanziali»,
in RIDPP (1968), 63; ID., «H Diritto Punitivo nella Nuova Legislazione Penale», in IP
(1982), 79-80.
156 1." Parte — O princípio da aplicação

lece uma coima de 30 a 300 contos. B é condenado a pagar uma coima de


150 contos! — como se vê, B, em vez de ser beneficiado, relativamente a A, foi
prejudicado com a aplicação retroactiva da lei, em princípio, considerada mais
favorável.
Estas possibilidades de injustiças relativas só poderão ser afastadas da
seguinte forma: ou se aceita a teoria gradualista, funcionando, por um lado, o prin-
cípio da aplicação da lei mais favorável — tal como no direito alemão, segundo
a doutrina e jurisprudência dominantes — e, por outro lado — agora diferente-
mente do direito alemão —, se afirma a retroactividade da lei mais favorável,
mesmo contra o caso julgado, ou se adopta o nosso sistema (e ao que parece, tam-
bém, p. e., o italiano) da distinção essencial entre lei penal e lei contra-ordena-
cional, funcionando o princípio da retroactividade da lei despenalizadora e o prin-
cípio da irretroactividade da lei criadora do ilícito de mera ordenação social, o que
acaba por se traduzir na insancionabilidade, a qualquer título, das infracções pra-
ticadas antes da entrada em vigor da lei que operou a alteração da qualificação
jurídica do facto ou, evidentemente, na hipótese de já haver condenação transi-
tada em julgado cessando, por extinção, a responsabilidade penal já decidida.
Quanto ao sistema gradualista, penso que a sua aceitação só não sofreria
objecções de inconstitucionalidade, desde que a competência para a aplicação das
sanções coubesse sempre e só aos tribunais.
Quanto ao nosso sistema de- diferenciação essencial entre crime (e con-
travenção) e contra-ordenação — diferenciação que, como veremos, de seguida
no n.° 3, é irrecusável face à Constituição e ao direito ordinário — e da adi-
cional proibição da eficácia retroactiva da lei que altera a qualificação, a prin-
cipal'objecção é a da referida impunidade. Todavia, esta desvantagem talvez que
fosse compensada pelo efeito de contenção legislativa que teria, dissuadindo o
legislador ordinário de, levianamente, alterar, com frequência demasiada, as
qualificações jurídicas da ilicitude das hipóteses legais.
Numa perspectiva de Estado-de-Direito, que é aquela que devemos aco-
lher, penso que a vantagem superaria a desvantagem, a não ser que o Poder veja
na «cobrança» retroactiva das. coimas uma das múltiplas formas de obter recei-
tas...; mas, então, tal atitude já não era própria de um Estado-de-Direito.
Como sintoma e exemplo da incontinência do legislador, a que aludimos
e a que é necessário pôr um travão, confira-se estes dois casos de perturbante
sequência legislativa: Dec.-Lei n.° 41 204 Dec.-Lei n.° 400/82 -» Dec.-Lei
n." 191/83 -> Dec.-Lei n." 28/84 — supersónica alteração da qualificação jurí-
dica do mesmo facto; diversa legislação anterior qualifica de crimes ou de
contravenções (transgressões) de natureza financeira, monetária e cambial várias
condutas —> Dec.-Lei n." 349-B/83, de 30-7, converte uma grande parte delas em
contra-ordenações - » Dec.-Lei n." 356-A/83, de 2-9, revoga o Dec.-Lei
ji." 349-B/83 -» Dec.-Lei n." 396/83, de 29-10, (re)põe em vigor a legislação revo-
gada pelo Dec.-Lei n.° 349-B/83.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 157

— Embora esta anotação já vá longa, entendo útil fazer, ainda, uma


breve referência aos arts. 38° e 70.° do Dec.-Lei n.° 424/86, já globalmente
criticado.
Diz o art, 38.°-l.: «Passam a constituir contra-ordenações culposas todas
as transgressões fiscais aduaneiras não enquadráveis nos artigos 35° e 36°, e
serão punidas com coimas de 1000$ a 100 000$, salvo se as transgressões
forem punidas com multas de montantes superiores, casos em que as coimas serão
dos montantes correspondentes àquelas últimas».
«Art. 70°: 1. O disposto no presente diploma entra em vigor no dia
seguinte ao da sua publicação, à excepção do artigo 38° que entra em vigor seis
meses após a publicação do presente diploma.
2. Enquanto não entrar em vigor o artigo 38.°, os tribunais fiscais adua-
neiros continuarão a processar e julgar as transgressões fiscais aduaneiras.»
«Art. 71.°-1.: Logo que entre em vigor o artigo 38°, fica revogado o
livro I do Contencioso Aduaneiro, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 31 644, de 22
de Novembro de 1941.»
Que comentário a fazer?

1° Estas disposições ignoram que a lei, que converte uma transgressão


numa contra-ordenação, é uma lei despenalizadora. Logo, tem de aplicar-se
retroactivamente (CP 1886, art. 6.°-l.a). Por outro lado, a lei que qualifica a con-
duta em causa como contra-ordenação — e que, antes, era infracção penal —
só vale para o futuro (Dec.-Lei n.°433/82, arts. 2 ° e 3.°-l.),
O nosso legislador tem reincidido na efectiva violação da proibição da
retroactividade da lei criadora de contra-ordenacões, embora sob a aparência
de a respeitar. Tem sido prática legislativa a adopção do princípio da dialéc-
tica materialista: «nada se cria, nada se perde, tudo se transforma»...
2.° O legislador foi ao ponto de declarar que, das duas sanções pecuniá- .
rias (multa óu coima: que interessa?!) se aplicará a que for de montante mais
elevado. Quer dizer: vai-se ao ponto de não apenas aplicar retroactivamente uma
lei constitutiva de contra-ordenações, como também de, servindo-se de uma
pseudo-técnica nominalista, aplicar retroactivamente uma sanção mais pesada do
que a estabelecida no «tempus delicti».
É que — repare-se — o n.° 1 do art. 70.° estabeleceu que, uma vez ini-
ciada a vigência do art. 3 8 ° (seis meses após a publicação do Dec.-Lei que
contém este artigo), as transgressões fiscais aduaneiras, com processos penais
ainda pendentes ou cujo procedimento penal ainda não tenha prescrito, seriam
julgadas (pelos tribunais fiscais ou pelas autoridades administrativas alfandegárias)
como contra-ordenações, sendo-lhes aplicada uma sanção mais grave do que a
estabelecida no momento do facto.
Através de uma redacção confusa, acaba o legislador por violar, embora
dissimuladamente, o disposto no art. 3.°-2. do Dec.-Lei n." 433/82.
158 1." Parte — O princípio da aplicação

Parece que o legislador terá confundido o anúncio da (futura) entrada em


vigor do art. 38.° com a sua (efectiva) entrada em vigor... Mas, como se sabe,
ò que releva é o momento do início de vigência e não o momento da publica-
ção da norma. Isto é, será que o legislador — sem se dar conta?! — terá pen-
sado que, com o n.° 1 do art. 70.° evitava a retroactividade da lei constitutiva de
contra-ordenações e a eventual declaração de inconstitucionalidade do art. 38.°-l.?!
— Seja como for, parece-me que o legislador acabou por, efectivamente, criar
todo um normativo (arts.. 38.°-!., 70.° e 7l.°-l.) violador destes princípios.
3.° ' Saliente-se, por fim, o aspecto da eficácia retroactiva de uma lei
(art. 70.°-4.) que retirou a garantia de julgamento por um tribunal, garantia
que existia no momento do facto; acho que é injusto, se não mesmo inconsti-
tucional, não podendo contra-argumentar-se com a faculdade de impugnação
judicial da decisão administrativa, pois que são realidades diferentes, tanto na
prática como juridicamente.

Segundo ponto: o caso da possível inconstitucionalidade da


supressão retroactiva da garantia jurisdicional a que acabámos de
fazer referência, ao comentar o n.° 4 do art. 70.° do Dec.-Lei
n.° 424/86.
b) Se, pelo contrário, se negar uma autonomia, uma distinção
essencial entre infracção penal e contra-ordenação, isto é, entre a
natureza, os pressupostos e os fins da sanção penal e os da sanção
contra-ordenacional, considerando que entre ambas as categorias há
somente uma diferença de grau, portando-se uma para com a outra
como espécie do mesmo género «violação do direito público sancio-
natório» (que visaria proteger uma ampla categoria de interesses
individuais e sociais considerados importantes, quer sob o aspecto da
realização da pessoa humana, quer sob o ponto de vista, historicamente
circunstancial, da organização económico-social), então uma lei, que
mude a qualificação de um facto considerado (por lei anterior) como
crime ou contravenção para a sua qualificação como contra-ordenação,
assumír-se-á como lei sucessiva (lei nova) relativamente à anterior lei
(penal), verificando-se uma rigorosa sucessão de leis, digamos, de
direito público sancionatório. A consequência seria a da aplicação da
lei mais favorável.
Esta tem sido a posição — denominada por teoria gradualista — acolhida
pelo Supremo Tribunal (BGH) e pelo Tribunal Constitucional (BVerfG) ale-
mães, embora haja divergências ao nível da doutrina.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 159

- Segundo o T.C. alemão, a questão da distinção entre ilícito criminal (Kri-


minalunreckt) e ilícito de mera ordenação social (Ordnungsunrecht) é uma
questão de fronteira, havendo entre estes dois tipos de ilícito somente uma dife-
rença de grau. Estabelecer qual o limite exacto é um problema formal de deci-
são do legislador. E acrescenta: se o legislador qualifica ou não correctamente
uma conduta não é um problema do BVeifG; este Tribunal Constitucional tem
apenas de fiscalizar se a decisão do legislador ordinário está em conformidade
com a ordem de valores jurídico-constitucionais, isto é, de verificar se a deci-
são legislativa de sancionar se traduz numa arbitrariedade.
)M
H . ZIPF ( ) acolhe esta tese da gradualidade da ilicitude e refere algumas
decisões do BGH (16S), segundo as quais a lei que «converte» um crime em con- •
tra-ordenação deveria considerar-se sempre mais favorável, independentemente
de a moldura da coima (Bufigeldrahmen) ser superior à anterior moldura penal
(Strafrahmen) (!). — Em minha opinião, esta tese permite a violação fraudulenta
da norma constitucional alemã (GG, art. 1 0 3 - H ) que proibe a retroactividade
da lei penal desfavorável; é, por outro lado, contraditória com a tese, também
do BGH, de que a lei que qualifica um facto como contra-ordenação é apenas
uma lei mais favorável (Milderung) que a léi anterior que qualificava o mesmo
facto como infracção penal; por último, não impediria a arbitrariedade que o
BVerfG diz ser sua função fiscalizar.
ERICH GÕHLER ( 166 ) criticou a solução alemã de, por força do art. 3 1 7
da EGStGB (lei que aprovou o CP alemão de 1 9 7 5 ) , ter determinado a conversão
dos processos por delitos (os crimes puníveis com pena de prisão superior
a 6 semanas e inferior a 1 ano e/ou com multa acima de 500 marcos) e por con-
travenções em processos de contra-ordenações, esquecendo, assim, o princípio
nulla poena sine iudicio. Foi, assim, menosprezado o facto de que, no momento
em que o infractor praticou a acção, a lei lhe garantia uma decisão judicial, garan-
tia que lhe foi negada retroactivamente.

3. Equacionado o problema, há que ver qual a solução imposta


pelo nosso sistema jurídico. Depende esta — como já dissemos —
da resolução da questão prévia da autonomia material e legislativa da
contra-ordenação face à infracção penal. — Se esta autonomia, se esta
diferença essencial existir e, sobretudo, se for assumida pelo legislador,

(IM) MAURACH-ZIPF (n. 7 5 ) , 154.


('«) BGH, t. 1 2 , p. 1 4 8 ; t. 2 2 , p. 3 2 1 .
(166) Gesetz iiber Ordnungswidrigkeiten,6. Aufl., Miinchen: Beck — V., tam-
bém, E. T R Õ N D L E , Strafgesetzbuck-LK ( 1 9 7 8 ) , 8 0 , sobre a relação no direito alemão,
entre infracção crimina] e contra-ordenação.
160 1." Parte — O princípio da aplicação

então a solução final, quanto à eficácia temporal da lei penal, tem


de ser a de que a lei que converte um crime (ou uma contravenção)
numa contra-ordenação é uma lei despenalizadora e, em consequên-
cia, extingue toda a responsabilidade penal (pena principal e penas
acessórias e efeitos penais de uma eventual condenação já transitada
em julgado). Em sentido rigoroso, não haverá um problema de
sucessão de leis (da mesma natureza) e, portanto, não intervém o
princípio da aplicação da lei mais favorável.
Cabe-nos, agora,, demonstrar que não só a maioria da doutrina
mas também o legislador consideram que entre crime (infracção
penal) e contra-ordenação há uma autonomia essencial. Saliente-se,
desde já,'que o decisivo nesta matéria — em que estão em causa direi-
tos fundamentais e a correspondente exigência de segurança jurídica
que é servida pelo princípio da legalidade penal — são as normas jurí-
dico-constitucionais e as normas ordinárias delas imediatamente
decorrentes.
Efectivamente, analisando os arts. 27.a-2., 29.°, 165.°-J.-c) da CRP
e os arts. 2." e 49.°-l. do CP actual e, quanto às contravenções,
arts. 6." e 123." do CP 1886, e confrontando-os com o art. 165°-l.-â)
da CRP e os arts. 3." e 33." do Dec.-Lei n.° 433182, constata-se que as
contra-ordenações e as respectivas sanções são assumidas é positiva-
das pelo legislador constitucional e ordinário como infracções e sanções
de natureza essencialmente diversa das infracções e sanções penais.
Independentemente da existência ou não de um critério material
de distinção, que vincule o legislador ordinário na decisão legisla-
tivo-qualificativa, e das críticas, mesmo com possível base constitu-
cional, que se possam fazer ao regime legal das contra-ordenações
— e neste segundo aspecto, acho que muito pertinentes quanto à
administrativização da justiça contra-ordenacional, pois que não hão-de
ser interesses pragmáticos de economia processual-judicial que a jus-
tificarão ( Iô7 ) —, o que é decisivo para o nosso problema da eficácia
temporal da lei penal é o indiscutido facto de o legislador português

(167) cf., com interesse, o Acórdão n.° 345/87, de 22 de Julho, do Tribunal


Constitucional, in BMJ, 369 (1987-Out.), 283-9.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 161

considerar e tratar o ilícito de mera ordenação social como infracção


de natureza essencialmente diversa da infracção penal, recusando,
assim, uma simples distinção gradualista, e nem sequer as reconhecendo
como espécies que entroncassem num género comum.
Seria fastidioso transcrever, hic et rume, as múltiplas é plurissi-
tuadas afirmações doutrinais, bem como as constantemente repeti-
das declarações do legislador que vão, inequivocamente, neste sen-
tido de diversidade essencial. Limitar-me-ei, pois, a uma ou outra
referência (168).
Proclama a Introdução do Dec.-Lei n." 232/79, de 24 de Julho:
«Necessidade de dotar o país... de iam ordenamento sancionatório
alternativo e diferente do direito criminal... uma forma autónoma
de ilicitude que reclame um quadro próprio de reacções sancionató-
rias e um novo tipo de processo... A contra-ordenação «é um aliud
que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o
respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente
fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujei-
tas aos princípios e corolários do direito criminal»... Não é, por isso,
admissível qualquer forma de prisão, preventiva ou sancionatória,
nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a
expiação ético-pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do
direito de mera ordenação social é a coima, sanção de natureza
administrativa, aplicada por autoridades administrativas... A consa-
gração do regime geral relativo às contra-ordenações... destinava-se,
assim, naturalménte, a vigorar para o futuro... Apesar disso, consi-
dera-se conveniente submeter, desde já, ao regime deste decreto-lei
as contravenções e transgressões previstas na lei vigente, bem como
outros casos que a lei venha a descriminalizar...» — itálicos meus.

(168) Entre outros estudos, pode ver-se EDUARDO CORREIA, «Direito Penal e
Direito, de Mera Ordenação Social», in BFDUC, XLIX ( 1 9 7 3 ) , 2 5 7 - 2 8 1 ; FIGUEIREDO
DIAS/COSTA ANDRADE, Problemática Geral das Infracções Antieconómicas, Lis-
boa ( 1 9 7 7 ) -r sep. do BMJ, 2 6 2 ; COSTA ANDRADE, «Contributo para o Conceito de
Contra-Ordenação (a experiência alemã», in RDE, 6 / 7 ( 1 9 8 0 / 8 1 ) ; JOSE FARIA
COSTA, « A Importância da Recorrência no Pensamento Jurídico. Um Exemplo: a Dis-
tinção entre Ilícito Penal e o Ilícito de Mera Ordenação Social», in RDE, 9 ( 1 9 8 3 )
— existe separata,
n
162 1." Parte — O princípio da aplicação

Reforça, por sua vez, o Relatório do Dec.-Lei n." 433/82, de 27


de Outubro (que revogou o Dec.-Lei n.° 232/79): «Manteve-se, outros-
sim, a fidelidade à ideia de fundo que preside à distinção entre
crime e contra-ordenação. Uma distinção que não esquece que
aquelas categorias de ilícito tendem a extremar-se, quer pela natu-
reza dos respectivos bens jurídicos quer pela desigual ressonância
ética. Mas uma distinção que terá, em última instância, de ser jurí-
dico-pragmática e, por isso, também necessariamente formal.» — itá-
lico meu.
Passando dos dois diplomas, instituintes da figura das con-
tra-ordenações e do respectivo regime geral, para o campo da sua
implementação-concretização, reparemos no Preâmbulo do Dec.-Lei
n." 28/84, de 20 de Janeiro: «De acordo com as mais modernas cor-
rentes do direito criminal, e a fim de concorrer para a desejada har-
monia do sistema jurídico, despenalizaram-se certos tipos de infra-
cções, englobando-se os comportamentos respectivos nó direito de
mera ordenação social... havendo o particular cuidado de extremar
rigorosamente os campos dos 2 ilícitos em presença, a fim de evitar
sobreposições ou confusões entre as previsões dos correspondentes
tipos legais. Quer isto dizer que se. relegaram para o capítulo das con-
tra-ordenações apenas aqueles comportamentos que não põem em
causa interesses essenciais ou fundamentais da colectividade e que,
por isso, carecem de verdadeira dignidade penal.» — itálico meu.
• No âmbito doutrinal, FIGUEIREDO DIAS ( 1 6 9 ): «Descriminalizar sig-
nificará aqui expurgar as contravenções do domínio do direito penal
— com todas as consequências que isso implica, quer ao nível da
caracterização do ilícito respectivo, quer ao nível da determinação
das espécies de sanções que lhes devem caber... quer ao nível do pro-
cessamento das infracções — para constituir com elas una- autêntico
«ilícito de mera ordenação social». Recentemente, o mesmo Autor
escreveu (170): «O CP operou a referida descriminalização... elimi-

C169) «Lei Criminal e Controle da Criminalidade (o processo legal-social de cri-


minalização e de descriminalização», in ROA, 36 (Jan/Dez-1976), 92-4.
(no) Direito Penal Português — as consequências jurídicas do crime
(1993), 80.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 163

nando para o futuro, ainda por outro lado, a categoria das contra-
venções e substituindo-a pela categoria não penal das contra-orde-
nações...» — itálico meu.
Não pode deixar de concluir-se que, quanto à responsabilidade
penal, uma lei que «converte» uma. infracção penal (crime ou con-
travenção) numa contra-ordenação é uma lei despenalizadora e que,
enquanto tal, se aplica retroactivamente. Não se trata, pois, de runa
verdadeira sucessão de leis penais, não intervindo, assim, o princípio
da lex mitior (CP 1982, art. 2.°-4., e CP 1886, art. 6.°-2.a), mas.o prin-
cípio da lei despenalizadora, isto é, extintiva da responsabilidade
penal (CP 1982, art. 2.°-2., e CP 1886, art. 6.°-l.n e 3.a) (171).

( n i ) Assim, correcto o Ac. da RE, de 26-11-1996 (in CJ, 1996 — t. v,


p. 290 s.): «a passagem de um ilícito penal (crime ou transgressão) a contra-ordenação
equivale a verdadeira despenalização... Com a entrada em vigor do novo Código
da Estrada foram despenalizadas as contravenções previstas no Código anterior e
diplomas complementares, o que conduz à extinção da responsabilidade, no caso sub
Júdice, da utilização de pneus com falta de relevo, verificada na vigência do Código
da Estrada anterior».
Já é de discordar da doutrina constante do Ac. do STJ, de 3-10-96 (in CJ
— Acs. do STJ, 1996 — t. ILL, p. 152): «Quando, entre a sua prática e o julga-
mento, o mesmo é sucessivamente tratado pela lei como crime, como contra orde-
nação, e novamente como crime, o respectivo enquadramento jurídico deve ser
feito, ao abrigo da aplicação da lei concretamente mais favorável, como contra-
-ordenação».
— Quanto à mais recente posição de FIGUEIREDO DIAS nesta matéria da alte-
ração legislativa de crime para contra-ordenação, considero-a, para além de contra-
ditória com as múltiplas afirmações deste Autor no sentido da diferença material entre
crime e contra-ordenação, como confusa e equívoca. Esta falta de clareza na tomada
de uma posição sobre a «conversão» de um determinado facto de crime em con-
tea-ordenação poderá ser o resultado da coautoria de FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE
da obra em que tal posição se encontra. — Seja como for, o certo é que não podem
deixar de se criticar os seguintes pontos:
1." — Em Direito Penal, 1996, p. 188 s., estes Autores escrevem que, nesta
matéria, tem havido «uma série numerosa de equívocos»; a verdade, porém, é que
não só equívoca é a posição que parecem defender como a própria contraposição que
estabelecem entre os que defendem a despenalização (CP, art. 2.°, 2.) e os que
defendem a aplicação da lei mais favorável (CP, art. 2.°, 4.). — Ora parece evidente
que, quando a uma lei penal se sucede uma lei contra-ordenacional, não há uma suces-
são de leis penais; e, portanto, no nosso direito, nunca se pode aplicar o n.° 4 do
art. 2.° do Código Penal, mas sim o n.° 2 do mesmo artigo e Código. 2." — Não
tem sentido contrapor à minha posição a posição adoptada pela jurisprudência alemã,
pois que esta tem em conta o direito e a doutrina alemães que, nesta matéria da suces-
164 1." Parte — O princípio da aplicação

4. Parece-me oportuno fazer uma referência aos problemas levantados


pelo Dec.-Lei n.° 232/79, de 24 de Julho, e pelo Dec.-Lei n." 4U-A/79, de 1
de Outubro.
Estes problemas repartem-se, cronologicamente, por três grupos; 1." — pro-
blemas relativos às contravenções puníveis só com multa, cometidas antes da
entrada em vigor do Dec.-Lei n." 232179, ou seja antes de 29 de Julho de 1979;
2." — problemas relativos às condutas (convertidas por este Dec.-Lei em con-
tra-ordenações) praticadas entre 29 de Julho e 5 de Outubro de 1979, ou seja no
período que vai da entrada em vigor do Dec.-Lei n." 232/79 até à entrada em
vigor do Dec.-Lei n." 411-A/79; 3." — problemas relativos às condutas (con-
travencionais até 29 de Julho; contra-ordenacionais entre 29 de Julho e 5
de Outubro de 1979) praticadas desde 6 de Outubro de 1979 até hoje, e que ainda
não tenham sido objecto de uma lei que as tenha, autonomamente, tipificado
como contravenção ou contra-ordenação.

1° — Quanto às contravenções referidas no n.° 3 do art. 1," do Dec.-Lei


n." 232/79, tem de reconhecer-se que as correspondentes condutas foram, efec-
tivamente, despenalizadas por este diploma e referida norma. Logo, não se
verifica, aqui, um verdadeiro problema de sucessão de leis penais, com a con-
sequente aplicação da lei penal mais favorável, mas sim um problema de extin-
ção da responsabilidade penal, consequente da eficácia retroactiva da norma des-
penalizado» (CP 1886, art. 6.°-l.° e 3.a) ( r a ) . Donde que todas as condutas

são de leis penais, está, como já o temos referido, muito aquém do nosso direito.
3° — Há um salto ilógico, quando estes Autores dizem que a solução, que defende
a aplicação da lei mais favorável, «deve
seguramente defender-se para o caso em que a lei nova mantém a incriminação de
uma conduta concreta embora sob um novo ponto de vista político-criminal», apre-
sentando o exemplo da violação que «era perspectivado, até 1995, como crime con-
tra os fundamentos ético-sociais da vida social, enquanto a Reforma (de 1995) passa
a perspectivá-lo como crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da vítima».
Este exemplo, que é apresentado para tentar demonstrar a manutenção da punibili-
dade, não tem nada que ver com a questão presente que é aquela em que o facto,
que era considerado crime pela lei antiga, passou a ser considerado contra-ordenação
pela lei nova; ora, no exemplo apresentado, o facto era considerado crime (mesmo
que, por força-da sua localização sistemática, fosse correcto considerá-lo como
crime contra a sociedade) e continuou a ser. considerado crime (contra a pessoa),
4." — Da leitura dos Autores parece resultar uma inaceitável (e contraditória com
a doutrina que FIGUEIREDO D I A S , como já o vimos, tem afirmado) conclusão: a de
que, dentro do chamado «direito público sancionatório», a distinção entre infracção
criminal, infracção contra-ordenacional e infracção disciplinar seria apenas uma dis-
tinção de mais e menos, isto é, uma diferença gradual e não material.
(» 2 ) Cf., p. e„ Ac. da RP, de 20-5-1980.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 165

descritas nas anteriores normas contravencionais determinantes da sanção penal


pecuniária (multa) e praticadas antes de 29 de Julho de 1979 perderam a rele-
vância jurídico-penal, com as respectivas consequências.
— Que houve uma efectiva despenalização, eis o que de que não se pode
duvidar. Assim, a jurisprudência da altura reconheceu que houve uma efectiva
revogação das normas contravencionais referidas no n.° 3 do art. 1.° do Dec.-Lei
n.° 232/79. Na verdade, sentindo-se perturbada com as dificuldades em que os
dois diplomas (Dec.-Lei n.° 232/79, art. l.°-3., e Dec.-Lei n.° 411-A/79) a enre-
daram, resolveu o problema de forma errada, como veremos, apelando à hipo-
tética força repristinatória do Dec.-Lei n.° 411-A/79. — Para o que, hic et nunc,
nos interessa, o indevido apelo à repristinação é prova de que a legislação sobre
contravenções puníveis com multa tinha sido revogada pelo Dec.-Lei n.° 232/79,
art. l.°-3.
173
FIGUEIREDO D I A S ( ) escreveu: «a transformação das contravenções em
contra-ordenações, num primeiro momento, foi operada, relativamente a todas as
contravenções vigentes puníveis só com multa, pelo DL n.° 232/79, de 24 de Julho».
Por último, diga-se que — contrariamente ao que escreveu CAVALEIRO D E
174
FERREIRA ( ) — o Dec.-Lei n.° 2 3 2 / 7 9 entrou, efectivamente, em vigor em 2 9
de Julho de 1979.
— Breve referência a alguns acórdãos alicerçados em posições reveladoras
de um grave desconhecimento da distinção, no nosso direito, entre infracção penal
(crime ou contravenção) e infracção de mera ordenação social.
Afirmava o Acórdão da Relação de Évora, de 9-4-1985: «o que tal prin-
cípio visa é tão somente impedir que um facto lícito e não censurável quando
foi praticado, passe, por virtude de uma lei posterior, a ser considerado como
uma contra-ordenação, e não que um facto integrador de uma infracção penal
— crime ou contravenção — passe a constituir um ilícito de mera ordenação
social e, como tal, passível de coima... o "que aconteceria era que um facto
que, ao tempo em que foi praticado, constituísse uma infracção penal, acaba-
ria não só por ser descriminalizado, mas também despenalizado, o que seria
incompreensível [?!], visto que continua a ser ilícito e sancionável, embora
de forma diferente...».
Comentário: este acórdão revela uma grande confusão e desconhecimento
dos princípios sobre a eficácia temporal da lei penal. Na verdade: confunde
relevância jurídico-penal com pura e simples relevância jurídica; confunde lei
despenalizadora com lex mitior, não distingue os âmbitos de intervenção da 1."
e da 2." excepções do art. 6." do CP 1886'.
Refira-se que o juiz GONÇALVES FERREIRA, na sua declaração de voto,

( r a ) «Os Novos Rumos» (n. 135), 18.


(™) Direito... (n. 5), 17.
166 1." Parte — O princípio da aplicação

expôs a doutrina conecta: «A coima não é uma multa mais branda... A con-
tra-ordenação não tem natureza penal, é algo de diferente, como o são o ilícito
disciplinar, administrativo ou civil... Estamos em planos e mundos diferen-
tes: o direito de mera ordenação social é autónomo e distinto do direito penal,
como se salienta no preâmbulo do Dec.-Lei n.° 433/82».
Mais errónea, ainda, a doutrina do Ac. do STJ, de 26-11-1986, quando
afirma: a conversão de crime (estava em causa o descaminho de mercadorias
de importação ou exportação não proibidas) em contra-ordenação é um problema
de aplicação da lei mais favorável (CP, art, 2.°-4.); «esta degradação de dois
crimes [referia-se a dois tipos de descaminho] noutras tantas contra-ordenações,
já aponta no sentido de tomar a lei nova como mais favorável... Ê óbvio que
esta convolação cabe nos poderes dos tribunais judiciais [?!], aliás como o
refere expressamente o art. 77.°-l. do Dec.-Lei n.° 433/82, de 27 de Outu-
bro».
Comentário: 1 ° - inadmissível confusão entre L.N. despenalizadora
(no caso, também descriminalizadora) — CP 1982, art. 2.°-2. — e L.N. somente
com pena mais favorável (lex mitior) — CP 1982, art. 2.°-4.; 2.° — falta de
rigor técnico-jurídico, com desconhecimento da própria ratio elementar do
princípio da «separação dos poderes», quando confunde alteração legislativa
na qualificação jurídica de um facto (qualificado pela LA. como crime, pela
LN. como contra-ordenação) com a figura jurídico-processual da convola-
ção (alteração, no decurso do processo, do juízo de subsunção feito na «Acusa-
ção», no «Despacho de Pronúncia» ou no «Julgamento» — CPP então vigente,
arts. 447.°, 4 4 8 ° e 495°) de uma infracção noutra diferente, com base na
mesma lei.
Mas terão adquirido, por força da equiparação-conversão em contra-
-ordenação (Dec.-Lei n.° 232/79, art. l.°-3.), relevância jurídico-contra-ordena-
cional, isto é, converteram-se retroactivamente em contra-ordenações, com a
consequente aplicabilidade das novas e diferentes sanções, as denominadas coi-
mas a aplicar pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, nos termos
do art. 31° do mesmo diploma? — Para começar a resposta, penso que, em rigor,
não se deve falar em «conversão retroactiva», mas sim de aplicação retroactiva
de uma lei que qualifica, para o futuro, determinados factos — que, realmente,
até ao momento da sua entrada em vigor, eram considerados infracções penais —
como contra-ordenações. Agora, então, há que dizer se sim ou não esta lei
das contra-ordenações teve ou não eficácia retroactiva.
A resposta não é fácil, pois que o legislador elaborou um preâmbulo e um
articulado legal que parecem envolver-se em contradição. Vejamos: se, por
um lado, parece resultar do preâmbulo — «...considera-se conveniente sub-
meter, desde já, ao regime deste decreto-lei as contravenções e transgressões pre-
vistas na legislação vigente...» — e, o que mais releva, do n." 3 do art. 1°, dizia,
parece resultar a decisão de aplicar retroactivamente a lei às condutas anterio-
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 167

res ao seu início de vigência, já, por outro lado, o art 2.", n." 2, vem lançar a
dúvida, ao afirmar: «O mesmo [i. é, o disposto no n.° 1 do mesmo artigo: «Só
será sancionado como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de
coima por lei anterior ao momento da sua prática.»] valerá para as transgressões,
contravenções... a que se «refere o n.° 3 do artigo anterior. Ora," como é evi-
dente, os factos em causa não eram, no momento em que foram praticados,
sancionados como contra-ordenação e passíveis de coima. Então, a conclusão
poderia ter de ser a de que os factos qualificados como contravenção no «tem-
pus delicti», perderam, não apenas a relevância jurídico-penal (a extinção
desta 6 inquestionável, pois que imposta pelo princípio da eficácia retroactiva
da lei despenalizadora: CRP 1976, art. 29°, 4.-2.° parte; CP 1886, art. 6.°, 1."
e 3.") ( I75 ), mas também toda e qualquer relevância jurídica. É que, na dúvida
razoável, não poderia deixar de seguir-se o princípio gera] da irretroactividade
da lei constitutiva de responsabilidade contra-ordenacional (Dec.-Lei n.° 232/79,
arts. 2.°-l. e 3.°-l.).
Neste momento, contudo, poderá o leitor interpelar-me, perguntando: mas
que interessa, agora em 2008, estar a discutir questões que — bem ou mal —
foram ultrapassadas pela corrida do tempo? — Responderei que, quanto mais não
seja, haverá sempre o interesse pedagógico de alertar para futuras e análogas
situações.
2.° — Problemas relativos às contra-ordenações (as tais condutas que
eram qualificadas de contravenções até 28 de Julho de 1979, mas que, a partir
do Dec.-Lei n.D 232/79, passaram a contra-ordenações) cometidas entre 29
de Julho e 5 de Outubro de 1979. Alegando dúvidas sobre a constitucionali-
dade (orgânica, devida à inexistência de autorização legislativa) dos n.05 3 e 4
do Dec.-Lei n.° 232/79, e referindo dificuldades práticas na aplicação destes
normativos, o Dec.-Lei n." 411-A179, de 1 de Outubro, revogou (também sem
autorização legislativa...) os referidos n.as 3 e 4.
Há que ver quais as consequências jurídicas desta revogação de uma
norma que tinha despenalizado (não esquecer que o n.° 3, que nos ocupa, entrou
em vigor em 29 de Julho) várias condutas e que, simultaneamente, passou a con-
figurá-las como contra-ordenações.
Diga-se, desde já, que as suspeitas de inconstitucionalidade, invocadas
no preâmbulo do Dec.-Lei n.° 411-A/79 a propósito do n.° 3 do Dec.-Lei
n.D 232/79, também, em meu entender, recaem sobre este mesmo Dec.-Lei

( !75 ) Cf. supra, 2° cap., sec. m. — Portanto, se a intenção do legislador


tivesse sido a de que os factos contravencionais, praticados antes do I.V. do Dec.-Lei
n.° 232/79, continuariam, mesmo após o I.V. deste decreto-lei, a ser considerados e
julgados como contravenções (infracções penais), então haveria que dizer que tal seria
inconstitucional, como se afirma em texto.
168 1." Parte — O princípio da aplicação

ti." 411-AI79: tanto um quanto o outro legislaram sobre matéria penal — o pri-
meiro, despenalizando; o segundo, repenalizando —, para o que careciam de
autorização legislativa (CRP 1976, arts, 167.°-e) e 168.°) que, de facto, não
tiveram ( l7S ).
Todavia, o que é certo é que, até hoje, não foi declarada a inconstitucio-
nalidade nem de um nem de outro.
Escrevi repenalizando apenas porque este tem sido o entendimento juris-
prudencial. Por outro lado, também — quanto eu saiba — a doutrina não
chegou a debruçar-se sobre este problema de grande importância prática.
O Tribunal Constitucional, por sua vez, não foi, segundo penso, chamado a
intervir.
Mas, analisando bem o problema à luz (que não se deve tentar ofuscar)
do princípio da legalidade penal na sua salutar exigência de certeza legisla-
tiva ao serviço da segurança individual, penso que o Dec.-Lei n." 411-A/79
não repenalizou o que tinha sido despenalizado pelo Dec.-Lei n.° 232/79,
art. l.°-3., mas sim «descontra-ordènacionalizou», isto é, extinguiu mesmo a pró-
pria responsabilidade por ilícito de mera ordenação social. Quero dizer: se, num
primeiro momento (29-7-1979:1.V. do Dec.-Lei n.° 232/79, art. l.°-3.), as con-
dutas em causa deixaram de ser contravenções e passaram a ser cúntra-
-ordenações, num segundo momento (6-10-1979:1.V. do Dec.-Lei n.° 411-A/79),
esses factos perderam toda e qualquer relevância jurídica, perdendo também
a natureza de contra-ordenações. Logo: p Dec.-Lei n.a 411-A/79 não repe-
nalizou.
Em minha opinião, o que se passou, em rigor jurídico-penal que se
impõe — e que não pode ser escamoteado para evitar que sobre o legislador
caia, justamente, a imputação do odioso da incompetência ou da negligên-
cia — foi semelhante ao que aconteceu com o Dec.-Lei n." 356-A183, de 2
de Setembro, que, embora inadvertidamente, pura e simplesmente revogou o
Dec.-Lei n.° 349-B/83, de 30 de Julho (que tinha despenalizado certas infrac-
ções de natureza cambial, ao converter as correspondentes condutas em con-
tra-ordenações, tal como, no nosso caso, o tinha feito o Dec.-Lei n." 232/79,
art. l."-3.).
Tanto um (o Dec.-Lei n." 411-AJ79) como o outro (o Dec.-Lei n," 356-A/83)
apenas se limitaram a revogar uma lei (num caso, os n.°s 3 e 4 do art. 1.° do
Dec.-Lei n.° 232/79; no outro, o Dec.-Lei n.° 349-B/83) que tinha convertido
infracções penais em contra-ordenações (sabemos que o Dec.-Lei ri.° 349-B/83
também manteve crimes como crimes, alterando somente a pena, mas isto não

(176) Das suspeitas de inconstitucionalidade do n.° 3 do art. 1." do Dec.-Lei


n." 232179 se- fez eco a jurisprudência da altura, p. e., Acórdãos dd Relação do
Porto, de 5 e 20 de Maio e de 28 de Julho, todos de 1980.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 169

interessa para o nosso caso). Foi só isto o que ambas as leis fizeram e foi
este, portanto, o único efeito jurídico-legal produzido, embora, tanto num caso
como no outro, a intenção do legislador provavelmente, ou mesmo com certeza,
tivesse sido outra: repristinar (e diga-se, para espanto, que o legislador terá,
porventura, pensado numa repristinação ex time, isto é, é capaz de lhe ter pas-
sado pela cabeça que, revogando a lei revogatória — nos casos, aquela que
converteu infracções penais em contra-ordenações, tendo o legislador se esque-
cido de inserir nesta uma disposição que fizesse retroagir a responsabilidade con-
tra-ordenacional, ou, se não se esqueceu, tendo receio de uma eventual decla-
ração da inconstitucionalidade de uma tal disposição —, tudo se passaria, no
mundo do jurídico-penal, como se nunca tivesse existido a lei revogatória, isto
é, aquela que converteu infracções penais em contra-ordenações (?!...)).
Evidentemente que assim não aconteceu e, no caso do Dec.-Lei n," 356-AJ83
— o mesmo se devendo afirmar para o Dec.-Lei n.° 411-A179 —, há motivo para
dizer que, passe a expressão, «a emenda foi pior que o soneto», uma vez que,
se as condutas tinham deixado pela lei anterior (agora revogada) de ser infrac-
ções penais, agora, com a pura e simples revogação da lei contra-ordenacional
(o decreto-lei .que converteu a infracção penal em lícito de mera ordenação
social), as condutas respectivas pura e simplesmente deixaram de ter qualquer
relevância jurídica: não só não voltaram a ser infracção penal como deixaram
mesmo de ser contra-ordenação. E, quando o legislador despertou do equívoco
em que se enredou ao, apressadamente, aprovar o Dec.-Lei ti." 356-A/83 e
tomou consciência de que os princípios do Estado-de-Direito, constitucionalmente
consagrados, não são apenas para serem proclamados ao sabor das conveniên-
cias políticas e pragmáticas, mas são para se cumprir na prática legislativa,
veio tentar resolver — agora de forma juridicamente correcta — a situação de
vazio legislativo sancionatório criada, aprovando o Dec.-Lei n.° 396/83, de 29
de Outubro, cuja função, expressa no texto legal (artigo único), foi a reposição
«em vigor de toda a legislação revogada pelo Decreto-Lei n.° 349-B/83, de 30
de Julho». — O T.C., chamado a pronuneiar-se sobre a constitucionalidade do
Dec.-Lei n." 349-B/83, decidiu-se, correctamente, pela declaração de incons-
titucionalidade (caducidade da autorização legislativa) mas, inadmissivelmente,
decidiu mal quanto à delimitação dos efeitos da declaração de inconstituciona-
lidade.
Em conclusão: ê meu entender que também o Dec.-Lei n.° 411-A/79 não
repristimou a legislação revogada pelo Dec.-Lei n.° 232/79.
Que aconteceu, juridicamente, às infracções de mera ordenação social
cometidas entre 29 de Julho e 5 de Outubro de 1979? — A resposta não pode
deixar de ser a seguinte: perderam toda a relevância jurídica, deixaram de ser
ilícitas. Na verdade, a pura e simples revogação do n." 3 do art. 1." do Dec.-Lei
n.° 232/79 pelo artigo único do Dec.-Lei n.° 411-A/79 fez com que as respec-
tivas condutas deixassem de estar sujeitas ao regime das contra-ordenações,
170 1." Parte — O princípio da aplicação

isto é, às coimas e correspondente processo instituído pelo Dec.-Lei n.° 232/79.


Quero, numa palavra, dizer: as condutas que, à data da entrada em vigor, eram
contra-ordenações (por força da «conversão» operada pelo n.° 3 do art. 1." do
Dec.-Lei n." 232/79), foram, em 6 de Outubro de 1979, descontra-ordenaciona-
lizadas e, assim, perderam toda a relevância jurídica. Donde resulta que, por
força do princípio da retroactividade da lei contra-ordenacional mais favorável
(e este Dec.-Lei n." 41 l-A/79, descontra-ordenacionalizando, é afortiori uma
lei favorável), consagrado no n.° 2 do art. 3." do Dec.-Lei n.° 232/79, as con-
dutas referidas cometidas até 5 de Outubro, a não terem sido objecto de con-
denação (contra-ordenacional) transitada em julgado, deixaram de poder ser
punidas.
Quanto à responsabilidade penal, mesmo que se aceitasse, como indevi-
damente o fez a jurisprudência, que o Dec.-Lei n." 41 l-A/79 repristinou a legis-
lação contravencional revogada pelo Dec.-Lei n.° 232/79 ( m ) , jamais tais con-
dutas poderiam ser passíveis de pena, uma vez que tal constituiria uma violação
frontal da proibição constitucional da retroactividade da lei fundamentadora de
responsabilidade penal (CRP 1976, art. 29.°-3.; CP 1886, art. 6.°). Por outras
palavras: mesmo que tivesse havido repristinação, esta teria, irrecusavelmente,
de ser ex nunc (a partir de 6 de Outubro de 1979) e jamais ex time (nunca a par-
tir de 29 de Julho de 1979).
3 ° — Problemas relativos às «mesmas» condutas (contravencionais até 28
de Julho de 1979; contra-ordenacionais entre 29 de Julho e 5 de Outubro
de 1979) praticadas entre o dia 6 de Outubro de 1979 e o dia- em que tenha
entrado ou venha a entrar em vigor uma lei que, autonomamente, as preveja e
sancione como contra-ordenação, contravenção ou crime, ou uma lei que, juri-
dicamente, isto e, expressamente reponha em vigor a legislação revogada pelo
Dec.-Lei n.° 232/79, art. l.°-3., ou, finalmente, entre aquela data e o dia seguinte
ao da publicação no DJi. da declaração da inconstitucionalidade dos Decs.-Lei
n.° 232/79, art. l.°-3., e n.° 41 l-A/79.
É relativamente a estas condutas que a análise, aqui feita, além de um
possível interesse pedagógico-preventivo-legislativo, poderia ter alguma impor-
tância prática.
Vejamos:
— É princípio geral (CC, art. 7.°-4.) que a revogação da norma revogatória
não repristina, não repõe em vigor as normas por esta revogadas. Logo, as
normas sobre contravenções e transgressões vigentes até 28 de Julho de 1979
não reentraram em vigor (rectius: não voltaram, a vigorar) a partir de 6 de
Outubro de 7979. É que não pode aceitar-se, em direito penal, onde tem de
imperar a máxima certeza jurídica ao serviço da segurança individual face à res-

('") Já vimos que tal repristinação não se verificou.


3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 171

ponsabilização penal, a tese — válida para outros ramos do direito (178) onde se
decidem conflitos de interesses das partes, como é o caso do direito civil e
mesmo do direito administrativo tout court, isto é, não sancionatório, ramos
do direito em que, p. e., o tribunal não pode recusar-se a decidir com fundamento
em que não existe lei para aquele caso, tendo, como se sabe, de integrar a
lacuna legislativa (CC, arts. 8.°-l. e 10.°) — de que o princípio consagrado no
n.° 4. do art. 7 ° do Código Civil («A revogação da lei revogatória não importa
o renascimento da lei que esta revogara») constitui uma mera presunção rela-
tiva, podendo, como tal, ser afastada, se o intérprete-aplicador entender que foi
intenção do legislador a repristinação da norma.
A exigência de certeza na fundamentação da responsabilidade penal não
pode ficar dependente de auscultações da vontade do legislador, de considera-
ções de (ir)razoabilidade do legislador, da necessidade de recorrer à leitura dos
preâmbulos, etc. Nãoí Uma norma penal revogada é uma norma inexistente;
só mediante o articulado legal pode voltar, ex novo, a ser lei, a ser direito
penal vigente, a ser fonte de responsabilidade penal.
Ora como tal não aconteceu — o art. único do Dec.-Lei n.° 411-A/79
reza apenas: «são. revogados os n.0! 3 e 4 do artigo 1,° do Decreto-Lei n.° 232/79,
de 24 de Julho» —, deve concluir-se que as normas sobre contravenções puní-
veis com multa revogadas em 29 de Julho de 1979 permaneceram ou perma-
necem revogadas até ao dia em que uma lei, respectivamente, as tenha vindo
ou venha a repor em vigor ou a, autónoma e singularmente, descrever e san-
cionar como contra-ordenação, crime ou contravenção.
— Mas mesmo que se entendesse que o Dec.-Lei n." 411-A179 ressus-
citou as normas penais revogadas pelo n.° 3 do art. 1° do Dec.-Lei n.° 232/79
— o que, como demonstrei, é de contestar —, ainda assim, não se poderia
considerar arrumado o problema.
Na verdade, se o Dec.-Lei n.° 232/79, ao despenalizar as condutas a que
se refere o n.° 3 do art. 1.°, estava ferido de inconstitucionalidade (CRP 1976,
arts. l67.°-ej e 168°), não menos ferido estava o Dec.-Lei n.° 4U-A179, ao
repenalizar, isto é, ao (re)converter em infracções penais (contravenções) con-
dutas que (já) não o eram (CRP 1976, art. 167 °-c) e e)), sem a devida autori-
zação legislativa (CRP 1976, art. 168.°). Não pode, de forma alguma, menos-
prezar-se três aspectos decisivos no sentido da inconstitucionalidade (orgânica)
deste Dec.-Lei n." 411-A/79; a lei que (re)converte uma contra-ordenação em

(178) Cf. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA — colaboração de HENRIQUE M E S -


QUITA — , Código Civil Anotado, v. I, anotação 2 . ao art. 7 °
— Diga-se, mais uma vez, que a Jurisprudência tem, acriticamente, apelado à
anotação acabada de referir, ignorando que a ratio e os pressupostos da responsa-
bilidade penal não se confundem com a ratio e os pressupostos da responsabili-
dade civil.
172 1° Parte — O princípio da aplicação

infracção penal (contravenção) é uma lei (norma) fundamentadora de respon-


sabilidade penal ( 179 ); o facto de as normas contravencionais em questão esta-
helecerem (directamente) somente uma pena de multa não impedia que o con-
traventor viesse a ser preso (privado da liberdade), pois não pode esquecer-se
que o art. 123." do CP 1886 — em vigor, no que toca às contravenções — esta-
belecia que, na condenação por contravenção em multa, o tribunal fixaria em
alternativa a prisão correspondente; por último, conquanto decisivo, o facto de
o Déc.-Lei n.° 411-A179 não se ter limitado a (ie)criar uma ou outra contravenção,
mas — o que é bem diferente — ter contravencionalizado (penalizado) todo um
conjunto indeterminado de condutas.
Sobre a não competência do Governo para estabelecer penas contraven-
cionais de multa, devo dizer, esquematicamente, o seguinte:

1 — Entendo que as penas contravencionais (tanto a prisão como a


multa) eram da competência reservada da Assembleia da República. Se já o
eram, na versão originária da CRP, art. 167.°, ai. e), por maioria de razão o
mesmo deve ser considerado depois da Revisão Constitucional de 1982 (CRP,
art. 168.°, ai. cj). É que, a partir desta 1." revisão, argumentos, como o de Sousa
e Brito ( !B0 ), de que retirar tal competência às entidades político-administrativas
seria, porventura, contrário ao princípio da «autonomia regional e local» não me
pareciam procedentes, uma vez consagrada constitucionalmente a figura das
contra-ordenações. Sendo da exclusiva competência da AJR.. (CRP, art. 168°,
1., d}) apenas o regime geral-das contra-ordenações, nada impedirá que o
Governo Central, as Assembleias Regionais (CRP, art. 229°, al. m) — a l . p ) ,
após a 2.a revisão, em 1989) e as Assembleias Municipais tipifiquem ilícitos de
mera ordenação social e estabeleçam as respectivas sanções. Talvez, o que
seja necessário é, sobretudo quanto às Assembleias Municipais, definir o âmbito
da sua competência nesta matéria, pois, na minha opinião, não deve ir tão longe
como a do Governo, isto é, penso que as coimas devem ter um limite máximo
muito mais reduzido e que não deverão, porventura, ter competência para esta-
belecer sanções acessórias.
2." — Os argumentos, que foram invocados pelo T.C. (1B1) no sentido de
que a competência para estabelecer penas de multa contravencionais cabe tanto
à A.R, como ao Governo, parecem-me demasiado artificiosos: a ál. c) refe-
rir-se-ia só às penas criminais; a pena de prisão por contravenção seria abran-
gida pela al. b) («liberdades») do mesmo art. 168." e a pena de multa por con-
travenção seria também da competência do Governo (art. 201.°, 1., a)).

(.79) V. n.° 3 desta subs. B.


( » ) A Lei Penal... (n. 5), 276-80.
C81) Cf. Acórdãos n.« 22/84, 23/84,49/84, ete.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 173

Para uma crítica adequada dos três argumentos (literal, histórico e teleo-
lógico) do T.C., veja-se a contra-argumentação do Conselheiro V I T A L MOREIRA,
na sua declaração de voto. — Pena foi que V I T A L M O R E I R A não tivesse extraído
da sua argumentação a lógica conclusão de que a jurisprudência do T.C. era
eirada. Talvez que, como ele sugere, tenha sido levado a aceitar tal interpre-
tação pelo facto de pensar que tal questão estava a caminho de perder inte-
resse, tendo em conta que as «sentenças de morte das contravenções» por parte
do legislador ordinário eram tantas que jamais o Governo criaria qualquer con-
travenção. — A realidade foi diferente...
3." — Embora pensasse que o termo «penas» da al. c) compreende tanto
as penas criminais como as contravencionais, quer sejam de prisão ou multa,
pode, contudo, sem violação das garantias fundamentais do cidadão, aceitar-se
que o referido termo se referia somente às penas criminais. O que já constituía
grave violação dessas garantias fundamentais era só incluir na reserva da al. b)
(«liberdades») as penas contravencionais de prisão, considerando o Governo
competente para estabelecer penas contravencionais de multa. Não podia secun-
darizar-se o facto de a condenação em multa — seja por crime seja por con-
travenção — ter de ser feita em alternativa com prisão.
— Sobre a lei-quadro das contravenções, acrescente-se que seria absurdo
no mínimo estranho, reservar à A.R. a competência para definir o regime geral
das contra-ordenações e não fazer o mesmo relativamente ao regime geral das
contravenções.
Aos que questionavam por que é que, então, o legislador constituinte
de 1982 o não fez relativamente às contravenções, quando é certo que o fez rela-
tivamente às contra-ordenações (CRP 1982, art. 168°, 1., d)), respondi que tal
se deveu ao facto de tal se entender inútil, na medida em que, como já salien-
támos, a doutrina maioritariamente e o legislador (nos «preâmbulos» de várias
leis), desde 1979, vir, repetidamente, declarando que a figura jurídico-penal
das contravenções era uma espécie em vias de extinção. Assim, correlativamente
à afirmação da figura das contra-ordenações, verificou-se a negação (ao nível das
intenções) das contravenções.
Digamos que, se o primeiro argumento poderia ser discutível, já me pare-
ceram absolutamente inquestionáveis os dois seguintes; donde a consequência
jurídica icrecusável de que o Dec.-Lei n." 411-AI79 era inconstitucional. Só com
autorização legislativa, o Governo podia legislar em matéria penal com a enorme
amplitude com que o fez neste Dec.-Lei.
Note-se que o Dec.-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro, em nada interferia
com este problema: constituiu, e constitui, uma pura lei-quadro dos ilícitos de
mera ordenação social. Por outro lado, o Dec.-Lei n.° 400/82, de 23 de Setem-
bro — que aprovou o Código Penal vigente —, também em nada contende com
o problema, pois que no seu art. 7 ° salvaguardou da revogação do CP 1886 todas
as normas, neste contidas, referentes ao regime geral (lei-quadro) das contra-
174 1." Parte — O princípio da aplicação

venções (p. e., arts. 3.°, 6.°, 25.°, 123.°) e às singulares infracções penais
contravencionais especificadas (descritas e sancionadas) no CP 1886 (p. e.,
art. 185,°-§ 3°), que, obviamente, ainda não tivessem sido revogadas.
Em resumo: o único diploma legal que poderá ter tentado repor em vigor
as normas sobre contravenções, revogadas pelo Dec.-Lei n.° 232/79, art. l.°-3.,
foi o Dec.-Lei n." 411-Â/79. Todavia, mesmo que esta possa ter sido a inten-
ção do legislador ( 182 ), em matéria de fundamentação da responsabilidade penal,
a presunção legal de não repristinação das normas fundamentadoras desta res-
ponsabilidade só poderá ser ilidida por uma expressa e formal norma jurí-
dico-penal. Ora, como vimos, tal não aconteceu.
Mas, mesmo que se entenda — o que, repito, contesto, pois tal entendi-
mento afrontaria, violaria o princípio da legalidade penal no seu postulado de
certeza jurídica na criação de responsabilidade penal — que houve repristinação,
ergue-se, então, o problema da inconstitucionalidade do Dec.-Lei n." 411-AI79,
tal como da do n.° 3 do art. 1." do Dec.-Lei n.° 232179. Ambos legislaram,
embora em sentidos contrapostos (revogação-despenalização-este; repristina-
ção-repenalização-aquele), sobre o regime geral das contravenções sancioná-
veis com pena de multa.
Parece-me evidente, face à CRP 1916, que, se o n.° 3 do art. 1." do
Dec.-Lei n.° 232/79 carecia — e, como já disse, carecia, pois tratou-se, não de
revogar uma ou outra norma contravencional, mas sim de revogar em bloco
todo o regime geral (processual e sancionatório) das contravenções sancionáveis
com multa, retirando-lhes a sua dignidade penal e, portanto, extinguindo a res-
ponsabilidade penal de um conjunto indeterminado de condutas (CRP 1976,
arts. 167Se) e 168.°) — de autorização legislativa, também, e mesmo por maio-
ria de razão, o Dec.-Lei n." 41 l-A/79 é inconstitucional, visto que só mediante
uma autorização legislativa — que não teve —, poderia fazer (re)entrar em
vigor todo esse mesmo conjunto de normas fundamentadoras e processadoras de
responsabilidade penal ( !83 ).

(182) Repare-se que mesmo o preâmbulo do Dec.-Lei n." 41 l-A/79 — que


não seria, de forma alguma, decisivo, bastando reparar como, muitas vezes o legis-
lador proclama uma intensão no preâmbulo, vindo, logo à frente no articulado
legal, a negar tal intenção — apenas alude âs dificuldades prático-organizativas e às
suspeitas de inconstitucionalidade do Dec.-Lei n.° 232/79.
— Pode ver-se o caso análogo do Dec.-Lei n.° 356-A/83, de 2 de Setembro,
ao qual não foi reconhecida pelo T.C. (Ac. n.° 56/84, de 12 de Junho) força repris-
tinatôria da legislação penal (criminal e contravencional) que tinha sido revogada pelo
Dec.-Lei n." 349-B/83, de 30 de Julho, que aquele (o Dec.-Lei n.° 356-A/83) pura e
simplesmente revogou.
(IS3) A operação realizada por este decreto-lei constituiria uma verdadeira
(re)criação da lei-quadro das contravenções sancionáveis com pena de multa.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 175

Por tudo isto, o Dec.-Lei n.° 41]-A/79 não apenas violou a alínea e)
— («Definição de... penas...» — como também a alínea c) — «... liberdades...»
(não se pode menosprezar o então e ainda vigente art. 123." do CP 1886: a
condenação por contravenção punível com multa tem de conter a alternativa em
prisão) — do art. 167,° da CRP 1976.
Fica-nos, em conclusão final, o seguinte cenário: ou se aceitava que o
Dec.-Lei n.° 411-AJ79 não repôs em vigor as normas contravencionais revoga-
das pelo Dec.-Lei n." 232/79, art. l.°-3., continuando a aplicar-se normas ine-
xistentes; ou, aceitando-se que o Dec.-Lei n.° 411-A/79 repristinou ex nunc
(isto é, a partir da sua entrada em vigor: 6 de Outubro de 1979) as normas
contravencionais revogadas pelo anterior Dec.-Lei n.° 232/79 — tese que, como
expliquei, eu contesto — então, permanecia actual e com interesse jurídico-prático
relevante o problema da inconstitucionalidade do Dec.-Lei n.° 411-A/79 e, tam-
bém, do n.° 3 do art. 1.° do Dec.-Lei n.° 232/79.
Diga-se que o acolhimento da tese de que o Dec.-Lei n.° 411-A/79 não
repristinou as normas contravencionais (com a inevitável consequência de que,
a partir de é de Outubro de 1979, as respectivas condutas perderam relevância
jurídica) tornava também, como é evidente, de interesse jurídico o problema da
inconstitucionalidade.
Quanto aos efeitos da declaração da inconstitucionalidade, diga-se, desde
já, o seguinte: vencendo — como deveria vencer — a tese da não repristinação,
o Tribunal Constitucional — no respeito dos princípios fundamentais da segu-
rança jurídica individual, que constituem a ratio da proibição da retroactivi-
dade da lei penal desfavorável (neste caso, penalizadora) — deveria estabelecer
a repristinação das normas penais contravencionais apenas ex nunc, isto é, a par-
tir do dia seguinte ao da publicação, no Diário da República, da declaração
de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, baseando-se no n.° 4. do
art. 282.° da CRP; já, no caso de aderir à criticável tese da repristinação das nor-
mas contravencionais por força do Dec.-Lei n.D 411-A/79, então poderia esta-
belecer a repristinação das normas contravencionais ex tunc (29 de Julho
de 1979), de acordo com o princípio geral contido no n.° 1 do art. 2 8 2 °
da CRP 1982, uma vez que tendo-se já extinguido, por cumprimento ou por pres-
crição, a responsabilidade decorrente das condutas praticadas entre 29 de Julho
e 5 de Outubro de 1979 — a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos
ex tunc não surpreende, não afectava a segurança jurídica.

5. Vejamos, agora, qual tem sido, nestes últimos anos, a posi-


ção do legislador, da jurisprudência e da doutrina nesta matéria da
conversão de crime (ou de contravenção) em contra-ordenação.
Ou seja: como é que têm sido resolvidos os problemas jurídico-prá-
ticos resultantes da "passagem" a contra-ordenação de uma conduta
176 1." Parte — O princípio da aplicação

que, antes desta "passagem" (i. é, antes da substituição da qualificação


jurídica de crime ou contravenção por contra-ordenação), era legal-
mente qualificada como crime (ou contravenção)?

O Legislador decidiu, e bem, em 2006, efectivar o propósito de


Eduardo Correia de eliminar do ordenamento jurídico português a
figura jurídico-penal das contravenções. Propósito este que o Dec-
-Lei n.° 232/79, de 24 de Julho, procurou concretizar, ná altura em
que estava em vias de aprovação um novo Código Penal (183"A).
Assim, o n.° 3 do artigo 1 d e s t e decreto-lei estabeleceu que todas
as contravenções e transgressões puníveis só com multa, existentes
no ordenamento jurídico português, passavam a constituir contra-
-ordenações.
Sucedeu, porém, que este Dec.-Lei n.° 232/79 foi aprovado sem
autorização legislativa da Assembleia da República. Ora, uma vez
que uma tal "conversão" das contravenções e transgressões em con-
tra-ordenações implicava, necessariamente, a despenalização das res-
pectivas condutas, surgiram, logo, dúvidas sobre a sua constitucio-
nalidade. Dúvidas que tinham toda a razão de ser, pois que só
quem tem competência para penalizar (para criar infracções penais)
é que tem competência para despenalizar. Ora, como, desde a ver-
são primitiva da CRP, as matérias de crimes, penas e medidas de
segurança, são da competência exclusiva (embora de reserva relativa)
da Assembleia da República, o referido Dec.-Lei n.° 232/79 come-
çou a ser visto como ferido de inconstitucionalidade orgânica nesta
parte em que operou a referida conversão. Por esta razão — e não
apenas pelas "entidades administrativas" não estarem preparadas
para "abarcarem" com muitos milhares de processos contra-orde-
nacionais, que resultariam da "conversão em bloco" das contraven-
ções (puníveis só cóm pena de multa) em contra-ordenações — foi
aprovado o Dec.-Lei n.° 411-A/79, de 1 de Outubro, que revogou os
n.os 3 e 4 do art. 1.° do Dec.-Lei n.° 232/79, que tinham determinado

(183-A) Na Introdução ao Código Penal de 1982, salienta-se que foi a instabi-


lidade política da segunda metade da década de setenta que fez com que este Código
só fosse aprovado nesta data, 1982.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 177

a referida conversão das contravenções e transgressões em contra-


-ordenações.

Feita esta observação histórica (que não deixa de ter algum inte-
resse para a nossa questão actual), vejamos, então, como resolveu o
Legislador de 2006 a dita conversão das contravenções e trans-
gressões em contra-ordenações.

Uma vez que o meu entendimento sobre esta questão já foi


exposto, cabe-me ser sintético na apreciação crítica do "regime.tran-
sitório" estabelecido nas já referidas leis de 2006, e na refutação
dos argumentos de parte da Jurisprudência e da Doutrina.
A Lei n.° 25/2006, de 30 de Junho, tem por objecto as infracções
«ocorridas em matéria de infra-estruturas rodoviárias onde seja
devido o pagamento de taxas de portagem», infracções que, por esta
lei, passaram a constituir contra-ordenações. Relativamente às con-
travenções e transgressões praticadas antes da sua entrada em vigor,
o artigo 2 0 ° estabeleceu um determinado "regime transitório".
O mesmo regime transitório também consta do art. 14.° da Lei
n.° 28/2006, de 4 de Julho, que tem por objecto as infracções «ocor-
ridas em matéria de transportes colectivos de passageiros».
Coube à Lei n.° 30/2006, de 11 de Julho, eliminar, na sua tota-
lidade, as infracções penais "contravenções" e "transgressões" do
ordenamento jurídico nacional.
Assim, estabelece o «Artigo 35.°:
1 — As contravenções e transgressões previstas na legislação
em vigor não abrangidas pelos artigos anteriores, ["concursos de
apostas mútuas concedidos à Santa Casa da Misericórdia de Lis-
boa", "regimes de instalações eléctricas", "actividade de resinagem",
"regime de combate às doenças contagiosas dos animais", "regime
de fomento piscícola nas águas interiores", "regimes das condições
gerais do exercício das actividades dé espectáculos", "regulamento da
profissão de fogueiro para a condução de geradores de vapor",
"regime das albufeiras de águas públicas", "actuações na utilização
dos solos e da paisagem", "regime da exposição e venda de objec-
tos e meios de conteúdo pornográfico ou obsceno", "regimes da
12
178 1." Parte — O princípio da aplicação

recolha e transplante de leite e dos centros de concentração e de


tratamento de leite", "regimes jurídicos mortuários"] passam a assu-
mir a natureza de contra-ordenações, nos termos estabelecidos nos
números seguintes.
2 — As infracções anteriormente punidas unicamente com pena
de multa são punidas com coimas de montante igual ao previsto nas
respectivas normas.
3 — As infracções anteriormente punidas com penas alternati-
vas de prisão ou de multa são punidas com coimas de montante
igual ao previsto para as respectivas multas.
4 — As infracções anteriormente punidas unicamente com pena
de prisão ou cumulativamente com penas de prisão e de multa são
punidas com coimas cujos limites mínimo e máximo são os previs-
tos no artigo 17° do regime geral do ilícito de mera ordenação social
e respectivo processo.
5 — São competentes para o processamento e aplicação das
coimas previstas para as contra-ordenações a que se refere o pre-
sente artigo os serviços designados nos termos do n,° 2 do artigo 34.°
do regime geral do ilícito de mera ordenação social e respectivo pro-
cesso.»
0 art. 36." estabelece o seguinte regime transitório:
1 — As contravenções e transgressões praticadas antes da
entrada em vigor da presente lei são sancionadas como cohtra-orde-
nações, sem prejuízo do regime que concretamente se mostrar mais
favorável ao agente, nomeadamente quanto à medida das sanções
aplicáveis.
2 — Os processos por factos praticados antes da entrada em
vigor da presente lei pendentes em tribunal nessa data continuam a
correr os seus termos perante os tribunais em que se encontrem,
sendo-lhes aplicável, até ao trânsito em julgado da decisão que lhes
ponha termo, a legislação processual relativa às contravenções e
transgressões.
3 — Os processos por factos praticados antes da entrada em
vigor da presente lei, cuja instauração seja efectuada em momento
posterior, correm os seus trâmites perante as autoridades adminis-
trativas competentes.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 179

4 — Das. decisões proferidas pelas entidades administrativas nos


termos do número anterior cabe recurso nos termos gerais.».

A apreciação deste "regime transitório" e, sobretudo, dos argu-


mentos que foram invocados (especialmente pelo Tribunal Constitu-
cional, no Acórdão n.° 221/2007, de 28 de Março) em favor da não
inconstitucionalidade deste regime constitui o objecto das considera-
ções que se seguem. Esclareça-se, porém, que o Tribunal Constitu-
cional teve, directamente, por objecto o regime transitório constante da
Lei n.° 25/2006. Todavia, como o regime transitório da Lei n.° 30/2006,
de 11 de Julho, é inteiramente igual ao da Lei n.° 25/2006, a apreciação
da bondade, ou não, do regime transitório desta lei aplica-se total-
mente ao regime transitório estabelecido pela Lei n.° 30/2006.

Deve começar por se reconhecer que o legislador, uma vez


determinado em evitar a perda de receitas pecuniárias, procurou esta-
belecer um regime transitório, que não se traduzisse num prejuízo
retroactivo para os autores das infracções penais cometidas antes da
entrada em vigor da lei que converteu as contravenções e transgres-
sões em contra-ordenações. A questão está em saber se terá seguido
o caminho constitucionalmente mais correcto.
Mas mais importante do que este ponto é a argumentação do Tri-
bunal Constitucional — tal como de parte da doutrina — que me
parece defeituosa.

Vejamos os argumentos invocados pelo Tribunal Judicial da


Comarca de Vila do Conde (processo n.° 1071/2006) em favor da sua
sentença, que declarou «extinto o procedimento transgressional ins-
taurado», por considerar despenalizadas as condutas em causa (não
pagamento ou pagamento viciado de taxas de portagem em infra-
estruturas rodoviárias), «nos termos do art. 2.°, n.° 2 do C. Penal e
art. 29°, n.° 4 da C.R.P.». Como fundamento da extinção da res-
ponsabilidade (quer por transgressão penal, quer por eontra-ordena-
ção), o Tribunal invocou a inconstitucionalidade material do dis-
posto no n.° 1 do art. 20° da Lei n.° 25/2006, que é, como dissemos,
igual ao disposto no n.° 1 do art. 36° da Lei n.° 30/2006.
180 1." Parte — O princípio da aplicação

Eis, era resumo, os argumentos invocados:


1.° — Há imprecisões e incoerências no "regime transitório", •
«uma vez que, se, por um lado, assume no seu artigo 1.° que as con-
travenções e transgressões têm uma natureza diferente das contra-
ordenações, neste artigo [sobre o regime transitório] acaba por se
contradizer, uma vez qué, não obstante a diferente natureza dos ilí-
citos, admite a aplicação do regime material das contravenções e
transgressões, desde logo se as sanções forem quantitativamente
mais favoráveis».
2.° — A aplicação de penas é «matéria exclusiva do poder,
judicial». Ora, as contravenções.e transgressões sempre foram puní-
veis com penas que, tal como os crimes, só podiam ser aplicadas
num processo penal, «existindo uma acusação por parte do MP,
sujeitando-se o arguido a julgamento numa audiência solene, a que
se aplicam princípios do processo penal».
3.° — O regime transitório estabelecido acaba por não respeitar
«a distinta natureza e qualidade de contravenções e transgressões
vs contra-ordenações, a diferente natureza e fins das sanções aplicadas,
acabando por equipará-las e colocando o cerne da destrinça numa
mera apreciação pecuniária: em suma, para o legislador será mais
favorável a qué aplicar uma sanção pecuniária mais leve. Ora, afir-
mar isso é confundir as infracções e equipará-las, o que não é pos-
sível».
4 ° — Ao fazer depender o julgamento das contravenções e-
transgressões (praticadas antes da entrada em vigor da lei que as
converteu em contra-ordenações) em processo penal ou em processo
contra-ordenacional do (aleatório) momento da instauração do pro-
cesso, estão os n.os 2 e 3 do artigo, que contém o referido regime tran-
sitório, a violar o princípio da «igualdade material».
5° — No caso de o processo ainda não ter sido instaurado,
no momento em que entrou em vigor a lei que operou a referida
conversão, e de o «regime concretamente mais favorável» ser o
das contravenções ou transgressões (isto é, no caso de o valor'
pecuniário da multa ser inferior ao da coima), parece ocorrer um
impasse: pois que as autoridades administrativas «não podem apli-
car multas».
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 181

6° — A conclusão: a lei que converteu a contravenção ou trans-


gressão em contra-ordenação é verdadeiramente uma lei despenali-
zadora; logo, por imposição legal (CP, art. 2.°, n.° 2) e constitucio-
nal (CRP, art. 29°, rt'.° 4, 2." parte), não mais se poderá aplicar o
regime puiúúvo-penal vigente no momento em que tais infracções
foram praticadas. E, quanto à aplicação retroactiva da lei nova (que
pune, agora, o facto como contra-ordenação), retroactividade que é
estabelecida pelo n.° 1 do art. que contém o "regime transitório",
conclui a Decisão do Tribunal de Vila do Conde que tal seria ilegal
(porque violaria o disposto nos arts. 2.° e 3.°-l do Dec.-Lei n.° 433/82,
que estabelece o regime geral das contra-ordenações) e inconstitucional
(por violação do art. 29°, n.° 1, da CRP).
A conclusão final, que esta Decisão do Tribunal de Vila do
Conde retirou, foi a de que as contravenções praticadas, antes da
entrada em vigor da lei que as converteu em contra-ordenações,
tornaram-se juridicamente irrelevantes e, portanto, insusceptíveis de
qualquer espécie de punição.

— No meu entendimento, acho que a quase totalidade dos argu-


mentos invocados são consistentes, tanto no plano jurídico-penal
como no constitucional. Assim, penso que este "regime transitório"
é inconstitucional na eliminação retroactiva das garantias de um pro-
cedimento penal e de um julgamento judicial (n.° 3 do artigo sobre
o "regime transitório"), e no ponto em que — como que parificando
infracções penais e contra-ordenações — permite a aplicação de mul-
tas (que eram e continuam a ser sanções penais) por autoridades
administrativas (n.os 1 e 3).
Não partilho, porém, a afirmação da absoluta irretroactividade
de uma lei que crie uma contra-ordenação. Segundo penso, há que
distinguir entre uma lei que vem qualificar como contra-ordenação
um facto que, antes da sua entrada em vigor, não era considerado
infracção penal (nem crime, nem contravenção), e uma lei que con-
verte em contra-ordenação um facto que, antes, era considerado crime
ou contravenção. Nò primeiro caso, a proibição de retroactividade
é absoluta, mesmo no plano constitucional; já, no segundo caso, a
proibição de aplicação retroactiva não é absoluta..
182 1." Parte — O princípio da aplicação

Nestas situações de leis que convertem crimes ou contravenções


em contra-ordenações, o que é constitucionalmente imposto, para que
a lei possa ser retroactivamente aplicada (isto é, possa ser aplicada aos
factos que, no momento em que foram praticados, eram considerados
crimes ou contravenções), é que, para além da indispensável norma
transitória que o estabeleça, seja mantida a garantia processual e
judicial, e que a sanção contra-ordenacional seja, em termos materiais,
menos grave (ou, pelo menos, não mais grave) que a sanção penal.

O que acabo de dizer (que é constitucionalmente possível a apli-


cação retroactiva de uma lei contra-ordenacional que converta um
crime ou contravenção em contra-ordenação, desde que sejam res-
peitadas as condições que acabei de referir) não é em nada diferente
do que já, tanto na 1." edição (1990, p. 88 ss.) como na 2." edição
(1997, p. 120 ss,), escrevi. E, assim, só uma leitura apressada pode
ter levado Figueiredo Dias (I83"B) a atribuir-me, mais ou menos explí-
cita ou implicitamente, afirmações que eu nunca escrevi, como: uma
lei que converta um crime (ou contravenção) em contra-ordenação
implicaria, sempre e necessariamente, que os factos anteriormente
praticados deixariam de ter qualquer relevância jurídica; é preciso
«afastar aquela' perspectiva [no mínimo, sugerindo que é também a
minha], que, embora louvando-se na autonomia material do direito de
mera ordenação social, acaba por pensar o respectivo princípio da lega-
lidade nos exactos termos do princípio da legalidade criminal e
avança com uma solução formal e redutora».

(183-B) Direito Penal (n. 8 0 - A ) , 2 0 0 .


E, contrariamente ao que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (pro-
cesso 0740636), de 09-05-2007, diz, a minha "visão" sobre esta matéria da conversão
de crime (ou contravenção) em contra-ordenação não é "extrema", mas é a que
decone dos princípios constitucionais (CRP, art. 29.°, n.° 4-2° parte) e das normas
jurídico-penais (CP, art. 2.°, n.° 2) e contra-oidenacionais (RGCO, arts, 2° e 3°,n.° 1).
Pois que, como o próprio FIGUEIREDO DIAS O reconhece, uma tal lei é descrimina-
lizadora/despenalizadora e, portanto, necessariamente de aplicação retroactiva. Quanto
à punição como contra-ordenação, é um problema do regime temporal do direito de
ordenação social; ora, este, como não podia deixar de ser (nos casos em que a con-
duta, no momento em que foi praticada, nem era crime, nem contra-ordenação),
estabelece que a lei contra-ordenacional vale para o futuro.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 183

Não é nada disto o que eu penso e escrevi, O que eu digo é


que uma tal lei é — o que o próprio Figueiredo Dias também o
reconhece — descriminalizadora/despenalizadora e, como tal, neces-
sariamente de aplicação retroactiva. Já quanto à punição como con-
tra-ordenação, é um problema do regime temporal do direito de
ordenação social; ora, este, como não podia deixar de ser (nos casos
em que a conduta, no momento em que foi praticada, nem era crime,
nem contravenção), estabelece que a lei contra-ordenacional só vale
para o futuro.
Assim, se não existir uma norma geral que estabeleça o regime
transitório das leis que "convertem" crimes (ou, relativamente ao
passado, contravenções) em contra-ordenações — norma que ainda não
existe, e que eu entendo que deve existir e que deve ser introduzida
no Regime Geral das Contra-Ordenações — ou uma norma, na pró-
pria lei que opera tal conversão, a estabelecer o seu regime transi-
tório, a consequência, imposta pelos referidos princípios, não pode
deixar de ser a da impunidade das condutas anteriormente pratica-
das (183"c). E, se uma tal consequência não corresponder à vontade

(183-c) Neste sentido, o recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto


(processo 0744681), de 12-12-2007 — na linha de vários outros acórdãos dos nos-
sos Tribunais Superiores.
— Não devo deixar de fazer algumas considerações sobre a posição de Rui
PEREIRA ( " A Descriminação do Consumo de Droga", Liber Discipulorum para Jorge
de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1180 ss.) sobre esta questão.
O Autor, ao tratar — na perspectiva da sucessão de leis — as consequências
jurídico-práticas da entrada em vigor da Lei n.°" 30/2000, de 29 de Novembro,
que, pelo seu art. 2.°, n.° 1, passou a qualificar o consumo de droga como con-
tra-ordenação («o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de
... [estupefacientes e substâncias psicotrópicas] constituem contra-ordenação»),
tece uma análise, que me parece confusa, e faz considerações que acho desajus-
tadas.
Dado que, em texto, desenvolvo a posição' que entendo ser a mais conecta, tanto
no plano constitucional como no ordinário (CP e RGCO), aqui e agora, apenas é ade-
quado salientar as afirmações que considero erradas ou confusas.
Começa pela seguinte pergunta: quando uma lei "converte" em contra-orde-
nação um facto que, antes, era qualificado como crime, «existe uma sucessão entre
tais leis, ou antes uma ruptura que gera a impunidade dos agentes que praticaram
o facto quando ele ainda era qualificado como crime mas cuja responsabilidade se
afere em momento posterior, sendo o facto já classificado como contra-ordena-
184 1." Parte — O princípio da aplicação

ção?». E, imediatamente a seguir, afirma: «Esta última tese tem sido defendida maio-
ritariamente em várias situações que envolveram a substituição de crimes (ou con-
travenções) por contra-ordenações»; e, acto contínuo, diz que esta tese «assenta
numa contradição: por um lado, pressupõe a aplicação ao direito de mera ordena-
ção social das regras essenciais que disciplinam a aplicação no tempo da lei penal
— proibição de retroactividade in pejus; prescrição de retroactividade in melius —,
aplicação que, na verdade, ê expressamente imposta pelo artigo 3 ° do Regime do
Ilícito de Mera Ordenação Social (aprovado pelo Decreto-Lei n.° 433/82, de 27
de Outubro); por outro lado, ignota que esta comunhão deregimeresulta,obviamente,
de estarem em causa dois ramos do direito sancionatório público contíguos, par-
cialmente subordinados aos mesmos princípios, constitucionais (no plano material e
de fonna implícita, por força do artigo 18.°, n. 2; no plano processual e de forma
explícita, por força do artigo 32°, n.° 10, da Constituição).».
— Como creio já o ter demonstrado, esta suposta (por Rui Pereira) contra-
dição não existe. Desde logo, porque os defensores desta tese (em qiie me incluo)
não dizem nada que o direito de "mera" .ordenação social está, em matéria de apli-
cação da lei no tempo, sujeita aos mesmos princípios do direito penal; portanto, a
contradição resulta más é de uma suposição (que não corresponde à realidade) deste
Autor. Em segundo lugar, parece que, para Rut PEREIRA — embora tião o diga —
não há uma distinção qualitativa ou material entre direito penal e direito cje mera orde-
nação social. Mas, defenda ou não uma diferença material entre estes dois ramos
do direito público sancionatório, o que é inequívoco é que o regime substantivo e
processual destes dois sectores jurídicos é claramente diferente, não só no plano do
direito ordinário como também no constitucional (penso que não terá sido por mero
lapso que o art. 29° da CRP não se refere às contra-ordenações ...). Não quero com
isto dizer que o dito "direito de mera ordenação social" é um direito de "bagatelas"
sociais; e tanto assim é que eu, no meu livro Direito Penal — Questões Fundamentais,
2003, p. 157 ss., critico, por inadequada à relevância de muitos dos valores ou bens
jurídicos protegidos por este ramo do direito sancionatório, a utilização do qualifi-
cativo mera. Em conclusão, a minha posição é clara: no nosso ordenamento jurí-
dico vigente, há uma diferença material entre o direito penal e o direito de "mera"
ordenação social — diferentemente da posição de Rui PEREIRA, que, no mínimo,
parece ambígua; diferentemente do que este Autor afirma, a posição que ele critica
— e que eu, como vários outros (doutrina e jurisprudência), defendo — não pres-
supõe a aplicação ao direito de "mera" ordenação social das mesmas regras que
regem a aplicação da lei penal no tempo; sendo, como este Autor diz — o que eu
não contesta —, o direito penal e o direito de mera ordenação social «ramos do direito
sancionatório público contíguos», não acha que o qualificativo (rectius, depreciativo)
mera é desapropriado?

Mais à frente, escreve Rui Pereira: «Quando o legislador descriminou o con-


sumo de droga, fê-lo em nome de uma nova valoração dessa conduta, que impli-
cou a respectiva qualificação como contra-ordenação.». — Eis uma observação que
parece certa e até evidente. Só que, o que vem, a seguir, é que eu não percebo,
e é o seguinte: «Seria absurdo tentar cindir, artificialmente, a decisão normativa
em dois momentos: descriminação e criação de um novo ilícito. Rigorosamente,
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 185

a descriminação efectuou-se através da criação do ilícito de mera ordenação


social.».
— Só duas observações: ao falar em cisão artificial, parece que estamos a
falar de físico-quanica, e não de direito; mas não é, juridicamente, exacto e real que
uma lei que vem qualificar como contra-ordenação um facto que, até à sua entrada
em vigor, era qualificadci como crime é uma lei, simultaneamente, descriminaliza-
dora [parece-me maisrigorosoque "descriminadora"], e criadora de um ilícito de orde-
nação social?! Parece-me absolutamente irrelevante que seja este o caminho seguido
ou — desperdício dos desperdícios — que o legislador faça entrar em vigor, no
mesmo dia, duas leis: a lei x, a dizer que o facto z deixou de ser crime (= revoga-
ção da lei antiga, que tinha criminalizado o referido facto z), e a lei y, a dizer que
esse facto z passa a constituir contra-ordenação.

Não querendo, de modo nenhum, cansar o leitor, devo, porém, dizer que, pelo
menos para mim, os seguintes cinco parágrafos literários apresentam-nos uma grande
confusão ou mistura entre tribunais e autoridades administrativas, entre processo
penal e processo contra-ordenacional, ficando-se com a sensação de que, afinal,
direito penal e direito de ordenação social é "farinha do mesmo saco".

Depois de tudo isto, vejamos qual a conclusão que o Autor tira como sendo
a única e evidente: «A posição exposta é a única que assegura que o Estado de
direito não permite "amnistias" fraudulentas, não aprovadas democraticamente
segundo o método imposto pela Constituição.»! E esclarece, advertindo: «Frise-se
ainda que o entendimento contrário obsta a que o legislador possa transformar um
crime em contra-ordenação sem abrir a referida brecha sancionatória. Nenhuma
solução legislativa (ressalvada uma revisão constitucional) logra evitar a ilegítima
"amnistia" que tal entendimento postula, por ocasião da conversão de um crime
em contra-ordenação.»!...
— Já o dissemos: é evidente que, se o Legislador for competente e prudente,
não há nada "brechas sancionatórias" ou "amnistias ilegítimas".

Rui Pereira termina este apartado, dedicado ao que designa por "sucessão de
regimes", criticando a posição [digamo-lo, correcto, como, em texto, procurei demons-
trar] que o Supremo Tribunal de Justiça (no Acórdão de 9 de Maio de 2002 — pro-
cesso 02P628) tomou nesta questão da lei que "converte" um crime em contra-
-ordenação, escrevendo: «É certo que uma norma transitória clarificaria, nestes casos,
o regime a aplicar no caso de sucessão de leis. Todavia, tal norma não pode ser
necessária nos termos adiantados pelo Supremo Tribunal de Justiça, que, na verdade,
envolvem uma contradição: se não há sucessão de leis, a nova lei não pode pretender
aplicar-se retroactivamente, sob pena de violação do próprio artigo 2." da Constituição:
a ideia de Estado de direito democrático é incompatível com a atribuição de eficá-
cia retroactiva a uma lei que cria um novo ilícito; essa eficácia retroactiva só é
possível por haver uma verdadeira sucessão de leis e se impor a aplicabilidade
retroactiva do regime mais favorável.».
— Mas quem disse que não há sucessão de leis?! Resposta: nem o disse o STJ,
nem o digo eu ou aqueles que defendem a posição que foi adoptada pelo Supremo.
Ê claro que há uma sucessão de leis-, a lei (antiga) penal que qualificava o facto x
186 1." Parte — O princípio da aplicação

do legislador, a única coisa que há a dizer é que o legislador só a si


próprio pode imputar esta consequência.

Já que estamos numa questão de grande importância prática,


parece-me necessário salientar mais alguns pontos.
Em primeiro lugar, esta questão não pode resolver-se apenas em
termos de «expectativas» jurídicas (183~D), mas tem que ter em conta
as respectivas normas penais (CP, arts. 1 e 2.°), contra-ordenacio-
nais (RGCO, arts. 2.° e 3.°) e constitucionais (CRP, art. 29.°).
Relativamente ao exemplo apresentado por Figueiredo Dias (183"E)

(no caso concreto, o consumo de droga) como crime; e a lei (nova) que veio qua-
lificar o mesmo facto x como contra-ordenação. Ninguém está a falar da situação
em que o facto x não era considerado crime, nem contra-ordenação, e, em determinada
data, entrou em vigor uma lei a qualificâ-lo como contra-ordenação; pois que é evi-
dente que seria inconstitucional atribuir eficácia retroactiva a esta lei, visto que,
embora não seja uma lei penal, não deixa de ser uma lei punitiva e, portanto, res-
tritiva de direitos fundamentais.
O que é necessário — e que está longe de existir tanto nesta transcrição como
nas anteriores — é clareza e precisão, fi necessário, por exemplo, separar a suces-
são de leis punitivas de diferente natureza (lei penal/lei contra-ordenacional, ou
vice-versa) da sucessão de leis penais (lei penal/lei penal).
(183-D) g e e s t e fosse, em matéria de punição, o ponto fundamental, então tería-
mos de acolher a tese da Escola Clássica (cfr., supra, 1capítulo, IH, 8, e 2.° capí-
tulo, I, 3) que, a partir da sua radical concepção ético-jurídica e ético-retributiva da
norma punitiva e da sanção, defendia que a única lei que devia ser sempre aplicada
é a que estava em vigor no momento em que a conduta ilícita foi praticada.
(183-E) Exemplo este a que FIGUEIREDO D I A S (Direito Penal, Parte Geral, I,
Coimbra Editora, 2007, p. 200 s.) atribui um efeito arrasador da posição que eu
supostamente — pois que, como já o demonstrei, nunca defendi a iiretroactividade
(absoluta) da lei que converta um crime em contra-ordenação — defenderia, dizendo
(apesar do parco desenvolvimento que a esta importante questão prática dedica):
«o exemplo demonstra por si só que o ponto de vista correcto é o de qúe o facto
que deixou de ser crime e passou a contra-ordenação deve continuar a merecer san-
ção contra-ordenacional». — A expressão «deve continuar» não é correcta, pois
pressupõe que a conduta, no momento em que foi praticada, era considerada con-
tra-ordenação, quando, obviamente, configurava mas é crime. Logo, em vez de
«deve continuar a merecer sanção contra-ordenacional», deve dizer-se: deve passar
a merecer sanção contra-ordenacional.

— Uma vez que FIGUEIREDO D I A S diz, na nota 5 3 da pág. 2 0 1 , que CRISTINA


LÍBANO MONTEIRO (in « O consumo de droga na política e na técnica legislativas» em
Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2 0 0 1 , págs. 8 2 - 8 5 ) defende uma posição
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 187

sobre a taxa de alcoolemia baixar, por hipótese, de 1,2 g/l (CP,


art. 292.°, n.° 1) para 0,8 g/l, e, posteriormente, voltar para 1,2 g/l,

que vai na direcção da que ele defende nesta matéria, parece-me oportuno dizer
algumas palavras sobre o que CRISTINA MONTEIRO escreveu.
A primeira observação a fazer é a de que, enquanto FIGUEIREDO D I A S escreve
que «A questão, como facilmente se intui, constitui verdadeiramente problema de
direito contra-ordenacional e não penal — pois, com a descriminalização, a conduta
deixou de ter relevância penal» [itálico meu], já, diferentemente, CRISTINA MONTEIRO
defende a estranha posição de que uma lei, que converte em contra-ordenação uma
conduta até aí qualificada como crime, é uma lei descriminalizadora, mas não des-
penalizadora, acrescentando (diferentemente do que diz Figueiredo Dias) que, numa
tal hipótese, se deve aplicar o n.° 4 do art. 2 ° do Código Penal!...
Vejamos, então, a estranha posição defendida por CRISTINA MONTEIRO.
Logo após ter, correctamente, considerado que a Lei n.° 30/2000 descrimina-
lizou o consumo de drogas, ao revogar o art. 40.° do Dec.-Lei n.° 15/93, escreve o
seguinte: «Para que as coisas fiquem claras, definamos conceitos: há descriminali-
zação quando uma lei nova deixa de incriminar certos factos previstos numa lei
anterior. O que antes era crime deixa agora de o ser.». — Observação: nisto,
parece que estamos todos de acordo.
Mas, acto contínuo, e no contexto de um sistema punitivo integrado apenas por
crimes, contra-ordenações e ilícitos disciplinares públicos (excluídas, portanto, as con-
travenções), afirma, para que as coisas fiquem bem claras — como começou por
salientar — o seguinte: «A despenalização dá-se nos casos em que uma lei nova con-
tínua a considerar uma conduta como crime, mas submete-a a uma punição mais leve
do que aquela que resultava da lei anterior.». — Observação: com isto é que eu
(e penso que a generalidade da doutrina e da jurisprudência) não posso, de forma
alguma, estar de acordo. Sem quaisquer delongas, basta objectar, perguntando: se
a lei nova continua a considerar o facto como crime, como é que é possível, que sen-
tido tem dizer-se que houve despenalização?! Que magia possibilitará a convivên-
cia, a compatibilização destas três categorias, destas três afirmações: continua crime,
foi despenalizado e continua a ser punido (embora mais levemente)? Se continua
crime, que nome é que se há-de dar à sanção a aplicar-lhe?... Será que o Código
Penal (depois do afastamento das contravenções) não é sinónimo de Código Cri-
minal?... Embora logo a primeira disposição do Código Penal (art. 1°, n.° 1) fosse
desnecessária (pois parece evidente que crime implica pena, e pena pressupõe crime),
não vamos dizer que tal disposição "mente", quando proclama: «Só pode ser punido
criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao
momento da sua prática.». Análoga implicação biunívoca é estabelecida pelo Regime
Geral das Contra-ordenações, que, logo no art. 1 afirma: «Constitui contra-orde-
nação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine
uma coima.».
E, depois de mal definido o conceito de despenalização e da "tentativa" da sua
autonomização face ao conceito de descriminalização, entra em contradição, quando,
a seguir, escreve: «A degradação de um crime em contra-ordenação insere-se na pri-
188 1 ° Parte — O princípio da aplicação

há que contrapor — na linha do que, há pouco, escrevi — que a


solução injusta só existiria, se o legislador se esquecesse de inserir,

meira hipótese [descriminalização]. Sai do sistema jurídico-penal para entrar num


outro ramo sancionatório da ordem jurídica.». — Observação: se, no caso que está
a tratar, só houve, segundo as palavras da Autora, descriminalização, mas não houve
despenalização, então por que razão sai do "sistema jurídico-penal"?...
Tudo isto, para concluir com uma arrojada invenção: «Cremos poder afirmar
ainda que o n.° 2 do art. 2.° do CP vale para os casos em que a conduta desapare-
ceu de qualquer ramo do direito sancionatório (foi "eliminada do número das infra-
cções") e o n.° 4 para aqueles outros em que o regime sancionatório se tornou mais
favorável ao arguido, quer por se ter operado uma despenalização (crime, mas pena
inferior), quer por o ilícito ter sido degradado, mudado de ramo sancionatório (de
delito para contra-ordenação). Também neste caso "as disposições penais vigentes
no momento da prática do facto punível são diferentes das [disposições, o código não
diz que tenham que ser necessariamente penais] estabelecidas em léis posterio-
res",»!,.. — Com todo o respeito que a pessoa me merece, tenho que dizer que tal
ainda não tinha visto. Então, o n.° 2 do art. 2." do CP não se aplica, quando uma
lei converte um crime em contra-ordenação?! E o n.° 4 do mesmo artigo também;
se aplica, quando uma lei converte um crime em contra-ordenação?! E que pretenso
argumento tão inimaginável como este de apelar ao facto de o n.° 2 falar em "infra-
cções" (e não em infracções penais ou criminais) e de o n.° 4 falar em "disposições"
(e não em disposições penais) para tentar justificar o que de injustificável acabou de
expor, O art. 2°, no seu n." 2, não tinha nada que acrescentar o adjectivo "crimi-
nais" ao substantivo "infracções", e, no n.° 4, também não tinha que acrescentar o
adjectivo "penais" ao substantivo "disposições", pois que é por demais evidente
que o Código Penal, no seu todo, e, nomeadamente, no art. 2°, se refere somente
a crimes (infracções criminais) e a penas (disposições penais) e medidas de segurança.
Só faltava vir dizer que a expressão "O facto punível", com que se inicia o n.° 2,
abrange os crimes, as contra-ordenações e as infracções disciplinares.-.. Aliás, a
expressão «èliminar do número das infracções» já vem do Código Penal de 1886
(art. 6° — 1." excepção), e a expressão «diferentes das estabelecidas em leis pos-
teriores» é, literalmente, muito próxima da que constava deste código de 1886, que,
na 2." excepção do referido art. 6.", ao referir-se à pena, dizia «for diversa das esta-
belecidas em leis posteriores». Diga-se, ainda, que, relativamente áo n.° 4 (do
art. 2.° do código actual), a Autora até distorce o próprio texto, pois que, neste, se
lê: «Quando as disposições penais vigentes [...] forem diferentes das estabelecidas
em leis posteriores [...]», e não: forem diferentes das disposições estabelecidas.
Logo, a correcta interpretação é: forem diferentes das disposições penais estabele-
cidas em leis posteriores.
Só faltava vir dizer-se que o art. 3.° do RGCO não se refere só às contra-
-ordenações e às sanções contra-ordenacionais, mas que também pode referir-se aos
crimes e às penas...
A pertinência de todas estas objecções e críticas avoluma-se pelo facto de a
Autora salientar que defende uma diferença qualitativa ou material (e não apenas uma
distinção quantitativa, gradual ou fonnal) entre crimes e contra-ordenações.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 189

na terceira lei, uma norma transitória que estabelecesse que as


conduções de veículo consideradas crime durante a vigência da
lei intermédia (isto é, com uma taxa de álcool no sangue entre
0,8 g/l e 1,1 gfl) passavam a ser (retroactivamente) puníveis como
contra-ordenação, salvaguardando-se a garantia processual-penal e
judicial.
Observe-se, porém e ainda, que, apesar do postulado da auto-
nomia material e da maior gravidade do crime face à contra-ordenação,
•pode, na prática, acontecer que a sanção contra-ordenacional seja,
realmente, mais gravosa que a sanção penal. Numa tal hipótese,
que também não é descabida (I83~F), não podia deixar de se reduzir
a sanção contra-ordenacional, pois, caso contrário, a conversão de
crime em contra-ordenação prejudicaria, inconstitucionalmente, em vez
de favorecer.

Uma última palavra para dizer o seguinte: todos ou, pelo menos,
a maior parte destes problemas poderiam ser resolvidos com a inclu-
são, no Regime Geral das Contra-Ordenações (.Decreto-Lei
n.° 433182), de um art. 3."-A, que, na linha do que já disse em
comentário à Decisão do Tribunal de Vila do'Conde, estabelecesse
o regime aplicável à conversão de um crime numa contra-ordenação
e vice-versa.

çx83-Fj Basta pensar na gravidade de muitas sanções acessórias contra-orde-


nacionais, e nas possíveis coimas elevadíssimas por comparação com a pena de
multa: confronte-se os.arts. 17.°-1 e 2 , e 21° do RGCO com os arts. 47.°-! e 2 e 65°
e seguintes do Código Penal.
Sobre, este ponto da possibilidade real de as sanções contra-ordenacionais
serem mais graves que as sanções penais, ver, entre outros, o importante estudo de
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, «O Ilícito de Mera Ordenação Social e a
Erosão do Princípio da Subsidiariedade da Intervenção Penal», em RPCC ( 1 9 9 7 ) ,
7 - 1 0 0 , nomeadamente, 7 1 - 7 4 ; AMÉRICO TAIFA DE CARVALHO, Direito Penal (n. 7 1 ) ,
1 4 7 - 1 7 5 , nomeadamente, 1 6 9 - 1 7 0 ; ANTÓNIO DE ALMEIDA COSTA, « A propósito do
novo Código do Trabalho: bem jurídico e pluralidade de infracções no âmbito das
contra-ordenações relativas ao "trabalho suplementar"», em Liber Discipulorum
para Jorge dè Figueiredo Dias, Coimbra Editora ( 2 0 0 3 ) , 1 0 4 3 , nota 1 0 ; NUNO
BRANDÃO, «Questões contra-ordenacionais suscitadas pelo novo regime legal da
mediação de seguros», em RPCC ( 2 0 0 7 ) , 8 4 e ss.
190 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Este desejável e necessário artigo podia ter, mais ou menos, as


seguintes disposições:
1. Quando uma lei converter um facto de crime em contra-
ordenação, o facto praticado durante a vigência da lei penal é puní-
vel como contra-ordenação, desde que, no dia em que aquela lei
entrou em vigor, ainda não tenha transitado em julgado a sentença
penal; se já tiver transitado em julgado, o facto deixa de ter qual-
quer relevância jurídico-punitiva.
2. Quando uma lei converter um facto de contra-ordenação
em crime, o facto praticado durante a vigência da lei contra-orde-
nacional continua a ser punível como contra-ordenação.
3. Na situação referida no n.° 1, aplicam-se as regras do pro-
cesso penal, e a competência para o julgamento cabe ao tribunal,
mesmo que, no dia em que entra em vigor a lei que operou a con-
versão, ainda não se tenha iniciado o processo.
4. Na situação referida no n." 2, aplicam-se as regras do pro-
cesso das contra-ordenações, e a competência para a decisão cabe
às autoridades administrativas; a decisão é, nos termos gerais, sus-
ceptível de impugnação judicial.
5. Tanto na situação referida no n." 1 como na referida no n.° 2,
nunca a sanção contra-ordenacional a aplicar pode ser concretamente
mais grave do que a que resultaria da aplicação da sanção penal.

— Depois de termos analisado os argumentos invocados pelo


Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde, no processo
n.° 1017/2006, — argumentos que considerei válidos, mesmo na
perspectiva constitucional (exceptuando o carácter absoluto da irre-
troactividade da lei contra-ordenacional) — e de ter exposto a minha
posição sobre o tratamento das leis que convertem crimes (ou con-
verteram contravenções, até à entrada em vigor da Lei n.° 30/2006,
de 11 de Julho, que eliminou, na totalidade, as infracções penais
"contravenções" e "transgressões") em contra-ordenações, cabe, agora,
fazer uma breve referência crítica ao Acórdão do Tribunal Cons-
titucional n.° 221/2007, cujo conteúdo discursivo é uma mera repe-
tição de uma longa série de Acórdãos deste mesmo Tribunal (desde
o Acórdão n.D 61/99 até ao Acórdão n.° 419/2006).
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 191

Este Acórdão merece, na minha opinião, três reparos: evitou


enfrentar, directamente, os argumentos invocados pelo Tribunal de
Vila do Conde em favor da inconstitucionalidade material de várias
das disposições do regime transitório estabelecido no artigo-20.° da
Lei n.° 25/2006, de 30 de Junho; assumiu uma postura mais pró-
pria do Legislador do que de um Tribunal Constitucional, e foi
difuso e superficial na abordagem da questão jurídico-constitucional
das implicações e exigências que se colocam às leis que convertam
infracções penais (agora, reduzidas aos crimes) em contra-ordena-
ções, dando, neste ponto, origem a que, no futuro, surjam novas
dúvidas e divergências nos tribunais.
Para não perdermos tempo, é melhor transcrever as passa-
gens/argumentos do Acórdão e, logo de seguida, fazer uma curta
observação.
Lê-se no Acórdão: «A norma em apreço veio instituir tão só
uma pena pecuniária»; «a sanção pecuniária nela prevista não podia
ser convertível em prisão»; «torna-se inquestionável que o compor-
tamento em causa (o não pagamento da "taxa" de portagem devida
pela utilização das auto-estradas) não pode ter uma ressonância ética
tal que o haja de qualificar como um crime»; «o n.° 1 do artigo 20.°
da Lei n.° 25/2006 não eliminou, nem a ilicitude, nem a responsa-
bilidade pela conduta prevista, [limitando-se] a proceder à sua "des-
graduação" ou "desvalorização" para a zona do ilícito de mera orde-
nação social»; «a transformação em contra-ordenação de uma conduta
que constituía crime "é um problema de direito contra-ordenacional
e não penal — pois com a descriminalização, a conduta deixou de ter
relevância penal"; «[estando] em causa "dois ramos do direito público
sancionatório contíguos", "na sucessão de leis criminais e contra-
-ordenacionais deve-se aplicar sempre o regime de mera ordenação
social"; e, logo a seguir, em contradição com a transcrição acabada
de fazer, diz que, depois de comparados os regimes penal e contra-
-ordenacional, tanto se pode acabar por aplicar o regime penal como
o contra-ordenacional, tudo dependendo apenas de se ver qual é o
regime mais favorável: «ao operar a transformação em ilícito de
mera ordenação social, a lei procedeu de acordo com o princípio da
aplicação retroactiva da lei mais favorável, mandando aplicar o regime
192 1 ° Parte — O princípio da aplicação

menos gravoso para o arguido»; e, como que pondo de lado os prin-


cípios jurídico-penais e jurídico-constitucionais, e olhando apenas às
consequências práticas que, erradamente, o Tribunal Constitucional
pensa que resultariam, necessariamente, da conversão de uma infrac-
ção penal numa infracção contra-ordenacional, diz o Acórdão, em
tom de objecção prática intransponível: «É manifestamente contrário,
quer à letra, quer ao espírito do n.° 1 do artigo 20° em especial,
quer à Lei n.° 25/2006 globalmente considerada, admitir que o legis-
lador quis eliminar a ilicitude — e a punição — do não pagamento
das portagens, devidas. Solução eventualmente contrária levaria ao
absurdo de, uma vez incriminada uma conduta, o legislador ficar
impedido de a "desgraduar" em contra-ordenação, restando-lhe a
opção entre manter uma incriminação que considera excessiva ou
conceder (não intencionalmente, como é manifesto) uma "amnistia"
generalizada a condutas anteriores que continua a querer considerar
ilícitas. Poderia desagravar um crime, passando a puni-lo de forma
menos severa (cfr. n.° 4 do artigo 2 ° do Código Penal), mas não
transformá-lo em contra-ordenação».

De tudo isto (que, diga-se, pouco tem que ver com os argu-
mentos invocados pelo Tribunal de Vila do Conde, os quais o Tribunal
Constitucional tinha obrigação de refutar) resulta, segundo o enten-
dimento do Tribunal Constitucional, que «há-de concluir-se que o
tratamento que lhe deve ser conferido há-de ser o correspondente às
contra-ordenações» — conclusão que "esquece que o n.° 1 do
artigo 20° da Lei n.° 25/2006 (cuja disposição é exactamente igual
à do n.° 1 do artigo 36° da Lei n.° 30/2006, de 11 de Julho) manda
aplicar o «regime que concretamente se mostrar mais favorável ao
agente», o que pressupõe e significa que, para o legislador ordinário,
até pode ser o regime penal.

— Esta argumentação, ou, mais exactamente, estas considerações


do Tribunal Constitucional são mais próprias do Legislador, quando
a este se coloca o problema de se decidir pela qualificação de uma
determinada conduta como infracção penal (agora, igual a crime,
mas, antes, crime ou contravenção), do que de um Tribunal Consti-
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 193

tucional a quem cabe apenas aferir da inconstitucionalidade ou não


inconstitucionalidade das leis. Segundo este discurso do' Tribunal
Constitucional, até parece que era da competência deste Tribunal
decidir quais, de entre as condutas anteriormente qualificadas infrac-
ções penais contravencionais (ou, relativamente ao futuro, quais, de
entre as condutas anteribrmente qualificadas como crime), eram aque-
las que, independentemente de qualquer intervenção do Legislador,
deviam ser tratadas como crimes e as que deviam ser tratadas como
contra-ordenações!...
Ao enfatizar a circunstância de só estar em causa uma pena
pecuniária não convertível em prisão (daqui partindo para dizer que
a punição de uma conduta com uma tal pena não seria da reserva rela-
tiva de competência legislativa da Assembleia da República), tal nos
leva afazer duas perguntas: então será que o Governo tem compe-
tência legislativa (concorrente com a da Assembleia da República)
para instituir a responsabilização penal das pessoas colectivas
(mesmo que e desde que tão só com pena de multa), uma vez que
estas não podem, obviamente, ser puníveis com pena de prisão?...;
e será que o art. I d o Regime Geral das Contra-Ordenações
— «Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e. censurável que
preencha um tipo legal no qual se comine uma coima» — tem mero
valor indiciáriol...
Este Acórdão do Tribunal Constitucional (tal como os seus
precedentes e nos quais se "inspirou") fugiu às questões essenciais
da diferente natureza, ou não, da infracção penal VJ infracção con-
tra-ordenacional (isto é, da autonomia material entre infracção penal
e contra-ordenação), da proibição da eliminação retroactiva da garan-
tia jurisdicional e do procedimento penal, da importância do "tem-
pus delicti", etc. Enfim, lintitou-se a falar em termos genéricos,
como sucessão de leis (não dando relevância ao facto de se estar
diante da despenalização de uma conduta e da sua passagem a con-
tra-ordenação), continuidade da ilicitude (como que não relevando a
diferença entre ilicitude penal, ilicitude administrativa ou ilicitude
civil ...), e menosprezando o sentido e o alcance do art. 2.° do
Código Penal e do art. 3.° do Regime Geral das Contra-Ordenações
e, nomeadamente, do art. 29°, n.° 4, da Constituição. Ou seja, quase
13
194 1 ° Parte — O princípio da aplicação

reduziu todas as questões a um mero problema de importâncias


pecuniárias.

C) Contra-Ordenação -» Crime

1. O que se escreveu e demonstrou, na subsecção anterior (B),


conduz-nos, sem necessidade de acrescentar seja o que for, à conclusão
seguinte: a lei que converte uma contra-ordenação em crime, isto é,
a lei que passa a qualificar como infracção penal uma hipótese legal
que por lei anterior era qualificada como contra-ordenação (infrac-
ção administrativa) é uma lei penalizadora (fundamentadora de res-
ponsabilidade penal) e, como tal, só pode aplicar-se às condutas pra-
ticadas depois da sua entrada em vigor (CRP, art. 29.°-l. e 3.; CP,
arts. l.°-l. e 2.°-l.).

2. Quanto às condutas anteriormente praticadas, isto é, prati-


cadas na vigência da lei que as qualificava como contra-ordenação,
o problema tem de ser resolvido de acordo cóm os princípios que
regem a vigência temporal da lei contra-ordenacional (Dec.-Lei
n.° 433/82, arts. 2.° e 3.°).
Embora não seja objecto desta investigação monográfica o pro-
blema da aplicação da lei contra-ordenacional no tempo, diga-se,
contudo, o seguinte:

1 N ã o se trata de uma hipótese de verdadeira sucessão de


leis penais; logo não funciona o princípio da aplicação da lei mais
favorável e, portanto, não há que fazer a ponderação da gravidade
objectiva" das sanções (sanções contra-ordenacionais <-> sanções
penais). Pela conduta anterior à vigência da lei que qualifica, ex
novo, a conduta como infracção penal, jamais o infractor pode ser res-
ponsabilizado penalmente.
2.° Então, seguem-se duas hipóteses: ou tais condutas perdem,
com a entrada em vigor da lei, toda a relevância jurídica, extin-
guindo-se, se já iniciado, o processo contra-ordenacional e man-
tendo-se intocado o caso julgado quanto à coima (pois que, como san-
ção pecuniária que o é, é de cumprimento instantâneo — tal como a
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 195

pena de multa, mas diferentemente da pena de prisão —, devendo o


momento do seu cumprimento considerar-se coincidente com o
momento do trânsito em julgado da decisão condenatória ( 184 )),
embora as sanções acessórias devam considerar-se extintas; ou tais
condutas mantêm a sua relevância jurídica contra-ordenacional, apli-
cando-se ultraactivamente a lei que, no momento da conduta, as qua-
lificava como ilícito de mera ordenação social.
3.° Como se acaba de ver, não fiz qualquer referência porme-
norizada a nenhuma das várias disposições do art. 3.° («aplicação
no tempo») do Dec.-Lei n.° 433182. E não a fiz, precisamente por-
que esta hipótese de conversão de contra-ordenação em infracção
penal não é abrangida pelo referido artigo. Este refere-se às hipó-
teses de lei que ex novo qualifica o facto como contra-ordenação
(arts. 2.° e 3.°-l.) e de sucessão de leis contra-ordenacionais — apli-
cando-se a lei mais favorável — (art. 3.°-2.).
É certo que poderá acolher-se o entendimento de que a «lei que
converte uma contra-ordenação numa infracção penal» é uma lei
mais favorável relativamente aos factos praticados antes da sua
entrada em vigor. Eis o raciocínio que pode levar a este entendimento
(diga-se: o que me parece mais defensável face aos princípios gerais
já, anteriormente, desenvolvidos e face ao próprio art. 3.°-2.): sendo
uma tal lei, simultaneamente, penalizadora e descontra-ordenacio-
nalizadora, não pode a responsabilização penal ser retroactiva, mas já
pode a sua eficácia extintiva da responsabilidade por ilícito de mera
ordenação ser retroactiva. Quer dizer: esta lei que retira a natureza
de contra-ordenação ao facto pode considerar-se integrada no conceito
de lei posterior mais favorável ao arguido de contra-ordenação
(art. 3.°-2.).

( m ) Como veremos, a propósito do trânsito em julgado da condenação em


pena de multa, sou de opinião que não se deve confundir o momento (ou momen-
tos, no caso de pagamento em prestações) do pagamento com o momento em
que o cumprimento do pagamento (a obrigação de pagar a multa) se torna exi-
gível. É este último o momento relevante; a patir deste momento o património
do condenado fica onerado no correspondente ao quantitativo da multa. Por isto,
não vejo razão para o disposto na 1° parte do n.° 1 do art. 90° do Dec.-Lei
n." 433/82.
196 1 ° Parte — O princípio da aplicação

3. A melhor e mais razoável solução está na concretização legis-


lativa da proposta que já apresentei, a propósito da situação inversa
(passagem de crime a contra-ordenação), proposta que tem o seguinte
teor: quando uma lei converter um facto de contra-ordenação em
crime, o facto praticado durante a vigência da lei contra-ordenacional
continua a ser punível como contra-ordenação, seguindo-se as regras
do processo das contra-ordenações, e continuando a caber às auto-
ridades administrativas a competência para a decisão; a sanção
contra-ordenacional a aplicar nunca pode ser concretamente mais
grave do que a que resultaria da aplicação da sanção penal.
A disposição com este regime transitório deve, obviamente, ser
incluída no Regime Geral das Contra-Ordenações.
Enquanto o legislador não criar esta norma geral, a conduta pra-
ticada durante a vigência da lei contra-ordenacional, e cuja decisão
ainda não tenha transitado em julgado, quando entrou em vigor a
lei que operou a referida conversão, só não perderá toda a sua rele-
vância jurídica (isto 'é, só poderá continuar a ser punida como con-
tra-ordenação, pois. que, em hipótese alguma, pode ser, retroactiva-
mente, punida como crime), se a lei, que operou a conversão, contiver
uma norma com o respectivo regime transitório.
Uma vez que já me debrucei o suficiente sobre esta questão,
no n.° 5 da anterior subsecção B, para lá remeto.

D) Apreciação da actual redacção do n.° 2 do art. 3." do


Dec.-Lei n.° 433/82

Na l. a edição, página 116, criticámos várias disposições do


Dec.-Lei n.° 433/82, art. 3 °, dedicado à aplicação da lei con-
tra-ordenacional no tempo. Tínhamos, obviamente, em vista a redac-
ção originária então vigente.
Sucedeu, porém, que o legislador conferiu nova redacção a este
art. 3.° (cf. Dec.-Lei n.° 356/89, de 17-10, e Dec.-Lei n.° 244/95,
de 14-9), redacção esta que veio de encontro, a várias das críticas
feitas à redacção originária.
Escrevi, na 1." edição, que se compreendia que, no direito de
mera ordenação social — diferentemente do que deverá ser no direito
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 197

penal —, o caso julgado fosse um limite à retroactividade da lei


favorável (quer à que estabeleça uma coima menor quer à que pura
e simplesmente retira a qualificação de contra-ordenação ao facto),
quanto à sanção principal. Mas acrescentámos que era de criticar e
de recusar que o mesmo caso julgado contra-ordenacional constituísse '
um limite à retroactividade da lei mais favorável, quanto às san-
ções acessórias previstas (actualmente) no art. 21.°, n.° 1, al. b) e ss.
— Ora, posteriormente, o legislador não só afastou o limite do caso
julgado relativamente às sanções acessórias mas também o afastou
relativamente à sanção principal, a coima, estabelecendo como limite
à aplicação retroactiva da lei mais favorável a execução da respec-
tiva sanção: «Se a lei vigente aò tempo da prática do facto for pos-
teriormente modificada, aplicar-se-ã a lei mais favorável ao arguido,
salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou tran-
sitada em julgado e já executada» (itálico meu, obviamente).
Diante da nova redacção da parte final do n.° 2 do art. 3°, creio
adequado dizer-se que se passou de oito para oitenta. Isto é, se a
redacção primitiva pecava por defeito, pois, injustificadamente, excluía
a retroactividade da nova lei, quanto às sanções acessórias (que são
de natureza pessoal e duradouras), desde que já houvesse caso julgado, •
a redacção actual, ao excluir o limite do caso julgado, também rela-
tivamente à sanção principal, à coima (que é de natureza patrimonial
e instantânea, mesmo que o seu pagamento possa ser fraccionado
em prestações), peca por excesso e pode levar a que prejudicados
sejam precisamente os que espontânea e tempestivamente pagam as
coimas em que foram condenados. -
As outras duas observações críticas, que fiz ao texto primitivo
do art. 3.° do Dec.-Lei n.° 433/82, deixaram de ter cabimento face à
redacção actual. O legislador eliminou do n.° 3 do art. 3.° (leis con-
tra-ordenacionais temporárias) a descabida ressalva: «salvo se estas
(as leis temporárias) determinarem o contrário». Era descabida pelo
seguinte: sendo uma lei temporária uma lei que tem um regime pró-
prio (ultraactividade), então como ela própria ia dizer que não era?!
ETa uma contradictío in terminis.
Também, correctamente, foi eliminado o n.° 4 do art.. 3.°, que
falava em «efeito das contra-ordenações», quando o respectivo
198 1 ° Parte — O princípio da aplicação

decreto-lei (lei-quadro) não refere quaisquer efeitos gerais das (con-


denações por) contra-ordenações.

HL Alteração do Tipo de Ilícito: Despenalização da Conduta


(CRP, Art. 29.% N.° 4 - 2." parte a fortiori; CP, Art. 2.°,
N.° 2) ou Aplicação da Lei Penal Mais Favorável (CRP,
Art. 29.°, N.° 4 - 2." parte; CP, Art. 2.°, N.° 4)?

A) Actualidade, complexidade e relevância prática da


questão:

1. A actualidade deste problema é grande. Nesta linha, salienta


PADOVANI (185) a sua «particular evidência e actualidade nos perío-
dos de reforma do sistema penal», uma vez que, nestas reformas,
não se trata apenas de simples «aggiomamenti», mediante incrimi-
nações ex novo ou eliminação de incriminações pré-existentes, mas
sim de «reformulações dos próprios tipos legais, através dé modifi-
cações, mais ou menos incisivas, dos seus elementos constitutivos».
É, obviamente, de concordar com o mencionado Autor, havendo
mesmo que ir mais longe. Se é natural que o problema tenha, nes-
tes momentos de substituição global de um código por outro, uma
super-acuidade, pode, contudo, afirmar-se que, mesmo para além
dessas transitórias fases de profunda e global mutação legislativo-penal,
o problema continua a revestir-se de actualidade. Na verdade, mesmo
no plano do diploma penal fundamental — o código penal — depa-
ramos com a circunstância de, poucos meses após a sua publicação,
já ter ecoado a necessidade de proceder a alterações, e de, poucos anos
volvidos sobre o seu início de vigência, ter sido nomeada uma comis-
são para a sua efectiva revisão; revisão que culminou na Reforma
Penal de 1995, revisão esta que, logo no ano seguinte, foi conside-
rada, por alguns, insuficiente; nesta linha, em 1998, foi operada uma
nova Revisão, relativamente profunda, do Código Penal. E, meia
dúzia de anos volvida, eis que nos encontramos diante das muito

(1M) Tipicità... (n. 154), 1354.


3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 199

profundas Revisões do Código Penal e do Código de Processo Penal


(operadas, como o sabemos, pelas Leis n.° 59/2007, de 4 de Setembro,
e n.° 48/2007, de 29 de Agosto). E, mal o parto realizado, logo,
nas semanas ou, talvez, dias seguintes à sua publicação (!), fomos
"advertidos" ou "acalmados" de que, provavelmente dentro de um ano,
teremos uma nova Revisão, ou seja uma revisão da revisão mal aca-
bada de nascer (18S). Esclareça-se que o que criticamos, não são as
revisões em si, mas sim, como já o salientei e critiquei, a falta de
Legisprudência.
Se passarmos ao domínio da legislação penal extravagante
— máxime, tratando-se do denominado «direito penal secundário» —
verificamos que não são menos frequentes — bem pelo contrário —
as perturbadas e perturbantes alterações legislativas. De tudo resulta
um fenómeno inflacionário — em larga medida, desnecessário (187) —
de modificações dos tipos legais.

2. A complexidade das questões levantadas pelas modificações


dos tipos legais é, na realidade, grande; daqui, a divergência, na dou-
trina e na jurisprudência, quanto à respectiva resolução.

Exemplifiquemos:
a) A L.N. suprime o elemento típico «que constituam perigo
para a saúde» que constava da L.A. que descrevia, assim, o tipo
legal: «a venda de bens impróprios para consumo, que constituam
perigo para a saúde» será punida... — Tendo A praticado o facto
previsto na L.A. e na vigência desta, pergunta-se se o facto de
A continua a ser punível pela L.N., i. é, se há entre as duas leis uma
verdadeira sucessão, caso em que intervirá a aplicação da lex mitior
(CP, art. 2.°-4.). — Como é evidente, a resposta é afirmativa.
b) A L.N. altera o tipo legal de crime de aborto, baixando a
idade do feto de 4 para 3 meses. — Supondo que B interrompeu, na
vigência da LA., uma gravidez de 5 meses, e que vem a ser julgado

(186) Cf. supra, Introdução i, 3.


(!87) V . GOMES CANOTILHO ( n . 1 ) , 6 e 10.
200 1 ° Parte — O princípio da aplicação

na vigência da LJST., a resposta à pergunta sobre a persistência da puni-


bilidade de B não pode deixar de ser positiva. Relativamente ao
facto concreto de B, há entre as duas leis uma verdadeira relação de
identidade normativo-típica (logo, uma sucessão stricto sensu), pelo
que haverá somente que ponderar qual a que estabelece uma menor
responsabilidade penal.
c) A L.N. substitui, no tipo legal de infanticídio privilegiado,
a circunstância «por motivo da honra» por estoutra circunstância tam-
bém privilegiante «por motivo de abandono material ou moral» (1S8).

aa) — Quer C tenha cometido o crime por motivo da honra


(para ocultar a desonra) quer o tenha praticado por motivo de aban-
dono material ou moral, a pena aplicável será sempre a de infanticídio
(homicídio) privilegiado e nunca a de homicídio (qualificado ou sim-
ples). Mas — repare-se — não porque haja entre estas duas leis
uma relação de identidade normativo-típica relativamente ao caso
concreto; efectivamente, não há uma sucessão de leis penais stricto
sensu entre a LA. e a L.N., pois que, dada a heterogeneidade dos ele-
mentos permutados, as hipóteses abrangidas por uma não coincidem,
nem sequer parcialmente, com as abrangidas pela outra. Lbgo, a LJN.
não se situa numa linha de continuidade típica da L.A.: todas as
situações que eram privilegiadas pela L.A. deixaram de o ser face
à LJST., e as situações privilegiadas pela L.N. não o eram pela L.A.
Conclusão: não há entre elas uma relação de identidade típica (face
ao caso concreto), não há uma verdadeira sucessão; não há, por-
tanto, que ponderar as responsabilidades penais estabelecidas por
cada uma delas, pois que não intervém o princípio da lex mitior
{CP, art. 2.M.).
Mas dissemos que se teria sempre (quer tivesse sido por motivo
da honra quer por motivo de abandono) de aplicar a moldura penal do
infanticídio privilegiado. Efectivamente, assim é, mas por outras
razões: é que se foi por motivo da honra, negar relevância jurí-
dico-penal a esta circunstância tipificada na lei do «tempus delicti»

(1S8) Exemplo apud PADOVANI (n. 164), 1355.


3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 201

equivaleria à aplicação retroactiva da pena estabelecida para o homi-


cídio (neste caso, qualificado) que é uma pena mais grave, violando-se,
assim, o princípio da proibição da retroactividade penal desfavorável
(CP, art. 2°, I.). Só os infanticídios por motivo da honra praticados
depois da entrada em vigor da LJSf.. é que podem ser classificados e
punidos como homicídios (qualificados); se o infanticídio tiver sido
cometido por motivo de abandono, então estar-se-á diante de um facto
que, embora, no momento em que. foi praticado, fosse considerado
homicídio (qualificado), todavia, com a. entrada em vigor da LJM.,
passou a ser homicídio (infanticídio) privilegiado, o que significa que
tal facto deixou de ser abrangido pelo tipo legal de homicídio para ser
compreendido numa lei que ex novo o privilegia e, como tal, lhe vai
ser aplicada retroactivamente (CRP, art. 29°, 4.-2." parte).
bb) — Tanto assim é que na hipótese, prima facie mais com-
plicada, de a LJSf. (que trocou o motivo privilegiante honra pelo do
abandono) ter, simultaneamente, reduzido a moldura penal do infan-
ticídio privilegiado, e de o C ter praticado o crime apenas por motivo
da honra, torna-se, no termo da análise, mais patente que, efecti-
vamente, não há entre a L.A. (revogada) e a L.N. (revogatória) uma
verdadeira sucessão, não há uma relação de continuidade típica e
que, portanto, nunca poderá ser aplicado a C a pena estabelecida
na L.N. (189).
Ao retirar o carácter privilegiante à motivação honra, acabou
a LJSf. por integrar o infanticídio para ocultar a desonra no tipo legal
de homicídio (qualificado) cuja pena é muito mais grave. Portanto,
a «lei nova», relativamente ao caso sub iudice, é a lei que prevê e
pune o homicídio (qualificado). O confronto vai fazer-se entre a LA.
e a lei que p. e p. o homicídio (qualificado) e não entre L A . e a for-

(189) Não pode esquecer-se que o facto de também ter havido alteração do pre-
ceito sancionatório não pode afectar a metodologia da resolução. Assim, a pri-
meira fase continua a passar pela resolução da questão prévia, que consiste em
decidir se se está perante uma lei nova descriminalizadora ou criminalizadora (ou:
desqualificadora ou desprivilegiante) ou perante uma verdadeira sucessão de leis
penais. Só nesta segunda hipótese é que se colocará, numa segunda fase, o problema
da lei mais favorável de entre a LA. è a L.N.
202 1 ° Parte — O princípio da aplicação

malmente LJST. Ora como a lei que p. e p. o homicídio qualificado é


mais desfavorável do que aquela que, no momento do facto, p. e p.
o infanticídio por motivo da honra, continuará a ser esta a aplicável.

d) Acabámos de ver uma hipótese em que a L.N. extingue o


efeito modificativo atenuante (privilegiante) a determinada circuns-
tância que o tinha segundo a L A . (a do «tempus delicti»). Vejamos,
agora, o,caso em que a L.N. extingue o efeito modificativo agra-
vante de determinada circunstância.
A L.A. considerava como elemento típico do crime de roubo
qualificado a circunstância de o roubo ser praticado «na via pública»;
a L.N. substituiu este elemento pelo elemento «estiver armado».
— À pergunta sobre se há entre estas duas leis qualificativas do
roubo uma relação de verdadeira sucessão, há que responder que
não. Mutatis mutandis, transfira-se para esta hipótese a argumenta-
ção aduzida na alínea anterior.
— O exemplo: supondo que D, na vigência da LA., praticou um
roubo «na via pública» e se encontrava «armado», vindo a ser julgado
na vigência da L.N. (190), quid iuris?: deverá ser-lhe aplicada a L.A.,
a L.N. ou a lei que previa e prevê o crime (fundamental) de roubo?
Aplicar a L.A. seria aplicar uma moldura penal determinada
(agravada) em função de uma circunstância (na via pública) a que
a L.N. retirou o valor modificativo agravante da pena legal do roubo;
logo, não pode ser.
Aplicar a LJST. seria valorar, retroactivamente, como típica uma
circunstância (o estar armado) que, no momento da prática do facto,
não era elemento do- tipo legal de roubo qualificado. A conclusão não
pode, portanto, deixar de ser a de classificar o facto como crime
fundamental de roubo e puni-lo como tal.
e) A L.A., na sua hipótese (factualidade típica, tipo legal stricto
sensu, tipo incriminador ou preceito primário), descreve (elementos

0?°) Na R.FA., a modificação, operada pelo novo CP (SlGB, § 250 I) das cir-
cunstâncias do tipo legal de roubo qualificado (Schewerer Raub) deu origem a um
relativamente amplo debate doutrinal sobre esta matéria da sucessão de leis penais
que alteram a constituição do tipo legal. A tais posições me referirei.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 203

constitutivos do tipo legal de crime) a produção, armazenamento ou


venda de «bens impróprios para consumo»; a LJST. altera a referida
hipótese legal, acrescentando-lhe o elemento «que constituam perigo
para a saúde».

aa) — Suponhamos que E, na vigência da L.A., vendeu bens


impróprios para consumo e que, no momento do julgamento (191), já
estava em vigor a L.N. — Quid iuris? Ê evidente que, colocada
assim a questão, a resposta seria evidente: a LJST. é, relativamente ao
facto de E, uma lei descriminalizadora (pois que, agora, não basta que
os bens sejam impróprios para consumo, sendo também exigido que
constituam um perigo para a saúde) e, portanto, aplicar-se-á, retroac-
tivamente (CP, art. 2.°-2.), extinguindo-se a responsabilidade penal
do E (192). Relativamente a este facto, não há uma relação de suces-
são entre a L.N. e a L.A.
bb) — Mas o caso já muda de figura e a solução torna-se mais
difícil se acrescentarmos que os bens vendidos pelo E eram não só
«impróprios para consumo» mas também que o seu consumo podia
«constituir perigo para a saúde» — embora evidentemente, não
tenha havido efectivo perigo de lesão da saúde porque não chegaram
a ser consumidos.
Pergunta-se: deverá o tribunal decidir-se pela despenalização
do facto praticado por E (CP, art. 2.°-2.) ou deverá considerar que se
está perante uma verdadeira sucessão de leis penais, fazendo intervir,
consequentemente, o princípio da aplicação da lei mais favorável
(CP, art. 2,°-4.)? '
•cc) — Supunhamos, ainda relativamente ao mesmo facto de E,
que a L.N. não somente passou o tipo legal de crime de perigo abs-

(191) No exemplo, aparece a L.N. como tendo entrado em vigor antes do trân-
sito em julgado; diga-se, porém, que o problema se colocaria, mesmo que já tivesse
ocorrido o caso julgado, desde que ainda não se tivessem extinguido todas as con-
sequências penais derivadas da condenação.
(192) E de sucessão de leis penais que, hic et nunc, curamos, e não da «con-
versão» de uma infracção penal numa contra-ordenação ou vice-versa. Para estas
hipóteses, v. B e C da secção anterior (n).
204 1 ° Parte — O princípio da aplicação

tracto a tipo legal de crime de perigo concreto (logo, maior exi-


gência do novo tipo e, portanto, menor extensão ou seja redução do
círculo dos factos puníveis) como também, em vez de agravar a
punibilidade, a reduziu, p. e., de pena de 1 a 5 anos de prisão para
a de prisão até 3 anos (193) — De novo, surge a pergunta: o facto pra-
ticado por E foi, com a entrada em vigor da LJST., descriminalizado
ou afirmar-se-á a continuidade da ilicitude penal do facto, devendo
aplicar-se a lex mitior que, na hipótese, seria a L.N.?
dd) — Procurando salientar a problematicidade destes casos em
que a L.N., aumentando a compreensão (exigência) do tipo legal,
diminui, consequentemente, a sua extensão normativa, configuremos
• ainda outra hipótese.
A lei, entrada em vigor posteriormente à prática por E da venda
de bens impróprios para consumo e susceptíveis de prejudicar a
saúde, não revoga a lei que prevê e pune a venda de bens impróprios
para consumo, mas vem, ao lado deste tipo legal de crime de perigo
presumido (abstracto), consagrar um tipo legal de crime de perigo
efectivo (concreto), estabelecendo uma moldura penal mais elevada
para este caso, i. é, para a hipótese de os bens, além de impróprios
para consumo, constituírem um perigo para a saúde do consumidor.
— Quid iuris?
Repare-se que, agora, a opção já não é entre descriminalização
(despenalização) e aplicação da lex mitior, mas sim entre a aplicação
da pena estabelecida na lei que criou o tipo legal de crime de perigo
abstracto (LA.) e a pena estabelecida na lei que, posteriormente ao
«tempus delicti», veio consagrar o tipo de crime de perigo con-
creto (L.N.). — E cai a mesma pergunta: qual das duas leis deverá
aplicar-se? Será que, mesmo numa hipótese destas, aqueles que defen-
dem que entre uma LA. geral e uma LJST. especial(izadora do elèmento
geral da L.A.) há sempre uma relação de identidade típica (194) e,

(193) Hipótese verosímil, especialmente em momentos de reformas penais


determinadas ou acompanhadas de viragem na concepção político-criminal da pena.
(194) Assim, JAKOBS (n. 1 0 3 ) , 8 6 , o qual, diante das objecções possíveis à
sua posição, fala de que tal identidade não é apenas formal, mas também material
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 205

poítanto, uma sucessão de leis penais stricto sensu (195) — com a con-
sequente aplicação da lex mitior —, continuariam a afirmar a aplicação
da L.N., isto é, continuariam a valorar, retroactivamente, como típica
uma circunstância que, no momento do facto, o não era?
Não parece abusivo pensar que a posição destes Autores visa
impedir a impunidade de certos factos que seria absurdo não
punir (196). Mas este absurdo já não existe e, portanto, não parece
necessário constranger, por pouco que seja, os princípios e as ratio-
nes jurídico-políticas e político-criminais — valorando, retroactiva-
mente, como típica uma circunstância que o não era —, quando o
dilema já não é entre impunidade (despenalização) e punição (con-
tinuação da punibilidade) mas entre pena mais leve e pena mais
pesada.

f ) Um último exemplo: F pratica o aborto quando estava em


vigor uma lei (L.A.) qiie, pura e simplesmente, previa e punia a
interrupção voluntária.da gravidez. Posteriormente, inicia a sua
vigência uma lei (L.N.) que exclui a punibilidade do aborto desde
que este, para além do respeito das exigências quanto à idade do
feto, seja realizado em hospital público ou oficialmente reconhecido.
— Este exemplo é aplicável aos abortos "clandestinos" realizados
em Portugal, antes da entrada em vigor da Lei n.° 16/2007, de 17
de Abril, cujos fetos não tivessem mais de 10 semanas (CP, art. 142.°,
1, e)).

— dimensão que este Autor afirma necessária ao lado da formal —, sempre que as
circunstâncias especializadoras (não tipicamente relevantes no momento do facto) já
fossem, na vigência da E.A., circunstâncias relevantes para a determinação da pena
concreta. — Penso que tal posição — que cai no desvio dogmático jurídico-penal
já cometido pelo BGH (na decisão de 1 0 - 7 - 1 9 7 5 , que foi vivamente criticada por Tie-
demann — cf. infra, nota 206) quando este menosprezou a distinção entre circuns-
tâncias típicas qualificadores e circunstâncias gerais — é de rejeitar.
(WS) PADOVANI ( n . 1 6 3 ) , 1 3 7 3 - 7 .
(196) CF. JAKOBS (n. 1 0 3 ) , 8 6 . —
Reconheço que esta hipótese da passagem
de crime de perigo abstracto a crime de perigo concreto poderá ser uma das que pode-
rão constituir uma excepção à orientação por mim defendida na subseção D desta
secção nr.
206 1 ° Parte — O princípio da aplicação

F, que vai ser julgado na vigência da L.N., não o praticou, natu-


ral e obviamente, num hospital público. — Quid iuris? — Que a LJSÍ.
restringe o âmbito (a extensão) da punibilidade do aborto, eis o de que
se não pode duvidar. Mas será que pelo facto de a LJSÍ. acrescen-
tar um novo elemento ao tipo legal de crime de aborto (aumentando
a sua compreensão, donde poder ser considerada lex specialis rela-
tivamente à LA.) e, assim, restringir a punibilidade do abortei aos pra-
ticados fora do hospital público (menor extensão da LJSÍ.), já se terá
de afirmar uma verdadeira sucessão entre a L.N. e a L A . e, deste
modo, considerar não despenalizada a conduta de F, fazendo sobre
ela recair a lei penal, embora a mais favorável? — É evidente que não.
Negar, neste caso, a despenalização de F constituiria uma flagrante
violação das rationes da imposição da retroactividade da lei despe-
nalizadora.
Com que fundamento se poderia valorar, retroactivamente, como
típica (fundamentadora da responsabilidade penal) uma circunstância
(o provocar o aborto fora do hospital) não descrita no tipo legal
da L.A., quando, precisamente, a condição (circunstância) excludente
da punibilidade do facto — e mesmo da sua tipicidade — não podia
ter sido cumprida, pois não só a L.A. não lhe atribuía essa eficácia
excludente da punibilidade como até mesmo tal (a prática do aborto
no hospital público) era proibido, tanto disciplinar como penalmente,
aos serviços hospitalares? — O sentido político-criminal (prevenção
geral e prevenção especial) da pena, o também com ele conexo prin-
cípio da indispensabilidade dá pena e a função de «orientação» das
condutas que à lei penal cabe — orientação que a L.N. contém mas
que, evidentemente, F não pôde ter em conta — conduzem, neces-
sariamente, a que a apesar de ser uma lex specialis (ou melhor:
precisamente porque o é) relativamente à L.A., não possa conside-
rar-se, quanto ao facto de F, idêntica (197) à L.A., não havendo, por-

(197) Seria esta uma das hipóteses em que, provavelmente, também JAKOBS
— apesar da sua tese da persistência da punibilidade, quando a L.N. é uma lex
specialis faee à L.A. (lei do momento do facto) — defenderia a despenalização da
conduta de F, apelando ao facto de à identidade formal entre a L.N. e a L.Á. não
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 207

tanto, uma verdadeira sucessão de leis penais. Logo, por força do


princípio constitucional da retroactividade da lei despenalizadora
(CRP, art.-29.°, 4.-2." parte, a fortiori) ( m ) , extinguiu-se, com a
entrada em vigor da L.N., a responsabilidade penal de F. .
A conclusão final a tirar destes exemplos e respectivas apre-
ciações é a de que, por mais perfeito que seja o critério de resolu-
ção, há sempre que não esquecer, na sua aplicação prática, os prin-
cípios constitucionais e político-criminais. E.se, no caso súb-iudice,
um destes dois — o critério geral e os princípios — tiver que ceder,
a cedência que seja do critério (apesar de este, na sua elaboração
dogmática e político-criminal, ter sido motivado pelos princípios
referidos que o inspiraram e que ele visa satisfazer) e não dos prin-
cípios.
Penso, porém, que o critério que apresentarei, na subsecção D,
não só respeitará os princípios como também evitará, na maioria
dos casos, soluções irrazoáveis, isto é, impedirá que sejam consi-
deradas despenalizadas condutas cuja impunidade constituiria um
absurdo.

3. A relevância jurídico-prática da questão é, como se vê, efec-


tivamente grande. Da resolução do problema depende a extinção
da responsabilidade penal (CRP, art. 29.°, 4.-2.a parte a fortiori; ratio
do n.° 2 do art. 2.° do CP) ou somente a aplicação da lex mitior
(CRP, art. 29.°, 4.-2* parte; CP, art. 2.°-4.).

corresponder a também, segundo ele, necessária identidade material, uma vez que
o objectivo da LM., isto é, da circunstância limitadora da punibilidade (a utilização
do hospital, para a prática do aborto) — Regelungszweck — é diferente do único
objectivo da L.A.: o desta era apenas proteger a vida intra-uterina; o da L.N. é,
para além da garantia quanto à idade do feto, o de proteger a vida da grávida.
— Diga-se, de passagem, que os princípios referidos em texto conduzem à
mesma solução, sem ter de recorrer a um critério tão difuso e gerador de incerte-
zas como é o da identidade material.
(198) Não referi o n,° 2 do art. 2.° do CP, embora, inequivocamente, esta
hipótese de despenalização — como qualquer outra — seja pela ratio dele abrangida.
Acontece que mais uma vez se confirma a crítica que fizemos à imperfeita redac-
ção deste artigo. — V. supra, 1." Parte, n.D 1.
208 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Como já referimos, a questão da despenalização ou não do


facto praticado na vigência da L.A. é uma questão prévia face à
determinação da lei mais favorável. Só na hipótese de se afirmar a
continuidade da responsabilidade penal do facto concreto é que se
colocará o problema da ponderação e determinação de qual das duas
leis (LA. e L.N.) é a mais favorável ao arguido.

B) Pressupostos da questão:

1. Saber se a alteração legislativa da factualidade típica (dos


elementos constitutivos do tipo legal de crime) da lei vigente no
momento da prática do facto constitui, relativamente a este facto
concreto, uma lei despenalizadora (CP, art. 2.°-2.) ou simplesmente
uma lei que apenas altera a responsabilidade penal subsistente (CP,
art. 2.°-4.) é um problema que só se coloca, com interesse prático,
quando se verifiquem estas duas condições: que tanto a lei alte-
rada (L.A.) como a lei que alterou (L.N.) sejam leis penais (199);
que não se tenha extinguido toda a responsabilidade penal (pena
principal, penas acessórias e efeitos penais da condenação) decor-
rente do facto praticado na vigência da lei anterior (200).

2. Verificados, no caso concreto, estes pressupostos, então a


questão tem importância jurídico-penal prática, havendo que averiguar
e decidir sobre a despenalização da conduta ou sobre a aplicação da
lei penal mais favorável. Uma tal averiguação e decisão não pode
deixar de orientar-se e de fundamentar-se nos princípios jurí-
dico-políticos e político-crimihais inerentes ao Estado-de-Direito
Material, constitucionalmente consagrados (201)-

(1S9) Assim, não há um problema de sucessão de leis penais stricto sensu


(CP, art. 2.°-4.) se a L.N. — modifique ou não a composição da hipótese legal —
alterar a qualificação jurídica da referida hipótese e, consequentemente, da respec-
tiva responsabilidade (de penal a contra-ordenacional ou vice-versa) .— Cf. supra,
subsecs. fleCda sec. II deste 3." cap.
C200) Assim, cf. supra, sec. i, n.° 6, pressupostos a) e c).
C201) V. supra, 1° e 2 ° caps.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 209

C) Critérios adoptados, na doutrina e na jurisprudência


estrangeiras, para a definição da LJN. como lei despe-
nalizadora ou somente como lei modificadora da res-
ponsabilidade penal do facto concreto praticado na vigên-
cia da L.Â.:

1. A mais antiga posição — que passou a designar-se teoria do


facto concreto — defendia que, para se afirmar uma relação :de ver-
dadeira sucessão, bastaria que o facto praticado fosse subsumível à
hipótese da LA. e à da L.N., independentemente das alterações intro-
duzidas na constituição do tipo legal e das rationes normativás sub-
jacentes à decisão tipificadora quer da LA. quer da L.N. Quer dizer:
era irrelevante analisar a continuidade do juízo de antinormatividade
sobre o facto praticado na vigência da L.A. Esta posição vérteu-se
no brocardo latino: prius punibile, posterius punibile, ergo punibile.
— Uma tal posição é — e tem sido ( 202 ) — claramente de
recusar, pois: permite que sejam, retroactivamente, valoradas como
típicas circunstâncias que, no momento do facto, não o eram (203)
— o que se traduz na violação da proibição da retroactividade da lex
severior; secundariza a distinção e diferente valoração jurídico-penal
entre circunstâncias típicas, determinantes da moldura penal,, e cir-
cunstâncias gerais que relevam somente para a determinação da pena
concreta C204); menospreza a função de orientação e de previsibilidade

P02) Entre outros, recusaram esta posição: K. TEDEMANN, «Zeitliche Grenzeh


des Strafrechts», in Einheit und Vielhaft des Strafrechts — Festschrift fiir K. Peters
( 1 9 7 4 ) , 2 0 3 ; SCHROEDER ( n . 4 9 ) , 7 9 5 ; PADOVANI ( n . 1 6 4 ) , 1359-60.
(203) Vejam-se os exemplos apresentados, in d)', e)-bb),f), do n.° 2, subsec. A
desta sec, ra,
f204) TÍEDEMANN — «Der Wechsel von Strafhormen und die Rechtsprechung
des Bundesgerichtshofes», in JZ ( 1 9 7 5 ) , 6 9 2 - 3 — critica, veementemente, a deci-
são do BGH (S.T. Federal) — a qual considerou a distinção entre circunstâncias
tipicamente qualificadoras e circunstâncias gerais como uma «formal questão de
técnica legal» — nos seguintes termos: tal decisão (de 1 0 - 7 - 1 9 7 5 , in JZ — 1 9 7 5
— p. 677) desconhece a origem jurídico-política do problema; passa por alto várias
décadas de aprofundamento dogmático da teoria do tipo jurídico-penal e, sob o
ponto de vista jurídico-constitiicional, é, no mínimo, duvidosa, dado o princípio da
«vinculação à lei».
w
210 1 ° Parte — O princípio da aplicação

que cabe à lei penal, função que tem como corolários, nomeada-
mente, a proibição da retroactividade penal desfavorável e a deter-
minabilidade da conduta (proibida ou imposta) sancionada penal-
mente; potencia situações de injustiça relativa, na medida em que,
p, e., na passagem de tipo legal de crime de perigo abstracto- a tipo
legal de crime de perigo concreto, se a L.N. entra em vigor depois
do julgamento da matéria de facto, a decisão de extinção da res-
ponsabilidade penal (despenalização) ou de aplicação da lex mitior
dependerá do facto aleatório de se ter provado ou não uma circuns-
tância que, no momento da discussão da questão-de-facto, não era
ainda considerada elemento constitutivo do tipo legal mas que, pos-
teriormente, o veio a ser f205); finalmente, um tal critério, que esquece
a dimensão normativa do tipo legal, impediria a extinção da res-
ponsabilidade penal mesmo em relação a factos concretos cuja des-
penalização, por força da L.N., corresponde às mais elementares exi-
gências de justiça e de política criminais (20S).

2. Na Alemanha Federal, foi predominante — pelo menos até


finais da década de 70 — a tese da continuidade do ilícito (Konti-
nuitãt des Vnrechts).
Pode considerar-se, dentro desta «teoria da continuidade do ilí-
cito», duas teses claramente diferenciadas.

a) A jurisprudência alemã acolheu o critério da identidade


do núcleo do ilícito (Identitãt des Unrechtskerns). Para esta posição
— vivamente criticada pela maioria da doutrina alemã (207) — as
alterações legislativas dos tipos legais de crime só seriam relevantes,

p05) Cf. supra Introdução, VI.


— Mais decisivas que as considerações de natureza processual, a que se refere
SCHROEDER (n. 4 9 , p. 7 9 7 - 8 ) , são as razões de justiça relativa, é o princípio da
igualdade no tratamento jurídico-penal dos casos idênticos.
P 6 ) Assim, no exemplo apresentado em f), 2., A, desta sec. III.
P 0 7 ) Cf., p. e., TIEDEMANN (n. 202), 204-5; PER MAZUREK, «Zum Riickwir-
kungsgebot gemãB § 2 Abs. 3 StGB», in JZ (1976), 235; SCHROEDER (n. 49), 794-5;
H. RUDOLPHI, in SK, § l-79b.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 211

no sentido de extinguirem ou atenuarem modificativamente (passarem


de crime qualificado a crime fundamental) a responsabilidade penal
pelo facto praticado.na vigência da LA., quando tais modificações
fossem determinadas por uma diferente ratio protectiva da norma
penal e as circunstâncias típicas substituídas não fossem abrangidas
pela nova ratio tutelar da L.N. Isto é: o critério decisivo estaria no
bem jurídico protegido (qual núcleo do tipo-de-ilícito) pela L.N. e na
conexão nonnativo-tipificada entre a modalidade (as circunstâncias)
da conduta e o respectivo bem jurídico tutelado.
Assim, a alteração da factualidade típica seria irrelevante — afir-
mando-se, consequentemente, uma sucessão de leis com a respec-
tiva aplicação da lex mitior — sempre que permanecesse idêntico o
bem (ou bens) jurídico que o legislador visou proteger. Por outras
palavras: a modificação do tipo legal (fundamental ou derivado) na
sua estrutura seria irrelevante, se — auscultando o conteúdo, o sen-
tido normativo, a ratio da L A . e da L.N. — se chegasse à conclu-
são de que o bem jurídico protegido pelo novo tipo legal é o mesmo
que o tipo legal revogado visava proteger, e de que tal bem tanto é
afectado (ou posto em perigo) pela modalidade (circunstâncias) da con-
duta tipificada na lei nova como pela modalidade (circunstâncias)
da conduta tipificada na lei do momento do facto. Neste caso, como
que se trataria de uma mera reformulação técnica, formal, sem reper-
cussões no problema da responsabilidade penal, isto é, não determi-
nando a despenalização ou a desqualificação jurídico-penal da con-
duta praticada anteriormente (20S).

p 08 ) Os riscos de uma tal secundarização da ratio da tipificação penal, bas-


tando-se com a dilucidação do problema da ilicitude material ou, mais rigorosa-
mente, com o problema da ratio do tipo legal (com a determinação do bem jurídico
protegido) — como que esquecendo que a exigência de prévia lex precisa está ao
serviço da garantia dos direitos fundamentais, o que levou, historicamente, à rejei-
ção da figura dos «crimes naturais» (cf. supra, sec. n do 1." cap.) — ficaram paten-
tes na própria jurisprudência do BGH: enquanto numa l. a fase, após a entrada em
vigor do CP 1975, considerou irrelevante a permuta do elemento «via pública» pelo
elemento «armas», afirmando que um roubo praticado na via pública, na vigência
do CP anterior, continuava, face ao novo CP 1975, a ser considerado como roubo
qualificado (Schwerer Raub), com o argumento de que o bem jurídico, que a tipi-
212 1 ° Parte — O princípio da aplicação

— Uma tal posição, um tal critério é, liminarmente, de recusar


num domínio, como o da aplicação da lei penal no tempo, em que se
exige o máximo de certeza jurídica, o máximo de garantias contra as
possíveis interpretações arbitrárias da ratio da lei penal. Se é certo
que o bem jurídico é a ratio da norma penal e que a ilicitude mate-
rial detém o primado, é um prius face à tipificação, não pode, de
forma alguma, secundarizar-se a exigência de objectividade, de for-
malização da ilicitude, qual condição da segurança individual, sendo
o tipo legal na sua estrutura objectivo-formal o instrumento daquela
exigência e a garantia desta segurança individual.
b) Um largo sector da doutrina alemã defende a chamada tese
da continuidade do tipo de ilícito (Kontinuitãt des Unrechtstyps).
Esta posição caracteriza-se, fundamentalmente, por exigir um duplo
pressuposto na afirmação da continuidade do tipo-de-ilícito: conti-
nuidade do bem jurídico protegido e continuidade da modalidade da
conduta, ou seja identidade do bem jurídico (identidade teleológica)
e identidade da factualidade típica (identidade formal) (2Q9).
Só verificando-se entre o tipo-de-ilícito da LA. e o tipo-de-ilícito
da L.N. esta dupla e cumulativa relação de identidade, se poderá
afirmar uma rigorosa sucessão de leis penais e, consequentemente, pro-
ceder à aplicação da lex mitior. Caso contrário, faltando uma des-
tas condições, nem se poderá aplicar a lei revogada (LA.) nem a
lei revogatória (L.N.), verificando-se, portanto, a despenalização da
conduta anteriormente praticada ou, tratando-se de crime qualificado,
a sua desqualificação jurídico-criminal e, consequentemente, só
podendo ser punido por crime fundamental.

ficação da circunstância «armado» visava proteger, era o mesmo que visava prote-
ger a anterior tipificação da circunstância «na via pública»: em ambos os tipos
visar-se-ia a tutela da liberdade da vítima do roubo; já, posteriormente, decidiu-se
pela desqualificação retroactiva do roubo na via pública — respondendo o respec-
tivo infractor por roubo simples —, pois considerou o BGH que (afinal) a ratio da
agravação do roubo na via pública não era tutelar a liberdade da vítima do roubo mas,
sim, a paz do caminho, a paz pública.
(™) TIEDEMANN ( n . 2 0 2 ) ; MOHRBOTTER ( n . 1 3 0 ) , 9 2 3 s s . ; M A U R A C H / Z I P F
(n. 71), 154; JESCHECK, Lehrbuch des Strafrechts A.T., Berlin: Duncker y Humblot
(1978), 110, nota 37.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 213

— Também é de recusar um critério tão rígido e, simultanea-


mente, tão lábil e inseguro como é este da continuidade do tipo-de-
-ilícito.
É, demasiado e injustificadamente, rígido quando exige uma
identidade entre as factualidades típicas da L.A. e da L.N. Com
efeito, há situações em que não há qualquer.razão jurídico-política ou
político-criminal que impeça a afirmação de uma sucessão de leis
stricto sensu, devendo, assim, aplicar-se, de entre as duas leis, a que
estabelecer uma sanção menos grave. É o caso de a L.A. prever
um tipo legal de perigo concreto e a LJST. converter este tipo em
tipo legal de perigo abstracto. Numa tal hipótese, é evidente que o
facto anteriormente praticado e subsumível à factualidade típica da
LA. continua a ser punível na vigência da LJSF. Digamos que a LA.
comporta-se, relativamente à L.N., como uma lex specialis, isto é, a
sua exigência normativa tipificada é maior que o da L.N, e, inver-
samente, a sua extensão punitiva (o seu círculo de factos puníveis) é
menor que a dà L.N. (210).
Diferente já é o caso inverso da passagem de crime de perigo
abstracto ou presumido a crime de perigo concreto ou efectivo. Aqui,
sim, já poderá não existir uma sucessão de leis penais stricto sensu,
podendo ser de afirmar a despenalização dos factos anteriores ( 2 n )
ou — tratando-se da criação ex novo de um tipo qualificado — apli-
cando-se a lei que previa e prevê o crime fundamental C212).
Se a condição da identidade das factualidades típico-formais
(Tatbestãndé) é demasiado rígida (213), excluindo dfe uma relação de
verdadeira sucessão hipóteses que nela devem ser incluídas, já o
pressuposto da identidade teleológica (identidade do bem ou dos
bens jurídicos protegidos pela L.A. e pela L.N.) merece as mesmas

P10) Assim, no exemplo apresentado em a), 2., A, desta sec. m.


p") Assim, no exemplo apresentado em bb), e), 2., A, desta sec. ffl.
p 12 ) Assim, no exemplo apresentado em dd), ej, 2., A, desta sec. in.
C213) Rigidez que, como escreveu PADOVANI (n. 163, p. 1362-3), conduziria a
«resultados que ninguém parece disposto a subscrever, pois que, em qualquer intento
da reforma penal, condenaria o legislador a optar entre a renúncia a punir os factos
anteriores e'a manutenção de mesmíssima fattispecie».
214 1 ° Parte — O princípio da aplicação

objecções que são apostas à tese da «identidade do núcleo do ilí-


cito» e idêntica recusa. Na verdade, se é certo que o bem jurídico
é a ratio do tipo legal, não deixa, contudo, de ser exacto que ele
não é um elemento formal do tipo legal. Tornar o importante pro-
blema da despenalização ou da aplicação da lex mitior dependente da
identificação do bem jurídico (isto é, da ratio da norma penal) é
gerar incertezas e potenciar os riscos da violação dos princípios fun-
damentais sobre a eficácia temporal das leis penais (214).
Uma demonstração das incertezas, a que um critério tão vago
como o da identidade teleológica (perfilhado pela tese da conti-
nuidade do tipo-de-ilícito) conduziria, pode fazer-se com um exem-
plo tirado do nosso código penal. Vejamos: enquanto no CP 1886,
os crimes sexuais (p. e., violação) estavam integrados, sistemati-
camente, no cap. iv cuja epígrafe era «crimes contra a honesti-
dade», capítulo que, por sua vez, pertencia ao tít. iv denominado
«crimes contra as pessoas» (bens jurídicos individuais), já no
CP 1982, os crimes sexuais (p. e., a violação) passaram a estar
integrados no cap. i epigrafado de «crimes contra os fundamentos
ético-sociais da vida social», capítulo que, por sua vez, pertence
ao tít. ni denominado «crimes contra valores e interesses da vida em
sociedades» (bens jurídicos supra-individuais), passando, com a
Reforma de 1995, a pertencer ao cap. dos «crimes contra a liber-
dade e autodeterminação sexual», cap. v integrado no tít. i dos
«crimes contra pessoas».
Agora, pode perguntar-se: deveriam os factos praticados na
vigência do CP 1886 e por este código considerados crimes sexuais
ter-se por despenalizados, com a entrada em vigor do CP 1982, pela

(2») «Vaga valoração» (vage Wertung) é como JAKOBS (nota 103, p. 86) qua-
lifica este indefinido critério da Kontinutat des Unrechtstyps.
— Na verdade, este critério — dominante pelo menos até fins da década
de 70 mas que, a partir desta altura, começa a perder terreno, como veremos — deu
origem às mais «radicais discordâncias interpretativas». — Cf. K. MOHRBOTTER,
«Einige Bemerkungen zum Verhaltnis von Form und Stoff bei der Ãnderung stra-
frechdicher Rechtssãtze», in JZ ( 1 9 7 7 ) , 5 3 ss.; E . TRÕNDLE, in Strafgesetzbuch — LK
( 1 9 7 8 ) , 7 9 - 8 0 ; SCHROEDER (n. 4 9 ) , 7 9 4 - 5 ; ESER in SCHÕNKE/SCHRODER, Strafge-
setzbuch ( 1 9 8 5 ) , 4 7 .
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 215

razão secundaríssima (de natureza sistemática) de antes estarem


inseridos na rubrica capitular dos «crimes contra a honestidade»
(contra os bons .costumes) e de, antes' da Revisão de 1995, serem
considerados e estarem na rubrica seccional dos «crimes sexuais», e,
actualmente, no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual, quando
até se deu o caso, pelo menos aparentemente contraditório, de, antes
de 1995, serem considerados por muitos (215) apenas como crimes
contra a liberdade individual sexual, apesar de se inserirem num
capítulo (i) e num título (m) que até sugeriam que se tratava de bens
jurídicos supra-individuais? — A resposta, que não pode deixar de ser
negativa, mostra-nos quanta incerteza provocaria o condicionar a
decisão de extinção da responsabilidade penal (CP, art. 2.°-2.) ou de
aplicação da lei penal mais favorável (CP, art. 2.°-4.) ao juízo nega-
tivo ou afirmativo sobre a questão da identidade do bem (bens) jurí-
dico tutelado na L.A. e na L.N. P 6 ) .

3. Desde finais da década de 70, tem sido esta vaga teoria da


«continuidade do típo-de-ilícito» objecto de severas e merecidas crí-
ticas (217). Daqui, não ser de estranhar que tenha vindo a crescer a

C 2 1 5 ) Cf. FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE, Criminologia, Coimbra: Coimbra


Editora ( 1 9 8 4 ) , 4 3 8 ; F . M . OLÍVEIRA SÁ, «Nem «Contra A Honestidade» Nem «Con-
tra Os Bons Costumes»... Afinal «Crimes Sexuais»», in separata de O Médico,
n.° 1 6 2 4 , v o l . 1 0 5 ( 1 9 8 2 ) .
E M ) TIEDEMANN (n. 2 0 2 ) , 2 0 5 , partindo da (pie)suposição de que o objecto jurí-
dico da tutela da L.N. deixou de ser o bem jurídico supra-individual «honestidade,
bons costumes ou moral pública» para passar a ser o bem jurídico individual «liber-
dade sexual», advogou, com base na inexistência de identidade teleológica entre os
tipos legais (Tatbestãnde) sexuais da L.A. e da L.N., a descriminalização (despe-
nalização) de todas as condutas de agressão sexual cometidas antes da entrada em
vigor da L.N.!
— Como afirmamos em texto, uma tal decisão — tal como a indefinição, o
subjectivismo interpretativo e a incerteza a que conduz este vago critério teleoló-
gico — é, inequivocamente, de recusar.
O217) Nesta linha de crítica e de recusa do critério da «continuidade do tipo-
-de-ilícito», entre outros, SCHROEDER (n. 4 9 ) , 7 9 5 ss.; RUDOLPHI in Systematischer
Kommentar zum Strafgesetzbuch (von H.-J. Rudolphi/E. Horn/E. Samson), Frankfurt
am Main: Metzner ( 1 9 8 4 ) , 1 5 - 1 6 ; JAKOBS (n. 1 0 3 ) , 8 4 - 8 6 ; PADOVANI (n. 1 6 3 ) ,
1360-77.
216 1." Parte — O principia da aplicação

tese de que o critério da identidade ou não — com a consequente


afirmação de uma sucessão de leis penais stricto sensu e, assim,
aplicação da lex mitior, ou negação dessa relação de sucessão e,
como tal, despenalização (ou desqualificação, se a L.A. consagrava
um crime qualificado) da conduta — entre a L.A. e a LJST-. tem de
assentar na estrutura e constituição do tipo legal (tatbestand, fat-
tispecie, factualidade típica).
Em vez do difuso, inseguro, incompatível com as exigências de
certeza jurídica e de segurança individual determinantes do princípio
da legalidade penal que- é o critério da «continuidade do tipo-de-
-ilícito», começa a afirmar-se e a justamente impor-se um critério
dotado da objectividade, que é postulada por esta matéria da suces-
são de leis penais, o qual pode designar-se por critério da identi-
dade ou continuidade normativo-típica.
Como veremos, há divergências na formulação deste critério e
delas nós faremos eco, apresentando, posteriormente, o nosso crité-
rio; há, todavia, entre os defensores deste critério o denominador
comum de que o ponto de referência decisivo Ç218) é o do tipo-legal.

P18) Isto não significa — ao contrário do que FIGUEIREDO DIAS (cf. trabalho
referido, supra, nota 27) parece sugerir — que eu recuse a despenalização retroac-
tiva, quando há uma indiscutível alteração do bem jurídico, apesar da manutenção
integral da factualidade típica. O que eu recuso é que se possa, nesta matéria, atri-
buir relevância à alteração do legislador sobre a.mais correcta qualificação-siste-
matização do bem jurídico.
Assim, no exemplo-escola, apresentado por FIGUEIREDO DIAS, é claro que — se
não se tratar de uma lei temporária — se a razão da proibição de circular acima
de X Kms. era o repouso dos doentes, e se a razão posterior é a segurança rodo-
viária, houve despenalização das anteriores condutas.
Acrescente-se, porém, que a recusa deste critério do bem jurídico, devido à sua
fluidez e vaguidade, está patente, quando lemos a seguinte passagem de FIGUEI-
REDO DIAS/COSTA ANDRADE (Direito Penal, 1996, p. 189): «Esta última solução
[a da manutenção da punibilidade] deve seguramente defender-se para o caso em que
a lei nova mantém a incriminação de uma conduta concreta embora sob um novo
ponto de vista polCtico-criminal, mesmo que ele se traduza numa modificação do bem
Jurídico'protegido. V. g., o crime de violação era perspectivado, até 1995, como crime
contra os fundamentos éúco-sociais da vida social, enquanto a Reforma [de 1995]
passa a perspectivá-lo como crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da
vítima e consequentemente como um crime contra a pessoa. Deve concordar-se
sem esforço que esta transformação tem atrás de si uma modificação do próprio
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 217

Não me devendo alongar nem repetir, indicarei numa primeira


alínea (a)) o que une e, numa segunda alínea , (b)) o que separa as
posições destes autores que defendem o critério que eu designei por
critério da identidade normativo-típica entre a LA. e a L.N. relati-
vamente ao facto praticado na vigência da L.A.

a) Alargamento da punibilidade por supressão de elementos


especializadores constantes da L,A.; por outras palavras, a L.N.
comporta-se, face à L A . , como uma lex generalis: menor com-
preensão (menor exigência normativa) e maior extensão (maior o
círculo de factos puníveis abrangidos-subsumíveis à L.N. do que o cír-
culo de factos abrangiclos-subsumíveis à L.A.).
Todos estão de acordo ( ZI9 ) que a facto praticado na vigência
da LA. (lex specialis) e a esta subsumível (por esta punível) Ç220) con-
tinua a ser punível, depois da entrada em vigor da L.N. Há, relati-
vamente a este facto, utíia continuidade normativo-típica entre a LA.
e a L.N.; logo há uma verdadeira sucessão de leis penais; conclu-
são; aplicação da lex.mitior (CP, art. 2.°-4.).
É o que se passa com os exemplos apresentados em a) e b) do
n.° 2, subsec. A desta sec. m.
— Permuta de elementos constitutivos — fundamentadores
ou modificativos (aqui, no caso dos tipos legais de crime qualifi-
cados ou privilegiados)— do tipo legal; os elementos trocados

bem jurídico protegido. No entanto, a continuidade da punibilidade das condutas con-


cretas de violação não é minimamente afectada».
— Esta passagem parece, contrariamente ao que FIGUEIREDO D I A S escreveu no
trabalho acima referido («crime de emissão de cheque», nota 35), sugerir que bem
jurídico e ponto de vista político-criminal não são coisas claramente distintas. Ora,
sendo assim, então mais claro se toma que não se pode atribuir grande relevância
à alteração do bem jurídico, ou, talvez melhor, a uma tal concepção do bem jurídico
e, portanto, para efeitos da sucessão de leis penais, à alteração da concepção polí-
tica-criminal do bem jurídico.
p 19 ) Cf. Autores e lugares citados na nota 202.
í220) É evidente — mas isto não está em questão — que se o facto prati-
cado, na vigência da L.A., não preenche as exigências normativo-típicas, isto é, se -
a esta não é subsumível, permanecerá não punível, pois a L. N. é, quanto a ele, eri-
minalizadora e, como tal, de impossível aplicação retroactiva (CP, art. l.°-l.).
218 1 ° Parte — O princípio da aplicação

são entre si heterogéneos: não há, pois, qualquer relação de espe-


cialidade entre a L.A. e a L.N.
Todos estão de acordo (221) em negar, nestas hipóteses, uma
relação de identidade (continuidade) típica, e, consequentemente, fica
afastada qualquer possibilidade de se afirmar uma verdadeira suces-
são de leis penais. Logo, o facto praticado, na vigência da L A . e
a esta subsumível, é despenalizado — tratando-se de tipos funda-
mentais — ou é desqualificado jurídico-penalmente (passando a ser
punido pelo crime ftmdamental) — tratando-se de tipos qualifica-
dos í222) — ou continua a ser punido pela LA. privilegiante — tra-
tando-se de permuta de circunstâncias privilegiantes, i. é, tratando-se
de tipos privilegiados ( 223 ).
b) Redução da punibilidade por adição de elementos espe-
cializadores ao tipo legal da L.A.; a LM. comporta-se, face à LA.,
como uma lex specialis: maior compreensão (maior exigência nor-
mativa) e menor extensão (menor o circulo dos factos subsumíveis à
L.N. do que o círculo dos factos abrangidos pela L.A.) í 224 ).
É precisamente aqui, e só aqui, que surgem as divergências
entre os defensores do critério da continuidade normativo-típica.
Dois grupos se formaram; um defende que, nesta hipótese, nunca há
uma relação de identidade ou de continuidade entre a L.A. e a L.N.,
pelo que, em consequência, não há uma rigorosa sucessão de leis
penais relativamente ao facto praticado na vigência da L.A. — logo,
o facto, praticado na vigência da L.A., fica despenalizado com a
entrada em vigor da L.N. (22S); outro grupo defende precisamente o
oposto: constituindo a L.N. uma lex specialis relativamente à L.A.
e, portanto, reduzindo a extensão da punibilidade, o facto praticado
na vigência da L.A. (revestindo-se, obviamente, da circunstância
considerada, agora, pela L.N. como típica) continua a ser punível,
pois — dizem — há entre ambas as leis uma relação de identidade

F1) Cf. Autores e lugares citados na nota 202.


(222) V. exemplo e análise, supra, d), 2, A, desta sec. in.
F3) V. exemplo e análise, supra, c), 2, A, desta see. m.
F4) V. exemplos apresentados em e) t f ) , 2, A, desta sec. ni.
F5) Assim SCHROEDER (n. 4 9 ) , 7 9 6 - 8 ; RUDOLPHI (n. 2 0 2 ) , 1 6 .
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 219

típica (face ao caso concreto) e, portanto, deve aplicar-se a lex


mitior (226).
Vejamos quais as motivações e razões que determinam cada
uma das teses em confronto, salientando as objecções de que cada
uma delas é passível.

aa) A tese de que nunca há, relativamente ao facto concreto pra-


ticado na vigência da L.A., uma verdadeira relação de identidade
(continuidade) normativo-típica entre a LA. (geral) e a LN. (especial)
— devendo, portanto, afirmar-se a despenalização das condutas prati-
cadas antes da entrada em vigor da LJSf., apesar de se terem revestido
da circunstância que a LJST. decidiu tipificar — fundamenta-se nas
indiscutíveis rationes político-criminais e na necessidade de evitar que
seja o puro acaso a determinar um tratamento jurídico-penal desigual
(punição ou impunidade) de casos jurídico-crimi-nais idênticos (227).
Razões poKtico-criminais ligadas ao prmcípio da culpa, as quais
impedem que se afirme um dolo do tipo, efectivamente inexistente,
isto é, que se valore, retroactivamente, como típica uma circunstân-
cia que, no momento do facto, o não era. Isto é, o dolo do tipo, con-
dicionante de um juízo de culpa dolosa, decide-se no momento do
facto, não podendo, vir, posteriormente, ficcionar-se um dolo típico
relativamente a um elemento do facto que não estava tipificado na lei
do momento do facto. O princípio da liberdade (o «favor libertatis»)
e o dele derivado princípio da proibição da retroactividade da lei
penal desfavorável opõem-se a uma tal valoração retroactiva como
típica de uma circunstância que o não era (228).

O26) Assim, JAKOBS ( N . 1 0 3 ) , 8 6 ; PADOVANI (N. 1 6 3 ) , 1 3 7 3 - 7 .


C227) V. supra, exemplos apresentados em e), 2, A, desta sec. ILL onde penso
ter ilustrado a justeza e validade jurídico-polítiea e polítieo-criminal desta argu-
mentação.
P B ) Assim, SCHROEDER (n. 49), 796-8; RUDOLPHI (n. 217), 16.
— Contra, mas sem razão, neste aspecto da secundarização da distinção entre
circunstâncias típicas (co-determinantes da pena legal) e circunstâncias gerais (com
mera influência na determinação da pena concreta) — cf. supra, nota 1 9 4 — JAKOBS
(n. 1 0 3 ) , 8 6 , e PADOVANI (n. 1 6 3 ) , 1 3 7 5 - 7 , cuja argumentação, além de recusâvel,
me aparece como contraditória e escamoteadora.
220 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Acresce a estas razões fundamentais o argumento de que negar


a despenalização significaria, na prática, fazer depender do momento
e do mero acaso a punição ou não do agente: se a L.N. entrar em
vigor depois de ter sido decidida a questão-de-facto, a condenação ou
absolvição do arguido dependerá do caso fortuito de se ter ou não
(o que é bem possível, uma vez que, nesse momento, a circunstân-
cia especializadora ainda não era elemento típico) provado o ele-
mento fáctico que, não sendo constitutivo do tipo legal da LA., pas-
sou a sê-lo pela L.N. ( 229 ).
— Do que escrevi não pode retirar-se a conclusão de que con-
sidero esta tese perfeita e plenamente satisfatória. — Há dois aspec-
tos a distinguir: os fundamentos jurídico-políticos e político-criminais
de que parte e que respeita; a formulação que assume e as conse-
quentes implicações que de uma tal formulação decorrem. Quanto
ao primeiro aspecto, considero e penso que devem considerar-se
certos e indiscutíveis os fundamentos jurídico-políticos e polí-
tico-criminais de que parte ( 230 ). Discordo, porém, dos termos da
formulação, pois que, apresentada em termos meramente formais,
acaba por afirmar a despenalização de condutas, despenalização que
não se apoia em nenhuma ratio jurídico-política de certeza e segu-
rança individual e que, inversamente, contraria rationês político-
-criminais que apontam para a afirmação da persistência da punibi-
lidade do facto praticado, apesar de a LJN. ser uma lex especialis face
à L.A.
A proposição — o facto praticado na vigência da L.A. deixa
de o ser a partir do momento em que entra em vigor uma L.N. que
é uma lex specialis face à L A . e que, portanto, é uma lei que res-
tringe o âmbito da punibilidade — tem valor tendencial mas não
absoluto. Isto significa que pode haver — e há — hipóteses em
que, apesar de a L.N. ser lex specialis face à L.A. revogada, e, por-
tanto, restringir o círculo dos factos puníveis pela LA., todavia, o facto

P 2 9 ) Cf. SCHROEDER (n. 49), 797-8. V . supra, nota 193.


(2M) Cf. supra, 1." e 2.° caps. sobre a fundamentação dos princípios da efi-
cácia temporal da lei penal.
3."Capítulo'—Princípio da Lei Penal mais favorável 221

praticado na vigência da LA., permanece punível, afirmando-se, por-


tanto, em relação a este facto, uma verdadeira relação de identidade
ou continuidade normativo-típica, resultando, como conclusão final,
a imposição da aplicação da lex mitior.
Exemplo: se a L.N. altera o tipo legal de aborto, elevando a
idade do feto de «superior a 3 meses» para «superior a 4 meses», é
evidente que a L.N. reduz o círculo dos factos (abortos) puníveis.
Todavia, seria absurdo (231) considerar, com a entrada em vigor da
LJST. que se poderá considerar especial face à LA., despenalizado o
aborto, (provocado) de embrião com mais de 5 meses.
É evidente que tal facto continua punível, mesmo após a entrada
em vigor da L.N. Mas — repare-se — não há, aqui, qualquer des-
vio aos princípios jurídico-polítieos e político-criminais referidos;
não há qualquer valoração retroactiva como típicas de circunstân-
cias não típicas, não há uma afirmação, a posteriori, de um dolo
relativamente a uma circunstância que não fosse já típica no momento
do facto; a circunstância de o feio ter cinco ou, p. e., seis meses já
estava contemplada na L.A. da mesma forma que o está na LJST.
Há, relativamente ao facto concreto dò aborto de embrião de 5 meses,
uma identidade e continuidade normativo-típica entre o LA. e a LJV.,
razão- pela qual tal facto continua a ser punível.
O mesmo se diga, no exemplo seguinte O232): se a L.N. viesse
estabelecer que só seria punível criminalmente o furto «de coisa de
valor superior a 100 marcos», quando a L.A. apenas descrevia o
furto «de coisa», é evidente que se mantinha punível o furto de coisa
no valor de milhões de marcos (no exemplo de JAKOBS), como qual-
quer furto praticado na vigência da L.A., desde que o valor da coisa
furtada fosse superior a 100 marcos.

P31) Foi a tentativa de evitar tais absurdos («Zumindest beftemdliche Losung»)


— a que a seguir ern texto nos referimos — que levou JAKOBS (n. 103), 86, a afir-
mar a tese oposta. Mas, como veremos, não era necessário, para evitar tais soluções
estranhas, optar por uma tese (mantém-se sempre a punibilidade, quando a L.N.
restringe a punibilidade) que, como já referi — cf. supra, notas 194 e 213 — con-
tém desvios jurídico-dogmáticos e político-criminais que levam a recusá-la.
p32) Configurado por JAKOBS (n. 103), 86.
222 1 ° Parte — O princípio da aplicação

E podiam-se multiplicar os exemplos em que, apesar de a LJST.


restringir o âmbito da punibilidade, todavia permaneceriam puníveis
os factos praticados na vigência da L A . Seja, por último, o caso de
a L.N. restringir a punibilidade da violação de menor, fazendo bai-
xar a idade da vítima de 14 para 12 anos. É evidente que, apesar
desta restrição da punibilidade em geral, a relação sexual tida por A
com uma menor de 12 anos, na vigência da LA., continua a ser
punível, após a entrada em vigor da L.N. (233).
Nestes exemplos, há, de facto, relativamente aos respectivos
casos concretos, uma relação de identidade e, portanto, dé continui-
dade normativo-típica entre a L.A. e a L.N., razão pela qual os fac-
tos continuam a ser puníveis, havendo apenas, se for caso disso (i. é,
caso também de alteração das consequências jurídico-penais), que
aplicar a lex mitior. Mas — note-se — não há nesta solução qual-
quer desvio, por mínimo que seja, aos princípios jurídico-políticos e
político-criminais que têm de ser preservados e cuja preservação,
suponho, terá levado autores como SCHROEDER (234) e RUDOLPHI C 235 )
a pensarem, precipitada e erroneamente, que tal só era possível,' afir-
mando, em termos absolutos, que há despenalização dos factos ante-
riores sempre que a L.N. restrinja a punibilidade.
Já o dissemos e cremos ter demonstrado que assim não é.
O cumprimento efectivo dos princípios jurídico-políticos e polí-
tico-criminais não conduz, em hipótese alguma, a soluções absur-
das, nem sequer estranhas.
bb) À tese acabada de descrever — e de criticar, quanto à con-
clusão radical a que, desnecessariamente, chega — contrapõe-se a
daqueles Autores (236) que afirmam sempre a persistência da puni-
bilidade do facto, apesar de a L.N. ser uma lex specialis relativamente
à L.A. revogada. Isto é, entre a L.A. e a L.N. (que, como lei espe-

(ffl) Despenalizadas apenas foram as violações cuja vítima tivesse, no momento


do facto, entre 12 e menos de 14 anos de idade. — Mas é um problema que não está
em questão.
F") Ob. cit. (n. 49), 796.
("5) Ob. cit, (n. 217), 16.
C 2 3 6 ) Nomeadamente, JAKOBS (n. 1 0 3 ) , 8 6 , e PADOVANI (n. 1 6 3 ) , 1 3 7 3 - 7 .
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 223

ciai, restringe o âmbito da punibilidade) existirá sempre, relativa-


mente ao facto — que, embora praticado na vigência da L.A., toda-
via se tenha revestido da circunstância posteriormente tipificada
pela LJSf. — uma relação de identidade (237) ou de. verdadeira suces-
são C238), razão pela qual nunca há despenalização, havendo apenas
(se for caso disso) que proceder à ponderação das consequências
jurídico-penais estabelecidas por cada uma das leis, em ordem à apli-
cação da lex mitior.
— Esta posição deve ser recusada, pois que distorce e contra-
ria os princípios jurídico-políticos e político-criminais que o regime
da sucessão de leis penais tem que respeitar. Os exemplos apresen-
tados em e) &f), 2, A, desta sec. Hl e respectivas alíneas, bem como
a apreciação positiva que fizemos à motivação e fundamentação da
tese anterior (aa)) são suficientes para concluirmos que, nos exem-
plos acabados de mencionar — como em muitos outros —, há uma
efectiva despenalização dos factos praticados na vigência da LA.,
independentemente de estes factos se revèsttrem ou não da circuns-
tância posteriormente tipificada pela L.N.
Afirmar, nos exemplos apresentados, uma relação de identi-
dade (239) ou de continuidade (240) normativo-típica entre a L A . e
à L.N. (especializadora) e, consequentemente, afirmar entre elas uma
sucessão de leis penais stricto sensu — com a decisão final de apli-

F O JAKOBS ( n . 1 0 3 ) , 8 6 .
C 238 ) PADOVANI ( n . 1 6 3 ) , 1 3 7 6 - 7 .
p 39 ) Quanto ao exemplo apresentado em f), 2, A, desta sec. m penso que
JAKOBS, apelando ao que ele designa por Regelungszweck, não afirmaria tal identi-
dade e, assim, defenderia a despenalização do facto praticado pelo F. — Cf. supra,
nota 197.
Mas já defenderia tal identidade (negando, portanto, a despenalização) nos
exemplos apresentados em bb) e cc) e), 2, A. desta sec. HL — Cf. supra, nota 194.
(24°) Quanto a PADOVANI (n. 1 6 3 ) , 1 3 7 6 - 7 , a falta de sensibilidade polí-
tico-criminal — que fez com que ele tivesse ficado indiferente às razões da rec-
troactividade da lei penal favorável (veja-se o que diz em p. 1 3 7 8 ) , preooupando-se
apenas com a iiretroactividade penal desfavorável (irretroactividade que acaba por
não respeitar integralmente, pois aceita como normal a valoração retroactiva como
típica de circunstância que o não era) — levá-lo-ia, porventura, à aceitação do
absurdo da manutenção da punibilidade do próprio F.
224 1 ° Parte — O princípio da aplicação

cação da lex mitior — constituiria «uma violação dos princípios da


previsibilidade, da protecção da confiança, da função de orienta-
ção da norma penal, da indispensabilidade da pena C241).
Se a corrente anterior estava e está 110 caminho certo quanto à
motivação e fundamentos (jurídico-políticos e político-criminais em
que se inspirou) mas, precipitadamente, falhou ao afirmar uma con-
clusão radical (a despenalização sempre que a LJN. reduza a exten-
são da punibilidade) que não era imposta pelas premissas (pelos prin-
cípios) de que partiu, e, assim, acabou por conduzir à despenalização
de factos cuja impunidade seria algo de estranho ou mesmo de
absurdo, esta corrente — que se lhe veio contrapor —, como que
encandeada pelo radicalismo da conclusão daquela e com á qual não
concordava, acabou, também e porventura por um psicologismo reac-
tivo, por seguir um caminho oposto; para evitar despenalizações injus-
tificadas, acabou por aderir a uma também radical formulação (nunca
há despenalização, quando a LJSÍ. reduz a extensão da punibilidade),
mesmo à custa do sacrifício de princípios fundamentais, como os
que referimos no parágrafo anterior. Quer dizer: se a primeira é de
recusar no radicalismo da conclusão a que chega, já a segunda é de
recusar não só pelo radicalismo (de sinal inverso) a que conduz mas
também pelo desvio de princípios que devem ser preservados.

D) Orientação proposta:

1. Das críticas que fizemos às teorias do facto concreto, da


identidade do núcleo do ilícito e da continuidade do tipo-de-ilícito,

P41) Evidentemente, que não pretendo dizer que todos estes princípios seriam
afectados simultaneamente. Assim, p. e., enquanto na afirmação da punibilidade do E
(exemplo em bbj, e), 2, A, desta sec. ni), seriam desrespeitados o princípio da proi-
bição da retroactividade penal desfavorável (o valorar retroactivamente como típica
circunstância que o não era) e a função orientadora da norma penal (se no momento
do facto existisse a L.N., E poderia não ter vendido os bens com susceptibilidade de
prejudicar a saúde, já que poderia ter optado por vender apenas os bens que, embora
impróprios para consumo, todavia ele sabia que não prejudicariam a saúde); já, na
afirmação da punibilidade de F seria violado o princípio da indispensabilidade da pena
(dada a desnecessidade de prevenção geral e especial), entre outros.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 225

concluir-se-á que todas elas são de recusar, dada a sua falta de objec-
tividade e, consequentemente, a incerteza e insegurança que geram.
Fica, portanto, como a mais adequada à resolução do problema
da sucessão de leis penais, que alteram a constituição do tipo legal,
a teoria a que se poderá chamar de teoria ou critério da continuidade
normativo-típica.

2. Quanto às três hipóteses de alteração do tipo legal (factua-


lidade típica), verificámos que há unanimidade, dentro dos defenso-
res do critério do tipo-legal — que eu resolvi designar por critério da
continuidade típico-normativa, relativamente ao facto concreto pra-
ticado na.vigência da L.A. —, quanto a duas das hipóteses e diver-
gências quanto à terceira.

a) Na verdade, todos estão de acordo no seguinte: a L.A. e


a LJSf. são, relativamente ao facto concreto praticado na vigência
da LA.., idênticas tipicamente, afirmando-se a continuidade norma-
tivo-típica (verdadeira sucessão de leis penais) e, portanto, a perma-
nência da punibilidade do facto, sempre que a L.N. se traduz num
alargamento da punibilidade através da supressão de elementos espe-
cializadores constantes da LA. Por outras palavras mantém-se a
punibilidade do facto quando a LA. é, face à L.N., uma lex specia-
lis Ç242). Como os princípios jurídico-políticos e político-criminais f243)
sobre a matéria da eficácia temporal são inteiramente respeitados e por-
que as soluções a que esta tese conduz são correctas e razoáveis,
não há senão que aderir a esta posição.
— Inteiramente de acordo com a solução unanimemente defen-
dida para a hipótese em que a alteração do tipo legal consiste numa
permuta de elementos constitutivos da factualidade típica: sendo
heterogéneos os elementos trocados, entre a LA. e a LiNT. não há, face
ao caso concreto, uma relação de identidade ou de continuidade nor-
mativo-típica (não há uma relação de' especialidade entre a L A . e

f242) Cf. exemplos apresentados em a) e b), 2, A, desta see. ni.


P«) V. supra, l.°e2.°caps.
is
226 1 ° Parte — O princípio da aplicação

a L.N.). não há uma verdadeira sucessão de leis penais; logo, a


entrada em vigor da L.N. determina a despenalização — ou, tra-
tando-se de tipos qualificados, a desqualificação jurídico-penal (244)
— dos factos anteriores (245). — A mesma apreciação final: respei-

(244) Assim, correctamente, o Ac. da RP, de 20-11-96 (in CJ, 1996 — t. v,


p. 236): «Ao crime de ofensas corporais com dolo de perigo do art. 144° do CP/1982
[nota: a redacção primitiva do art. 144.°-1 era: «Quem, através de uma ofensa para
o coipo ou para a saúde de outrem, criar para o ofendido um perigo para a vida ...»],
suprimido no CP/1995, sucedeu, em termos de incriminação, não o tipo qualificado
do actual art. 146.° [nota: a redacção do art. 146°, dada pela Revisão de 1995, era
a seguinte: «1. Se as ofensas (...) forem produzidas em circunstâncias que revelem
especial censurabilidade ...»], antes aquele em que, em geral, está prevista a ofensa
corporal voluntária simples, do art. 143.° do CP/vigente». Fundamentação: «o antigo
art. 144." era um crime de perigo: o agente punha em perigo a vida do ofendido, atra-
vés da utilização de meios particularmente perigosos; o dolo do agente abrangia
necessariamente a consciência e vontade (ao menos eventual) da criação do perigo,
sendo irrelevantes (para o preenchimento do tipo) as motivações ou objectivos do
agente.
Em contrapartida, o art. 146° (na Revisão de 1995) era um crime de dano: a
ofensa corporal, mesmo quando praticada através de «meio insidioso» (art. 132.°, n.° 2,
al .f), por remissão do art. 146.°), era qualificada se e enquanto revelasse perversi-
dade ou censurabilidade do agente, e não por colocar (em abstracto ou concretamente)
em perigo a vítima».
— A qualificação da culpa também pode, por vezes, estar tipificada legal-
' mente. Esta qualificação quando tipificada, tem determinados pressupostos legais.
Se a L.N. elimina, como condição da qualificação, um dos pressupostos estabe-
lecidos pela L.A., jamais a qualificação, com base na L.N., se pode atribuir às con-
dutas praticadas antes do início da vigência da L.N., quando, relativamente a
estas condutas, não se verificarem os pressupostos legais da qualificação da culpa
exigidos pela L.A. (lei do tempus delicti). É que tal constituiria uma qualifi-
cação retroactiva proibida pelo princípio da irretroactividade da lei penal desfa-
vorável.
Assim, não decidiu bem a jurisprudência, quando, relativamente aos acidentes
de viação mortais, ocorridos antes da cessação da vigência do antigo Código da
•Estrada, art. 59.° (L.A. especial, que, além da condução com excesso de veloci-
' dade,.exigia, para a qualificação da negligência como grosseira, a habitualidade da
condução perigosa), se bastou com a verificação do excesso de velocidadé ou mano-
bras perigosas para qualificar a morte causada como «homicídio por negligência
grosseira» (arts. 136.7137.°, n.° 2, do CP 1982/95), em vez de afirmar apenas (na
continuidade normativo-típica) «homicídio por negligência» (arts. 136.7137°, n.° 1,
.Bo CP 1982/95).
' " — Cf. apreciação crítica desta jurisprudência, e m Introdução VI, 2.
. f245)' Cf. exemplos apresentados e m c) e d) 2, A , desta sec. III.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 227

tados os princípios e adequados e razoáveis os resultados, merece


inteiro acolhimento.
b) Divergências — e relativamente grandes — existem, como
vimos, quanto ao tratamento da hipótese em que a alteração do tipo
legal se traduz numa redução da punibilidade por adição de novos
elementos à factualidade típica da LA. Enquanto uma sub-corrente
afirma sempre a despenalização das condutas anteriores, apesar de
estas se revestirem da circunstância que a LN. veio tipificar (SCHROE-
DER, RUDOLPHI), já a outra sub-corrente nega a despenalização, afir-
mando, portanto, uma relação de verdadeira sucessão entre a L.A. e
a L.N., apelando à lex mitior (JAKOBS, PADOVANI).
A apreciação crítica de cada uma destas sub-correntes já a fize-
mos (246). Cabe-nos, agora, propor uma orientação relativamente a
esta hipótese de alteração- com redução da punibilidade. É o que
tentaremos no número que se segue.

3. Orientação proposta para os casos em que a L.N., adi-


cionando à factualidade típica da L.A. novos elementos, vem res-
tringir a punibilidade. — Como é evidente, um é o problema da res-
trição da punibilidade em abstracto, outro — o que nos ocupa — o
problema concreto sobre a despenalização, ou não, dos factos pra-
ticados na vigência de uma lei (LA.) que não considerava como
típica e, portanto, como co-determinante da moldura penal uma cir-
cunstância de que o facto se revestiu, circunstância esta que veio, pos-
teriormente, a ser integrada no tipo legal da LN.
O principal das eonsiderações-orientações a ter em conta, já foi
desenvolvido, quer na apreciação dos exemplos que apresentámos í247)
quer na crítica que fizemòs aos aspectos negativos de cada uma das
referidas sub-correntes ( 248 ). Agora, cabe somente tentar arranjar
uma formulação, uma teoria que, propiciando certeza e segurança na
sua aplicação à multiplicidade dos possíveis casos concretos, não

C246) Cf. supra, aa) e bb), b, 3, C, desta sec. m.


(247) Supra, e) ef), 2, A, desta sec. m.
C248) Supra, aa) e bb), b), 3, C, desta sec. m.
228 1 ° Parte — O princípio da aplicação

corra o risco de atraiçoar os princípios fundamentais a que deve


obediência qualquer teoria. Assim:

1.° — Por maior que tenha sido, na elaboração da fórmula-cri-


tério (teoria), a preocupação com os princípios fundamentais sobre a
eficácia temporal da lei penal, nunca deve o intérprete-aplicador dei-
xar de ter presente as rationes jurídico-políticas e político-criminais,
que fundamentam a proibição da retroactividade da lei penal desfa-
vorável e a imposição da lei penal favorável ( 249 ), no sentido de
confirmar se o resultado (a decisão) a que chegou por aplicação da
fórmula (teoria), efectivamente não contraria as referidas rationes.
2° — Uma formulação que, simultaneamente, cumpra — como
tem de ser — os princípios e satisfaça as necessidades de certeza
— quanto ao processo de decisão — e de razoabilidade — quanto
aos resultados —, já vimos a grande dificuldade em a conseguir.

— Analisando os critérios utilizados pelas duas sub-correntes,


verifica-se que são, fundamentalmente, duas as categorias conceituais
utilizadas: alargamento /restrição da punibilidade, lei geral/lei espe-
cial. A primeira é um conceito de extensão, a segunda é um conceito
de compreensão. Assim, se a L.N. é uma lex specialis, tal significa
que ela tem maior compreensão que a L A . e, consequentemente,
menor extensão. Há circunstâncias tipificadas na LJST. que não cons-
tavam da L.A.?, tal significa que factos que eram crimes deixaram de
o ser por não preencherem a nova circunstância; logo houve uma
diminuição dã extensão da punibilidade, por força do aumento da
exigência (compreensão) normativa da L.N. A partir daqui, já sabe-
mos qual foi o caminho divergente que seguiu cada uma das
sub-correntes (despenalização/penalização) relativamente aos factos
praticados na vigência da L.A. e que possuíam a característica tipi-
ficada pela L.N.
— Penso, contudo, que há que distinguir entre «especializa-
ção» e «especificação», entre LJN. especial e L.N. especificadora:

C2"5) V. supra, 1.° e 2 ° oaps.


3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 229

no primeiro caso, o elemento ex novo inserido no tipo legal traduz um


conceito que não estava implícito no conceito (geral) da LA., isto é,
acrescenta algo de novo ao tipo legal da L A . C250); no segundo caso,
o elemento ex novo inserido no tipo legal traduz um conceito, que já
estava necessária e lógica, embora só implicitamente, contido no
conceito (geral) da LA., isto é, não acrescenta um «aliquid» novo
ao tipo legal da L.A., mas apenas especifica o âmbito de interven-
ção do conceito (elemento) da LA., não se podendo, rigorosamente,
dizer que á L.N. é uma lei especial face à L A .
Na lei especial, há, portanto, uma característica,.Uma qualidade,
que se adiciona às características da L.A.; na lei especificadora, a
característica, a qualidade, mantém-se a mesma, isto é, não vê enri-
quecida a sua compreensão. No caso da lei especificadora — como
se trata de uma qualidade que como que permite uma quantificação,
sem perder a sua natureza, o quid que a faz ser aquela e não outra
qualidade —, a LIT. apenas altera, delimita o quantum da qualidade
(característica ou elemento) — qualidade que é comum à L.A. e
à L.N. — necessário para que o facto seja punível.
Seja-me permitido esquematizar: lei especial = qualidade (geral) +
+ qualidade (especial, especializante) = (sempre) redução da punibi-
lidade; lei especificante = qualidade + especificação/delimitação/
/quantificação da referida qualidade = redução ou alargamento da
punibilidade.
Há, pois, que ver se o elemento novo é meramente especifica-
dor (quantificador do elemento) da L.A. ou se é verdadeiramente
especializador (qualificador do elemento) da L.A.

p 50 ) Eis o que aconteceu com o Dec.-Lei n.° 454/91, de 28-12. Esta L.N.
acrescentou ao tipo legal da «emissão de cheque sem provisão» um elemento indis-
cutivelmente não contido na IÍA. É, portanto, uma lei especial. E o erro sobre este
elemento novo (prejuízo patrimonial) exclui o dolo. Logo, neste caso, à redução da
punibilidade em abstracto corresponde a despenalização das concretas e anteriores
emissões de cheque sem provisão.
— Cf. o que escrevi em Introdução, VI, 1.
Esta solução da despenalização afirma-se, independentemente de o crime, con-
figurado na L.A., devesse ser considerado como crime de perigo ou de dano; perigo
ou dano relativamente ao bem jurídico «confiança social na circulação do che-
que»...
230 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Assim, parece-me válida — o que significa que respeita os prin-


cípios fundamentais jurídico-políticos e político-criminais que regem
a eficácia temporal da lei penal e conduz a resultados justos e razoá-
veis — a seguinte formulação: quando a L.N., mediante a adição
de novos elementos, restringe a extensão da punibilidade, há des-
penalização se o elemento adicionado é especializador; não há
despenalização, se o elemento adicionado é especificador.
Quer dizer: com a entrada em vigor da L.N., que adiciona um
novo elemento ao tipo legal da L.A., o facto praticado na vigência
da L.A. — preencha, ou não, o novo elemento da L.N. — fica des-
penalizado, se o elemento adicionado constituir um elemento especial;
já permanecerá punível — desde que preencha, evidentemente, a
exigência (o elemento) especificadora da L.N. — se o elemento adi-
cionado constituir uma mera especificação do conceito-elemento
comum às duas leis.
Parece-me, portanto, de recusar a correspondência que as duas
sub-correntes da teoria da identidade ou continuidade nonnativo-típica
estabelecem entre restrição da punibilidade = despenalização ou res-
trição da punibilidade = manutenção da punibilidade.
— Testemos a validade da formulação com exemplos que ser-
viram para ilustrar a demonstração das desvantagens C251) de cada uma
das referidas sub-correntes.

1. —•* Lu4.. = tipo legal de crime de perigo abstracto (p. e.,


«quem vender bens impróprios para consumo»); LM. = tipo legal
de crime de perigo concreto («... que constituam perigo para a
saúde») ( z52 ).
Parece poder afkmar-se que a LJST. é uma lei (tipo legal) espe-
cial face à L.A. (tipo legal). Na realidade, o elemento novo «perigo
para a saúde» é um elemento (conceito) especial, pois acrescenta
ao elemento (conceito) «bens impróprios para consumo» um ali-

P51) V. a apreciação crítica que fizemos na 2." parte de aa) e bb), b), 3, C,
desta sec. m.
p 52 ) Cf. supra, bb), e), 2, A, desta sec. m. — Ver, contudo, nota 196.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 231

quid, uma qualidade, uma característica («perigo para a saúde») que


naquele não está nem necessária, nem lógica, nem implicitamente
contida. É, digamos, uma species do genus «bens impróprios para
consumo».
Conclusão: haveria despenalização. Os factos praticados na
vigência da L.A., mesmo que revestissem a característica que, pos-
teriormente, a L.N. veio tipificar, ficariam despenalizados com a
entrada em vigor da LJST.; entre a L.N. e a L.A. não há uma relação
de continuidade normativo-típica. Portanto, em regra, quando uma
lei (L.N.) convertesse um tipo legal de crime de perigo abstracto
num tipo legal de crime de perigo concreto, ficariam despenalizados
os factos anteriores.
Todavia, num caso como este, deverá considerar-se que se man-
tém a punibilidade criminal do facto, aplicando-se a lei que estabe-
lecer a pena menos grave. Pois que, quem tem o dolo de que os bens
são perigosos para a saúde, também tem, necessariamente, o dolo
de que os bens são impróprios para o consumo.
2.° — L.A. = «a mulher grávida que provocar o aborto»;
LJV. = «...fora de um hospital público» (253).
A L.N. é especial face à L.A., pois o elemento novo especializa
o elemento «provocar o aborto». Logo, há despenalização dos abor-
tos praticados antes da entrada em vigor da L.N., quer tenham sido,
ou não, praticados em hospital público.
3.° — Consideremos, agora, o exemplo apresentado por JAKOBS:
LA. = «furto (subtracção...) de coisa (de valor)»; LN. = «... supe-
rior a 100 marcos».
A L.N, está apenas a, no âmbito do elemento-conceito «coisa de
valop>, delimitar, a quantificar o valor; não é, portanto, uma lei que
acrescente um conceito qualitativo, mas sim, uma lei que especifica,
quantificando, o elemento qualitativo comum às duas leis.
Conclusão: apesar de a L.N. ser redutora do âmbito do punível,
permanecem puníveis os furtos anteriores de coisas cujo valor se
situa no âmbito do especificado (valor superior a 100 marcos).

P 53 ) C f . f ) , 2, A, desta sec. Jir.


232

4,° — LA. = violação de «menor de 14 anos»; Llí. = viola-


ção de «menor de 12 anos» ou LA. = aborto de «feto com mais
de 3 meses»; LN. = aborto de «feto com mais de 4 meses» (254).
Tanto num quanto noutro exemplo, a L.N. é uma mera lei espe-
cificadora do conceito comum «menoridade» ou «feto»; logo, per-
manecem puníveis as violações anteriores cujas vítimas tivessem
menos de 12 anos e os abortos anteriores cujos fetos tivessem mais
de 4 meses. Esta persistência da punibilidade não implica afirmar um
dolo inexistente. O dolo que os novos tipos exigem existiu nos refe-
ridos agentes, no momento em que eles praticaram os respectivos fac-
tos. — É semelhante ao que se passaria nas hipóteses inversas de
a L.N., respectivamente, subir para 14 anos (no caso da violação) e
baixar para 3 meses (no caso do aborto) a idade das vítimas. Tam-
bém, aqui — hipótese de alargamento da punibilidade —, a punibi-
lidade permanece e o dolo existente — evidentemente se o infractor
sabia que a vítima tinha, respectivamente, menos de 12 anòs ou mais
de 4 meses — continua a afirmar-se.
— Penso que poderemos ainda — sobretudo, para os casos em
que a utilização da fórmula proposta ainda possa deixar dúvidas
quanto à afirmação ou negação da relação de continuidade norma-
tivo-típica entre a L.A. e a L.N. e, portanto, quanto à afirmação de
uma verdadeira sucessão de leis penais (logo, aplicação da lex mitior
— CP, art. 2.°-4.) ou, pelo contrário, à afirmação da despenalização
(CP, art. 2.°-2.) — recorrer a uma outra fórmula que é a seguinte:
haverá despenalização (pois não haverá continuidade norma-
tivo-típica entre a L.N. e a LA.), sempre que o erro sobre o ele-
mento adicionado (novo) excluísse o dolo do tipo legal de crime
contido na L.N.; haverá uma verdadeira sucessão de leis penais,
com a aplicação da lex mitior (afirmando-se a continuidade nor-
mativo-típica entre a L.N. e a L.A.), sempre que o erro sobre o
elemento adicionado não excluísse o dolo.
É evidente que é preciso esclarecer o sentido desta fórmula.
Façamo-lo.

P54) Cf. supra, aa), b), 3, C, desta sec. ui.


3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 233

Peguemos no exemplo da passagem de furto de coisa (eviden-


temente, com algum valor por mínimo que seja) a furto de coisa de
valor superior a 100 euros, e perguntemos: se B tivesse furtado um
objecto que valia 500 euros e invocasse, in iudicio, — e de tal con-
vencesse o tribunal — que pensava que a coisa furtada só valia cerca
de 200 euros, tal erro excluiria ou não o dolo do tipo legal de furto
de coisa de valor superior a 100 euros? — Resposta: não excluía o
dolo do (novo) tipo legal de crime. Certo: então, para o objectivo que
nos ocupa, há-de concluir-se que não houve, com a entrada em vigor
da LM., a despenalização dos anteriores furtos de coisas de valor
superior a 100 euros. — Na realidade, assim é, pois há entre a L.N.
e a L.A., relativamente aos furtos, anteriormente praticados, de coi-
sas de valor superior a 100 euros, uma relação de identidade ou con-
tinuidade normativo-típica entre a L.N. e a L.A.; há, por outras pala-
vras, uma verdadeira sucessão de leis penais em sentido restrito; há
somente que ver qual a lex mitior (CP, art. 2.°-4.).
Formulemos a mesma pergunta relativamente ao caso de a LN.
vir restringir a punibilidade do aborto à interrupção da gravidez
praticada fora de hospital público. Assim: se C, que recorreu a um
hospital privado para realizar.o aborto, estivesse convencida de que se
tratava de um hospital público, tal erro não excluiria o dolo do (novo)
tipo legal de crime de aborto? — Resposta: sim, excluiria. Conclu-
são, quanto ao nosso objectivo: com a entrada em vigor da LM. fica-
ram despenalizados os abortos praticados fora dos hospitais públicos.
Ainda — e para terminar — um último caso: diante da LM.
que, no crime de violação, baixa a idade da vítima de (menor de)
14 anos para (menor de) 12 anos, e precisando nós de saber se a
entrada em vigor da L.N. despenalizou as violações, cometidas na
vigência da LA. contra menores de 12 anos ou se, pelo contrário, tais
factos permanecem puníveis, há que formular a mesma pergunta:
se D, na vigência da LH., tivesse violado E, de 10 anos de idade, con-
vencido embora que a vítima tinha 11 anos de idade, será que
este erro excluiria o dolo do (novo) tipo legal de crime de viola-
ção? — Resposta: não seria relevante no sentido de excluir o dolo do
tipo. — Conclusão a tirar: as violações, cometidas na vigência da
LA., de pessoas com menos de 12 anos permanecem puníveis.
234 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Conclusão — porque me parece: respeitadora dos princípios


jurídico-políticos e político-criminais — que sempre terão de ser
respeitados —, segura na sua utilização, e eficaz e razoável nos
seus resultados, entendo que, até prova em contrário, esta fórmula
deve, em princípio, ser considerada um instrumento válido e útil na
resolução desta complexa matéria de sucessão de leis em que a LN.
restringe a punibilidade.

IV. Condições Objectivas de Punibilidade: adição (CRP, Art. 29.°,


n.° 4, 2." parte, a fortiori, e CP, Árt. 2°, n.° 2); eliminação
(CRP, Art. 29.°, n.° 1; CP, Arts. 1.°, n.° 1, e 2.°, n.° 1)

1. Na anterior secção HL, tratámos das consequências (despe-


nalização ou aplicação da lex mitior), em matéria de sucessão de
leis penais, da alteração dos elementos do tipo legal de crime. Nessa
secção, tivemos em conta as alterações dos elementos integrantes do
ilícito típico ou "tipo de ilícito".
Mas, como é sabido, o tipo legal ou hipótese legal (recorrendo
à terminologia utilizada pela teoria geral do direito) pode, em certos
crimes, conter, além dos elementos integradores do "tipo de ilícito"
ou ilícito típico, isto é, concretizadores ou definidores da ilicitude
criminal da conduta, conter outros elementos ou circunstâncias con-
sideradas, pelo legislador, como indispensáveis e, portanto, co-fun-
damentadoras da responsabilidade penal do agente do facto ilícito e
culposo. Estes elementos costumam ser designados por "pressupos-
tos adicionais de punibilidade" ou condições objectivas de punibili-
dade (255).

C235) Parte da doutrina inclui, dentro da categoria pressupostos adicionais da


punibilidade, não só as condições objectivas de punibilidade, mas também as cau-
sas de exclusão da pena. Tal é o caso de FIGUEIREDO D I A S (Direito Penal... cit. na
nota 183-E, p. 668 ss.), que apresenta a causa de exclusão da pena "desistência da
tentativa" como exemplo de pressupostos adicionais de punibilidade.
Eu discordo desta inclusão das causas de exclusão da pena nos chamados
"pressupostos adicionais de punibilidade (cf. o meu Direito Penal, II, 2004, p. 54 ss),
E, como também já o referi no livro citado, deve ter sido por lapso que Figueiredo
Dias escreveu «A impunibilidade da desistência [da tentativa] funda-se [...]»; pois,
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 235

Pressupostos adicionais da punibilidade, por uma dupla razão e


significado: adicionais, no sentido de que, se, em geral, basta, para
que a conduta seja criminalmente punível, que ela preencha os ele-
mentos do "ilícito típico" (e, relativamente a ela, se afirme .a culpa-
bilidade do agente), já, em certos e excepcionais (256) casos, o legis-
lador exige, ainda, que se verifiquem outras circunstâncias, elementos
ou pressupostos que, apesar de não pertencerem nem ao ilícito típico
nem à culpabilidade do agente, todavia são considerados, pelo legis-
lador, como condição, pressuposto ou co-fundamento da punibili-
dade da conduta ilícita e culposa.
Condições objectivas da punibilidade, na medida em que são
independentes da vontade do agente, não lhe podendo ser subjec-
tivamente imputadas ( 257 ). Assim, p. ex., é irrelevante o erro do

como me parece óbvio, não é a impunibilidade da desistência, mas, sim, a impuni-


bilidade (eu prefiro dizer a exclusão da pena) da tentativa (por virtude da desis-
tência).
O 2 3 6 ) Por isto, a minha discordância da posição de FIGUEIREDO D I A S , Direito
Penal (cit. na nota 183-E), p. 668 ss., que qualifica a "punibilidade" (isto é, os
chamados "pressupostos adicionais de punibilidade") como categoria geral do crime.
É que, se são excepcionais — como o próprio Autor o reconhece '—, não podem,
logicamente, configurar uma categoria ou qualidade geral do crime (cf. o meu
Direito Penal ... cit. na nota 183-E, p. 66).
p 57 ) Neste sentido, deve considerar-se globalmente correcta a caracterização
(e sua distinção face aos elementos constitutivos do ilícito típico ou tipo de ilícito)
das condições objectivas de punibilidade, feita pelo Acórdão da Relação de Coim-
bra (processo 59/05.4IDCTB.C1), de 28 de Março de 2007. Pondera e lê-se neste
Acórdão (cuja questão jurídica a resolver era a de saber se a nova exigência da
notificação e o não pagamento dentro do prazo de 30 dias a contar da notificação,
exigência que foi introduzida, no crime de abuso de confiança fiscal, pela Lei
n.° 53-A/2006, de 29 de Dezembro, configurava uma condição objectiva de puni-
bilidade ou um elemento do próprio ilícito típico deste crime): «A delimitação entre
os elementos do ilícito e a condição objectiva de punibilidade reside neste ponto espe-
cífico: na possibilidade de imputar individualmente a circunstancia em causa ao
destinatário da norma penal no âmbito dessa norma. O que, por seu turno, depende
da estrutura do ilícito (relação entre a conduta típica e as suas consequências), da natu-
reza dos elementos em causa e da imputação a realizar dentro dos elementos nor-
mativos do tipo. Sendo possível realizar essa imputação individual, dificilmente a
circunstância em causa será estranha ao ilícito. Diversamente, tratando-se duma
realidade normativamente estranha ao processo de imputação individual do ilícito (pela
natureza, estrutura ou relação com o facto) estará indicada a sua autonomia em
relação ao ilícito.». — Os termos usados, neste acórdão, para estabelecer o critério
236 1 ° Parte — O princípio da aplicação

agente do respectivo facto ilícito quanto à verificação, ou não, des-


tas condições; necessário, para que a conduta ilícita (e culposa) seja
criminalmente punível, é apenas que essas circunstâncias objectiva-
mente se verifiquem; e, assim, também se compreende que a sua
não verificação aproveite, necessariamente, a todos os compartici-
pantes.

2. Tratando-se, como se viu, de condições ou circunstâncias de


que depende a punibilidade criminal, a responsabilidade penal do
agente do facto ilícito (e culposo), a sua verificação — nos casos em
que a lei penal o exige e em que, portanto, fazem parte do tipo legal
(que, nestes casos, não coincide com o "tipo de ilícito" ou "ilícito
típico") — é co-fundamento da responsabilidade penal, pois que é
co-constitutiva da "infracção criminalmeníe punível", nos termos
do CP, arts. 1.°, n.° 1, e 2.°, n.° 2.
Neste sentido, Figueiredo Dias (258) escreve: «Com o tipo de
ilícito e o tipo de culpa não se esgota.o conteúdo do sistema do facto
penal [isto é, do crime ou infracção criminalmente punível], antes se
torna indispensável completá-lo com uma outra categoria, que bem
poderá chamar-se da "punibilidade" [onde se incluem as condições
objectivas de punibilidade]». A «"punibilidade", de resto, não significa
ainda que, uma vez ela presente, terá inevitavelmente lugar a aplica-
ção de uma reacção criminal (pena ou medida de segurança).»; e,
procurando salientar a natureza de elemento integrante do tipo legal
de crime e, consequentemente, o papel de pressuposto ou elemento co-
fundamentador da responsabilidade penal, prossegue, esclarecendo:
«Em vez de se dizer que a verificação dos pressupostos de punibili-

de distinção entre os elementos do ilícito e a condição objectiva de punibilidade são


da autoria de FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO ("Ilícito e Punibilidade no Crime
de Participação em Rixa", Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias,
Coimbra Editora, 2003, p. 884.
— Sobre a análise da referida nova exigência da notificação, introduzida no
crime de abuso de confiança fiscal, e das consequências desta exigência, em maté-
ria de sucessão de leis penais, ver o meu O Crime de Abuso de Confiança Fiscal,
Coimbra Editora, 2007.
<PS) Direito Penal (n. 183-E), p. 280 s. e 668 ss.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 237

dade determina imediatamente a punição, melhor se dirá que com


uma tal verificação se perfecciona o Tatbestand (no sentido da Teo-
ria Geral do Direito), que faz entrar em jogo a consequência jurí-
dica e a sua doutrina autónoma. Pois pode acontecer que a punição
acabe por não dever efectivar-se por razões que nada têm a ver com
a doutrina do facto punível, mas autonomamente com a doutrina da
consequência jurídica.». Os «pressupostos adicionais de punibilidade
dizem ainda respeito ao facto como um todo e à sua teoria. Podendo
mesmo nós ir ao ponto de afirmar que, para certos efeitos, os pres-
supostos de punibilidade do facto devem ser tratados ao nível
(e com os instrumentos dogmáticos) dos elementos do tipo (objec-
tivo) de ilícito (258"A); sem esquecer nunca, em todo o caso, que,
relevando eles para a definição da respectiva espécie de crime, mas
não, em todo o caso, para o juízo de ilicitude, não fazem parte do "tipo
de eiro" e, por isso, a eles não tem de se referir o dolo do tipo.».
Embora a minha concepção sobre a natureza e o âmbito dos
"pressupostos adicionais de punibilidade" í258"0) seja diferente da de
Figueiredo Dias, ela é coincidente quanto à qualificação das condi-
ções objectivas de punibilidade como elementos integrantes do tipo
legal de crime (correspondente, na teoria geral do direito, à hipó-
tese legal ou Tatbestand) e, portanto como co-fundamentadoras da res-
ponsabilidade penal. Na verdade, em relação a determinados crimes,
o legislador faz depender a sua punibilidade e, consequentemente, a
responsabilidade.penal do agente da verificação de determinadas cir-
cunstâncias adicionais à ilicitude típica da conduta e à. culpa do
agente.
São exemplos de condições objectivas de punibilidade a consu-
mação ou tentativa de suicídio no crime de incitamento ou ajuda ao
suicídio (art. 135.71), o resultado morte ou ofensa à integridade
física grave no crime de participação em rixa (art. 151.71), e o
reconhecimento judicial da insolvência no crime de insolvência dolosa
(art. 227.71).

(2S8-AJ- Este negrito é da minha responsabilidade.


pa-B) Direito Penal (n. 183-E), p. 54 ss.
238 1 ° Parte — O princípio da aplicação

3. Vejamos, agora, as consequências desta doutrina, na matéria


de sucessão de leis penais.
a) Se a.Lei Nova adiciona ao tipo legal uma condição objec-
tiva de punibilidade (aumentando, assim, a compreensão ou exi-
gência típica, e, inversamente, diminuindo a extensão do âmbito
dos factos criminalmente puníveis), tal implica a descriminaliza-
ção/des-penalização de todas as condutas praticadas antes da sua
entrada em vigor, condutas em relação às quais não se verifique o
novo elemento típico, isto é, a nova condição objectiva de punibi-
lidade.
. Nesta hipótese, a conduta que, no momento em que foi praticada
(isto é, no seu "tempus delicti"), era crime, ou seja, constituía uma
infracção criminalmente punível, deixou de o ser com a entrada em
vigor da Lei Nova, uma vez que esta estabelece como pressuposto da
responsabilidade penal a ocorrência de uma tal condição ou cir-
cunstância objectiva.
A consequência tem de ser — por imperativo constitucional
(CRP, art. 29.°, n.° 4, 2." parte, afortiori) e por imposição jurídico-
-penal (CP, art. 2.°, n.° 2) — a descriminalização/despenalização
retroactiva de todas as condutas praticadas antes da entrada em vigor
da Lei Nova (em relação às quais não se verifique a respectiva con-
dição objectiva de punibilidade), mesmo que tais condutas já tenham
sido objecto de condenação transitada em julgado ( 258_c ).

p58-C) j<feste sentido, e no contexto da inclusão, no tipo legal do crime de abuso


de confiança fiscal, COSTA ANDRADE e SUSANA SOUSA ["As Metamorfoses e Des-
venturas de um Crime (Abuso de Confiança Fiscal) Irrequieto", em RPCC, 2007,
p. 64 s.] escrevem que, embora ponham «entre parênteses a questão da categoriza-
ção dogmática [se é uma condição objectiva de punibilidade ou um elemento cons-
titutivo do próprio ilícito típico] do regime da nova alínea b) [introduzida no n.° 4
do art. 105." do RGIT — crime de abuso de confiança fiscal], o legislador alterou
parcialmente o desenho da factualidade típica herdado de 2001.». E acrescentam:
«A nova alínea b) resulta assim como cristalização do propósito de reconformar o
tipo. Uma reconformação que se opera pela via do alargamento dos pressupostos típi-
cos. Estreitando, reversamente, o universo das condutas criminalizadas e reduzindo
a extensão da matéria proibida. E alargando, do mesmo passo, o âmbito da contra-
ordenação prevista no artigo 114° do RGIT. Neste sentido, a mera não entrega
das prestações declaradas não é hoje crime (ainda que passem 90,100, ou 1000 dias)
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 239

Tomando o exemplo do crime de "participação em rixa" C258"0)


e supondo que o respectivo tipo legal, no momento em que duas ou
mais pessoas tomaram parte numa rixa, punia criminalmente a par-
ticipação em rixa, independentemente de resultar, ou não, da rixa
"morte ou ofensa à integridade física grave", a consequência, derivada
da entrada em vigor de uma lei que passasse a exigir a ocorrência de
um destes resultados, não podia deixar de ser a da despenalização
retroactiva das rixas (de que não tivessem resultado a morte ou lesão
grave da integridade física) cometidas na vigência da lei antiga. Pois
que a "simples" participação em rixa tinha, face à lei nova, deixado
de constituir crime (isto é, infracção criminalmente punível) e, por-
tanto, eram, retroactivamente, despenalizadas todas as "simples" par-
ticipações em rixa.
— Relativamente às condutas praticadas antes da entrada em
vigor da lei nova, e em relação às quais se tenha verificado (ou
venha a verificar) a circunstância que, por esta lei, passou a consti-
tuir uma condição objectiva de punibilidade, a questão, no caso de ter
também sido alterada a pena (principal e/ou acessória), resolver-se-á
de acordo com o princípio da lex mitior (CRP, art. 29°, n.° 4, 2." parte;
CP, art. 2.°, n.° 4).

b) Se a Lei Nova elimina do tipo legal uma condição objectiva


de punibilidade (diminuindo, assim, a compreensão ou exigência

sem antes ocorrer a notificação da Administração Tributária para "pagar" a dívida


e sua violação por parte do agente.».
E, imediatamente a seguir, concluem: «Tudo com um significado prático-nor-
mativo incontornável: querendo ou não, o legislador de 2006 descriminalizou con-
dutas que, antes da sua intervenção legislativa, eram directamente subsumíveis no tipo
legal de abuso de confiança fiscal. Trata-se, é certo, de condutas que persistem
proibidas e sancionadas. Mas fora do ordenamento jurídico-criminal: no âmbito
do direito sancionatório administrativo. Por ser assim, não vemos que possa afas-
tar-se a aplicação do artigo 2.72 do Código Penal: uma vez que a lei elimina do
âmbito criminal a conduta daquele que declarou mas não entregou as quantias dedu-
zidas, devem cessar a execução e os efeitos penais decorrentes da condenação.».
(258-D) Sobre o crime de participação em rixa, ver; TAIPA DE CARVALHO,
Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 314
ss„ nomeadamente o § 2 3 ; FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO (n. 2 5 7 ) , p. 8 6 9 ss.
240 1 ° Parte — O princípio da aplicação

típica, e, inversamente, aumentando a extensão do âmbito dos factos


criminalmente puníveis), tal implica a criminalização/penalização de
condutas que, face à Lei Antiga, não eram consideradas infracção
criminalmente punível, não fundamentavam responsabilidade penal:
aquelas condutas em que não se tivesse verificado a condição objec-
tiva de punibilidade prevista pela Lei Antiga.
Nesta hipótese, as condutas praticadas antes da entrada em vigor
da Lei Nova, e, em relação às quais, não se tenha verificado (e não
se venha a verificar após a entrada em vigor desta lei) a condição
objectiva de punibilidade (que era exigida pela lei antiga, isto é, do
"tempus delicti") continuam, obviamente, a não ser puníveis crimi-
nalmente; tal decorre da proibição da aplicação retroactiva da lei cri-
minalizadora/penalizadora (CRP, art. 29.°, n.° 1; CP, arts. 1.°, n.° 1,
e 2.°, n.° 1).
Continuando com o exemplo do crime de "participação em rixa",
suponhamos que o Legislador eliminava do respectivo tipo legal a con-
dição objectiva de punibilidade "morte ou ofensa à integridade física
grave". Relativamente a rixas, de que não resultasse a morte ou
uma lesão grave da integridade física, esta nova lei só podia aplicar-se
às "simples" rixas ocorridas (praticadas) depois do seu início de
vigência.
— Relativamente às rixas, de que tivesse resultado (ou viesse a
resultar após a entrada em vigor da lei nova) morte ou lesão grave
da integridade física de algum dos intervenientes, estávamos (relati-
vamente a estas rixas) diante de uma verdadeira sucessão de leis
penais; logo, no caso de ter havido também alteração da pena (prin-
cipal e/ou acessória), aplicar-se-ia-a lei concretamente mais favorá-
vel (CRP, art. 29.°, n.° 4; CP, art. 2.°, n.° 4).

V. Alteração das Causas de Justificação

Acabei de tratar (secções Hl e IV) das alterações do tipo legal


stricto sensu, na perspectiva das suas repercussões em matéria de
sucessão de leis penais.
Cabe, também, fazer uma breve referência às possíveis altera-
ções das causas de justificação: criação ou alargamento legal (ou
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 241

jurisprudencial — como foi, p. e., o caso do estado de necessidade


justificante, pois que, embora, hoje, tenha consagração legal, foi de
«criação» jurisprudencial) de causas de justificação, ou eliminação ou
redução legal (ou jurisprudencial) destas.
Sendo o tipo-de-ilícito (i. é, o «crime» objectivamente conside-
rado) constituído pelo tipo legal em sentido estrito e pela (inexis-
tência de uma) causa de justificação C259), evidente se toma que a
punibilidade depende, desde logo, também das causas de justificação.
Assim, as razões jurídico-políticas de certeza e garantia do cidadão
frente às possíveis alterações legais (ou jurisprudenciais, desde que
com força vinculativa das futuras decisões dos tribunais) também
não podem deixar de se repercutir na sucessão de leis (penais ou
não penais) que se refiram às causas de justificação.
Donde se conclui que o princípio constitucional e jurídico-penal
da proibição da aplicação retroactiva de uma lei penal desfavorável
(CRP, art. 29.°, n.° 1; CP, art. l.°, n.° 1) e da imposição da aplica-
ção retroactiva de uma lei penal favorável (CRP, art. 29.°, n.° 4,
2." parte, afortiorv, CP, art. 2°, n.° 2) também se aplica à sucessão
de leis que alteram as causas de justificação.
Não é, portanto, correcta a frequente afirmação de que o prin-
cípio da legalidade penal não se aplica às causas de justificação (250).
Com efeito, e relativamente ao campo que ora nos interessa, não
se pode esquecer que, nos casos em que operam as causas de jus-
tificação, há uma situação de conflito de interesses das «duas par-
tes», cabendo precisamente à norma, que diz qual é o interesse pre-
ponderante (a causa de justificação), a função de orientação da
conduta dos intervenientes nessa situação de conflito de interesses
jurídicos.

(2®) Sobre a complementaridade teorético-normativa, dogmático-material e


polftico-criminal do tipo legal e das causas de justificação, ver TAIPA DE CARVALHO,
A Legítima Defesa ( 1 9 9 5 ) , 1 4 5 ss; IDEM, Direito penal — vol. II (cit. na nota 2 5 5 ) ,
p. 4 8 s e 1 4 3 s; FIGUEIREDO D I A S , Direito Penal (cit. na nota 1 8 3 - E ) , p. 2 6 5 s.
e 3 8 4 s.
P 6 0 ) Cf. TAIPA DE CARVALHO, (n. 2 5 9 ) , 1 6 7 ss.; IDEM, Direito Penal — vol. I
(cit. na nota 71), p. 249 ss.
is
242 1 ° Parte — O princípio da aplicação

A criação ou alargamento do âmbito de uma causa de justifica-


ção (i. é, de uma norma de autorização da prática de uma conduta
típica) implica, simultaneamente, um efeito (imediato) «descrimina-
lizador» de uma conduta que, antes, não só era formalmente típica mas
também materialmente ilícita, mas também (em muitas situações)
um efeito (mediato) de «criminalização» de uma conduta que, antes,
embora formalmente típica, não era materialmente ilícita, isto é, não
constituía um ilícito penal.
Inversamente, a eliminação ou redução do âmbito de uma já
existente causa de justificação implica, simultaneamente, um efeito
(imediato) «criminalizador» de uma conduta que, antes, apesar de
formalmente típica, era justificada, e também (em muitas situações)
um efeito (mediato) de «descriminalização» de uma conduta que,
antes, era considerada ilícita e, agora, passou a ser considerada jus-
tificada í 261 ).
Exemplo; se o legislador, por L.N., vier excluir do âmbito dos
interesses susceptíveis de ser salvaguardados ou defendidos, respec-
tivamente, pelo direito de necessidade (CP, art. 34.°) e pelo direito de
legítima defesa (CP, art. 32,°) os bens patrimoniais, naturalmente
que as condutas praticadas, até à data da entrada em vigor da LJST.,
e que, respeitando os demais pressupostos da correspondente causa
de justificação, tivessem tido por objecto a salvaguarda ou defesa
de bens patrimoniais, estavam justificadas até à data da revogação
da LA., passando, a partir desta data ou seja a partir do início de
vigência da LIT., a ser consideradas ilícitas e, portanto (se formal-
mente típicas) puníveis. Simultaneamente, as eventuais acções típi-
cas praticadas pelo titular do bem jurídico a ser «sacrificado», con-
tra a acção de salvamento, e que, face à LA., eram consideradas
penalmente ilícitas, passam, com a entrada em vigor da LJSÍ., a estar
justificadas (desde que, obviamente, respeitados os restantes pressu-

(261) c f . TAIPA DE CARVALHO, ( n . 2 5 9 ) , 1 6 9 s s . V e r TAIPA DE CARVALHO,


Direito Penal, II, pp. 203-219, como exemplo de uma "criminalização", em conse-
quência da redução do âmbito de uma causa de justificação (no caso, a legítima
defesa, por força do Dec.-Lei n.° 457/99, de 5 de Novembro).
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 243

postos do respectivo direito de autodefesa — estado de necessidade


defensivo ou legítima defesa (262).
O oposto se passaria, na hipótese de a LJST. vir alargar o âmbito da
justificação de acções formalmente típicas: acções que, até à data da
entrada em vigor desta lei, eram consideradas não justificadas (ilícitas)
e, portanto, puníveis, passariam a ser consideradas justificadas e, portanto,
não puníveis; outras eventuais «contra-acções» formalmente típicas e
justificadas passariam a ser consideradas ilícitas e, portanto, puníveis.
Do exposto resultam as seguintes conclusões:

1.a — A L.N. criadora ou ampliadora (do âmbito) de uma causa


de justificação aplica-se, retroactivamente, ao agente cuja conduta
concreta típica, apesar de considerada ilícita pela lei do momento
da conduta (L.A.), passou a ser considerada justificada (foi, portanto,
«descriminalizada» e, assim, deixou de ser punível); já o (eventual)
efeito mediato «criminalizador» da conduta («contra-acção») típica,
que pela L A . estava justificada mas que pela L.N. passa a ser con-
siderada ilícita, só pode afirmar-se em relação às condutas praticadas
a partir do início de vigência da LJN.
2." — A LJST. eliminadora ou redutora (do âmbito) de uma causa
de justificação não se aplica às condutas anteriormente praticadas,
que, apesar de típicas, estavam justificadas pela L A . (proibição de
retroactividade desfavorável), continuando estas a ser tidas como jus-
tificadas; já se aplica, retroactivamente, às condutas típicas que, sendo
pela L.A. consideradas ilícitas, passaram com a posterior L.N. a ser
consideradas justificadas (imposição da retroactividade favorável).

y L ^ i f a t e r i ^ i a ^ ^ P , Art. 2.°, N.° 4)

1. Como é sabido, lei intermédia (253) é aquela lei penal cujo


início de vigência é posterior ao momento da prática do facto

P62) Sobre a distinção entre legítima defesa e estado de necessidade defensivo,


c f . TAIPA, DE CARVALHO ( n . 2 5 9 ) , 2 9 0 s s .
O2®) É esta a adjectivação tradicional e corrente. FIGUEIREDO DIAS/COSTA
ANDRADE, Direito Penal (1996), 190, falavam de «leis intermédias ou intennediá-
244 1 ° Parte — O princípio da aplicação

criminoso ( 264 ) e cujo termo de vigência ocorre antes do julga-


mento, rectius, antes do momento em que transita em julgado a
sentença. (264-A)
Tratando-se de uma lei que não está em vigor em nenhum dos
dois momentos referenciais — o momento da prática da conduta e o
momento do trânsito em julgado da sentença —, o problema da sua
aplicabilidade só se levanta, e só se levantou historicamente, quando
a lei intermédia é mais favorável que as duas outras leis em confronto:
a lei do «tempus delicti» e a lei do momento em que se forma o
caso julgado.
Sendo mais favorável, aplicar-se-á. Ora, porque se aplica a uma
conduta praticada antes da sua entrada em vigor, é retroactiva; e, por-
que é aplicada já depois de ter cessado a sua vigência formal, é
ultraactiva.

2. É, hoje, unanimemente — quer pela doutrina quer pela juris-


prudência — reconhecida a aplicabilidade da lei intermédia mais
favorável. Costuma referir-se que tal entendimento encontra a sua pro-
jecção legal na expressão «leis posteriores» (CP 1982, art. 2.°, 4.; já
assim, CP 1886, art. 6.°, 2.a), expressão que abrange não apenas a lei
em vigor no momento em que transita em julgado a sentença, mas
também a lei intermédia ( 265 ).

rias». Penso que esta designação alternativa «intermediárias» não é conecta. Esta
designação poderá ser adequada para urna diferente categoria de normas, precisamente
aquelas que, na teoria geral do direito, se incluem no chamado «direito transitó-
rio». Estas, diferentemente do que se passa com as leis intermédias, é que têm por
objectivo estabelecer a passagem, a transição do direito antigo para.o direito novo...;
só em relação a estas é que o adjectivo «intermediária» é adequado, não em rela-
ção às leis que estamos a tratar (as leis «intermédias»).
Cf. supra, 1." cap., iv.
(264-A) FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal (cit. na nota 183-E), p. 204, escreve, refe-
rindo-se à definição de lei penal intermédia, «mas [que] já não vigoravam ao tempo
da apreciação judicial deste [facto]». — Pelo que, em texto, digo, considero imper-
feita e mesmo incorrecta esta fixação do termo ad quem da vigência da "lei penal inter-
média". Pois, o momento relevante é o do trânsito em julgado da sentença.
C265) Lei ou leis intermédias, pois, como é evidente, pode haver mais que
uma lei intermédia.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 245

3. Uma vez que, como dissemos, não é, hoje, questionada a


aplicabilidade da lei penal intermédia, quando mais favorável, baste-
-nos indicar as razões que fundamentam a sua aplicação. Recondu-
zem-se elas aos já tratados princípios jurídico-político da segurança
individual contra as possíveis arbitrariedades legislativas ou judi-
ciais í266) e político-criminal da máxima restrição da pena Ç267), inter-
vindo, ainda, o princípio da justiça relativa ou igualdade de trata-
mento de casos idênticos (26B).
Pela sua clareza e completude na justificação da aplicação da lei
intermédia, vale a pena trazer a lume as pensadas reflexões do Rela-
tório da Proposta de Lei da Nova Reforma Penal de 1884 (269).
Defendendo que a interpretação adequada do art. 70.° do Código
Penal de 1852, então vigente, ia no sentido da ponderação (relevân-
cia) da lei intermédia, afirma, contudo, a necessidade de consignar
«com clareza o preceito de que abrange a hypothese de não estar
em vigor, nem quando foi perpretado o crime, nem ao tempo da
sentença, a lei que estabeleceu a pena menor.
Pode, com effeito, dar-se a hypothese de vigorar para um certo
e determinado crime uma disposição penal ao tempo da sua peipe-
tração, outra ao tempo do seu julgamento passado em julgado, e
outra no período intermédio entre essas duas épocas, e parece de
justiça, ou pelo menos de equidade, que se applique em todos os
casos a pena menos grave, qualquer que seja a gravidade relativa das
penas exharadas nas trez leis» (270).
Criticando e recusando a concepção retributivo-expiatória con-
sagrada no Código Belga de então, diz o Relatório: «É certo que o
delinquente está obrigado ao tempo da perpetração do delito à pena
estabelecida na lei vigente, mas o objecto desta obrigação não é
senão o equivalente do quantum necessário para restabelecer a tran-

P66) Cf. supra, 1.° cap.


P67) Cf.supra, 2° cap.
P6a) Sobre o princípio constitucional da igualdade, v. infra, sec. nt, 4 ° cap.
desta 1." Parte.
C265) In RU, 18." anno, n.° 902, 3 de Outubro de 1885, 273-4.
C270) Itálico meu.
246 1 ° Parte — O princípio da aplicação

quilidade quebrantada, ou reparar o dano causado na ordem moral da


sociedade... O direito ou pelo menos a legítima expectativa está
adquirida já pelo criminoso, e portanto deve ser-lhe applicavel a
pena da lei intermédia, embora a disposição penal em vigor ao tempo
da sentença seja mais grave do que aquella e de gravidade egual ou
inferior à que vigorava na occasião do crime.
Se o réo fosse julgado antes de revogada a segunda lei, tér-lhe-ia
sido applicada pena menos grave e a demora no julgamento não
deve ser causa de applicação de pena de maior gravidade, tanto
mais que essa demora pode provir, não de negligencia ou de fraude
do criminoso, mas da observancia das formalidades legaes, ou de
facto ou de culpa imputável às auctoridades e mais representantes
legítimos da sociedade».

Depois de uma tal exposição dos motivos determinantes da jurídico-política


e político-criminalmente necessária aplicação da lei intermédia, quando mais
favorável, não se compreende muito bem como é que BELEZA DOS SANTOS veio,
quase meio século depois, afirmar: «Vemos assim que a doutrina do Código nos
pode conduzir ao absurdo de irmos aplicar, uma lei que, nem estava em vigor
ao tempo da infracção, nem ao tempo do julgamento e isso sem que haja qual-
quer razão lógica justificativa.» ( 271 )!

VII. Determinação da Lei Penal Mais Favorável: Poixderação


Concreta e Diferenciada (CRP, Art. 29.°, N.° 4-2.a parte;
CP, Art. 2.", N.° 4)

1. Verificando-se uma verdadeira sucessão de leis penais (272),


há que determinar qual' das leis em confronto é mais favorável ao
infractor. Levantam-se, aqui, dois problemas: ponderação abstracta
ou concreta?; ponderação unitária ou diferenciada?

2. a) Quanto à primeira questão, pode afirmar-se que, desde


há muito, a opção vai, razoavelmente, para a ponderação concreta:

(27>) Lições... (n. 81), 127.


cf, SUpra, n.° 6, sec. i deste 3." cap.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 247

é relativamente ao caso sub iudice que se deve determinar qual das


leis mais favorece (rectius: menos desfavorece) o infractor. Tal
decisão pressupõe que o tribunal realize todo o processo de deter-
minação da pena concreta (CP, art. 71.°) face a cada uma das leis,
a não ser, como é óbvio, que seja evidente, numa simples conside-
ração abstracta, que uma das leis é claramente mais favorável que
a outra. Assim, se a L A . estabelecia uma pena de 20 a 24 anos de
prisão, enquanto a L.N. se limitou a alterar esta pena para 12
a 20 anos de prisão, é, logo ab initio, evidente que a L.N. é mais
favorável.
Dificuldades e dúvidas já podem surgir, quando a pena estabe-
lecida pela L.A. e a estabelecida pela L.N. são entre si heterogé-
neas, isto é, são de espécie diferente (prisão — multa ou vice-versa)
e mesmo, por vezes, quando são da mesma espécie: a L.A. estabe-
lece pena de 1 a 10 anos de prisão, a L.N. estabelece pena de 3
a 7 anos de prisão. Nestas hipóteses, há que proceder à determina-
ção concreta da pena pois só assim se poderá chegar à conclusão
de qual das leis é mais favorável ao arguido.
b) Ainda dentro deste problema da ponderação concreta, há
um outro aspecto que não deve ser descurado: a possibilidade que
deve ser concedida ao arguido de, nos casos de permanência da
dúvida — apesar da ponderação concreta desenvolvida — sobre qual
das leis é mais favorável, indicar qual a lei que prefere que lhe seja
aplicada.
Permanecendo a decisão como decisão do tribunal, com-
preende-se que o tribunal deva, nos casos duvidosos, ter em conta
a opção do mais interessado na aplicação da lex mitior. Este
aspecto, que é acentuado pela doutrina espanhola Ç273), foi defendido

(273) Assim, entre muitos outros, PUIG PENA (n. 109), 184-5; R . MOURULLO
( n . 5 ) , 1 4 0 ; CEREJO M I R ( n . 5 ) , 1 8 3 ; COBÓ D E L R O S A I / V I V E S ANTON ( n . 8 6 ) , 1 7 6 - 7 ;
Derecho Penal — P.G. (1996), 151: a decisão
F . M U N O Z C O N D E M . GARCÍA A R Á N ,
compete ao Tribunal, permitindo, contudo, o art. 2.2 do CP espanhol que o arguido
«seja ouvido em caso de dúvida sobre a lei [concretamente] mais favorável»; VIVES
A N T O N , Comentários al Código Penal de 1995, l (1996), 50: «Para estes casos de
dúvida, o preceito prevê, acertadamente, a audiência do réu».
248 1 ° Parte — O princípio da aplicação

já por HENRIQUES DA SILVA (274) e está dentro do espírito e da letra


da lei (CP,.art. 2.°, 4.).
Exemplo: a L.A. estabelecia uma pena de prisão até 3 meses
não substituível por multa; a L.N. estabelece uma pena de 75
a 150 dias-multa. Supunhamos que o arguido, embora seja proprie-
tário de uma pequena casa térrea que habita, se encontra desempre-
gado, e, por tal motivo, prefere ir «passar» um mês na prisão do
que ter de pagar uma multa de, p. e., 400 euros. Parece razoável que
o tribunal, diante de uma tal situação, atenda a opção do arguido, o
que significa aplicar a lei que, para a generalidade dos possíveis
arguidos, seria a mais severa (27S).

3. Discutida é a questão de saber se a ponderação deve ser uni-


tária ou diferenciada.

a) A generalidade da doutrina e da jurisprudência tem optado


pela ponderação unitária: Mas tal não significa que assim tenha de
ser. Vou, precisamente, indicar as razões que me levam a conside-
rar como mais defensável, político-criminalmente, a ponderação dife-
renciada.
Antes de contestar a teoria dominante, esclareçamos ò que se
entende por ponderação unitária ou global e por ponderação dife-
renciada ou discriminada das leis em confronto. A primeirá significa
que é a lei na sua totalidade, na globabilidade das suasdisposições,
que deve ser aplicada; a ponderação diferenciada, considerada a com-
plexidade de cada uma das leis e a relativa autonomia de cada uma
das disposições, defende que deve proceder-se ao confrontq de cada
uma das disposições de cada lei, podendo, portanto, acabar por se apli-
car ao caso sub iudice, disposições de ambas as leis.

PT") Sociologia... (n. 66), 139.


p 75 ) Não esquecemos que, face ao CP vigente, seria de aplicar a LN, recor-
rendo o tribunal ao disposto nos arts. 47°, n.os 3 e 4 (dilação do prazo de pagamento
ou pagamento em prestações), 48.° (substituição da multa por trabalho) ou 74." (dis-
pensa de pena).
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 249

Exemplifiquemos:

1 ° — A LA. estabelecia a pena principal de 6 meses a 3 anos


de prisão e a pena acessória de interdição (suspensão) do exercício
de determinada profissão durante 1 ano, enquanto a LM. estabelece
somente a pena principal de 1 a 5 anos de prisão.
2.° —. A LA. qualificava o facto praticado como contravenção
e estabelecia a pena de 6 meses a 1 ano de prisão, enquanto a LM.
passou a qualificar o facto como crime e estabelece a pena de prisão
até 6 meses.
3 5 — A LA. estabelecia a pena de 1 a 4 anos de prisão e tor-
nava o procedimento criminal dependente de queixa, enquanto a LM.
reduziu a pena para prisão até 3 anos, extinguindo a queixa como con-
dição de procedibilidade.
4.° — A LA. estabelecia a pena até 5 anos de prisão, enquanto
a LM. reduziu o limite máximo da pena para 4 anos de prisão.
5° — A LA. estabelecia a pena de 6 meses a 3 anos de prisão,
e não fazia depender de queixa o procedimento criminal (logo, con-
siderava o facto como crime público), enquanto que a LM. elevou a
pena para prisão de 1 a 5 anos, mas tomou o procedimento criminal
dependente de queixa.

bj Diante dos exemplos apresentados, creio que a solução razoá-


vel, político-criminalmente, não pode deixar de ser a de aplicar as dis-
posições penais mais favoráveis da L A . e da LJST.; na verdade, só a
ponderação diferenciada dos vários aspectos ou dimensões da res-
ponsabilidade penal — pena principal, pena acessória, efeito penal da
condenação, condição de procedibilidade — impede resultados inde-
sejáveis, sob o decisivo ponto de vista político-criminal.

Vejamos:
No 1." exemplo, a ponderação unitária ou global das leis (Alter-
nativitãt der Gesetze, na designação alemã) vinculava o tribunal a ter
de optar ou pela aplicação de uma pena principal mais grave ou pela
aplicação de uma pena principal menos grave mas acrescida de uma
pena acessória. Ora, como parece evidente, nenhuma das alternati-
250 1 ° Parte — O princípio da aplicação

vas tem qualquer ratio político-criminal. Com efeito: aplicar a L.N.


é, jurídico-penalmente, de recusar; aplicar a LA. é, poKtico-criminal-
mente, desaconselhável, pois com que fundamento se iria aplicar
uma estigmatizante pena acessória, num momento em que o legisla-
dor a extinguiu?! — Só a aplicação da LA. quanto à pena princi-
pal e a aplicação retroactiva da LN. na sua eficácia extintiva da pena
acessória pode considerar-se correcta.
Passemos ao 2." exemplo. Aplicar em bloco a L.A. conduz a
punir o infractor como contraventor mas com uma pena mais grave;
aplicar em bloco a LJST. significa punir o infractor com uma pena mais
leve, mas pena criminal, isto é, considerando-o como criminoso.
Ora, como se sabe, face à versão primitiva do CP de 1982, art. 76.°,
n.° 1, se ele fosse punido como criminoso e viesse, no futuro, a
cometer um outro crime doloso, aquela condenação poderia vir a ser
um pressuposto da agravação da pena a aplicar (CP 1982, art. 77°),
ao passo que, se for condenado como contraventor, tal condenação não
poderá ter o efeito de possível agravação da pena por reincidência.
Desde já, e quanto a este aspecto dos efeitos penais da condenação,
há que reter que a L.N. nunca poderá ser aplicada integralmente,
sob pena de violação do princípio da irretroactividade da valoração
como circunstância modificativa agravante de circunstância que, no
momento da prática do facto, o não era C276).
Aplicar globalmente a L.A. também não pode ser; a tal se opõe
o principio da retroactividade da lex mitior. Ora, quanto à pena
principal, a L.N. é, inegavelmente, mais favorável.
Resta a solução correcta fornecida pela teoria diferenciada: con-
denar o infractor como contraventor (L.A.) com uma pena de prisão
até 6 meses (L.N.) ( 277 ).
Considerando, por fim, o 3." exemplo, vemos que o resultado
justo, poHtico-criminalmente, passa pela aplicabilidade simultânea
da L.A. e da L.N. Assim: o procedimento criminal, se ainda não foi

( m ) Refiro-me, como é evidente, à (impossibilidade de uma futura declara-


ção de reincidência criminal e não à possibilidade de uma actual declaração de rein-
cidência contravencional (CP 1886, art. 36.°).
p 77 ) Cf. supra, n.M 3, 4 e 5 da sec. II deste 3." cap.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 251

apresentada queixa, continua a depender desta (LA.), enquanto a


pena aplicável, se já tiver sido ou vier a ser apresentada queixa,
será a de prisão até 3 anos (LM.).
Relativamente, por fim, ao 4." exemplo, verificamos que a alte-
ração significa, quanto à prescrição do procedimento criminal, que um
facto praticado, na vigência da LA., prescreveria só decorridos 10 anos
sobre a sua consumação (CP, arts. 118.°-l-è) e 119M), enquanto que,
face à LM., prescreverá passados que sejam 5 anos sobre a sua con-
sumação (CP, art. 118.°-l-cj.).
Ora, é falso dizer-se que, relativamente a tal facto, ou se aplica
totalmente a LA. ou se aplica totalmente a L.N. Pois pode aconte-
cer que a LM. tenha estabelecido causas de suspensão da prescrição
do procedimento criminal, que não existiam na LA., causas que
façám com que a prescrição possa ocorrer mais cedo, face à LA.
do que face à LM. Se tal se verificar, aplicar-se-á, naturalmente,
a LA., obviamente apenas quanto à prescrição, pois que, extin-
guindo-se o procedimento criminal, obviamente que impedida fica
a averiguação de qualquer responsabilidade penal; mas se o proce-
dimento criminal se iniciar (por ainda não se encontrar prescrito,
face à lei que, relativamente ao caso concreto, era mais favorável e
que, como vimos, era a LA.), já, quanto à pena, não pode deixar de
se aplicar a LM., que estatui uma pena mais leve. Em conclusão:
quanto à prescrição do procedimento criminal, aplica-se a lei que, face
ao caso concreto, é mais favorável; quanto à pena, aplica-se a lei
que for, neste aspecto mais favorável — e que, como vimos, pode ser
diferente daquela.
Logo, há que distinguir e tratar separadamente a componente
da prescrição do procedimento criminal da componente da pena.
Diga-se, ainda, que se, normalmente, uma lei que aumenta a
pena legal (limite máximo), também, automaticamente, aumentará o
prazo de prescrição do procedimento criminal, ou, pelo menos, não
o encurtará, tal não significa que não possa haver casos em que uma
LM. diminua a pena e aumente o prazo de prescrição do procedimento
criminal, ou vice-versa. Ora, em tais hipóteses, não podiam deixar
de se aplicar as. duas leis. No primeiro caso, a LA., quanto ao prazo
de prescrição do procedimento criminal, uma vez que, neste plano,
252 1 ° Parte — O princípio da aplicação

é mais favorável que a LN.; já, quanto à pena, é óbvio que teria de
ser aplicada a LN. No segundo caso, aplicar-se-á a LN., quanto ao
prazo de prescrição; quanto à pena, aplicar-se á a LA.
0 5.° exemplo verificou-se, precisamente, na alteração legislativa
operada pela Revisão do Código Penal de 1995, relativamente ao
crime de maus tratos a cônjuge. Ora, como é, hoje, evidente, aos
maus tratos cometidos, antes da entrada em vigor da LN., aplica-se,
quanto à componente dos pressupostos processuais, a lei nova, porque
mais favorável, e, quanto à componente da pena principal, aplica-se
a lei antiga, pois que é mais favorável.
c) É, pois, de recusar a doutrina dominante, mais exactamente,
a afirmação dominante — pois que não tem sido fundamentada mas
quase se pode dizer que apenas tem sido repetida — segundo a qual
a ponderação tem de ser unitária ou global.
O STJ, na motivação da Assento publicado em 17 de Março
de 1989, defendeu a posição tradicional, ou seja a ponderação global
e a correspondente aplicação em bloco de uma das leis em confronto.
Convém, para terminar, demonstrar a fragilidade dos argumen-
tos invocados pelo STJ.

1° — Serve-se o STJ do facto de a expressão «normas mais


favoráveis» do Projecto de 1963 ter sido substituída pela expres-
são «regime que concretamente se mostre mais favorável» (CP,
art. 2.°, 4.); e logo acrescenta: «a referência a «regime», em vez de
«normas», implica a ideia de que não se pode escolher, de cada uma
das leis os preceitos isolados que forem mais favoráveis ao agente,
mas há que aplicar uma só lei, prescrevendo um conjunto norma-
tivo (bloco) definidor do regime do instituto ou infracção, que cons-
titui o regime do instituto ou infracção».
— Este pretenso argumento literal é, na verdade, inócuo. Com
efeito, «disposições penais», «normas» (constantes do art. 3.°, n.° 2,
do Anteprojecto e correspondente ao art. 2.°, n.° 4, do Código Penal),
«leis penais» (CRP, art. 29°, n.° 4), «regime» (CP, art. 2°, n.° 4)
são tomados pelo legislador como sinónimos, sendo indevido qual-
quer aproveitamento destas diferenças terminológicas para decidir
sobre importantes questões jurídico-penais e poKtico-criminais, como
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 253

é o caso da opção pela ponderação global ou pela ponderação dife-


renciada.
Acresce que, comb já vimos (27S), o legislador do Código Penal
não foi, efectivamente, um exemplo de preocupação com o rigor na
terminologia adoptada, sendo até o próprio art. 2.° um (mau) exem-
plo de prolixidade terminológica.
Poderia o STJ ter invocado os trabalhos preparatórios em abono
da sua posição. Efectivamente, o problema da ponderação unitária ou
diferenciada foi levantado na sessão da Comissão Revisora, dedicada
àdiscussão do art. 3°, n.° 2, do Anteprojecto (correspondente ao actual
art. 2°, n.° 4), parecendo ter-se inclinado — quer o Autor do Ante-
projecto quer os restantes membros da Comissão — para a ponderação
e aplicação em bloco (279). — A este possível argumento haveria que
opor o seguinte: 1.° — O valor sempre relativo dos trabalhos prepara-
tórios, mesmo quando levados a sério; 2° — As Actas respectivas não
registam qualquer fundamentação válida em favor da ponderação e
aplicação globais; 3° — Já passaram cerca de quarenta anos sobre a dis-
cussão da Comissão Revisora do Anteprojecto; 4.° — A interpretação
evolutiva, quando apoiada em razões político-criminais válidas, deve ser
tida em conta; em muitos outros problemas, como se tem visto ao
longo desta monografia, a doutrina, para que pendiam os membros da
Comissão Revisora, foi claramente ultrapassada, como é, por exem-
plo, o caso da prescrição do procedimento criminal (2B0).
2° — Argumenta o STJ que «não é lícito construir regimes par-
ticulares pela conjugação de elementos retirados de uma e outra lei,
coin prejuízo da quebra de coerência e a obtenção de um resultado
aberrante, ainda que concretamente vantajoso para o agente».
— O primeiro que há a dizer é que o STJ apenas afirma a ile-
gitimidade da ponderação discriminada e da aplicação de disposi-

C278) Cf. supra, a." 1 desta l. 1 Parte. .


e79) Cf. Actas... (n. 9), in BMJ, 141,134-5.
C280) Como veremos na 2." Parte, 1." cap., II, 2, o Autor do Anteprojecto incli-
nava-se, nessa altura — 1964 — para a natureza adjectiva da prescrição e para a apli-
cação imediata da lei sobre prazos de prescrição, opinião esta que hoje é recusada
pela generalidade da doutrina — já o tendo sido pelo próprio Prof. EDUARDO COR-
REIA — e pela jurisprudência.
254 1 ° Parte — O princípio da aplicação

ções pertencentes à L A . e à L.N. e diz que esta conduz a resultados


aberrantes, mas não demonstra, minimamente, onde e porquê a ile-
gitimidade, onde a aberração dos resultados.
Quanto à sugerida aberração dos resultados, há que respon-
der com os exemplos apresentados: como vimos, aberração polí-
tieo-criminal dos resultados havê-la-ia, sim, mas se se adoptasse a tese
do STJ, bem como a da (ainda) maioria dos autores, isto é, a apli-
cação em bloco de uma das leis.
Sobre a alegada ilegitimidade da aplicação das disposições favo-
ráveis de cada uma das leis, não se vê onde esteja a ilegitimidade;
deve mesmo dizer-se que tal é imposto pela ratio jurídico-polítiea da
proibição da retroactividade desfavorável e pela ratio potítico-criminal
da imposição da retroactividade favorável.
281
JAKOBS ( ) afirma mesmo que a ponderação-aplicação unitária
(alternatividade das leis) viola o princípio da vinculação à lei, sendo,
portanto, exigível que o juiz proceda a uma avaliação particulari-
zada, isto é, a uma ponderação das diferentes componentes da res-
ponsabilidade penal: pena principal, penas acessórias e efeitos penais
da condenação.
Refere, por sua vez, MAURACH-ZIPF Í282) que, enquanto na vigên-
cia do StGB (CP) anterior, o BGH (STF) recusava esta «decompo-
sição», todavia, com o novo StGB, § 2°, Abs. 5, veio, claramente,
indicar que penas principais, penas acessórias e efeitos penais devem
considerar-se separadamente ( 283 ).
Já F . ALIMENA (284) dizia que não se pode aceitar a tese — per-
filhada por «toda a doutrina e em perfeita consonância com a juris-
prudência — segundo a qual, quando se procede ao confronto de
duas leis e depois à escolha da mais favorável ao réu, não se pode
deixar de aplicar ou uma lei ou a outra, pois seria arbitrário tomar,
de cada uma das leis, as disposições mais favoráveis ao réu e formar,

P s l ) Strafrecht (n. 103), 87.


P82) Strafrecht (n. 75), 153-4.
P 83 ) Assim, ESER (n. 214), anot. 30 ao § 2 °
P 84 ) Francesco A L I M E N A , Le Condizioni di Punibilità, Milano: Giuffrè
(1938), 237-9.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 255

assim, com os elementos de uma e de outra, uma terceira lei». E, logo


de seguida, fundamenta a sua recusa da ponderação-aplicação em
bloco, escrevendo: «Uma disposição da lei penal pode ser consti-
tuída por várias partes»; tal como o preceito incriminador, também
o preceito sancionatório pode ser constituído por diferentes partes,
«podendo acontecer que, numa parte, seja mais favorável a L.A. e,
noutra, seja mais favorável a L.N. ou vice-versa».
Curiosamente, ALIMENA repudia o argumento que costumava
— e costuma — ser invocado a favor da alternativa global (aplica-
ção em bloco), e que consistia em dizer que o Código Penal (italiano),
art. 2.°, 2, fala de aplicação «da lei cujas disposições são mais favo-
ráveis ao réu», dizendo que não é argumento nenhum, e, se o é, é
meramente formal, tendo de ceder à ratio político-criminal.
Àqueles que, como Manzini, diziam que a ponderação-aplicação
diferenciada se traduzia na criação de uma tertia lex, violando-se,
assim, o princípio da separação dos poderes, ALIMENA respondia que
tal objecção era infundada, pois, como é evidente, o juiz, no caso em
exame, não legisla nada.
Por último, invoca, em favor da tese da aplicação diferenciada
e com cabimento, a existência de disposições transitórias que acolhem
a terceira via (285).
3.° — Por último, o STJ afirma o seguinte: «aqui se toma a
lição dos autores Beleza dos Santos, Cavaleiro de Ferreira e Eduardo
Correia» (286).
— Há somente que dizer que se trata de um argumento de auto-
ridade, cristalizado num tempo, que, como parece óbvio, não basta.

e t s ) De facto, no caso da "conversão" de crimes em contra-ordenações, deve,


como vimos (cf., supra, 3 ° Cap, II. B. 5.), a competência para o processo e para o
julgamento dos factos praticados na vigência da lei penal pertencer aos Tribunais
(o que significa, nesta parte, aplicação da LA.), embora estes tenham de aplicar a
sanção contra-ordenacional (o que significa, nesta parte, aplicação da LN.).
P 6 ) FIGUEIREDO D I A S , Direito Penal (cit. na nota 1 8 3 - E ) , p. 2 0 4 s., parece
reconhecer uma certa insustentabilidade da forma radical como a Jurisprudência e a
maioria da Doutrina têm afirmado e defendido (posto que sem argumentação) a
ponderação global ou unitária.
256 1 ° Parte — O princípio da aplicação

4. Conclusão: a solução mais correcta e imposta político-


-criminalmente é a que passa pela ponderação concreta e dife-
renciada, aplicando-se de cada uma das leis em confronto as dis-
posições penais que sejam concretamente mais favoráveis ao
infractor.

V m . Cei Temporária (CS, Art. 2.°, N.° 3)

1. ÉuuLfactQ-qiíeas leis penais temporárias colocam proble-


mas de compatibilização com o princípio da retroactividade da lei
penal favorável (287). Necessário se torna, portanto, proceder com o
máximo de ordem e rigor possível.
Comecemos pela definição de lei penal temporária: é a lei
penal que, visando prevenir a prática de determinadas condutas numa
situação de emergência ou de anormalidade social, se destina a vigo-
rar apenas durante essa situação de emergência, pré-determinando
ela própria a data da cessação da sua vigência.
A especialidade do regime da lei temporária reside no facto da
sua aplicabilidade a todas as condutas nela previstas e praticadas
durante a sua vigência, independentemente de, no momento do jul-
gamento, a lei temporária já não estar em vigor.
Exemplos: lei que, dada a existência de uma epidemia de cólera,
criminaliza o lançar o lixo para locais públicos, limitando a sua
vigência a um período de seis meses após a sua publicação; lei que,
devido à crise grave do abastecimento de géneros alimentares de
primeira necessidade, estabelece sanções penais para os cpmercian-
tes que ultrapassarem, durante, o período de quatro meses após a
publicação da lei, os preços máximos fixados para os géneros de
primeira necessidade taxativamente designados.

2. Do que se escreveu, no n.° anterior, resulta o seguinte: a


situação de emergência, de anormalidade é condição necessária mas

F O Cf., entre outros, R . MOURULLO (n. 5 ) , 1 3 7 ; C . R O S A I / V . ANTON (n. 86),


1 8 4 ; M . CONDE ( n . 5 ) , 1 9 3 ; TERESA P . BELEZA ( n . 8 6 ) , 4 5 8 s s .
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 257

não suficiente para a criação e a caracterização de uma lei penal


como lei temporária. Condição necessária, no sentido de que sem
situação de emergência não há fundamento jurídico-político nem
poKtico-criminal para a criação de uma lei temporária, com o con-
sequente regime específico: ultraactividade gravosa.
Só o carácter excepcional da situação, que determina a publicação
de uma lei temporária, é que impede que sobre esta (dado o seu
regime de ultraactividade desfavorável) recaia o juízo de inconstitu-
cionalidade por violação do princípio político-criminal da indispen-
sabilidade da pena, constitucionalmente assumido (CRP, arts. 18°,
n.° 2, e 29°, n.° 4-2.a parte) í 288 ). Significa isto que não depende do
livre arbítrio do legislador a criação de leis penais temporárias; a
não exigência da fundamentação da lei temporária numa situação de
anormalidade possibilitaria ao legislador ordinário a violação frau-
dulenta do princípio da retroactividade in melius, isto é, permitiria que,
eventualmente, o legislador utilizasse a figura da lei penal temporá-
ria como instrumento persecutório.
Mas não basta a situação de emergência para a caracterização de
uma lei penal como lei temporária; é ainda exigido que a própria lei
— que visa impedir a prática de actos que, nesta situação excepcio-
nal, adquirem uma gravidade potenciada para determinados bens jurí-
dicos — estabeleça, formal e inequivocamente, o seu termo de
vigência. Em regra, a lei temporária indicará a data em que deixará
de vigorar. Quando, devido à persistência da situação de anormali-
dade, o legislador entender necessário a prorrogação da vigência,
fá-lo-á mediante lei que estabeleça a nova data da cessação da vigên-
cia da lei temporária.
A, digamos, calendarização do termo da vigência da lei temporária
pode, por vezes, não ser possível nos casos das leis penais em branco.
Exemplo: devido a obras em determinado troço da via pública, é colo-
cada uma placa indicadora de proibição de velocidade acima de 30 K/H.
Neste caso, a norma integradora da lei penal em branco que pune o
excesso de velocidade, é uma norma temporária cujo termo, de vigên-

p aa ) Cf. supra, sec. ra do 2 ° cap.


17
258 1 ° Parte — O princípio da aplicação

cia, não podendo, porventura, ser determinado à partida, coincidirá


com a retirada da placa sinalizadora. Mas — repare-se — mesmo no
caso das leis penais em branco a integrar por outras normas, sempre
o termo de vigência destas tem de ser formal e inequívoco.
Interessa fazer uma referência às leis penais em branco em geral.
É, hoje, doutrina assente e pacífica ( 289 ) que a norma implementadora
da lei penal em branco assume, por força da remissão desta e seja qual for a
natureza jurídica originária (administrativa, estradai, etc.) daquela, natureza
penal. Logo, a alteração das normas integrantes é verdadeira alteração do tipo
legal em sentido restrito e, como tal, está sujeita ao regime da sucessão de
leis penais: proibição da retroactividade da norma eriminalizadora (penalizadora)
e imposição da retroactividade da norma ou disposição descriminalizadora
(despenalizadora).
Assim, a alteração dos limites de velocidade traduz-se na despenalização
(caso de elevação dos limites) ou na penalização (caso de redução dos limites)
de condutas, sendo, portanto, retroactivamente eficaz, na primeira hipótese, já
não na segunda ( 290 ). — Há, pois, que não confundir o caso da, digamos, «nor-
mal» alteração dos limites de velocidade com uma redução do limite de velo-
cidade determinado por uma situação anormal e claramente delimitada no tempo,
como no exemplo há pouco apresentado.
Também se aplicará retroactivamente a lei que, p. e., extinga um dos
deveres dos funcionários públicos, consagrados no respectivo estatuto discipli-
nar e sancionados penalmente (291)-
— Correcta e adequadamente, JAKOBS ( 292 ) salienta que devem distin-
guir-se estes casos em que a lei penal em branco visa, directamente, garantir a
obediência à norma integrante — hipóteses em que, salvo o caso de a norma
integrante ser uma disposição inequivocamente temporária, se aplicará, como

(2S9) Cf. EDUARDO CORREIA (n. 5), 155; KARL HEINZ KUNERT, «Zur Riick-
wirkung des milderen Steuerstrafgesestzes», in NStZ (1982), 277; PER MAZUREK
(n. 207), 233-4; RUDOLPHI (n. 217), anot. 8 ao § 2.; ESER (n. 214), anot. 23 ao § 2.;
PAGLIARO (n. 75), 1070; R. MOURULLO (n. 5), 136. — Sobre os riscos da utilização
de leis penais em branco (riscos de violação do princípio da legalidade e, assim, de
enfraquecimento das garantias individuais) e sobre a consequente necessidade-exi-
gência de evitar, ao máximo, tal utilização ver M . A . LOPES ROCHA, « A função de
garantia da lei penal e a técnica legislativa», in Legislação {cadernos de ciência
de legislação), 1993, p. 25 ss.; J. CORDOBA RODA, «Principio de legalidad penal y
Constitución», in Gedãchtnisschrift fiir Armin Kaufinann, 1989, p. 79 ss.
(2S0) Assim, JESCHECK (n. 5), 188.
(291) Assim, EDUARDO CORREIA (n. 5 ) , 1 5 5 .
P 2 ) Strafrecht (n. 103), 83-4.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 259

vimos, o princípio da lei penal favorável — daqueles em que a lei penal em


branco visa garantir o efeito de regulamentação (Regelungseffekt) prosseguido
pela disposição integrante — hipótese em que se mantém a punibilidade das
infracções praticadas antes da alteração da norma integradora. Exemplos desta
segunda categoria' de normas integrantes são as disposições que estabelecem a
prioridade à direita ou que determinam as moedas com curso legal. Assim,
apesar de uma eventual substituição da prioridade à direita, pela prioridade à
esquerda ou da exclusão da circulação monetária de uma certa moeda, perma-
necerão puníveis as anteriores violaçdes da prioridade à direita C293) ou' falsifi-
cações da moeda posteriormente retirada da circulação ( 294 ).

3. Da caracterização dos pressupostos de uma lei penal tem-


porária — situação de emergência e delimitação rigorosa e formal do
período de vigência — parece inevitável a conclusão de que não é cor-
recta a distinção que a generalidade da doutrina (se não ao nível do
pensamento, pelo menos ao nível da expressão deste) faz entre leis
temporárias em sentido restrito (calendarizadas) e leis de emergência,
no quadro de uma hipotética categoria de leis temporárias em sentido
amplo (295).
É que, como referimos, a lei temporária tem de ser, necessaria-
mente, lei de emergência, embora não baste a razão de emergência
para definir como temporária uma lei penal, sendo ainda necessária
a delimitação formal e rigorosa do respectivo e limitado período de
vigência. O não cumprimento de qualquer um destes requisitos
determinará que a lei em causa seja tratada como, digamos, lei penal
normal, sendo-lhe aplicável o regime da sucessão de leis penais, com
a consequente retroactividade da lei despenalizadora, isto é, da lei que
a venha revogar.

Nesta linha de precisão e rigor da lei temporária, é de aplaudir o legisla-


dor do Código Penal quando, diferentemente da doutrina geral, do Assento de
18 de Julho de 1947 e do Anteprojecto do actual Código Penal, exige, à par-
tida, uma rigorosa demarcação do termo de vigência. Anote-se, desde já, que
o facto de o n.° 3 do art. 2." do Código Penal não se referir à situação de

C293) JAKOBS (n. 103), 84.


C254) EDUARDO CORREIA (n. 5), 155; RUDOLPHI (n. 217), anot. 8 ao § 2.
P s ) Cf., p. e., PAGUARO (n. 75), 1072; RUDOLPHI (n. 217), anot. 14 ao § 2.
260 1 ° Parte — O princípio da aplicação

emergência, tal não significa que seja irrelevante a existência ou não da situa-
ção fáctica de anormalidade. Já o dissemos: tal situação de emergência é
conditio sine qua non da legitimidade constitucional da lei temporária,
devendo, por conseguinte, considerar-se como uma exigência implícita no regime
especial consagrado no referido n.° 3 do art. 2.° do Código Penal.
Imprecisa e equivocamente, dizia o Anteprojecto, art. 3 ° , n.° 1, 2." parte:
«O disposto [refere-se à 1." parte que estabelecia a retroactividade da lei des-
criminalizadora] não tem aplicação, quando a lei penal vale por um determi-
nado espaço de tempo çju para um certo estado de coisas, e o facto que a
viola foi praticado dentro do período de tempo ou durante a situação por ela
prevista» ,(256).

4. O regime especial da lei temporária não pode considerar-se


como uma excepção ao princípio da retroactividade da lei despena-
lizadora C297). Na verdade, se de rigorosa excepção se tratasse, tal

P 96 ) Actas... (n. 9), 130.


P 97 ) Assim, CAVALEIRO DE FERREIRA (n. 5), 117, onde critica a fundamenta-
ção' do Assento do STJ, de 18-07-1947, segundo a qual a lei temporária constitui uma
excepção ao princípio (excepção, segundo o CP 1886) da retroactividade da lei
penal favorável — Diga-se que a errónea concepção da lei temporária manifestada
na fundamentação deste Assento reafirmou-se no Acórdão do mesmo STJ,
de 21-03-1979, quando, incorrectamente, veio afirmar a caducidade do referido
Assento cóm base na sua incompatibilidade com o princípio constitucional da
retroactividade da lei penal mais favorável, consagrado na 2." parte do n.° 4 do
art. 29° da CRP. — Como é evidente — caso contrário, também seria inconstitu-
cional o n.° 3 do art. 2.° do CP vigente —, o Assento de 1947 não caducou por força
do n.° 4 do art. 29° da Constituição (1976), mas só mais tarde (1983), por virtude
do disposto no n.° 3 do art. 2." do Código Penal actual. Numa palavra': se a qua-
lificação de excepcional do regime das leis temporárias era incorrecta, já o regime
por ele {pelo Assento) firmado não era, nem é inconstitucional, precisamente por-
que não se trata de um regime excepcional, mas sim de um regime especial.

— Não é, portanto correcta e rigorosa a qualificação de excepção (ao princí-


pio da aplicação da lei mais favorável) atribuída por FIGUEIREDO D I A S / C O S T A
ANDRADE (Direito Penal, 1996, p. 192 s.) às leis temporárias. Não há excepção
nenhuma, em sentido jurídico-penal material, mas apenas, quando muito, em sentido
formal. Não se compreende, por outro lado, como é que estes Autores afirmam, rela-
tivamente ao que escrevi na 1." ed. — e que nesta 3 ' ed. mantenho inalterado —
sobre as leis temporárias, o seguinte: «Uma vez mais não falta quem entenda que
a excepção feita pelas leis temporárias à proibição de retroactividade, contida no
art. 2.°-3, é inconstitucional por não constar expressamente do texto do art. 29.°
da C R P » . Estes Autores confundiram uma hipótese (que eu formulei e neguei) com
a realidade do que afirmei e reafirmo (o art. 2.°-3 não é inconstitucional).
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 261

seria, no ordenamento jurídico português, inconstitucional, dado o


princípio da retroactividade da lei penal mais favorável — que, a
fortiori, compreende a lei despenalizadora — estar consagrado na
2.a parte do n.° 4 do art. 29.° da Constituição.
Efectivamente, excepção só haveria se a ratio político-criminal da
retroactividade da lei despenalizadora se afirmasse também na hipó-
tese da caducidade das leis temporárias. Mas, precisamente, no caso
•das leis temporárias, tal ratio — que se traduz na alteração da con-
cepção sobre a ilicitude do facto ou numa nova concepção polí-
tico-criminal que considera desnecessária a pena — não se veri-
fica (298): os factos praticados na situação de anormalidade determinante
da lei temporária continuam a ser valorados, político-criminalmente,
como merecedores de pena; sucede apenas que a alteração da situa-
ção no sentido da sua como que normalização retirou àqueles factos
abstractamente considerados a sua potenciada «perigosidade» para os
bens jurídicos que a lei temporária visou tutelar. Há, como a doutrina
costuma referir, uma alteração da situação fáctica e não uma alteração
da valoração político-criminal (299). Digamos: não se afirmando a

(29a) Assim, p. e., VIVES ANTON (n. 2 9 9 ) , 5 1 : no caso das leis temporárias, «não
se verifica o fundamento justificativo da retroactividade da lei posterior mais favo-
rável, isto é, a ausência de necessidade de pena».
C 299 ) Assim, p. e., CAVALEIRO DE FERREIRA (n. 5 ) , 1 1 6 ; ' EDUARDO CORREIA
(n. 5 ) , 1 5 6 ; M. LOPES ROCHA, «Aplicação da Lei Criminal no Tempo e no Espaço»,
in JDC ( 1 9 9 3 ) , 9 5 - 8 ; RUDOLPHI (n. 2 1 7 ) , anot. 1 4 ao § 2 . ; JAKOBS (n. 1 0 3 ) , 8 1 - 2 ;
JESCHECK (n. 5 ) , 1 8 8 ; MuSoz CONDE (n. 5 ) , 1 9 3 . VIVES ANTON (Comentários al
Código Penal de 1995,1996, p. 51): «No exemplo apresentado, pressupõe-se que a
sanção pelo desperdício de água visa tutelar o uso adequado desse bem num período
de escassez e, portanto, a Iesividade da conduta sancionada não é valorada de modo
distinto pelo legislador quando, desaparecida a referida escassez, deixa de cas-
tigá-la»;
No mesmo sentido, FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE (Direito Penal, 1 9 9 6 ,
p. 193): «A razão que justifica o afastamento da aplicação da lei mais favorável reside
em que a modificação legal se operou em função não de uma alteração da concep-
ção legislativa — esta é sempre a mesma —, mas unicamente de uma alteração
das circunstâncias fácticas que deram base à lei». — Nota: sendo correcta esta fun-
damentação (e por isto a invoco), não pode, porém, deixar de se registar a contra-
dição existente entre esta (correcta) fundamentação (do regime especial, mas não
excepcional...) e a qualificação das leis temporárias como excepção (ad princípio da
aplicação da lei penal favorável).
262 1 ° Parte — O princípio da aplicação

ratio da retroactividade da lei despenalizado», não se afirma a eficácia


retroactiva da caducidade (revogação) da lei temporária — ubi cessat
ratio, cessat eius dispositio. — Eis o verdadeiro e único fundamento
da compatibilidade do regime especial da lei temporária com o prin-
cípio constitucional da eficácia retroactiva da despenalização de uma
conduta.
i
Costuma, ainda, invocar-se, como fundamento do regime espe-
cial da lei temporária, a circunstância de, a não ser assim, as leis
temporárias perderem a sua eficácia preventiva: dada a sua curta
vigência, o julgamento dos infractores realizar-se-á, na maioria dos
casos, num momento em que a lei já não está em vigor; logo, se a
lei temporária não fosse ultraactiva, perderia ela a sua eficácia inti-
midativa. — Pelo que dissemos, vê-se, claramente, que este argu-
mento tem mero valor adicional, secundário (300); só por si, é evidente
que não legitimaria o regime especial das leis temporárias.
5. Figueiredo Dias repete, em 2007 (300"A), o que já tinha afir-
mado, em 1996 (30°-B). Vejamos o que este Autor diz, numa simples
página, sobre as chamadas leis penais temporárias.
Começa pela seguinte afirmação: «Uma excepção ao princípio
da aplicação da lei mais favorável está consagrada, no art. 2.°-3, para
as chamadas leis temporárias».
— Como já, na 2." edição desta monografia, em 1997, o procurei
demonstrar (30°-c), o disposto, no n. 3 do art. 2.° do Código Penal,
não constitui qualquer .excepção ao princípio constitucional (CRP,
art. 29.°, n.° 4-2." parte) e legal (CP, art. 2.°, n.° 2) da aplicação
retroactiva da lei penal favorável.
Com efeito, excepção só existiria, se a ratio político-criminal, que
fundamenta a retroactividade da lei penal favorável (trate-se de lei des-
criminalizadora ou de "lex mitior"), também se verificasse no caso
das chamadas "leis temporárias", a que se refere o n.D 3 do art. 2 °

(3M) Assim, também JAKOBS (n. 103), 81-2.


(300-A) Direito Penal (cit. na nota 183-E), p. 205.
(300-B) Conferir a segunda parte da minha nota 297.
(3D°-C) Conferir o texto do anterior n.° 4 e respectivas notas.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 263

do Código Penal. Isto é, só existiria excepção, se, existindo uma nor-


mal evolução social, dependesse da mera vontade do legislador a
criminalização, por determinado tempo, de uma determinada con-
duta. Ora, como o sabemos — e Figueiredo Dias o acentua (30°-D),
quando trata do conceito material de crime e dos pressupostos (vin-
culativos da qualificação de um bem jurídico como bem jurídico-
-penal: "dignidade penal" + "necessidade penal", sendo aquela conditio
sine qua non, e esta condição também necessária, mas pressupondo
aquela) —, a criminalização de uma conduta não depende da vontade
"arbitrária" do legislador.
Este discurso político-criminal (assumido e imposto constitu-
cionalmente — CRP, art. 18.°, n.° 2) é respeitado também nas cha-
madas leis temporárias. A legitimidade e constitucionalidade destas
leis radica e pressupõe, explícita ou implicitamente, que a conduta em
causa tem, durante o período estabelecido e dada a anormalidade ou
especialidade da situação social existente (p. ex., uma epidemia, uma
anormal fuga de capiteis, a grande escassez de água, uma vaga de agi-
tação social), uma perigosidade social (isto é, uma perigosidade para
determinados bens jurídicos) que, numa situação social normal, não
tem.
Em resumo: a razão subjacente à aplicação retroactiva da
lei penal favorável está na alteração da concepção político-cri-
minal do legislador, já, diferentemente, no caso das chamadas
"leis temporárias", não se verifica esta alteração da concepção
político-criminal, mas apenas uma alteração da situação fãctica,
isto é, da situação social. Logo, parece evidente que o regime
das leis temporárias não constitui uma excepção ao regime da,
digamos, normal sucessão de leis penais. No caso das "leis tem-
porárias", a valoração jurídico-penal das condutas, praticadas
durante a vigência da "lei temporária" (isto é, durante uma situa-
ção de emergência ou anormalidade semelhante à existente durante
o período de vigência da lei temporária), mantém-se e, por isso, se

(3oo-D) Direito Penal (cit. na nota 183-E), p. 113 ss. No mesmo sentido, o meu
Direito Penal, vol. I (cit. na nota 71), p. 60 ss.
264 1 ° Parte — O princípio da aplicação

compreende, político-criminalmente e jurídico-constituciqnalmente,


que, apesar de a lei já não estar em vigor (porque o facto deixou,
por força da normalização da situação social, de revestir o perigo
que tinha para os respectivos bens jurídico-penais), que a conduta,
praticada durante a vigência da lei temporária, deva e continue a ser
punível.
Conclusões:
l. a — Diferentemente do que Figueiredo Dias continua a afirmar,
as "leis temporárias" não são leis excepcionais, mas, sim, leis espe-
ciais.
Aliás, diga-se que este Autor (30°-E) incorre numa contradição,
quando, por um lado, afirma que as "leis temporárias" constituem uma
excepção (ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável) e,
por outro lado, fundamenta a criação destas leis na alteração das cir-
cunstâncias fácticas. Yejamos: depois de pretender estabelecer uma
distinção entre "leis temporárias em sentido estrito" e "leis temporárias
em sentido amplo" — distinção que não esclarece e que eu (pelo
que já disse) não vejo que critério substancial (que não meramente
formal) possa existir para tal distinção (30°-F) —, escreve: «A razão
que justifica o afastamento da aplicação , da lei mais favorável (300~G)
reside em que a modificação legal se operou em função não de uma
alteração da concepção legislativa — esta é sempre a mesma —,
mas unicamente de uma alteração 'das circunstâncias fácticas (pense-se
nomeadamente em termos de direito penal económico) que deram
base à lei.».

(30Q.E) Direita Penal (cit. na nota 183-E), p. 205.


Nesta contradição também cai Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito
Penal, Coimbra Editora, 2007, p. 87, quando diz que «as leis temporárias constituem
uma excepção ao princípio da aplicação da lei mais favorável», e que a fundamen-
tação da sua criação radica em «um estado factual de excepção».
P00-11) Cf. nota 300-N.
(3D0-G) Observe-se o seguinte: uma vez que Figueiredo Dias não está a tratar
da hipótese (possível, como veremos) de uma sucessão de leis penais temporárias,
más, sim, do caso normal da criação de uma lei penal temporária, então não tem sen-
tido falar do afastamento da «lei mais favorável», pois que só existe uma lei, que
é precisamente a lei temporária.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 265

2,a — Contrariamente ao que Figueiredo Dias escreve, eu nunca


disse (300-H) q U e 0 disposto no n.° 3 do art. 2.° era inconstitucional
e que essa inconstitucionalidade derivava do facto de «não constar
expressamente do texto do art. 29° da CRP». — Mas a razão deste
equívoco distorcedor da minha posição está mas é no equívoco ou
contradição de Figueiredo Dias (a que já me referi) em considerar o
regime do n.° 3 do art. 2.° como excepcional, quando a justificação
que apresenta, para tal regime, o deveria ter levado a, lógica e polí-
tico-criminalmente, o considerar como regime especial (300_I).
3.a — Para que as coisas fiquem apresentadas com rigor, há
que observar, corrigindo a seguinte afirmação de Figueiredo Dias:
«Uma vez mais não falta quem entenda que a excepção feita
pelas leis temporárias à proibição de retroactividade, contida no
art. 2."-3 ( 30W ), é inconstitucional por não constar expressamente do
texto do art. 29.° da CRP.». — Eis a correcção: deixando de lado a
imputação, que me faz, de que eu defenderia a excepcionalidade e a
inconstitucionalidade das leis temporárias e do seu regime (3QQ-L),
devemos esclarecer que, diferentemente do que o Autor escreve, se
fosse excepção (como Figueiredo Dias afirma e eu nego), seria excep-
ção à imposição da retroactividade favorável, e não «à proibição de
retroactividade». É que, para além do que acabo de dizer parecer evi-
dente, o que.está em causa e existe no regime da lei temporária é a
sua ultra-actividade, isto é, a sua aplicabilidade mesmo depois de
ter cessado a sua vigência (3QQ-M), e não, de modo algum, a sua
retroactividade, pois, como é evidente, nunca, em hipótese alguma,

(300-H) gasta i e r 0 q U e tenho vindo a argumentar — e que é, exactamente, igual


ao que já escrevi, quer na 1." edição de 1990, quer na 2." edição de 1997.
(3M-1) Esta é a razão por que entendo que, sob o ponto de vista sistemático,
o n.° 3 devia passar para n.° 4, e este para n.° 3.
(3M-J) Itálico meu.
(3M-L) o que, como já o vimos, não corresponde nada à verdade. O que eu
digo é que não é inconstitucional nem excepcional; e não é inconstitucional porque
não é excepcional.
(300-M) CP, art. 2.°, n.° 3: «Quando a lei valer para um determinado período
de tempo, continua a ser punível o facto praticada durante esse período.-». — Itá-
lico, obviamente, meu.
266 1 ° Parte — O princípio da aplicação

a lei temporária (300_N) pode- ser aplicada retroactivamente. Se senti


a necessidade de esclarecer esta evidência, foi porque o menos avi-
sado poderia ser levado a pensar que o carácter especial das leis
temporárias permitia até uma tal inconstitucionalidade, uma tal vio-
lação de uma das conquistas fundamentais do bicentenário Estado
de Direito. Na verdade, embora tenha sido mero lapso de escrita, o
certo é que dizer-se que o disposto, no art. 2."-3, é uma excepção à
proibição de retroactividade é ~ a dizer-se que a lei temporária
pode ser aplicada retroactivamente!

Uma palavra a propósito das leis penais económicas (fiscais, financeiras,


cambiais).
O facto de estas leis serem afectadas por uma grande instabilidade (300"°)

(300-N) Que vem dizer-nos que, ocorrida uma determinada situação de emer-
gência ou anormalidade, o facto z, a partir do dia x e até ao dia y, passa a consti-
tuir crime; ou — o que vem, materialmente, a dar no mesmo — que vem dizer-nos
que, enquanto durar determinada situação de emergência ou anormalidade, esse
facto z constitui crime.
— Por tudo o que já, em texto, disse, e pelo que acabo de exemplificar, con-
sidero artificial a distinção que alguns autores (sem apresentarem qualquer funda-
mentação substancial) pretendem estabelecer entre "leis temporárias em sentido
estrito" e "leis temporárias em sentido amplo" (como é o caso de Figueiredo Dias),
ou entre "leis temporárias" e "leis de emergência" (como é o caso de Faria Costa).
A lei temporária pressupõe, necessariamente, uma situação de emergência ou
anormalidade e, portanto, é, necessariamente, uma lei de emergência; da mesma
forma que uma lei de emergência é, necessariamente, uma lei temporária, pois que
a sua existência termina, quando cessar a situação de emergência ou anormalidade
(situação que, pela natureza das coisas, é, obviamente, temporária ou transitória,
por longa que seja a sua duração) que motivou e legitimou, político-criminalmente
e constitucionalmente, a sua criação.
São razões de certeza e de garantia jurídico-penal do cidadão que aconselham
— e até exigem — que o legislador estabeleça, ao criar a lei de emergência, o seu
termo de vigência. E, no caso de não ser possível, à partida, saber qual irá ser a dura-
ção da situação de emergência ou anormalidade, mesmo assim o legislador deve indi-
car o termo de vigência. Pois, no caso de, quando se aproximar este termo, a situa-
ção de emergência ou anormalidade ainda se mantiver, o legislador pode determinar
a prorrogação da vigência da lei pelo tempo que entender necessário.
(3M-0) Veja-se, por exemplo, o que se tem passado com o "crime de abuso de
confiança fiscal". Com razão e saudável ironia, as sucessivas alterações deste tipo
legal de crime levaram Costa Andrade e Susana Sousa a apelidá-lo de crime irre-
quieto, num artigo publicado na RPCC, 2007, p. 53 ss., cujo título é «As Meta-
morfoses e Desventuras de um Crime (Abuso de Confiança Fiscal) Irrequieto».
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 267

não significa que elas deixem de estar sujeitas, quanto à sua sucessão, ao princí-
pio geral da aplicação da lei penal favorável. Digamos que essa transitoriedade,
essa mutabilidade das leis penais económicas constitui uma situação, uma realidade
normal, tendo, portanto, o conflito temporal destas leis de ser resolvido pelo
critério jurídico-político e político-criminal da aplicação da lei penal favorável.
Este dinamismo das leis penais económicas resulta quer das normais muta-
ções económicas quer das alterações das concepções político-económicas dos titu-
lares político-legislativos e político-administrativos ( 301 )
Factos que, segundo uma determinada concepção político-económica,
merecerão a qualificação de crime, já segundo uma diferente visão polí-
tico-económica não a merecerão. Assim, diferentemente do que se passa com
as leis temporárias, a alteração das leis penais económicas resulta, muitas vezes,
da modificação da concepção político-económica.
Por outro lado, a mutabilidade da situação económica é um dado normal
das sociedades actuais. Não pode, portanto, tal mutabilidade ser considerada
como algo de anormal, como situação de emergência, situação que, como vimos,
é condição necessária, embora não suficiente, da lei temporária.
A conclusão não pode deixar de ser a de que o princípio da retroactividade
da lei penal favorável (despenalizadora ou lex mitior) aplica-se à sucessão de leis
penais económicas.
Tal não significa, como é evidente, que as leis penais económicas não
possam revestir a natureza e o regime especial de leis temporárias. É claro
que podem, mas desde que o duplo pressuposto, já analisado para as leis penais
em geral, seja respeitado: existência de uma situação de emergência económica
— que não pode confundir-se com ai natural mutabilidade da vida económica —
e pré-fixação do tenno de vigência da lei que assume e se legitima nessa situa-
ção de emergência. Não se verificando, cumulativamente, este duplo requi-
sito, aplicar-se-á o princípio da retroactividade da lei penal favorável (CRP,
art. 29°, 4.-2.°parte; CP, art. 2.°, 2. e 4.).

6. Até agora, falámos das leis temporárias como se elas fos-


sem, sempre e necessariamente, leis criminalizadoras (penalizado-
ras); a verdade, porém, é que a lei temporária pode ser uma lex
severior, isto é, uma lei que, por força da situação de emergência,
vem agravar, temporariapiente, a responsabilidade penal pela prá-
tica de um facto que já é, na situação normal, considerado crime.

(3D1) Neste sentido, FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE, «Problemas de Espe-


culação e Sucessão de Leis Penais no Contexto dos Regimes de Preços Controlados
e Declarados», in RDE, 6/7 (1980-81), 325.
268 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Sirva de exemplo a agravação da pena por porte de arma de fogo


sem licença, durante determinado período de tempo e por força de
uma anormal situação de grave perturbação da ordem pública.

7. Refira-se, por outro lado, que também pode haver uma ver-
dadeira sucessão de leis penais temporárias, com a consequente
aplicação da lei temporária mais favorável (302). Pode configurar-se
o seguinte exemplo: foi publicada, em 14 de Junho de 2005, uma
lei que agravou as penas de fogo posto em matas e florestas de 2
a 10 anos de prisão para 15 a 30 anos de prisão, estabelecendo,
ainda, que o condenado não poderia beneficiar da liberdade condi-
cional; imediatamente acusada de terrorismo penal, a referida lei
temporária — que tinha pré-fixado o seu termo de vigência em 30
de Setembro de 2005 — foi revogada e substituída por uma nova lei
temporária que iniciou a sua vigência em 25 de Julho e que, tal
como a revogada, terminava a sua vigência em 30 de Setembro
de 2005, lei esta que reduziu a pena para prisão de 5 a 15 anos e
extinguiu a impossibilidade da libertação condicional.
Sendo certo que tanto uma quanto a outra foram aprovadas para
tentar fazer face ao anormal surto de incêndios florestais, surgido
logo em princípios de Junho e com suspeitas de origem criminosa,
pergunta-se se aos crimes de fogo posto florestal, cometidos entre 19
de Junho de 2005 — data da entrada em vigor da primeira lei tem-
porária — e 24 de Julho do mesmo ano — pois a segunda lei tem-
porária entrou em vigor em 25 de Julho — deverá ser aplicada a
primeira ou a segunda lei temporária. — A resposta não poçle deixar
de ser a seguinte: apesar de se tratar de leis temporárias, há entre estas
duas leis uma verdadeira relação de sucessão, pois que há identidade
da situação fáctica assumida por ambas as leis e determinante do
regime especial destas, aplicando-se, portanto, retroactivamente, aos
referidos crimes a lei temporária mais favorável.
Ambas visaram a mesma situação de emergência, tendo havido
apenas uma alteração da concepção político-criminal: mesmo tendo

(302) Assim, entre outros, SIDÓNIO RITO, Actas... (n. 9), 131; Muííoz CONDE
( n . 5 ) , 1 9 3 ; CEREJO M m ( n . 5 ) , 185-6.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 269

em conta a.situação de emergência, entendeu o legislador que a pri-


meira lei temporária incarnava uma visão político-criminal de ver-
dadeiro terrorismo penal; por isto, a alterou.

Tennina-se, referindo que não deve confundir-se lei temporária com lei que,
indeterminada no seu termo de vigência e visando uma situação normal, descreve
circunstâncias que somente se verificam em certos períodos ou, por outras pala-
vras, só é aplicável a factos praticados durante o tempo ou a situação previstos
na lei e que se repetem ciclicamente ( 303 ).
Exemplos: lei que estabeleça uma agravação da pena para o crime de fogo
posto em floresta, quando praticado entre 1 de junho e 30 de Setembro. Trata-se.
de um crime de fogo posto em floresta, agravado (qualificado) em função de uma
circunstância — o período estival — que se repete todos os anos. Apesar de
normal — pois que, infalivelmente, se renova em cada ano —, esta circunstância
estival justifica a agravação da responsabilidade penal.
O mesmo se passa, p. e., com o ilícito penal eleitoral: os respectivos ilí-
citos só podem ocorrer em períodos eleitorais.
Estas leis estão, pois, sujeitas ao princípio da aplicação da lei penal favo-
rável.

IX. Medidas de Segurança (CRP, Art. 29.°, N. os 1, 3 e 4; CP,


Arts. 1.°, N.° 2, e 2.°)

1. A nossa Constituição (1976) e, na sequência-imposição desta,


o Código Penal (1982) estabeleceram que, tal como para as penas,
também as medidas de segurança estão sujeitas aos princípios
da legalidade e da jurisdicionalidade. Só o tribunal pode aplicar
uma medida de segurança e. tratamento, não podendo ao delinquente
ser aplicada medida de segurança mais grave do que a prevista no
momento da prática dos factos descritos por lei criminal já em vigor
neste momento.

Í303) C f . , p . e „ COBO D E L ROSAL/VIVES ANTÓN ( n . 8 6 ) , 1 7 1 - 2 ; VIVES ANTON


0Comentários al Código Penal de 1995, 1996, p. 51): «não deve confuridir-se [as leis
temporárias] com aquelas leis qiie, regendo, em princípio, de modo indeterminado,
ficam limitadas, quanto à sua aplicação, às épocas em que se verificam os seus
pressupostos, como é, v. g., o caso das leis eleitorais: os delitos eleitorais só podem
cometer-se em época de eleições, sem que por isso a lei que os comtempla seja tem-
porária».
270 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Não só os pressupostos da declaração judicial da perigosidade


criminal (os factos-índice da perigosidade criminal) e da conse-
quente aplicabilidade da medida de segurança têm de ser posterio-
res ao início da vigência da lei que descreve tais pressupostos (fac-
tos) como infracção criminal (CRP, art. 29.°-l.; CP, art. l.°-2.),
como também as próprias medidas de segurança aplicáveis ao delin-
quente inimputável não podem ser mais gravosas do que as previs-
tas no momento do preenchimento dos referidos pressupostos (CRP,
art. 29.°-4.; CP, art. 2.°-L). — Proibição, pois, da retroactividade des-
favorável.

2. Já se a lei posterior ao preenchimento dos pressupostos da


perigosidade é favorável, então aplicar-se-á retroactivamente. Embora
a Constituição (art. 29.°-4.) e o Código Penal (art. 2.°-2. e 4.) não men-
cionem, expressamente, as medidas de segurança, é evidente que tais
disposições abrangem, a fortiori, as medidas de segurança e os res-
pectivos pressupostos ( 304 ). Na verdade, desprovidas de qualquer
fundamentação ético-retributiva e assumidas como medidas de pura
defesa social, sempre — seja qual for a concepção da pena — as leis
posteriores mais favoráveis se aplicarão retroactivamente —. Não
é necessário insistir neste aspecto, pois que sempre foi — e continua
a ser — defendida a aplicação da lei mais favorável. A única dife-
rença relativamente à doutrina tradicional é que, hoje, em vez de
aplicação imediata, deve dizer-se, relativamente à lei nova mais favo-
rável, aplicação retroactiva.
Isto, porque o ponto de referência deixou de ser, por razões de
garantia política, o denominado estado de perigosidade para passar
a ser o momento do preenchimento dos respectivos pressupostos
(factos).
Deste modo, se a lei posterior ao facto-pressuposto descrimina-
liza este mesmo facto, é óbvio que ela se aplica retroactivamente: ao
respectivo delinquente já não se poderá aplicar qualquer medida de

P 0 4 ) Assim, G . MARQUES DA SILVA, «Algumas Notas sobre a Consâgração dos


Princípios da Legalidade e da Jurisdieionalidade na Constituição da República Por-
tuguesa», in Estudos sobre a Constituição, u, Lisboa; Petrony (1978), 262.
3." Capítulo '— Princípio da Lei Penal mais favorável 271

segurança, e, se já tiver sido aplicada, cessará a sua execução (CRP,


art. 29.°, 4.-2.tt; CP, art. 2.°, 2.). Se a lei posterior a esse momento
da prática do facto prevê uma medida de segurança mais favorável,
também se aplicará retroactivamente (CRP, art. 29.°, 2.-2." parte; CP,
art. 2.°, 4.). .
Em conclusão: o princípio da aplicação da lei favorável vale
igualmente para as medidas de segurança (305): proibição da retroac-
tividade da lei criminalizadora do facto-pressuposto da declaração
de perigosidade do delinquente e da lei que estabeleça uma medida
de segurança mais grave, e imposição da retroactividade da lei des-
criminalizadora do facto-pressuposto e da lei que estabeleça uma
medida de segurança mais favorável.

3. Como já sugerimos, a ratio da aplicação às medidas de segu-


rança da proibição da retroactividade desfavorável é exclusivamente
jurídico-política. O facto de as medidas de segurança não serem
penas, não terem um fundamento ético, nada retira à gravidade da sua
intervenção e ao perigo da sua utilização abusiva ou mesmo perse-
cutória (306). Assim, a consciencialização jurídico-política, ligada
ao aprofundamento do Estado-de-Direito, vê na sujeição das medidas
de segurança, e respectivos pressupostos, aos princípios da legali-
dade — e, portanto, à proibição da aplicação retroactiva da lei des-
favorável — e da jurisdicionalidade uma exigência da necessidade de
garantia dos direitos fundamentais, necessidade esta que é conatural
à ideia e ao princípio do Estado-de-Direito ( 307 ).

Assim, CAVALEIRO DE FERREIRA (n. 5), 127; Cf.', também, FIGUEIREDO


C30-5)
DIAS, Direito Penal Português — consequências jurídicas do crime (1993), 435 s.;
IDEM, Direito Penal (cit. na nota 183-E), p. 196.
(3DS) Assim, JAKOBS (n. 103), 79-n, 90; STOATENWERTH, Strafrecht A.T., 2 . .
Aufl., Koln/Miinchen: C. H. Beck (1979), 39-n. 70, os quais, entre outros, criticam
a opinião dijiindida na Alemanha e o § 2." — Abs. 6 do StGB, que, respectiva-
mente, defende e estabelece a aplicação da lei em vigor no momento da decisão. Os
autores referidos consideram que a mencionada disposição do StGB (CP ale-
mão-federal) é inconstitucional por violar o principio da proibição da retroactividade
desfavorável, consagrado no art. 103-n da GG (Lei Fundamental).
(307) Cf. Autores e locais citados na nota anterior; também, RODRIGUEZ M O U -
RVLLO (n. 5), 131-2.
272 1 ° Parte — O princípio da aplicação

É, pois, de recusar a opinião de M A I A GONÇALVES C308), segundo a qual não


é possível pôr-se, aqui, a questão da retroactividade; deve sempre ser aplicada
a lei em vigor no momento da decisão, quanto à perigosidade que, nesse
momento, o delinquente revela. As leis posteriores à decisão são sempre de apli-
cação imediata».
Este Autor invoca, em abono da sua opinião, a seguinte posição de
309
E D U A R D O CORREIA ( ): «não se pode, neste caso, falar em retroactividade,
mas em aplicação da lei a um facto [refere-se à perigosidade] que se verifica na
sua vigência. A lei que prevê tais medidas é, pois, sempre, de aplicação ime-
diata»,
— Diga-se que tanto a doutrina de E D U A R D O C O R R E I A quanto a de
M A I A GONÇALVES, que naquela se louva, já eram de recusar, mesmo antes da
entrada em vigor da Constituição de 1976; todavia, enquanto a posição do pri-
meiro foi escrita antes de 1976, já a do segundo é, ab initio, inconstitucional,
pois que foi escrita já depois de se encontrar em vigor a Constituição (art. 29.°,
n.°5 1, 3 e 4).
— Na mesma linha e pelas razões mencionadas, é de discordar — e, em
minha opinião, de rejeitar — a posição diferenciadora de Maria João Antu-
nes (303"A), que, como se acaba de ver, não é nova, ao contrário do que Figuei-
redo Dias sugere ( 309-B ).
Segundo esta Autora, dever-se-ia distinguir, dentro dos pressupostos da
aplicação de uma medida de segurança (de internamento aplicável a um inim-
putável), o pressuposto «prática do facto ilícito típico» face ao pressuposto
«fundado receio de que.o agente venha a cometer outros factos ilícitos típi-
cos». Só, em relação ao primeiro pressuposto, valiam, inteiramente, os princí-
pios que se aplicam às penas: proibição de retroactividade desfavorável e impo-
sição de retroactividade favorável; já, quanto ao segundo pressuposto ("fundado
receio de que o agente venha a cometer outros factos ilícitos típicos", isto é, prog-
nóstico da manutenção da perigosidade criminal), aplicar-se-ia «a lei vigente no
momento da formulação deste juízo de perigosidade», isto é, no momento da
decisão judicial.

í308) Código Penal Português, 5." ed., Coimbra: Almedina (1980), anot. 6.
a. ao art. 6 ° do CP 1886. Diga-se que, actualmente (cf. Código Penal Português,
8." ed., 1995, p. 181), M A I A GONÇALVES já regista a doutrina correcta, reconhe-
cendo, implicitamente, que tal doutrina, se já antes da CRP de 1976 era defensável,
então a partir da Constituição tomou-se de imposição constitucional.
(3D3) Direito Criminal, I (n. 5), 163.
(309-A) Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em
Razão de Anomalia Psíquica, Coimbra Editora, 2002, p. 183.
(309-B) D;reit0 penai («t. n a nota 183-E), p. 196.
3." Capítulo — Princípio da Lei Penal mais favorável 273

Sobre esta posição, não tenho senão que transcrever aquilo que já expus
no meu livro Direito Penal (cit. na nota 71), p. 110 s. Solicito, desde já, a com-
preensão do leitor para a adaptação do texto que, directamente, visa criticar o
disposto no art. 30.°-2 da Constituição, e o art. 92.a-3 do Código Penal, que aca-
bam por permitir medidas de segurança privativas da liberdade perpétuas, atra-
vés-de sucessivas prorrogações por períodos de 2 anos.
Nesse local, escrevi: «quando terminado o período "normal" [período,
que, para o fim que,- aqui, nos interessa, é o período estabelecido pela lei vigente
no momento da prática do facto ilícito típico], da medida de segurança, se se
mantiver a perigosidade criminal [perigosidade que se baseia num juízo de.
prognose psiquiátrica que, naturalmente, tem sempre uma dose de falibilidade,
ao que acresce a existência de variados fármacos com potencialidades neutra-
lizadoras dessa perigosidade], pode haver necessidade, em nome da defesa
social, de manter o internamento do inimputável; só que, já não através da
prorrogação sucessiva da medida de segurança'[no caso, agora em questão, nãò
através da aplicação da medida de segurança mais longa prevista na lei poste-
rior à prática do facto ilícito típico], mas sim através de um internamento com-
pulsivo, com base na Lei de Saúde Mental (Lei n.° 36/98, de 24 de Julho).
Portanto, uma medida não criminál, mas administrativa, embora, evidentemente,
por decisão judicial, suportada pela avaliação clínica de, pelo menos, dois psi-
quiatras, nos termos da referida Lei de Saúde Mental.».
Só mais uma palavra: não deixa de ser estranho que Maria João Antunes
aceite e defenda esta infracção às exigências do princípio da legalidade (que, tanto
o art. 29." da CRP como o art. 2." do CP estendem também às medidas de
segurança), mesmo que — ao que parece — estejam em causa ilícitos típicos
não muito graves. Com efeito, escreve a Autora: «a medida de segurança não
é aplicável se o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática
deixar de o ser, por uma nova lei o eliminar do número das infracções, ainda
que haja decisão transitada em julgado; [mas] a medida de segurança a aplicar,
em concreto, determina-se pela lei vigente no momento da decisão». Em ter-
mos práticos, isto significa que, para esta Autora, a motivação do "entorse" ao
princípio da legalidade não é a preocupação social com a grande perigosidade
criminal de certos inimputáveis; pois que, mesmo estando em causa factos que
até podem ser descriminalizados Gogo, parece que é, doutrinalmente, irrele-
vante que a perigosidade criminal se refira a homicídios ou violações, ou
somente a furtos), ainda assim entende que a lei posterior à prática do ilícito
típico, que estabeleça uma medida de segurança mais grave, deve ser retroac-
tivamente aplicada — pois é de aplicação retroactiva que se trata. Ora, isto avo-
luma, ainda mais, a minha estranheza!
As razões de garantia do cidadão (seja imputável ou inimputável), funda-
mentadoras da consagração do princípio da legalidade são completamente incom-
patíveis com a aplicação de uma medida de segurança mais gravosa do que
18
274 1 ° Parte — O princípio da aplicação

aquela que estava prevista na lei vigente ao tempo da prática do ilícito típico pra-
ticado pelo inimputável.
As críticas, que, no texto transcrito há pouco, dirigi contra o disposto no
art. 30.°-2 da Constituição e no art. 92.°-3 do Código Penal, aplicam-se, por maio-
ria de razão, à posição defendida por Maria João Antunes. Ou seja: se o dis-
posto nestes artigos e números da CRP e do CP (possibilidade de sucessivas e
ilimitadas prorrogações de medidas de segurança, que não deixam de ser con-
sequências jurídico-criminais) parecem lesar princípios do Estado de Direito, já
a posição desta Autora parece-me claramente inconstitucional, porque violadora
do disposto na CRP, art. 29°, n. 4. Pois que me parece improcedente — tendo
na devida conta a garantia política que também assiste ao cidadão inimputável —
a tentativa de separar temporalmente os dois pressupostos da aplicação das
medidas de segurança.

4. Embora discordando da possibilidade de aplicação de medi-


das de segurança não privativas da liberdade (interdição de profis-
sões — CP, art. 100.°., l.-l." parte) a imputáveis — não vejo qual-
quer justificação ou vantagem político-criminal em qualificar tais
consequências jurídicas como medidas de segurança, em vez de penas
acessórias ou penas principais (310) — o certo é que tal problema não
afecta a matéria que nos ocupa. Também, aqui, se aplica integral-
mente o princípio da léi mais favorável.

C310) Penso que o interesse público e a prevenção especial não podem justi-
ficar por si a restrição de direitosflmdamentaisem que a «interdição de profissões»
se traduz. Tal interdição relativamente a imputáveis, deve assentar na censurabilidade
da perigosidade do infractor sob pena de instrumentalização da pessoa deste.
Não é pela simples mudança de nome (passagem do nome pena ao nome
medida de segurança) que tal interdição passará a ser, ético-juridicamente e polí-
tico-criminalmente, justificada.
— Para uma critica à desnecessidade político-criminal e artificialidade da con-
sagração de medidas de segurança não privativas da liberdade aplicáveis a imputá-
veis, ver o meu Direito Penal, vol. I (cit. na nota 71), p. 102 ss.
4.° CAPÍTULO
O CASO JULGADO PENAL E A APLICAÇÃO
RETROACTIVA DA LEI PENAL MAIS FAVORÁVEL
(CRP, ARTS. 29.°,N° 4-2." PARTE, 18°, N.° 2-2.a PARTE,
282.°, N.° 3, E 13.°, N.° l-2. a PARTE; CP, ART. 2.°,
N.° 4-2.a PARTE; CPP, ART. 371.°-A)

I. A SITUAÇÃO ANTERIOR A 15 DE SETEMBRO DE


2007, DATA DA ENTADA EM VIGOR DA ACTUAL
2.a PARTE DO N.° 4 DO ART. 2." DO CP, E DO
ART. 371.°-A DO CPP: inconstitucionalidade do limite do
caso julgado («salvo se este já tiver sido condenado por sen-
tença transitada em julgado» — redacção da 2.° parte do
n.° 4 do art. 2." do CP, antes da alteração vigente a partir
de 15 de Setembro de 2007) à aplicação retroactiva da lei
penal mais favorável (CRP, arts. 29.°, n.° 4-2.a parte, 18.°,
n.° 2-2."'parte, 282.°, n.° 3, e 13.°, n.° l-2. a parte)

A) Caso Julgado Penal, Ne Bis In. Idem e Proibição da


Retroactividade da Lei Penal: a ratio comum de garan-
tia política na origem da afirmação histórica destes prin-
cípios (Séc. XVHI-2 a metade)

1. Está, hoje, demonstrado que estes princípios foram des-


conhecidos do Estado Absoluto. Tal desconhecimento era a lógica
276 1 ° Parte — O princípio da aplicação

consequência de regimes em que os direitos individuais não tinham


a mínima consistência normativo-prática ( 3 n ).
Como refere EDUARDO CORREIA C312), a profunda investigação his-
tórica realizada por Rocco mostrou que o caso julgado penal, pese
embora algumas aparências de consagração, não se afirmou decidi-
damente senão com o Movimento Iluminista do séc. xvui, na linha da
progressiva afirmação da necessidade és garantia do cidadão face ao
«escandaloso princípio do plus amplement informé» de que tanto se
abusou, máxime nos absolutistas sécs. xvi-xvin, associado ao processo
de tipo inquisitório.

2. O princípio do caso julgado penal, na sua dimensão negativa


do ne bis in idem, afirmou-se, constitucionalmente, a partir dos fins
do séc. XVIII, e — tal como aconteceu com o princípio da irretroac-
tividade da lei penal — afirmou-se, desde então, com uma ratio de
garantia política do cidadão face à arbitrária perseguição penal.
Declarava a Constituição Francesa de 1791: «Tout homme
acquitté par un jury légal, ne peut plus être repris; ni accusé a raison
du même fait»; e, no Código Penal francês do mesmo ano, liá-se
(tít; vm, art. 3.°): «Tout particulier ainsi acquitté ne pourra plus être
repris ni accusé pour raison du même fait».
Com esta justificação de garantia da segurança individual, já,
em fins do séc. xvm, proclamava o projecto do Código Criminal de
313
MELLO FREIRE ( ), tít. LVI, § 5.°: «não se pode conhecer do crime que
uma vez foi punido por sentença que condenou o réu, na conformi-
dade da lei, ou que o absolveu na mesma conformidade». Por sua vez,
a Nova Reforma Judiciária de 1837, na sequência da Reforma Judi-
ciária de 1832 e com continuação na Novíssima Reforma Judiciária
de 1841, afirmava: sobre o mesmo crime e entre as mesmas pessoas
não será recebida, sob pena de nulidade, segunda querella».

( 3U ) Cf. supra, 1 ° cap., I.


( 3lz ) A Teoria do Concurso em Direito Criminal — I. unidade e pluralidade
de infracções — Et, caso julgado e poderes de cognição do juiz, Coimbra: Alme-
dina (1983), 302 e 381-4.
(313) Cf. nota 61.
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 277

3. Esta preocupação em garantir a segurança individual contra


a possível arbitrariedade judicial ou legislativa levou à absolutização
do caso julgado penal. Mas, como se intui e desde já se chama a
atenção, não se tratou de uma sacralização do caso julgado penal ao
serviço de um equívoco «prestígio dos tribunais» — como, por vezes,
hoje ainda se invoca (314) — mas sim de uma absolutização motivada
pela preocupação em constituir um travão de defesa do cidadão con-
tra a tentação de repetição arbitrária do julgamento.
Como se verá, de seguida, há, na realidade, uma conexão tem-
poral e teleológica entre o princípio do. caso julgado e o princípio
da proibição da retroactividade da lei penal (315). Assim, depois
de uma primeira fase em que, por uma compreensível motivação de
reacção contra a próxima-passada arbitrariedade persecutória penal, se
tende à absolutização do caso julgado, logo se lhe segue uma segunda
fase em que, ultrapassada aquela radical reacção inicial, se descobre
que a razão de garantia política ínsita no caso julgado e na sua exi-
gência negativa do princípio ne bis in idem nada têm contra a aplicação
retroactiva da lei penal favorável. Só foi necessário esperar o tempo
(2.a metade do séc. xix») em que a política criminal passou a deter-
minar a pena — respeitado o princípio da culpa e o postulado jurí-
dico-poMco da segurança individual — pelas necessidades preven-
tivo-geral e preventivo-especial, para que se consagrasse a cedência do
caso julgado à aplicação retroactiva da lei descriminalizadora e para
que se desenvolvesse o debate sobre as razões favoráveis à cedência
do mesmo caso julgado à aplicação retroactiva da lex mitior.

4. A história do direito penal português do séc. XIX é parti-


cularmente elucidativa sobre este processo de relativização do caso
julgado penal.
O Projecto de Código Penal da Nação Portuguesa (31S), de

(3M) "V. infra, n.° 7, n deste 4 ° cap.


è I S ) Cf. supra, 2 ° cap.', i, 1.
C316) Segundo BELEZA DOS SANTOS (n. 154), XLIX, este projecto, que foi ofe-
recido pelo autor, em 1833, esteve no esquecimento até 1836, tendo sido convertido
em lei por decreto de 14 de Janeiro de 1837, mas não chegou a entrar em vigor.
278 1 ° Parte — O princípio da aplicação

JOSÉ MANUEL DA VEIGA (Lisboa: Imprensa Nacional, 1 8 3 7 ) , estabe-


lecia nas disposições transitórias (cap. vn, art. ccçcLXXin): «Os réos
de todos os malefícios, comettidos antes da promulgaçam deste
Codigo, e que tem de ser sentenciados em l. a ou 2.a instância, ou em
instância re-começada, em consequência de concessam de revista,
serão punidos com as penas das leis anteriores, se as corresponden-
tes aos malefícios forem menores do que as deste Codigo: porém se
forem maiores, o serão com as do Codigo.
— Os que, ao tempo da promulgaçam deste Codigo, já estive-
rem condenados em penas maiores do que as que elle prescreve para
os respectivos malefícios, por setenças passadas em julgado, só tem
direito à Clemência do Poder Moderador».
O artigo seguinte, referindo-se às hipóteses ém que a lei nova
é descriminalizadora, estabelecia o seguinte: «Aos processados ou
condemnados por sentenças que ainda não tenham passado em jul-
gado, ao tempo da promulgaçam deste Codigo, em consequência
de factos ou omissões classificados malefícios nas leis anteriores, e
não contemplados como taes neste Codigo, nenhuma pena será
imposta;
— Se as sentenças tiverem passado em julgado, implorarão a
clemência do Poder Moderador» (317).
Comentário: 1." — (total) absolutização do caso julgado: lião só não
permite — contra o caso julgado — a aplicação retroactiva da lei penal
mais favorável, como nem sequer se admite — contra o caso julgado
— a retroactividade da lei descriminalizadora. 2." — Mas — como que
reconhecendo a injustiça da excepção absoluta do caso julgado —
recorre ao instituto da graça real. Esquecia-se — o que ao tempo ainda
se compreenderia, mas hoje não — que o perdão, a clemência, a cari-
dade é um mais em relação à justiça e não um substitutivo desta.
A mesma doutrina da absolutização do caso julgado foi consa-
grada no Código Penal de 1852. Estabeleceu o art. 70°: «Se, depois
de commettido o crime, a lei modificou a pena, será sempre imposta
a pena menor, posto que ao tempo da sentença esteja decretada pena

O"7) Itálicos meus.


4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 279

mais grave. § único: se, ao tempo da sentença, o facto não for pela
lei qualificado como crime, posto que o fosse pelas leis que existiam
ao tempo em que foi commettido, nenhuma pena será applicada».
Comentário: embora este artigo não refira expressamente o caso
julgado, a doutrina e a jurisprudência de então sempre entenderam
que este artigo estabelecia como limite à retroactividade, quer da lex
mitior quer da lei descriminalizadora, o trânsito em julgado da sentença
condenatória,

5. Como anota BRAGA DA CRUZ ( 3 1 8 ) , «O Código Penal de 1852,


promulgado em ditadura na base dum projecto concluído três
meses antes e que nem sequer chegara a ser devidamente revisto,
não agradara a ninguém». Assim, logo em 1853, foi nomeada uma
comissão para o rever.
LEVY MARIA JORDÃO vai, em função das suas novas concep-
ções poHtico-criminais (319), defender a cedência do caso julgado à
aplicação retroactiva da lex mitior. Se a função do caso julgado penal
era a de garantia política do condenado em não sofrer, mediante
novo julgamento, nova pena ou pena mais grave do que a aplicada
no julgamento, então a intangibilidade do caso julgado não se deve-
ria impor quando se tratasse da retroactividade da lei mais favorável,
pois que, aqui, o condenado não sofria qualquer risco, sendo, pelo con-
trário, favorecido.
Expressivamente, afirma JORDÃO ( 3 Z 0 ) : « A nossa geração não
tem por destino fatal moldar pelo passado as suas crenças e senti-
mentos, porque a humanidade não está condenada pela Providência
a assistir à reprodução perpétua dos mesmos phenomenos».
Na linha dos princípios polítio-criminais correccionalistas defen-
didos por JORDÃO, vai este, na qualidade de relator do Projecto de
Código Penal Portuguez de 1861, propor a seguinte redacção para o

í318) «O Movimento Abolicionista e a Abolição da Pena de Morte», in Pena


de Morte, n, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 503.
( m ) Cf. supra, 2.° cap., i, 2.
f 320 ) Codigo Penal Portuguez, t.I — Relatório da Comissão, Lisboa: Imprensa
Nacional (1861), 1.
280 1 ° Parte — O princípio da aplicação

artigo 1°: «A lei penal só comprehende os factos praticados depois


da sua publicação, salvas as excepções seguintes:
1.tt — Se ao tempo da publicação alguém estiver processado
por facto que, apesar de incriminado pela lei antiga, o não seja pela
nova, nenhuma pena será applicada.
2." — Se na lei nova o facto incriminado for punido com pena
mais leve, será esta applicada.
Havendo já condemnação em qualquer dos casos, uma decla-
ração do tribunal, que tiver proferido a ultima sentença, fará a
applicação da lei nova» (321).
Este projecto — que não chegou a ser convertido em lei —
consagrava, pois, a retroactividade da lei penal favorável (quer da lei
descriminalizadora quer da lex mitior), apesar do trânsito em jul-
gado da sentença condenatória.

6. O mais profundo debate sobre esta matéria da articulação


do princípio do caso julgado penal com o princípio da retroactivi-
dade da lei penal favorável ocorreu com a Nova Reforma Penal
de 1884, reforma que deu origem ao Código Penal de 1886. Ape-
sar de só ter ficado estabelecida a cedência do caso julgado penal à
aplicação retroactiva da lei despenalizadora (322), veremos como se
apresentam decisivos os consistentes argumentos invocados por JOSÉ
LUCIANO DE CASTRO em favor da retroactividade da lex mitior, mesmo
que já tenha transitado em julgado a sentença condenatória.
Diz o Relatório da Proposta da Reforma Penal de 1884 (323):
«Com estas modificações, a legislação sobre a retroactividade da lei
penal fica idêntica à italiana e mais ampla que a belga e da maioria
das nações cultas, conquanto mais restricta que a do Código hespa-
nhol. Este Código no artigo citado (324) estabelece o princípio de que

P 11 ) Itálico meu.
P 22 ) Cedência que, constituindo uma inovação face ao art. 70° do CP 1852
foi acolhida na excepção 1." do CP 1886.
P 23 ) In RU, n.° 902 (1885), 274.
P 24 ) Relativamente à evolução operada no direito espanhol, anóte-se que,
enquanto nos Códigos espanhóis de 1848 e de 1850, o caso julgado constituía um
limite à retroactividade da lei penal favorável, utilizando sintomaticamente, a
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 281

as leis penaes tenham effeito retroactivo na parte em que favorecem


os réos, ainda que estes já estejam condemnados por sentença passada
em julgado, mas não me parece que no estado actual da nossa legis-
lação essa doutrina possa e deva ter applicação ao nosso paiz com
tamanha latitude».
Comentário: 1.° — este excerto revela que os autores da proposta
estavam hesitantes na consagração ou não da ampla retroactividade
da lei penal favorável, incluindo, tal como o Código Espanhol, a
própria lex mitior — mesmo que já tivesse passado em julgado a
sentença condenatória; 2.° — não há, na ponderação dos argumentos
a favor da excepção de caso julgado, qualquer deslocada referência
à certeza jurídica — ao contrário do que, mesmo nos nossos dias, o
tem feito o STJ (325). Já se começava a ter a consciência de que,
sendo de garantia do cidadão e do delinquente a ratio do caso julgado
penal e não estando em causa na acção penal interesses particulares
mas sim a aplicação da pena considerada indispensável à defesa da
sociedade, não deveria o princípio ne bis in idem impedir a aplica-
ção retroactiva da lex mitior, A certeza jurídica, referida ao caso jul-
gado penal, não é um absoluto, mas deve ser perspectivada como
meio de garantir a segurança individual.
Só relativamente a decisões legislativas ou judiciais que afectem,
retroactivamente, esta segurança é que o caso julgado se afirma intan-
gível; 3.° — só dificuldades práticas — mais compreensíveis na
altura do que hoje, dada a grande heterogeneidade das penas de
então — fizeram com que não se consagrasse a cedência do caso
julgado penal à aplicação retroactiva da lei mais favorável.

expressão «santidade do caso julgado», já, a partir do Código de 1870 (art. 23.°,
cotxespondente ao art. 24." do Código Penal de 1944, o qual, após várias revisões,
foi substituído pelo actual Código Penal de 1995), ficou definitivamente consagrada
a aplicação retroactiva da lex mitior mesmo que já haja caso julgado. Assim, o
vigente Código Penal espanhol de 1995, que transferiu esta matéria da «aplicação
da lei penal no tempo» para o art. 2°, continua a proclamar no n.° 2 deste art. 2.°:
«As leis penais, que favoreçam o réu, terão efeito retroactivo, mesmo que ao
entrarem em vigor já haja sentença firme e o sujeito esteja a cumprir a conde-
nação».
C325) Cf. infra, 4, II deste 4." cap.
282 1 ° Parte — O princípio da aplicação

— De facto, na Comissão de Legislação da Câmara dos Depu-


tados, vieram ao de cima, pela voz de LUCIANO DE CASTRO, as
justas e convincentes razões a favor da retroactividade da lex
mitior, mesmo que já tenha transitado em julgado a sentença con-
denatória.
Propôs LUCIANO DE CASTRO que se acrescentasse ao art. 1.°
da Proposta da Reforma Penal — que veio a ser o art. 6.° do
CP 1886 — o seguinte: «Tendo havido condemnação passada em jul-
gado, será applicável a pena mais leve em relação à sua espécie ou
duração estabelecida na lei posterior para a infracção definida na
sentença».
Esta proposta foi rejeitada por LOPO VAZ (Ministro da Justiça)
e por FREDERICO AROUCA, tendo o primeiro levantado como objecções
as dificuldades de ordem prática e o argumento da igualdade de tra-
tamento.
Eis a válida contra-argumentação de LUCIANO DE CASTRO,
segundo o relato de Henriques da Silva (326): «O Sr. Luciano de
Castro defendeu a sua proposta, dizendo que o princípio que manda
applicar a pena mais leve é um princípio de justiça e, portanto,
devia abranger tanto os que fossem julgados de novo como os que
já estivessem definitivamente condenados.
Seria de facto uma flagrante desigualdade se, por uma simples
demora no processo, dois crimes idênticos, praticados na mesma oca-
sião, tivessem de ser castigados com penas diferentes.
Quanto à objecção 2.a, de aproveitar o benefício só a um por ter
já o outro expiado a pena, responde o Sr. José Luciano que ê melhor
applicar-se só a um do que a nenhum.
Se dois criminosos fossem condenados à morte e, depois de
decapitado um delles, viesse uma lei substituir a pena de morte,
acaso se havia também de decapitar o sobrevivente pela simples
razão de o outro o ter sido?
É verdade que há o poder moderador para perdoar ou commu-
tar as penas, mas o poder moderador pode exercer-se em relação a

(326) Sociologia... (n. 66), 133-44.


4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 283

certos réus mas não a uma classe inteira de criminosos, além de que
neste caso não se trata de favor, mas de justiça» (327).

7. Aderindo à doutrina e às razões invocadas por Luciano de


Castro, correctamente observa HENRIQUES DA SILVA que a aplicação
retroactiva da lei penal favorável — seja lei descriminalizadora seja
lex mitior — «longe de atacar o caso julgado, confirmava-o pois
reconhecia a sua existência na questão-de-facto».
Salientando, de novo, o argumento da justiça relativa, referia
HENRIQUES DA SILVA ( 3 Z 8 ): «a excepção do artigo 6." (refere-se à
ressalva do caso julgado estabelecida na excepção 2.a do referido
art, 6 ° do CP 1886) creou no nosso systema penal um dualismo
repugnante, diz a circular de 19 de Junho de 1886, quando não à jus-
t i ç a absoluta, sem a mínima dúvida à justiça relativa e à equidade».
Precisamente para atenuar tão flagrantes injustiças, o decreto de 4 de
Junho de 1886, «aproveitando a ocasião para solenizar o casamento
do então príncipe real D. Carlos, foram comutadas várias penas».

8. BELEZA DOS SANTOS (329), criticando a doutrina de que «o


acessório segue o principal» (33°), afirmava: «o que levou os seus
defensores a adoptá-la foi apenas ofetichismo do respeito ao caso jul-
gado, como se êle fosse um tabú, e como se não houvesse casos em
que, por lei expressa, uma sentença com trânsito em julgado se
devesse reformar».
«O caso julgado não pode impedir a execução integral de uma
lei, nem importar uma ampliação ilegítima do seu domínio de apli-
cação. Quando existe uma sentença que encontra na sua execução

C327) Itálicos meus.


P2B) Sociologia... (n. 66), 142.
C329) «Anotação aos Acórdãos da RC, de 3 de Fevereiro de 1932, e do STJ,
de 24 de Maio de 1932», in RU, n,° 2462, ano 65 (1932), 91 e 95.
P 30 ) Doutrina que levava a que, na hipótese de condenação transitada em
julgado por concurso de crimes, só se aplicasse uma eventual lei de amnistia, se esta
se referisse ao crime mais grave. Neste caso extinguir-se-ia toda a pena; caso con-
trário, a lei de amnistia não se aplicava permanecendo intocada a pena do concurso
de crimes.
284 1 ° Parte — O princípio da aplicação

uma lei por força da qual tem de ser modificada, o que há afazer
é reformá-la, levantando o incidente na respectiva execução...
A intangibilidade do caso julgado tem de ceder, quando a aplicação
da lei a isso obriga».

B) Doutrina Actual: Caso Julgado Penal e Caso Julgado


Civil; Recusa da Acrítica Perspectiva Pancivilística do
Caso Julgado

1. A doutrina actual, na linha da evolução histórica do caso


julgado penal desde fins do séc. xvin, também não deixa de acentuar
que a sua ratio, o seu fundamento dinamizador é a garantia política,
a segurança jurídico-penal individual face ao ius puniendi do Estado.
Foi esta, e só esta razão que levou a que, desde os primórdios do
Estado-de-Direito ( 331 ), o princípio ne bis in idem fosse consagrado
constitucionalmente.
Proibição de duplo julgamento (CRP, art. 29.°, 5.) no sentido de
proibição de dupla punição pela prática do mesmo crime, eis um
direito e uma garantia fundamental do cidadão, lado a lado com
outros direitos individuais fundamentais tutelados constitucionalmente,
como o da máxima restrição da pena (CRP, art. 18.°, 2.-2.a) (332) e
o correspondente e consequente direito à aplicação retroactiva da lei
penal mais favorável (CRP, art. 29.°, 4.-2.a parte).

Como anotam G O M E S CANOTILHO e V I T A L M O R E I R A ( 333 ), «o n.° 5 [do


art. 2 9 ° da CRP] dá dignidade constitucional ao clássico princípio non bis in

(331) Cf. supra, n.° 2,1 deste 4 ° cap.


(33z) Cf. supra, 2." cap., n, 2.
í333) Constituição da República Portuguesa — Anotada, 2." ed., Coimbra;
Coimbra Editora (1984), l.°-v., ahot. vi ao art. 29°; CRP -Constituição da Repú-
blica Portuguesa (Anotada), I, Coimbra Editora, 2007, anot. XI. ao art. 29°: «O n.° 5
dá dignidade constitucional ao clássico princípio non bis in idem. [...] garante
ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, [...]
A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização,
mas é óbvio que a proibição de duplo julgamento pretende evitar tanto a condena-
ção de quem já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção,
como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 285

idem... Como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de


não ser julgado mais que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo
tempo, a possibilidade de se defender, contra actos estaduais violadores deste
direito... A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a
dupla penalização, mas parece óbvio que a proibição do duplo julgamento pre-
tende evitar a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do
mesmo crime».
Assim, p. e., a Constituição alemã federal (GG, art. 103-m) refere direc-
tamente a proibição da dupla punição. PHILIP KUNIG Ç334) diz que «O art. 103-ui,
tal como o art. 103-n [proibição da retroactividade da lei penal] é um direito de
protecção (Abwehrrecht) frente ao Estado».
33S
NOVELLA GALANTINI ( ): a ratio do ne bis in idem é «subtrair o indi-
víduo a uma ilimitada e porventura arbitrária perseguição penal». Por sua vez,
336
GIOVANNI CONSO/RAFAELE GUARINIELLO ( ) ilustram este fundamento teleo-
lógico do ne bis idem com o art. 579.° do CPP italiano então vigente que dis-
ipunha o seguinte: na hipótese do ne bis in idem não ter sido respeitado, não
se aplicará, necessariamente, a primeira sentença transitada em julgado, mas
sim a mais favorável ao condenado. Donde se vê que a ratio do caso julgado
penal, na sua vertente da proibição de duplo julgamento, é a tutela do cida-
dão-arguido, pois que se fosse a certeza jurídica considerada como uma cate-
goria abstracta ou a absoluta intangibilidade do caso julgado penal, a solução
tèria de ser a da inexistência jurídica da sentença posterior, mesmo que mais
favorável.

2. Não foi nem é a certeza jurídica formal, isto é, a certeza


jurídica por si mesma ou como valor autónomo que está na origem
da consagração constitucional do princípio ne bis in idem; a cer-
teza jurídica consubstanciada no caso julgado penal não se afirma
como absoluto, mas sim como forma, como meio ao serviço da
segurança individual, como uma exigência da justiça penal ou, por

crime». Também, no mesmo sentido, JORGE MIRANDA — Rui MEDEIROS, Consti-


tuição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, anot. X ao art. 29° — cfr„ tam-
bém, RODRIGUES MAXIMIANO, Aplicação da Lei Penal no Tempo e Caso Julgado,
in BMP, v. 13 (1983), 30-6.
(W) Grundgesetz... (n. 5), 685.
C335) «II Divieto di Doppio Processo come Diritto delia Persona», in RIDPP,
xxtv (1981), 97-8.
P36) «L'Autorità delia Cosa Giudicata Penale», in RIDPP, xvm (1975), 45.
Ainda, p. e., M . LEONE (n. 129), 46-n. 73, e COBO ROSAI/VIVES ANTON (n. 86), 175.
286 1 ° Parte — O princípio da aplicação

outras palavras, como prevenção da arbitrariedade punitiva.


Trata-se — utilizando a expressão de CASTANHEIRA NEVES C337) — de
uma «certeza jurídica material». Isto é, a certeza jurídico-penal, que
o caso julgado (penal) traduz, só se afirma como valor constitucio-
nal, através da proibição de novo julgamento, enquanto e na medida
em que constitua uma protecção do arguido, uma garantia política dos
direitos fundamentais da pessoa.
Çomo gárantia do cidadão face ao poder punitivo estadual, nunca
o caso julgado pode constituir impedimento à concretização de man-
datos constitucionais que — tal como o princípio ne bis in idem —
visam a protecção dos direitos fundamentais, como é o caso da máxima
restrição da pena, isto é, da aplicação somente do quantum da pena
tido, político-criminalmente, como indispensável para a tutela dos
bens jurídicos fundamentais (CRP, art. 18.°, 2.), Seria, deste modo, con-
traditório com a ratio do ne bis in idem, com o favor libertatis que ele
também persegue, seria contraditório, dizia, invocar o caso julgado para
obstar à aplicação de uma lei penal mais favorável. Uma tal invo-
cação constituiria uma inversão normativo-consti-tucional: equivaleria
a erigir um meio em Sm de si mesmo e a subalternizar o fim «justiça
político-criminal» àquele meio «certeza jurídica do caso julgado».

3. Pode dizer-se que, mesmo que não houvesse a imposição


constitucional expressa da aplicação retroactiva da lex mitior, tenha
ou não transitado em julgado a sentença penal condenatória (CRP,
art. 29°, 4.-2.a parte), sempre o caso julgado penal deveria ceder à
retroactividade da lei mais favorável (338).
Em conclusão: o caso julgado em si mesmo, isto é, enquanto
certeza jurídica, independentemente da sua dimensão de garan-
tia jurídico-penal, não tem dignidade constitucional; quando é
assumido constitucionalmente (CRP, art. 29.°, 5.), é-o na função
de garantia jurídico-penal do cidadão, razão pela qual nunca
conflitua com o princípio da aplicação retroactiva da lei penal

(337) O Instituto dos «Assentos» e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais,


Coimbra: Coimbra Editora (1983), 39.
(33S) Cf. supra, 2." cap., ir e IH.
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 287

mais favorável (CRP, art. 29.°, 4.-2." parte). Donde a conclusão


final de que a excepção do caso julgado, constante da parte final
do n.° 4 do art. 2.° do Código Penal, é inconstitucional.
Não estabelecendo a referida disposição constitucional (art. 29.°,
4.-2.° parte) — aliás na sequência coerente do princípio (favor liber-
tatis) consagrado pelo mesmo texto constitucional (art. 18.°, 2.) (339) —
qualquer limite à eficácia retroactiva da lex mitior, não pode o legis-
lador ordinário vir estabelecê-lo, como o fez na citada disposição do
Código Penal (340).
É, por outro lado, manifesta a impossibilidade metodológica de
interpretar restritivamente (ficcionar um limite) o preceito constitu-
cional referido (art. 29.°, 4.-2.= parte), pois que, tratando-se de uma
norma que visa a protecção de direitos fundamentais, como, por
exemplo e de forma especial, a liberdade, é ilegítima qualquer ten-
tativa de restrição do âmbito da sua eficácia (341).
Este entendimento, que é por si líquido e suficiente, é — como
veremos — ainda reforçado por outros argumentos e disposições
constitucionais.

4. O STJ não tem, pois, razão, quando declara (342) que «a intan-
gibilidade do caso julgado é princípio constitucional em vigor»; erra,

(339) Tendo em conta toda a argumentação, que venho desenvolvendo e que


ainda se desenvolverá, só uma precipitada ou incompleta leitura do que escrevi na
1." ed. — e na 2." mantive, tal como continuo a afirmar — poderá ter levado FIGUEI-
REDO DIAS/COSTA ANDRADE (Direito Penal, 1996, p. 189) a dizerem que a minha afir-
maçBo de que o limite do caso julgado é inconstitucional resulta da circunstância de tal
limite ou «restrição não constar do art. 29." 4, última parte, da CRP». — À frente,
indicarei como, pelo contrário, os breves argumentos invocados por estes Autores,
em favor de tal limite, é que são inconsistentes.
Í 3 4 0 ) Assim, também GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (n. 3 3 3 ) , 1." v.,
anot. II ao art. 29.°, os Mesmos, CRP (cit. na nota 333), anot. VH ao art. 29.°;
TERESA PIZARRO BELEZA ( n . 8 6 ) , 4 5 5 ; RODRIGUES MAXIMIANO
(n. 3 3 3 ) ; Rui PEREIRA, «A relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo
mais favorável» in RPCC ( 1 9 9 1 ) , 5 8 ss.; J . LOBO MOUTINHO, «Aplicação da lei
penal no tempo segundo o direito português», in DJ ( 1 9 9 4 ) , 1 0 1 ss.
P41) Cf. bibliografia referida em nota 127.
P4Z) Acórdão do STJ, de 10 de Julho de 1984, in BMJ, n.° 339 (1984-Outu-
bro), 353-5.
288 1 ° Parte — O princípio da aplicação

quando fundamenta essa suposta dignidade constitucional no n.° 5 do


art. 29.° da Constituição (343); equivoca-se, quando aduz razões de
estabilidade, de certeza e de paz social («ninguém podia estar seguro
e tranquilo; a vida social, em vez de assentar sobre uma base de segu-
rança e de certeza, ofereceria o aspecto da insegurança, da inquietação,
da anarquia»), para, indiscriminadamente, justificar o caso julgado tout
court, esquecendo-se de que há .uma iniludível distinção entre caso
julgado penal (mais amplamente: caso julgado público sancionatório)
e caso julgado civil (mais amplamente: caso julgado administrativo,
laboral, civil, etc.), sendo as razões àduzidas pertinentes, mas para o caso
julgado civil (ou de questões análogas, sob o aspecto que nos ocupa).
Realmente, não tem o menor cabimento falar de «insegurança»,
«anarquia», «inquietação» a propósito da reforma de uma sentença,
posto que transitada em julgado, quando o que está em causa é
somente a re-determinação da pena concreta por força da entrada
em vigor de uma lei penal mais favorável.
O que, então, não se haveria de dizer nos casos de extinção da
pena por descriminalização da conduta (344) ou por amnistia?! ( 34s ).

5. Se, prima facie, pareceria desnecessário apelar à distinção


entre caso julgado penal e caso julgado civil, verifica-sé que, afi-

(343) No sentido da não constitucionalidade da intangibilidade do caso jul-


gado penal, também TERESA P . BELEZA (n. 8 6 ) , 1 0 6 ss.; RODRIGUES MAXIMIANO
( n . 3 3 3 ) , 1 6 s s . ; R u i PEREIRA ( n . 3 4 0 ) , 5 8 s s .
(344) Quando não resulta de uma pura e simples revogação da norma erimi-
nalizadora, mas nos (frequentes) casos em que a descriminalização da conduta con-
creta deriva da alteração de elementos essenciais do tipo legal de crime (cf. supra,
IH do 3." cap. desta 1." Parte. — Assim, como bem observa J. LOBO MOUTINHO
(n. 340), p. 109), o argumento verdadeiramente subjacente à posição dos defenso-
res da ressalva do caso julgado (argumento que, dada a sua debilidade, iião têm, no
geral, coragem para o afirmar expressamente), e que é o da multiplicação do trabalho
judicial tem, mesmo em teimos práticos, menos peso do que parece. Isto, desde que
— é claro... — os tribunais cumpram, efectivamente, a exigência da aplicação
retroactiva da lei despenalizadoia (por alteração dos elementos essenciais do tipo legal
de crime) aos que cumprem pena por sentença já transitada, como o impõe o n.° 2
do art. 2 ° do CP.
P45) No caso de condenação em pena unitária por concurso de crimes. — Cf.
nota 330.
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 289

nal, assim não é. Existe, de facto, uma reducionista e recusável


perspectiva pancivilística do caso julgado. Esta perspectiva esquece
a evidente autonomia existente entre o caso julgado penal e o caso
julgado civil, autonomia que está relacionada e dependente da espe-
cificidade dos pressupostos, da natureza e dos fins de cada uma des-
tas categorias de responsabilidade jurídica.
Todo o sistema penal dos tempos modernos (dos últimos duzen-
tos. anos) nos patenteia esta distinção. Com efeito, e sem qualquer
preocupação de ordenação sistemática: a amnistia não extingue a res-
ponsabilidade civil, mas sim a penal; a libertação condicional não
é uma faculdade, nem um perdão ou um favor, mas sim — verifi-
cados os respectivos pressupostos — uma exigência ou dever-ser
poHtiço-criminal; a prescrição em processo civil estrutura-se, nos res-
pectivos pressupostos, de forma a respeitar as legítimas expectati-
vas do lesado — titular do direito de acção —, já não assim no
procedimento criminal, onde o encurtamento dos prazos pode deter-
minar, com surpresa para o ofendido, a impossibilidade de este
desencadear a acção penal Ç34S); a lei que tenha descriminalizado
uma conduta, deixou, contudo, intocada a responsabilidade civil
que da mesma conduta, enquanto ilícito civil, tenha derivado; se a
pena se traduz num mal — conquanto político-criminalmente neces-
sário —, já o cumprimento da responsabilidade civil (reconstituição
específica, indemnização ou compensação) constitui um bem para
o lesado-credor; no processo civil — «processo de partes» — defi-
nem-se direitos subjectivos e interesses juridicamente protegidos,
sendo a certeza jurídica do. respectivo caso julgado fundamento de
expectativas legítimas, condição de planificação e indispensável à
vida de relação jurídico-económica e à paz social, já, no processo
penal, o Estado não tem um direito subjectivo a aplicar a pena,
nem o réu um dever jurídico de a suportar, tratando-se, sim, de, de
acordo com os princípios político-criminais, aplicar a pena consi-
derada indispensável, sob o aspecto preventivo, e respeitadora do
princípio ético da culpa, pena cujo cumprimento integral, ou não,

(3"6) V. infra, 2.a Parte, 1° cap., i.


19
290 1 ° Parte — O princípio da aplicação

vai depender de múltiplos factores (p. e., amnistia, indulto, liberdade


condicional) ( 347 ).
Consequência: embora seja, humana e juridicamente, indis-
pensável que um processo — seja qual for a natureza da questão em
causa — tenha um termo definitivo (caso julgado), compreende-se,
todavia e por tudo o que se acabou de ilustrar, que a intangibilidade
do caso julgado civil (e análogos) se afirme de forma quase abso-
luta, e que.a intangibilidade-regra do caso julgado penal ceda a
várias excepções. E a razão é a seguinte: enquanto no caso jul-
gado civil, o valor certeza jurídica é uma exigência da própria jus-
tiça, podendo quase dizer-se que a «certeza jurídica formal» é o
modo humanamente possível da «certeza jurídica material», já, no
caso julgado penal, a-certeza jurídica, devido à natureza específica
da responsabilidade penal, já não coenvolve em si tão necessariamente
o valor da justiça. Assim, embora, em princípio, o caso julgado
penal encerre definitivamente a questão pública da responsabilidade
penal, são possíveis em maior número — e disto o direito positivo
nos dá abundantes provas — as situações em que a afirmação, a
todo o custo, da certeza jurídica formal do caso julgado penal sig-
nificaria uma, humanamente desnecessária e juridicamente infunda-
mentada, injustiça material.
Manifestação-afloramento da relatividade do caso julgado penal
por contraposição à quase absoluta intangibilidade do caso julgado
civil nos dá a própria Constituição (art. 282°, n.° 3), quando, na
hipótese de declaração de inconstitucionalidade de uma lei, distingue
entre caso julgado em geral e caso julgado penal (disciplinar ou de
mera ordenação social) (348): no primeiro caso, fica sempre ressalvado
o caso julgado; já no segundo, pode o Tribunal Constitucional decla-
rar a cedência do caso julgado, desde que a norma declarada incons-

í347) Neste sentido e sobre ainda outros aspectos da diferença material entre
caso julgado penal e caso julgado civil, J . LOBO MOUTINHO (n. 3 4 0 ) , 1 0 8 .
C348) Como já o referimos (cf. supra, p. 147 s., o legislador, através do
Dec.-Lei n.° 244/95, de 14-9, aboliu o limite do caso julgado à aplicação retroactiva
de uma lei contra-ordenacional mais favorável (Dec.-Lei n.° 433/82, art. 3°, n.° 2,
parte final: «e já executada»).
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 291

titucional — que fundamentou a decisão transitada em julgado — seja


menos favorável ao arguido (349).
Analogamente se passam as coisas quanto aos fundamentos da
revisão das sentenças que são mais limitadas no caso julgado civil que
no caso julgado penal, tratando-se de revisão in melius.

6. Esta distinção entre caso julgado penal e caso julgado civil


— em correlação com a distinção entre responsabilidade penal e res-
ponsabilidade civil — e consequente recusa da acrítica perspectiva
pancivilística do caso julgado encontra-se, abundantemente, referida
na doutrina.
A propósito da relação dialéctica entre certeza jurídica, segu-
rança jurídico-individual e justiça, e da resolução das eventuais anti-
nomias entre estas entidades normativas, adverte CASTANHEIRA
NEVES ( 3 S 0 ) : «as intenções normativas da certeza do direito podem
ser função das específicas intencionalidàdes dos domínios jurídicos
em que ela releve»... Mesmo em institutos onde a intenção ime-
diata e, por isso, mais visível é a certeza, «esta haveria de ceder
sempre que concretamente se mostrasse um obstáculo flagrante e
irredutível ao acerto ou justiça da solução jurídica». Como observa
TIEDEMANN ( 3 5 1 ) , o caso julgado só tem sentido quando a certeza
quê ele pretende servir fòr ainda uma forma de realização da justiça
e não uma'forma de violação frontal do princípio da justiça relativa.
Podemos demonstíar a justeza desta asserção com o problema da
justa intangibilidade do caso júlgado civil (ou análogo) face à entrada
em vigor de uma nova lei civil que estabeleça uma mais justa solu-
ção do conflito de interesses já definitivamente resolvido por con-
traposição com a justa cedência do caso julgado penal face à entrada
em vigor, durante a execução da pena, de uma lex mitior. Na ver-
dade, a retroactividade da lei civil, posto que consagrasse uma mais

C349) Sobre os efeitos da declaração de inéonstitucionálidade de uma norma


penal, v. 3." Parte da 2." edição.
C350) O Instituto... (n. 337), 35-n. 81, 38; cf„ também, 119.
(351) «Die Áuslegung des Strafprozefirechts», in Wahrheit und Gerechtigkeit
im Strafverfahren — Festgabe fur K. Peters, Heidelberg (1984), 136-7.
292 1 ° Parte — O princípio da aplicação

justa solução para o conflito de interesses já definitivamente decidido


(caso julgado), constituiria uma injustiça concreta, na medida em
que afectava direitos adquiridos, planificações da vida de relação e
legítimas expectativas da parte vencedora do litígio; com rigor se
pode afirmar que a certeza jurídica absoluta resultante da intangibi-
lidade do caso julgado civil é, em princípio, não apenas uma
forma-exigência da segurança jurídica individual mas também uma
verdadeira manifestação-concretização da justiça material, isto é, da
justiça humanamente possível. Diferentemente, como é evidente, se
passam as coisas na retroactividade da lei penal mais favorável: aqui,
a cedência do caso julgado, para aplicação da lex mitior, não afecta
quaisquer direitos adquiridos, quaisquer planificações da vida ou
quaisquer legítimas expectativas, pois que seria absurdo e polí-
tico-criminalmente insuportável dizer-se que o caso julgado penal
condenatório criou direitos adquiridos ou fundamentou planificações
ou expectativas legítimas no Estado ou no assistente (ofendido ou seu
representante) quanto ao cumprimento integral da sentença conde-
natória transitada em julgado.
Repare-se no pormenor de que se, em direito penal, se fala em
lei mais favorável, já o mesmo não se pode dizer em direito civil: é
que, no primeiro caso, a lei, sendo mais favorável ao infractor, não
é, todavia, prejudicial ao Estado, titular da acção penal; já, no segundo
— num processo de partes —, se a lei é mais favorável a um dos liti-
gantes, necessariamente é mais desfavorável ao outro.

7. Sobre a autonomia e distinção do caso julgado penal face ao


caso julgado civil e a recusa da abusiva e acrítica concepção panci-
vilística do caso julgado penal, concepção que suponho estar na ori-
gem da absolutização que o STJ faz do caso julgado penal — abso-
lutização que BELEZA DOS SANTOS apelida ásfetichismo e tabu (352),
EDUARDO CORREIA denuncia como conceito apriorístico ( 3 S 3), CAVA-
LEIRO DE FERREIRA critica como recepção indiscriminada de concei-

P 52 ) Cf. supra, n.° 8,1 deste 4 ° cap.


P 53 ) Teoria... (n. 312), 301.
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 293

tos... da doutrina processual civil ( 3 5 4 ) , MOHRBOTTER qualifica de


dogma (355) e ROSALBA NORMANDO de sacralização incompreensível
nos regimes democráticos dos nossos dias (356) — vejamos o que nos
diz a doutrina jurídicorpenal.
Como já referimos (357) — mas vale a pena repetir, pois se as pala-
vras que se seguem são válidas para uma lei de clemência, por maio-
ria de razão o hão-de ser para a lei de justiça político-criminal —,
afirmava BELEZA DOS SANTOS: «Quando-existe uma sentença (penal)
que encontra na sua execução uma lei por força da qual tem de ser
modificada, o que há a fazer é reformá-la, levantando o incidente
na respectiva execução. A intangibilidade do caso julgado tem de
ceder, quando a aplicação da lei a isso obriga».
35B
CAVALEIRO DE FERREIRA ( ), partindo da natureza pessoal dos
bens afectados pela condenação penal e pela ratio de garantia do
caso julgado penal, escreve: «com mais frequência do que seria dese-
jável, a jurisprudência tem defendido, afincadamente, a estabilidade
das decisões judiciais em processo penal, com indevida postergação
do interesse concreto da justiça, para salvaguardar o valor daquelas
decisões independentemente da sua justificação, como se a manu-
tenção de um valor jurídico se confundisse com o prestígio funcio-
nal de órgãos criadores de direito autónomo... Em matéria penal, a
pena consiste na restrição de direitos naturais, por isso exige a jus-
tiça que esses mesmos direitos não sejam perturbados injustificada-
mente... É por isso que em processo penal desapareceram todas as
limitações' à definitividade do caso julgado das sentenças absolutórias,
vedando-se mesmo a eventualidade da revisão, na generalidade dos
casos... Ao invés, quanto às sentenças condenatórias, a revisão é
admitida com largueza superior à que foi gizada em processo civil.

P 54 ) Curso... (n. 11), 1.° v„ 17.


P55) Garantiefunktion... (n. 130), 923.
(356) «Limiti alia Revisione e Intangibilità dei Giudicato), in R1DPP, xxix
(1986), 821; v., ainda, 804-5, 825-7, 831-2 e 854-6. — Cf. supra, n.° 3, I deste
4.° cap.
P 57 ) Cf. supra, n.° 8,1 deste cap.
P 58 ) Curso... (n. 11), 2.° v„ 26.
294 1 ° Parte — O princípio da aplicação

A descoberta da verdade material cede em regra perante o trânsito em


julgado das sentenças absolutórias, para não tornar perpetuamente
inseguros os direitos individuais».
Como veremos — e já HENRIQUES DA S I L V A O percebia ( 359 ) — o que
apenas está em causa, na aplicação retroactiva da lex mitior, é a redetermina-
ção da pena concreta com fundamento na nova lei, permanecendo intacta a
resolução da questão-de-facto e da questão-de-direito, excepto quanto ao refe-
rido problema da determinação concreta da pena. Repare-se que mesmo as
circunstâncias relevantes para esta redeterminação se mantêm, em regra, inal-
teradas, tal qual foram definidas na sentença transitada em julgado.
Vê-se, assim, que seria descabida a eventual invocação — o que, efec-
tivamente a jurisprudência não tem feito — do argumento do prestígio dos tri-
bunais para avalizar a intangibilidade do caso julgado, pois que, a ter algum
valor, tal argumento só o teria se a alteração da sentença se baseasse na
mesma lei. •
— Aproveite-se, contudo, para dizer que este argumento tem um redu-
zíssimo-valor ou talvez seja mesmo um pseudo-argumento, visto que o prestí-
gio dos tribunais — efectivamente co-determinante do prestígio do Direito —
depende da justiça das suas decisões e não de autocráticas re-afirmações de deci-
sões injustas.
No sentido de prevenir uma dinâmica autoritária da trilogia caso julgado
penal — prestígio dos tribunais — sacralização do caso julgado penal, são
válidas as contundentes palavras de GIOVANNI CONSO/RAFAELE G U A R M E L L O C 3 6 0 ):
«Nos regimes de cariz autoritário nas relações Estado-cidadão, atribui-se à sen-
tença penal um carácter de inviolável sacralidade, em homenagem à exigência
de assegurar, a todo o custo, o máximo prestígio a uma instituição fundamen-
tal como é a justiça penal»... Nesta concepção de Estado, «a ideia do caso jul-
gado transfonna-se: de princípio de tutela dos cidadãos contra as instituições esta-
tais regride a princípio de tutela das instituições estatais mesmo à custa da
negação das razões individuais dos cidadãos. De facto, já não se trata de pro-
teger o cidadão contra uma possibilidade ilimitada de perseguições penais, mas
sim de garantir a credibilidade dos órgãos repressivos sob o manto de uma.
incontestável correcção».

Como adverte CAVALEIRO DE FERREIRA (36x), «há que usar de


muita cautela na recepção indiscriminada de conceitos, mesmo de

(3S9) Cf. supra, n.° 7, i deste 4 ° cap.


C3™) «L'Autorità...» (n. 336), 47.
C3") Curso... (n. 11), 1." v., 17-8; c£., também, 26.
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 295

carácter muito genérico, da doutrina processual civil... Não podem


transladar-se para o processo penal conceitos delineados em função
do processo civil». Foi também esta consciência jurídica crítica,
isto é, que sabe discernir as racionalidades específicas de cada ramo
do direito, que levou EDUARDO CORREIA — partindo da dupla cons-
ciência de que, por um lado, no processo civil estão em causa inte-
resses privados e no processo penal trata-se da pretensão punitiva
que é de natureza pública, e, por outro lado, o caso julgado penal não
pode reconduzir-se a uma pura categoria ou a um conceito apriorís-
tico da ciência do direito criminal — a recusar a sugestão feita, em
sede de comissão da revisão do Anteprojecto do Código Penal (362),
pelo então Ministro da Justiça (o civilista Antunes Varela) no sentido
de aplicar ao direito penal a doutrina do direito civil sobre sucessão
de leis que alteram os prazos de prescrição ( 363 ).
Refira-se, por último, MAURO LEONE ( 3 6 4 ) que afirma, correcta-
mente, que o caso julgado civil, tal como a irretroactividade da lei não
penal (mais amplamente: lei que não pertença ao direito público san-
cionatório (365)), está ligado à certeza jurídica e à teoria dos direitos
adquiridos, teoria que não vale para o direito penal pois que nem o
Estado tem um direito subjectivo a punir nem o réu um dever jurí-
dico de suportar a pena ( 35s ).

8. A argumentação aduzida pelo STJ, para fundamentar a


suposta intangibilidade do caso julgado penal ( 367 ), revela que,
precisamente, este Supremo Tribunal esquece a irrecusável auto-
nomia e especificidade do caso julgado penal, tratando-o como se
de caso julgado civil se tratasse. Na verdade, confrontando os fun-

P») Cf. Acta da 4." sessão, in BMJ, 141,138-9.


p 63 ) Sobre esta matéria, v., infra, 2." Parte, 1." cap., n, e 2." cap., II.
p") II Diritto... (n. 129), 46-n. 73.
P6S) Cf. supra, nota 348.
P G S ) Sobre a autonomia do caso julgado penal, cf., ainda, CASTANHEIRA NEVES
(n. 337), 56-n. 116, e Sumários de Processo Criminal — policopiado — Coimbra
(1967-8), 201-2; VALENTIN CORTÊS DOMINGUEZ, La Cosa Juzgada Penal, Bolonia:
Real Colégio de Espana (1975), 110-6.
P N ) Cf. supra, n.° 4 desta sec. u.
296 1 ° Parte — O princípio da aplicação

damentos invocados pelo STJ (necessidade de segurança, certeza,


tranquilidade) com os fundamentos invocados pela doutrina jurC-
dico-civil — obviamente para o caso julgado civil parece legí-
timo pensar que é esta errada concepção civilística do caso jul-
gado penal que determina o STJ a falar da intangibilidade do caso
julgado penal.

Afirma M A N U E L D E A N D R A D E P 6 8 ) : «Seria intolerável que cada um nem ao


menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu; que nem
sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta base organizando os seus pla-
nos de vida». O caso julgado material civil resulta de que «por uma funda-
mental exigência de segurança, a lei atribui força vinculante infirangível ao acto
de vontade do juiz que definiu em dados termos certa relação jurídica e, por-
tanto, os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos» ( 369 ).
ANTONES VARELA/MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E N O R A P 7 0 ) : « O caso julgado,
tornando a decisão em princípio imodificável, visa exactamente garantir aos
particulares o mínimo de certeza do Direito ou de segurança jurídica indispen-
sável à vida de relação».

C) O Princípio da Igualdade (CRP, Art. 13.°, N.° 1-2."


Parte): A Ressalva do Caso Julgado Penal (CP, Art. 2.°,
N.° 4-Parte Final) como Fonte de Injustiça Material
Relativa e de Desigualdades Evitáveis na Aplicação da
Lei Penal Mais Favorável

1. Apesar de, em minha opinião (371), já estar, suficientemente,


demonstrada a inconstitucionalidade da excepção do caso julgado à

(aM) Noções Elementares de Processo Civil — com a colaboração de A N T U -


NES VARELA — ed. revista e actualizada por HERCULANO ESTEVES — Coimbra:
Coimbra Editora (1979), 306-7.
p®) Assim, também A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Decla-
ratório, HI, Coimbra: Almedina, 384-5.
(™) Manual de Processo Civil, 2r ed., Coimbra: Coimbra Editora (1985), 705.
p 71 ) Também na de: RODRIGUES MAXIMIANO (n. 333), 11-40; GOMES C A N O -
TILHO/VITAL MOREIRA (n. 333), anot. N ao art. 29°; GOMES CANOTILHO (n. 127),
817-n. 31; TERESA P . BELEZA (n. 86), 455; Rui PEREIRA (n, 340), 58 ss.; LOBO
MOUTINHO ( n . 3 4 0 ) , 1 0 1 s s .
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 297

aplicação retroactiva da lex mitior (37Z), pode, ainda, cora acerto e legi-
timidade, referir-se, per abundantiam, o argumento de que tal excep-
ção contraria o princípio constitucional da igualdade perante a lei
(CRP, art. 13.", 1.-2
Antes de analisarmos a referida inconstitucionalidade por violação
do princípio constitucional da igualdade, recapitulemos, em síntese
conclusiva, a demonstração, já feita, da inconstitucionalidade da
parte final do n.° 4 do art. 2° do Código Penal.
Este limite estabelecido pelo legislador ordinário vem restringir
o âmbito de uma norma constitucional protectora dos direitos fun-
damentais, máxime da liberdade (CRP, art. 29.°, 4.-2 f ) , norma esta
que é a expressão directa e coerente, na questão da sucessão de leis
penais, de uma outra norma (CRP, art. 18.", 2.-2 f ) que consagra o
princípio constitucional fundamental — com incidência evidente na
determinação da lei penal a aplicar — de que «as restrições dos
direitos, liberdades e garantias» devem «limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente pro-
tegidos» C373). Ora impor um limite à aplicação retroactiva de uma
lei que considera como necessária e suficiente, para a defesa dos
«bens jurídicos», uma pena mais leve (p. e.: 6 meses a 2 anos de pri-
são em vez dos 3 a 6 anos de prisão , da lei antiga ou pena de 50
a 100 dias-multa em substituição da pena de prisão até 1 ano) sig-
nifica restringir, desnecessariamente, um direito fundamental. Logo,
é irrefutável a afirmação da inconstitucionalidade deste limite do
caso julgado que — creio já ter demonstrado (374) — não tem a
mínima base constitucional.
Para além de violar, directamente, o mandato constitucional de
aplicação retroactiva da lex mitior e, ainda, o princípio constitucio-
nal do «mínimo indispensável» na restrição dos direitos fundamen-
tais (restrição de que a pena é uma concretização), o limite do caso
julgado penal afronta, directamente, o princípio constitucional de que

(p1) Ver infra, E) deste 4." cap., a crítica à posição contrária de FIGUEIREDO
D I A S / C O S T A ANDRADE.
P13) Cf., por todos, o desenvolvimento, supra, 2° cap., in. •
P74) A demonstração acabou de ser produzida em A) e B) deste 4 ° cap.
298 1 ° Parte — O princípio da aplicação

a lei ordinária não podé diminuir «a extensão e o alcance do conteúdo


essencial dos preceitos constitucionais» (CRP, art. 18.", 3.-3."). Esta
dupla proibição dirigida pelo legislador constitucional ao legislador
ordinário foi, efectivamente, por este violada.
Ao estabelecer um limite — que o preceito constitucional não
estabelece — à aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, a lei
ordinária (CP, art. 2°, 4.-parte final) diminui a extensão do preceito
constitucional (CRP, art. 29.°, 4.-2." parte) favorável à liberdade
(física, política, profissional — tendo em conta também as penas
acessórias). O mesmo limite diminui, de igual modo, o alcance do
conteúdo essencial deste preceito constitucional, pois que o seu
alcance ou sentido é o de que — como resulta, inequivocamente, da
2." parte do n.° 2 do art. 18.° e da 2." parte do n.° 3 do art. 282.° —
seja aplicada a lei mais favorável, independentemente do facto de
já ter ou não ter transitado em julgado a sentença.

2. Vejamos, então, como a ressalva do caso julgado pro-


voca desigualdades que, além de político-criminalmente reprová-
veis e mesmo contraditórias, são-objectiva e desnecessariamente
injustas.
Quando a Lei Fundamental (CRP, art. 13°, 1.-2.") estabelece
que todos sejam igualmente tratados pela lei, é evidente que não está
a impor uma justiça material absoluta, uma igualdade absoluta, mas
sim a justiça relativa e a igualdade possíveis, humana e juridicamente.
O princípio da igualdade perante a lei exige que a nova lei penal
mais favorável se aplique a todos aqueles infractores que da sua
aplicação retroactiva ainda podem beneficiar e proíbe qué se esta-
beleçam discriminações objectivas què excluam, injustificádamente,
alguns dos destinatários da lex mitior do benefício da aplicação desta.
A aplicação retroactiva da lex mitior pressupõe, como é evi-
dente, que aresponsabilidadepenal ainda se não tenha extinguido, isto
é, que a pena aplicada com fundamento na lei antiga ainda não esteja
inteiramente cumprida (375). Se a LN substitui, por mera hipótese,

c375) a:supra, 3° cap., I, 6.


4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 299

a pena de morte pela de prisão perpétua, e se, dos dois condenados


à pena de morte, apenas um já tinha sido executado no momento
em que entrou em vigor a lex mitior, ninguém virá dizer que houve
uma desigual aplicação da lei mais favorável pelo facto de. ela só
ter aproveitado a um deles; nem se poderá absurdamente invocar o
princípio da igualdade de tratamento de casos iguais (cometeram o
mesmo crime, no mesmo dia) para recusar a aplicação da lei nova ao
condenado ainda não executado (376). Sirva-nos, agora, o exemplo per-
feitamente possível no nosso sistema penal: A e B praticaram o
crime x, para o qual a lei estabelecia a pena de 1 a 5 anos de prisão;
quando entrou em vigor a lei nova que reduziu a pena para prisão até
1 ano, já A tinha cumprido os 3 anos de prisão em que fora conde-
nado, ao passo que B ainda tinha para cumprir 2 dos igualmente
3 anos de prisão em que tinha sido condenado. — Como é evidente,
não tem sentido dizer-se que o princípio da igualdade na aplicação
da lex mitior foi posto em causa pelo facto de A, por impossibilidade
natural, não ter beneficiado da lei nova, diferentemente de B que
dela beneficiará.
A igualdade absoluta no tratamento dos delinquentes só era pos-
sível com o princípio da irretroactividade absoluta da lei penal (des-
criminalizadora ou apenas mais favorável) — tal como era defen-
dido pelo rigoroso e metafísico retribucionismo ético da Escola
Clássica (376-A); o u como se o regime especial da «lei temporária» se
transformasse em regime geral e único.
Estas considerações de elementar evidência pretenderam salien-
tar duas realidades não menos evidentes: l.a — o limite do caso jul-
gado só afecta e viola o principio constitucional da igualdade quando
e na medida em que provoca situações de injustiça material relativa
evitáveis, pois que só na medida em que são evitáveis é que tais
situações são injustas; 2." — não é o facto de a lex mitior não se
poder aplicar a todos os que praticaram o mesmo crime no mesmo
tempo fvigência da lei antiga) que pode permitir a conclusão de

í376) Cf. supra, n.° 6,1 deste 4 ° cap.


(376"A) Sobre a Escola Clássica, ver TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal (cit.
na nota 71), 46 ss.
300 1 ° Parte — O princípio da aplicação

que o argumento da igualdade e justiça relativa é irrelevante para


contestar o limite do caso julgado penal.
A conclusão acabada de referir seria o fruto do raciocínio absurdo
que, partindo da constatação da impossibilidade de realizar a justiça
relativa e a igualdade de forma absoluta, afirmasse a irrelevância da
justiça relativa e da igualdade possíveis.
Curiosa e lamentavelmente, este raciocínio viciado e polí-
tico-criminalmente recusável esteve presente na contra-argumentação
do STJ, quando este observou (377): «com respeito ou sem.respeito
pelo caso julgado, é sempre possível apontar casos em que os dife-
rentes indivíduos, por circunstâncias meramente fortuitas, vêm a ser
tratados de maneira desigual pela lei. A desigualdade é mesmo
irremediável em certos casos. O digno Procurador da República
exemplifica com o caso da. amnistia. Com maior relação com o
caso em apreço [requerimento de aplicação da lei nova màis favo-
rável a um infractor que estava a cumprir uma pena de 10 anos de
prisão], pode exemplificar-se com o caso de a pena menos favorá-
vel se achar já completamente executada, quando entra em vigor a
lei que comina pena mais favorável».
Como se vê, o STJ serve-se da impossibilidade de uma realização
absoluta da justiça relativa (378) para concluir pela irrelevância da
justiça relativa possível.
Vêm, em certa medida, a propósito as palavras de CAVALEIRO DE
379
FERREIRA C ): «desigualdade existe necessariamente sempre que se veri-
fique uma sucessão de leis. Com respeito ou sem respeito pelo caso
julgado, é sempre possível apresentar hipóteses em que os diferentes

Acórdão... (n. 342), 355.


(37B) Utilizamos esta formulação porque pensamos que ela retrata o raciocí-
nio subjacente às palavras do STJ. Não queremos, todavia, deixar de chamar a
atenção para uma certa contradição lógica e normativa nos termos utilizados, pois:
o que a frase acima escrita significa é a inevitabilidade da injustiça relativa (a ine-
vitabilidade de tratar desigualmente duas situações idênticas); ora, quando tal acon-
tece, não há injustiça nem discriminação por parte dã lei, uma vez que injustiça e
tratamento desigual (discriminatório) coenvolve um juízo que pressupõe a possibi-
lidade humana de realizar o oposto, isto é, a justiça e a igualdade de tratamento.
Direito... {n. 5), 119.
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 301

indivíduos por circunstâncias meramente fortuitas vêm a ser tratados


de maneira desigual pela lei (380)». Mas, logo à frente, adequada-
mente observa: «se é impossível afastar inteiramente a desigualdade e
se ela é irremediável em certos casos ou quando a pena já foi com-
pletamente executada, é preferível que se atenuem os rigores das penas
na medida do possível a que se renuncie a obter esse resultado com a
aplicação da lei nova só para respeitar uma igualdade ilusória» (3S1).

3. O princípio da igualdade não fundamenta a imposição da


retroactividade da lei penal mais favorável. Esta fundamenta-se,
como vimos C382), no princípio político-criminal — constitucionalmente
assumido — da máxima restrição da pena. Porém, uma Yez con-
sagrada a retroactividade da lex mitior, o princípio constitucio-
nal da igualdade proíbe a fixação de limites (como é a excepção
do caso julgado) à sua aplicação retroactiva, os quais impliquem
que situações idênticas sejam tratadas desigualmente.
Ilustremos como a ressalva do caso julgado pode provocar situa-
ções de tanta injustiça relativa e de uma tão flagrante desigualdade
de tratamento que só uma obsessão ou «fetichismo» (383) do caso jul-
gado pode secundarizar.
A.B&C praticaram, em comparticipação, o crime x, crime puní-
vel pela lei do tempus delicti com a pena de prisão de 10 a 20 anos;
sendo A e B co-autores e C cúmplice, sucedeu que, enquanto A e C
colaboraram, normalmente, com a investigação criminal, B fugiu
para parte incerta, tendo vindo a ser declarado contumaz.
A e C são julgados e condenados, respectivamente, em 15
e 7 anos de prisão — pena que, como é óbvio, podia ter ido, res-
pectivamente, até 20 anos, no caso de A é até13 anos e 4 meses de
prisão, no caso do cúmplice C.

P80) Aplica-se à expressão por mim posta em itálico o reparo feito na


nota 378, chamando, todavia, a atenção para o facto de que o raciocínio de C. FER-
REIRA se distancia inteiramente do raciocínio desvirtuado, jurídico-constitucional e
político-criminalmente, do STJ.
C381) Cf. supra, n.os 6 e 7,1 deste 4.° eap.
O382) Cf. supra, 2° cap.
(3B3J jja expressão de BELEZA DOS SANTOS. — Cf. supra, n.° 8, I deste 4 ° cap.
302 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Posteriormente ao trânsito em julgado da sentença condenatória


de A e de C, entra em vigor uma lei que reduz a moldura do crime x,
para 2 a 10 anos de prisão. Entretanto, B — arguido revel — é
detido para ser julgado. É-lhe aplicada a nova lei, pois que é mais
favorável e, assim, B é condenado em 6 anos de prisão — pena que,
como é evidente, só podia ir, na pior das hipóteses para B, até 10 anos
de prisão (384).
Conclusão: o impedimento do caso julgado à aplicação da lex
mitior fez com que os que possibilitaram um processo penal célere
fossem muito mais severamente punidos do que o seu comparúcipante
que se ausentou, tendo mesmo sido declarado «contumaz». Isto é, a
excepção do caso julgado que, como demonstrei, viola os princípios
constitucionais da máxima restrição da pena (CRP, art. 18.", 2.-2.°)
e da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (CRP, art. 29°,
4.-2."), acaba também por violar o princípio constitucional da igual-
dade (CRP, art. 13.", 1,-2.°).

4. Parece, assim, claro que o limite do caso julgado viola o


princípio constitucional da igualdade. Creio poder afirmar que neste
sentido irá a doutrina constitucional sobre o referido princípio (CRP,
art. 13.°, 1.-2.").
Declara o Tribunal Constitucional (385): «Há violação do prin-
cípio da igualdade quando o legislador estabelece distinções discri-
minatórias. Assim é quando tais distinções são materialmente infun-
dadas, quando assentam em motivos que não oferecem um carácter
objectivo e razoável: isto é, quando o preceito em apreço não apre-
senta qualquer fundamento material razoável.
Nesta perspectiva, o princípio da igualdade consagrado pelo
art. 13.°, n.° 1, da Constituição identifiea-se com uma «proibição de
arbítrio», quer dizer, com «uma proibição de medidas manifesta-
mente desproporcionadas ou inadequadas, por um lado, à ordem

Í384) Ver outros exemplos em MAXIMIANO (n. 333), 24.


p 85 ) Ac. T.C. n.° 44/84, de 22 de Maio, m. Acórdãos do Tribunal Constitu-
cional, 3." v., Lisboa: Imprensa Nacional (1984), 137. — Itálicos meus.
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 303

constitucional dos valores (38S) e, por outro, à situação fáctica que se


pretende regulamentar ou ao problema que se deseja decidir».
Por sua vez, anotam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA ( 3 B 7 ):
«O princípio da igualdade exige positivamente um tratamento, igual
de situações de facto iguais». Ao legislador cabe, dentro dos limi-
tes constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as
relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência
a tratár igual ou desigualmente».
Aplicando esta doutrina ao problema da aplicação da lei penal
mais favorável, ter-se-á de concluir que é objectivamente arbitrário
e, portanto, inconstitucional estabelecer como referência-limite a apli-
cação retroactiva da lex mitior um evento (o trânsito em julgado)
cujo momento de ocorrência é aleatório. Isto, para já não falar
daqueles casos em que a «antecipação» deste momento, sendo meri-
toriamente imputável ao arguido, acabaria — a considerar-se o caso
julgado como limite — por redundar em seu grave prejuízo; já um
comportamento censurável, ao ponto de levar à declaração de con-
tumácia, redundaria, como vimos, em benefício do arguido.

5. Uma das principais razões que levaram a doutrina e o legis-


lador a defender e consagrar a ultraactividade favorável da /ez intermédia
foi, como vimos (38S), a necessidade de evitar injustiças relativas e a
desigualdade no tratamento de casos idênticos, uma vez que, muitas
vezes, poderá não ser imputável ao réu a demora do julgamento (389).
Tal argumento vale, mesmo por maioria de razão, para afastar o impe-
dimento do caso julgado à aplicação retroactiva da lex mitior.

f 386 ) Ordem constitucional que se manifesta, quanto ao problema da aplicação


da lei penal favorável, nos arts. 29°, 4.-2°, 18.°, 2.-2.", 282°, 3.-2."
PB7) Constituição... (n. 333), anots. rv e v ao art. 13.°; os-mesmos Autores,
CRP — Constituição da República Portuguesa Anotada, 4." Ed., vol. I, Coimbra Edi-
tora, 2007, anotações IH, TV e V ao art. 13.° — Cf.,- ainda, João MARTINS CLARO,
«O Princípio da Igualdade», in Nos Dez Anos da Constituição, Lisboa: Imprensa
Nacional (1986), 35-8; JORGE MIRANDA (n. 127), 239-51.
C388) Cf. supra, 3 ° cap., v, 3.
C389) Cf. EDUARDO CORREIA (n. 5), 158.
304 1 ° Parte — O princípio da aplicação

6. Apesar de não estar constitucionalmente consagrado, no seu


tempo, o princípio da retroactividade da lei penal favorável, Autores
como LUCIANO DE CASTRO ( 3 9 0 ) , HENRIQUES DA SILVA (391) e BELEZA
DOS SANTOS — embora este não se referindo directamente ao nosso
problema (392) — consideraram que as injustiças materiais e desi-
gualdades, que a excepção do caso julgado provocava, constituíam
razão suficiente para eliminar tal obstáculo.
Também a doutrina espanhola (393), apesar de a Constituição
do país vizinho não conter um mandato expresso de aplicação retro-
. activa da lex mitior, vê na justiça relativa e no princípio da igualdade
de tratamento pela lei um dos principais argumentos a favor da não
consagração do limite do caso julgado, limite que, como referimos,
já não existe desde 1870 ( 394 ).

Quanto ao direito alemão, há que dizer que, tal como noutros aspectos
da sucessão de leis penais ( 39S ), ele não constitui exemplo a seguir. Basta pen-
sar no seguinte: 1 ° — a Lei Fundamental alemã não consagra a retroactivi-
dade da lei penal favorável; 2.° — antes do Código Penal de 1975, a doutrina
ainda discutia se o limite à aplicação retroactiva da lex mitior era a decisão da
1." instância ou da última instância e, hoje, ainda se discute se é o momento da
decisão da última instância ÇEntscheidung) ou o momento do trânsito em julgado
{Rechtskrafty, 3 ° — aquilo que os nossos Autores da 2. 1 met. do séc. xix já qua-
lificavam de processo ínvio, inadequado, hipócrita e revelador da «má cons-
ciência» da justiça penal — apelar ao perdão para compensar a injustiça rela-
tiva derivada do caso julgado — é o. expediente com que, ainda hoje, se contenta
grande parte da doutrina alemã (nur der Gnademveg). Talvez que isto se deva
àquilo que MOHRBOTTER ( 39s ) denuncia: o caso julgado não tem sido questionado
na Alemanha; tem sido assumido como um dogma.
— Aproveite-se o ensejo para fazer uma breve crítica ao artigo de LOPES
ROCHA ( 397 ) quanto ao problema do limite do caso julgado penal.

í 390 ) Cf. supra, n,° 6, i deste 4.° cap.


P1) Cf. supra, n.° 7,1 deste 4.° cap.
(33Z) Cf. supra, n.° 8, i deste 4.° cap.
(353) Cf. CEREJO M I R (n. 5), 179-80; ROSAL/ANTÓN (n. 86), 812.
(KW) Cf. nota 324..
C385) Cf. supra, texto a que corresponde a nota 49 e o texto da nota 306.
C396) «Garantiefunktion:..» (n. 130), 923.
(397) «Aplicação...» (n. 299), 95-100.
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 305

Diz que, embora seja legítima a dúvida sobre a constitucionalidade do


caso julgado, todavia deve resolver-se pela negativa. — Eis os argumentos que
invoca:

1.° — Uma coisa é a lei descriminalizadora, outra a sucessão de leis


penais no tempo com conteúdo mais favorável (lex mitior); 2 ° — economia pro-
cessual; 3 ° — O facto de a CRP, art. 29°, 4.-2°, empregar o termo «arguido»;
4 ° — o exemplo das legislações estrangeiras.
Refutação; quanto ao 1.° e 2.°, basta dizer o seguinte: o argumento de
economia processual é insignificante face aos valores da justiça político-criminal
e da justiça material relativa; a «má consciência» e perversidade político-criminal
da sua invocação é tal que quase ninguém ousa. apresentá-lo; como se deve
inferir da nossa exposição sobre a alteração do tipo legal stricto sensu (3° cap.,
sec. m), também nos casos de descriminalização do facto concreto por altera-
ção do tipo legal, o tribunal, apesar do caso julgado, não pode fugir à reaber-
tura do processo, para decidir se a alteração do tipo implicou ou não a descri-
minalização do facto concreto, sendo certo que esta actividade processual
inevitável é, no geral, bem mais complexa que a simples re-determinação da pena
concreta com base na pena abstracta estabelecida pela nova lei (lex mitior) (m).
Quanto ao 3 ° argumento, diga-se o seguinte: a sua debilidade é mani-
festa. Com efeito: ao apelar ao termo «arguido», diz que este é uma pessoa
ainda não julgada e nem sequer pronunciada [ainda não estava em vigor
o CPP 1987]; ora, se assim é e se tem algum valor este formalista argumento,
então tal deveria ter levado o Autor a dizer que o limite à aplicação retroactiva
dà lex mitior era o momento do despacho de pronúncia e não o do trânsito em
julgado da sentença condenatória. Esquece o Autor que, p. e., a Constituição,
art. 282,°-3., apesar de se estar a referir ao infractor condenado por sentença tran-
sitada em julgado, utiliza o termo «arguido».
Quanto ao 4.° argumento, o que escrevemos neste n.° 6 é resposta suficiente.

D) Considerações Processuais

1. Acabámos de referir que, quando a L.N. altera o tipo legal


da LA., tal alteração tanto se pode traduzir na descriminalização do

ÇW8) Partindo de considerações análogas, conclui LOBO MOUTINHO («Aplicação


da lei penal no tempo», DJ, 1994, p. 109) que, para além do argumento da econo-
mia processual ser débil, o acréscimo de trabalho judicial, decorrente da eliminação
da ressalva, será em termos práticos, menor do que se pensa, não podendo, portanto,
tal ressalva ser considerada como condição da «funcionalidade do sistema penal».
20
306 1." Parte — O princípio da aplicação

facto já objecto de condenação transitada em julgado como na sua não


descriminalização. Já, efectivamente, demonstrei que é errado o
entendimento comum (399) de que o problema da descriminalização
de um facto se restringe ao fenómeno-legislativo da pura e simples
revogação (pela LN.) da LA. (criminalizadora). Mas a refutação
deste errado entendimento — porque esquece uma parte importante
das hipóteses de descriminalização — e a análise e resolução da
complexidade das questões (descriminalização ou não) derivadas da
alteração do tipo legal stricto sensu já foram feitas (400).
Mesmo nestas hipóteses, em que se tem de reabrir o processo,
apesar de já ter ocorrido o caso julgado da sentença condenatória
proferida com fundamento na LA., a questão-de-facto ínantém-se

(399) Entendimento de que CAVALEIRO DE FERREIRA {Lições de Direito Penal, i,


1992, p. 67 ss.), pelo menos nos seus últimos tempos, se afastou. — Vale a pena
transcrevê-lo: «Pode haver eliminação da incriminação do preceito primário da
norma incriminadora quando haja revogação da incriminação sem substituição por
qualquer outra; é esta uma hipótese que não suscita dificuldades.
Mas pode haver alteração da incriminação, pela nova lei penal, e é este o caso
a que cumpre dar maior atenção. [Itálicos meus]. É que trata-se [no art. 2°, n.° 2]
da eliminação da incriminabilidade de um facto concreto, que não corresponderá aos
elementos essenciais da nova norma incriminadora.
E não sucede assim somente quando a nova lei não mantenha a incriminação
ou a substitua por outra com diversos elementos constitutivos essenciais da infracção,
mas também quando, em razão de nova lei penal ou não penal, o facto tíeixa de ser
punível, porque é justificado (a nova lei prevê então uma causa de justificação que
se verifica no caso'concreto), ou porque o agente do facto é exculpado pela nova lei
(porque esta prevê causa de exculpação ou de exclusão da culpa que se verifica no
caso concreto), ou porque a nova lei prevê novas causas de extinção da responsa-
bilidade pena] ou novas condições de impunidade que do mesmo se verificam quanto
ao facto concreto cometido.
Não se procede portanto exclusivamente a um confronto entre as duas leis
— aquela que se encontrava em vigor ao tempo da perpetração do facto e aquela que
a revogou —, mas ao confronto das duas leis com referência ao facto efectiva-
mente praticado.
É este [o n.° 2 do art. 2.°] um preceito de enorme importância numa época na
qual novas leis penais se multiplicam, porquanto a publicação de nova lei obriga o
tribunal da execução a fazer uma correcção dos casos julgados, e proceder em con-
formidade com a segunda parte do n.° 2 do art. 2.°, sob pena de manter uma prisão
ilegal ou sequestro.»
(400) c f . supra, por todos, m e iv, 3.° cap. desta 1." Parte.
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 307

intocada; o tribunal apenas tem de reapreciar os factos e circunstân-


cias, já provados, à luz da LN., em ordem a determinar quais os efei-
tos jurídico-penais resultantes da alteração do preceito incriminador
(tipo legal) sobre a infracção já objecto de condenação transitada
em julgada e cuja responsabilidade penal (pena principal, penas aces-
sórias ou efeitos penais da condenação) ainda se não tenha extin-
guido (401): descriminalização (CP, art. 2.°~2.), não descriminalização
nem diminuição da responsabilidade penal (quer quanto à pena prin-
cipal, quer quanto às penas acessórias ou aos efeitos penais da con-
denação) ou persistência da criminalização mas diminuição da res-
ponsabilidade penal (lex mitior — CP, art. 2."-4.) (402).

Dizer-se que a questão-de-facto se mantém intocada significa que os fac-


tos e circunstâncias, dados como provados ou como não provados por decisão
transitada em julgado, não podem, agora com a reabertura do processo por
força da L.N., porventura despenalizadora ou apenas mais favorável, ser postos
em causa.
Obviamente, não significa que, prevendo a L.N. circunstâncias que — dife-
rentemente da L.A. — excluem a punibilidade do facto (CP, art. 2.°-2.) ou
atenuam modificativamente a responsabilidade penal do agente (CP, art. 2.°-4.
— p. e., circunstância privilegiante), tais circunstâncias — se já não tiverem
sido objecto de decisão (como provadas ou como não provadas: matéria-de-facto)
— não tenham de ser objecto de discussão e prova.
Assim, se a L.N. restringe a punibilidade do aborto, subindo a idade do feto
de (mais de) 3 para (mais de) 4 meses e se, na questão-de-facto do processo cuja
sentença já transitou em julgado, apenas tiver ficado decidido que o feto tinha
mais de 3 meses, é evidente çjue se terá, agora, de provar se o feto tinha mais
de 4 meses. — O mesmo vale para o caso de a L.N. vir qualificar como pri-
vilegiante do tipo de infanticídio a circunstância do abandono material ou moral
da mãe, não tendo esta circunstância sido objecto de discussão e decisão, no pro-
cesso agora reaberto.
Neste sentido, quer a LJ-j. seja despenalizadora (descriminalizadora) do facto
concreto quer seja simplesmente mais favorável, mantêm-se exactas as pala-
vras de HENRIQUES DA S I L V A ( 4 0 3 ) : a aplicação retroactiva, «longe de atacar o

(401) Cf. supra, I, 3 ° cap. desta l.aParte.


(402) Cf. os exemplos apresentados e analisados em 2. A. m. 3 ° cap. desta
1." parte.
o®3) Cf. supra, n.° 7,1, deste 4 ° cap.
308 1 ° Parte — O princípio da aplicação

caso julgado, confirma-o pois reconhecia (reconhece) a sua existência na ques-


tão-de-facto» f04).
Contrariamente, nenhuma razão assiste a BETTIOL, quando afirma C 0 5 ) que
a aplicação retroactiva da lex mitior constituiria uma «impugnação» do caso
julgado, — Nada disto, não há qualquer impugnação do que já foi definitiva-
mente decidido em matéria de facto, como vimos; quanto à questão-de-direito
(relevância jurídico-penal de circunstâncias já provadas ou a provar, susceptíveis
de excluir ou atenuar a responsabilidade penal), não se trata de contradizer,
materialmente, a decisão anterior, mas sim de proferir nova sentença por virtude
e com fundamento em lei penal diferente da que serviu de base à sentença
anteriormente proferida e transitada em julgado.
Como refere o STJ ( 4M ) — neste aspecto correctamente — não se trata de
alterar «uma decisão censurável no momento da sua prolação», mas sim de,
como refere B E L E Z A DOS S A N T O S a propósito da lei de amnistia entrada em
vigor depois do trânsito em julgado da sentença condenatória em «pena unitá-
ria» C 07 ), de reformar uma sentença por força de uma lei nova.

2. Sendo, como demonstrámos, inconstitucional a ressalva- do


caso julgado à aplicação retroactiva da lex mitior, resulta que, não se
tendo esgotado todas as consequências jurídicas da sentença penal con-
denatória, deve a entrada em vigor da L.N. favorável — seja des-
criminalizadora do facto concreto, seja puramente lex mitior — deter-
minar a reabertura do processo (oficiosamente ou mediante
requerimento do Ministério Público ou do «condenado-arguido»).
Como refere MAXIMIANO ( 4 0 8 ) , «O meio processual, para esse
efeito, encontta-se no lugar paralelo da reformulação dos cúmulos jurí-
dicos aquando da superveniência de amnistias» (409).
Estando em causa apenas a alteração da moldura penal, é certo que a acti-
vidade processual a desenvolver, pelo tribunal se limitará à re-determinação da
pena concreta com base na L.N. O procedimento a realizar é, na verdade, aná-
logo ao que se utilizará na hipótese de alteração da pena unitária por força de

(404) Itálico meu.


(405) Direito Penal, tv — tradução de TAIPA DE CARVALHO —, Coimbra:
Coimbra Editora (1977), 268.
(406) Acórdão de 18 de Julho de 1984, in BMJ, n.° 339 (1984-Out.), 274.
(40?) Cf. supra, n.° 8, l deste 4." cap.
(40S) «Aplicação...» (n. 333), 39.
( m ) Itálico meu.
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 309

uma lei de amnistia, pois que, também aqui, a moldura penal, dentro da qual tem
de ser fixada a nova pena concreta, é alterada.
Se, porém, a L.N. altera o tipo legal, então, como já vimos ( 410 ), a acti-
vidade processual a desenvolver pode ter de ser mais complexa.

Compreende-se que seja exigível a máxima urgência na prola-


ção da nova sentença bem como na decisão do eventual recurso
daquela. Caso contrário, o imperativo poKtico-criminal e constitucional
da indispensabilidade da pena (L.N. despenalizado») e da máxima res-
trição desta (L.N. mais favorável) seria, muitas vezes — com ou
sem responsabilidade dos juízes — frustrado.
Para que tal urgência não fique dependente do arbítrio do juiz
— pois que sempre se terá de admitir como possível que o «prudente
arbítrio» se transforme em arbitrariedade — deve a lei estabelecer os
(curtos) prazos dentro dos quais têm de ser proferida a sentença e deci-
dido o recurso.

3. Uma última e breve palavra a propósito da condenação em


pena de multa já transitada em julgado.
Diferentemente da pena de prisão, cujo cumprimento se protrai
no tempo, a pena de multa é de cumprimento, digamos, instantâneo.
Vimos ( 4 U ), por outro lado, que a aplicação retroactiva da lei
penal favorável (lei descriminalizadora ou lex mitior) pressupõe que
o aspecto ou consequência jurídica (pena principal, pena acessória ou
efeito penal da condenação) da responsabilidade penal determinada
oii derivada da sentença penal ainda não se tenha cumprido ou exe-
cutado.
Relativamente à pena de multa, há, portanto, que determinar
qual o momento em que ela se deve considerar cumprida, isto é, o
momento em que, independentemente do efectivo pagamento ou não,
é exigível o seu cumprimento.
Ora o momento em que se torna exigível o cumprimento da
pena de multa é o momento em que a respectiva sentença condena-

(410) Cf. supra, ni do 3." cap. e 1. iv deste 4." cap.


(4U) Supra, 3,° cap., Hl, B, 1.
310 1 ° Parte — O princípio da aplicação

tória transita em julgado. Logo, relativamente à multa determinada


por sentença transitada em julgado, a lei nova mais favorável não pro-
duz efeitos, uma vez que não tem «campo de aplicação», por já
dever ser considerada cumprida a pena de multa.
Não deve confundir-se o momento em que é exigível o cum-
primento da pena de multa com o momento estabelecido, com-
preensivelmente (por razões práticas), como prazo limite para paga-
mento do montante da multa ou de cada uma das suas prestações.
Este prazo é estabelecido por exigências de ordem prática (caso do
prazo de 10 dias para o pagamento do quantitativo pecuniário global)
ou como faculdade a usar pelo juiz, em função da situação económica
do condenado (caso do pagamento em prestações).
O pagamento, isto é, o acto de entrega do quantitativo da multa
constitui uma mera obrigação civil de entrega; não constitui nenhum
dever de acção penalmente sancionado: assim é que, na hipótese de
não ser feito voluntariamente o pagamento, proceder-se-á à execução
dos bens patrimoniais do condenado, seguindo-se os termos do pro-
cesso da execução por custas (CPP, art. 491.°).
Esta solução que me parece aquela que é em si mesma a mais
correcta, evita, adicionalmente, as . dificuldades práticas da devolu-
ção por parte do Estado dos quantitativos recebidos ou — no caso de
se não optar por tal devolução — a injustiça relativa de apenas serem
beneficiados com a aplicação retroactiva da lei penal favorável (quanto
à pena de multa, saliente-se) os não cumpridores (maus pagadores)
e os que beneficiaram da faculdade do pagamento em prestações ( 4I2 ).
Tudo o que se disse até aqui refere-se exclusivamente aos con-
denados com capacidade patrimonial para pagar a multa.
Tratando-se de insolventes, é evidente que à impossibilidade de

(4I2) Cf., por todos, o que escrevi, supra, na parte final da secção n do 3." cap.
Aí se critica que a actual redacção da parte final do n.° 2 do art. 3." do Dec.-Lei
n.° 433/82 tenha passado «do oito ao oitenta», ou seja que não apenas tenha sido eli-
minada a ressalva do caso julgado contra-ordenacional relativamente à aplicação
retroactiva das sanções acessórias (de natureza pessoal) mais favoráveis — altera-
ção legal esta correcta e de louvar —, mas também relativamente à sanção princi-
pal, a coima (de natureza patrimonial) — alteração esta incorrecta.
4 ° Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável 311

pagamento não pode seguir-se a substituição por dias-trabalho ou a


execução da pena de prisão aplicada em alternativa à multa, excepto,
como é óbvio, quanto aos dias-trabalho ou à prisão em alternativa apli-
cada pela nova sentença com base na L.N. mais favorável.

FIGUEIREDO D I A S ( 413 ) diz que, dada a natureza pessoalíssima da peria de


multa, não podem «ser por ela responsáveis as forças da herança», e, em nota
da mesma pág., observa: «Compreende-se, deste modo, que do nosso sistema
tenha sido eliminada, em 1972, uma disposição como a do art. 122.°, § 1.°, do
CP então vigente, segundo a qual «a obrigação de pagar a multa só passa aos
herdeiros do condenado, se em vida deste a sentença de condenação tiver tran-
sitado em julgado»!».
— Penso, contudo, que é necessário esclarecer o seguinte:
Tem perfeita justificação a exclamação do Autor perante a disposição que
transcreveu e que — e bem — foi suprimida em 1972; pois que, sendo a multa
uma sanção penal, é de natureza pessoal e, portanto, absolutamente intrans-
missível aos herdeiros do condenado. Donde que nunca se possa falar da trans-
missão aos herdeiros da obrigação de pagar a multa.
Mas aquilo de que falo — e é o que está em causa — não é, de forma
alguma, de qualquer obrigação dos herdeiros, mas sim apenas da oneração
(ainda em vida do posteriormente de cujus) do património herdado, posterior-
mente ao trânsito em julgado da sentença condenatória em multa.
Conclusão: diferentemente de FIGUEIREDO D I A S , penso que a natureza pes-
soal da multa não é minimamente posta em causa pelo facto de o património do
condenado (por sentença transitada em julgado, antes da sua morte) vir a res-
ponder pelo pagamento da multa. Não se trata da oneração do património dos
herdeiros com uma multa em que foi condenado o de cujus, mas sim de os
herdeiros já terem recebido o património daquele onerado com a multa. Sobre
os herdeiros não recai, pois, qualquer obrigação de pagar a multa; mas o que eles
não podem impedir é a execução patrimonial dos bens herdados.
Há que não esquecer que, se o condenado não paga voluntariamente a
multa, a primeira alternativa 6 a execução patrimonial. Pode ainda acrescentar-se
aquilo que FIGUEIREDO D I A S ( 414 ) refere: as receitas provenientes das multas
devem ter «uma finalidade político-criminal positiva directa», dirigindo-se,
«como entre nós preconiza o art. 129..°-3., à reparação das vítimas do dano pro-
vocado pelo crime».

(413) Direito Penal Português — as consequências jurídicas do crime, 1^93,


p. 118.
C"4) Direito Penal... (n. 413), 121.
312 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Concordo, em parte, com aquilo que B E L E Z A DOS S A N T O S (41S) dizia a


propósito do n.° 1 do art. 125." do CP 1886: «Esta excepção [refere-se à não
extinção da multa por morte do condenado por sentença transitada em julgado
antes da ocorrência da morte] tem sido muito comentada por alguns criminalistas.
No entanto, parece que, tendo a sentença que condenou em multa transitado em
julgado, esta pena reveste para todos os efeitos legais o carácter duma obriga-
ção patrimonial que recai sob a alçada do direito civil».
Disse que concordava em parte. Com efeito, concordo com a solução
mas discordo ou, talvez mais adequadamente, entendo necessário precisar o
seguinte: não se trata de uma excepção ao princípio de que a morte extingue a
responsabilidade penal, pois que, como referimos, não se trata de uma transmissão
da responsabilidade penal — não existindo sequer uma verdadeira obrigação civil
de os herdeiros pagarem o quantitativo correspondente à multa —, mas apenas
da possibilidade de o património do de cuius ser executado para pagamento de
uma multa que, já antes da morte, o onerava.
— Diferente seria a minha posição, se vigorasse, no nosso direito, o sis-
tema que, segundo FIGUEIREDO D I A S ( 416 ), foi proposto por B A U M A N N para o
direito alemão (§ 49 do AE): uma pena de multa por unidades de tempo (Lauf-
zeitgeldstrafe), em que o pagamento se prolongaria por um determinado tempo,
fixando-se, logo na condenação, o quantitativo pecuniário correspondente a
cada período. Aqui, sim, não se trataria de uma facilidade de pagamento em
prestações — como é o nosso caso — mas de uma como que multa renovada
(duradoura) que recaía sobre o condenado.
Então, tal como com a prisão, a morte ou a aplicação da lei despenaliza-
dora extinguiriam a responsabilidade penal correspondente aos períodos de multa
ainda não decorridos à data da morte do condenado ou da decisão judicial de des-
penalização da conduta. Tratando-se de lex mitior, a sentença reformada com base
nesta lei determinaria quantos os períodos de multa, podendo suceder que o
condenado já os tivesse cumprido todos ou que ainda houvesse alguns a cumprir.

E) Apreciação Crítica da Posição de Figueiredo Dias/Costa


Andrade

Depois da argumentação desenvolvida e que já consta integralmente da


1," edição de 1990, não parece minimamente consistente a posição de Figuei-
redo Dias/Costa Andrade ( 4 n ) .

Cm15) Elementos... (n. 154), 247.


( ) Direito Penal... (n. 413), 136 s.
(417) Direito Penal..., 1996, p. 189 s.
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .313

Com efeito:
1.° — As considerações, que desenvolvi, formam uma argumentação
baseada em princípios constitucionais, jurídico-penais e político-criminais, como
o da máxima restrição da pena, princípios que não devem servir apenas, para
declarações introdutórias mas sim para serem concretizados nos diferentes
«locais» do sistema penal. A argumentação, que desenvolvi, não é, pois, um
qualquer «requisitório».
2 ° — Referem os citados Autores que «também a lei fundamental [e têm
em vista o art. 29.°-4., última parte, da CRP] tem, na sua interpretação, de ser
submetida a uma cláusula de razoabilidade» e — tendo em atenção o que ime-
diatamente a seguir escrevem («e não seria obviamente razoável pensar que a
totalidade das condenações penais cuja execução ou cujos efeitos se mantêm teria
de ser reformada todas as vezes que uma lei nova viesse atenuar a responsabi-
lidade penal») — reconduzem esta exigência de razoabilidade ao facto de a
eliminação da ressalva do caso julgado implicar um acréscimo muito acentuado
de trabalho judicial.
— Contra esta objecção, há que recordar que esse aumento de trabalho não
será tão grande como os Autores referidos parecem fazer crer ( 4!8 ) e que as razões
e princípios político-criminais e de justiça relativa valem bem esse acréscimo de
trabalho ( 419 ).
3.° — Dizem, de seguida e em continuação do acabado de transcrever, o
seguinte: «isso serià seguramente razão bastante para que nenhum legislador
jamais se dispusesse a levar a cabo uma reforma do CP!».
— Contra esta afirmação e exclamação, há que dizer o seguinte: o direito
penal espanhol mantém, desde o CP de 1870 até ao actual CP de 1995, de
forma ininterrupta, a retroactividade da lex mellior mesmo que já tenha transi-
tado em julgado a sentença condenatória, sem que tal plena retroactividade
tenha inibido o legislador penal do Estado vizinho de fazer as amplas reformas
penais que, ao longo destes 125 anos, entendeu necessárias (assim, CP de 1928,
CP de 1932, CP de 1944, Revisão de 1963, Reforma de 1973, Revisão de 1983
e Revisão de 1989).
Entre vários outros países da América Latina, também o Código Penal
do Brasil (de 1940, mas cuja Parte Geral foi actualizada em 1984) estabelece,
no art. 2.°, §' único, que «A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o
agente, aplica-se aos factos anteriores, ainda que decididos por sentença con-

( 4la ) Cf. notas 398 e 399. Ver, neste sentido, o n.° 8 ("O direito comparado
revela que a retroactividade da lex mitior não levanta dificuldades insuperáveis nem
impede a reforma .do direito penal") da Declaração de Voto de José de Sousa e
Brito, anexa ao Acórdão n.° 644/98 do Tribunal Constitucional.
(419) cf. SBcções u e ia deste 4.° cap.
314 1 ° Parte — O princípio da aplicação

denatória transitada em julgado». B o art. 5.°, XL, da CRFB (Constituição


Brasileira de 1988) estabelece: «A lei penal não retroagirá, salvo para benefi-
ciar o réu».
O legislador português, relativamente à punição das contra-ordenações,
eliminou a ressalva do caso julgado à aplicação retroactiva da lei nova que
estabeleça uma sanção mais suave, apesar de esta retroactividade implicar um
acréscimo de trabalho para as respectivas autoridades administrativas oíi para os
tribunais (42°).
Vale apena solicitar a paciência do leitor para a transcrição de duas pas-
sagens, escritas, em 1 9 9 6 , por V I V E S A N T O N e por M U N O Z C O N D E ,
Escreve V I V E S A N T O N ( 4 Z 1 ) : « O segundo tipo de problemas que levanta
o preceito são os ligados ao alcance da retroactividade, em relação com o
estado do processo. À vista do teor literal do preceito, nenhuma dúvida
pode existir nos casos em que o procedimento penal ainda não se iniciou
ou se acha pendente de sentença QU já foi sentenciado e o réu já está a cum-
prir a condenação, pois o teor literal do preceito, «uma das manifestações legis-
lativas mais amplas e generosas do direito comparado», segundo tem sido dito
por alguns autores, contempla expressamente a sua aplicabilidade a tais hipó-
teses». E, referindo-se, de imediato, aos casos em que a pena (principal e
acessória) já tiver sido cumprida, afirma a aplicabilidade da lex mitior tam-
bém aos efeitos penais da condenação. Assim, refere a agravante da reinci-
dência, esclarecendo, porém, que, uma vez que «no novo Código não se
atende à quantia da pena, mas somente à natureza do facto, ao configurar a
reincidência própria, que é a única acolhida pelo Código vigente», deixa de
ter, para a reincidência como circunstância agravante, qualquer relevância
prática a retroactividade da lei nova que estabeleça uma pena mais leve do
que a estabelecida pela lei vigente no tempus delicti. — Transpondo esta
argumentação para o direito português, vê-se que a aplicação retroactiva da
lex mitior já poderia ter relevância prática: é que o nosso CP, art. 15°, n.° 1,
consagra a reincidência imprópria (genérica) e estabelece como pressuposto
da reincidência a condenação em pena de prisão efectiva superior a 6 meses;
donde que a aplicação retroactiva da lex mitior poderia vir a determinar a
impossibilidade de o agora condenado vir a ser considerado reincidente,
quando, futuramente, viesse a ser condenado por um outro crime; tal ocor-
reria quando, p. e., o condenado em prisão efectiva de 8 meses, visse esta pena
reduzida para prisão efectiva de 6 meses, por força da aplicação retroactiva
da lei nova (mesmo que, ao entrar esta em vigor, aquele já tivesse cumprido
os 8 meses de prisão).

f™) Cf. parte final da sec. n do .3." cap., e nota 412.


(«') Comentários al Código Penal de 1995, 1996, p. 49.
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .315

Por sua vez, escrevem M U N O Z CONDE/GARCIA A R Á N (422): «Portanto, as nor-


mas penais que, por exemplo, estabeleçam circunstâncias eximentes, atenuantes
ou que diminuam a gravidade das penas e, obviamente, todas aquelas que des-
penalizem condutas, podem ser aplicadas a factos ocorridos antes da sua entrada
em vigor... A lei posterior mais favorável produzirá efeitos retroactivos mesmo
que já haja sentença firme e se esteja cumprindo a condenação, casos estes em
que será proferida uma nova resolução contendo os efeitos derivados da nova
lei (a extinção da condenação ou a diminuição da pena). As Disposições tran-
sitórias do CP estabelecem uma série de regras para a revisão de condenações
e determinação da lei penal mais favorável».
4.° — FIGUEIREDO D I A S / C O S T A A N D R A D E referem, ainda, o seguinte: «não
compete, como é por quase todos sabido, à lei constitucional regular as condi-
ções de aplicação dos seus comandos, antes pelo contrário lhe compete deixar
ao legislador ordinário o seu âmbito próprio de actuação».
— Cabe contrapor o seguinte: é evidente que uma coisa é uma norma
constitucional, outra é uma norma ordinária; mas sendo o acabado de transcre-
ver uma evidência, um como que «lugar comum» da doutrina constitucional, o
que está em causa e os Autores referidos não esclarecem (pois, bem vistas as
coisas, o único argumento dos Autores é o do acréscimo de trabalho judicial,
argumento este bem débil ( 423 )) é as razões que poderiam levar a que o legis-
lador ordinário pudesse, sem violar a Constituição, estabelecer um limite (que,
inequivocamente, se traduz na restrição de direitos fundamentais) à concretiza-
ção de uma imposição constitucional, imposição esta que, como em texto
demonstro, não é mais do que, no plano da sucessão de leis penais, uma expres-
são de outros princípios constitucionais, nomeadamente, do princípio da inter-
venção mínima ou máxima restrição da pena (CRP, art. 18.°, n.° 2-2." parte).
E sendo, como penso que deve ser, esta a verdadeira questão e a cogente
interpretação do art. 29.°, n.° 4-última parte, da CRP (exclusão do limite do
caso julgado à retroactividade da lei penal favorável), torna-se inútil a invoca-
ção de que «a restrição da retroactividade às sentenças ainda não transitadas»
não diminui «o "conteúdo essencial" do preceito constante da última parte do
art. 29.°-4. da CRP» ( 424 ). É que a invocação deste conteúdo só tem sentido

(422) Derecho Penal, 1996, p. 146 s.


(423) Cf. sec. iv deste 4." cap.
(424) É certo que também me referi ao «conteúdo essencial» (CRP, art. 18.°,
3.-3.1); só que a invocação de tal disposição é feita como mais um argumento adi-
cional ao argumento decisivo e já por si suficiente que é o que se retira do princí-
pio da intervenção mínima (CRP, art. 18°, 2.-2°). Isto é, este princípio é, por si,
suficiente para se concluir pela inconstitucionalidade do limite do caso julgado;
mas, se não o fosse em todas as hipóteses, ainda se podia recorrer ao n.° 3 do
art. 18° da CRP, como, p. e., na hipótese de a lei nova estabelecer pena de multa,
316 1 ° Parte — O princípio da aplicação

quando a restrição de um determinado direito fundamental é condição para a rea-


lização de outros direitos fundamentais, visando pois, nestas situações de con-
flito, salvaguardar o mínimo do direito fundamental em causa. Ora, no caso da
retroactividade da lex mitior (CRP, art. 29.", n." 4, parte final), o limite do
caso julgado (CP, art. 2°, n.° 4, parte final) não serve quaisquer direitos fun-
damentais (antes somente afecta os do condenado), mas apenas o interesse
prático do não acréscimo de trabalho judicial.
Não será despropositado invocar, novamente, V I V E S A N T O N e M U N O Z
CONDE/GARCÍA A R Á N , Autores que, apesar de a Constituição espanhola não
conter uma disposição semelhante à da parte final do n.° 4 do art. 29.° da CRP
(... «aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao
arguido»), defendem, tal como a maior parte da doutrina espanhola, a exigên-
cia constitucional da retroactividade da lei penal mais favorável, mesmo que a
sentença condenatória já tenha transitado em julgado.
Efectivamente, M U N O Z CONDE/GARCÍA A R Á N (42S), partindo da exclusão do
caso julgado como limite dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade de
uma lei penal, quando, em «consequência da nulidade da noima aplicada, resulte
uma redução da pena... oú uma exclusão, isenção ou limitação da responsabi-
lidade» (art. 40° da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, correspondente à
parte final do n.° 3 do art. 282." da nossa CRP), concluem que, por igualdade
de razão, também «os efeitos retroactivos da lei posterior mais favorável devem
produzir-se mesmo quando o réu já tiver cumprido a condenação». Ou seja: se
os efeitos penalmente favoráveis da declaração de inconstitucionalidade se afir-
mam mesmo «contra» o caso julgado, então também a lei nova mais favorável
se deve aplicar retroactivamente mesmo «contra» o caso julgado.
42S
VIVES ANTON ( ), apesar de o n.° 3 do art. 9 . ° da Constituição espanhola
(correspondente ao n.° 4 do art. 2 9 ° da CRP) não conter expressamente (dife-
rentemente do n.° 4 do nosso art, 29.°) a imposição da retroactividade da lei penal
mais favorável, levanta a questão de se o princípio da retroactividade da lei
penal mais favorável tem dignidade constitucional, tal como acontece com o prin-
cípio da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável.
Levantada a questão, a resposta do Autor é coincidente com a que tem sido
dada pelo Tribunal Constitucional espanhol; o princípio da retroactividade da lei
penal, favorável tem dignidade constitucional.

quando a lei antiga estabelecia pena de prisão de 6 meses a 3 anos insusceptível de


suspensão e de substituição — aqui, poder-se-ia dizer que o limite do caso julgado
atingia o «núcleo essencial» do direito fundamental da liberdade protegido pela
última parte do n.° 4 do art. 29.° da CRP.
(425) Derecho Penal, 1996, p. 147.
(426) Comentários al Código Penal de 1995, 1996, p. 48.
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .317

Quanto à fundamentação desta resposta, o Autor discorda — e com razão —


do argumento a contrario da proibição constitucional (art, 9.°, n.° 3) da retroacti-
vidade desfavorável, argumento em que o Tribunal Constitucional espanhol se
tem baseado para afirmar a relevância constitucional da imposição da retroactivi-
dade favorável. Para o Autor, o fundamento está no princípio constitucional da inter-
venção mínima, Dê-se-lhe a palavra: «Diferentemente [da argumentação do Tri-
bunal Constitucional], poder-se-á chegar a tal conclusão a partir da proporcionalidade
ou intervenção mínima, pois pode afirmar-se com certeza que se, posteriormente
à realização dos factos, o legislador penal considera suficiente e adequada uma pena
leve, essa será, justamente, a única que caberá considerar necessária)).
5 . ° — Por fim, invocam FIGUEIREDO D I A S / C O S T A A N D R A D E o exemplo do
CP alemão, escrevendo: «Nem será inútil lembrar que em outras ordens jurídi-
cas este limite vale mesmo para as próprias leis descriminalizadoras, v. g., na
Alemanha, CP, § 2(3)».
— Trata-se, indiscutivelmente, de um infeliz argumento: é que, se não é
perverso, é pelo menos inócuo. Com efeito:

a) — Apesar de a doutrina alemã divergir quanto ao sentido a atribuir à


invocada disposição (sendo, portanto, exagerado e radical dizer-se, tout court,
que a lei descriminalizadora tem como impedimento o caso julgado), o certo é
que, crescentemente, se multiplicam as vozes contra as ultrapassadas disposições
do CP alemão (§ 2) sobre a sucessão de leis penais. Como já disse, em plúri-
mos lugares ( 427 ), nesta matéria o CP alemão é caótico; é, digamos, o para-
digma do exemplo a não seguir.
b) — A invocação é ainda infeliz, pois até parece que os Autores sugerem
que mesmo uma posição que defendesse o limite do caso julgado contra a
retroactividade de uma lei descriminalizadora não seria inconstitucional! Na ver-
dade, mais longe do que uma tal posição (evidentemente que não defendida
pelos referidos Autores), só a do radicalismo ético-retribucionista da Escola
Clássica (para a qual só uma lei. contava: a do tempo do delito) ( 42S ), o qual
nunca foi assumido legalmente.
c) — O CP alemão, § 2, está, realmente, anquilosado nesta matéria:
veja-se, por exemplo, o caso da sucessão de leis sobre medidas de segurança;
segundo o CP alemão, § 2(6), são retroactivamente aplicáveis estas leis, mesmo
que desfavoráveis, pois que é aplicável a lei que estiver em vigor no momento
da decisão, seja ela qual for — aqui, e bem, os Autores referidos já se afasta-
ram de tal posição ( 429 ).

(421) Cf. nota 12, texto a que corresponde a nota 49, nota 82, nota 99, nota 306.
(428) cf. texto a que corresponde a nota 111 e segs.
(«9) Direito Penal,., (n. 417), 186.
318 1 ° Parte — O princípio da aplicação

n . A SITUAÇÃO A PARTIR DE 15 DE SETEMBRO DE


2007, DATA DA ENTRADA EM VIGOR DA ACTUAL
2.a PARTE DO N.° 4 DO ART. 2.° DO CP, E DO
ART. 371.°-A DO CPP: aplicação retroactiva da lei penal
mais favorável, mesmo que já tenha transitado em julgado a
sentença condenatória

A) Síntese das Considerações feitas, no anterior n.° I, e das


Conclusões delas resultantes

Na argumentação e nas considerações, que fiz, sempre estiveram


presentes três aspectos: em primeiro lugar, ao falar em lei mais favo-
rável ou lex mitior, tinha por objecto as penas principais (nomeada-
mente, a pena de prisão) e as penas acessórias, excluindo, portanto,
as chamadas "penas de substituição"; em segundo lugar, quanto à
questão de facto, para além de, obviamente, permanecerem intocados
os factos dados como provados, não haveria que realizar novas dili-
gências', finalmente, a re-determinação da pena principal e/ou da
pena acessória deveria ser oficiosa.

1. Quanto ao primeiro aspecto das penas principais, atente-


mos em alguns exemplos claramente demonstrativos da injustiça
(tendo em conta o princípio político-criminal da mínima restrição
possível dos direitos e liberdades fundamentais — CRP, art. 18.72 —
e o princípio da igualdade no tratamento de situações jurídieo-
penalmente iguais — CRP, art. 13.71-2." parte) do obstáculo do
caso julgado à aplicação retroactiva da lei nova mais favorável
(lex mitior).
O Código Penal de 1886, vigente até 31 de Dezembro de 1982,
estatuía, para o crime de homicídio, a pena de prisão de 16 a 20 anos;
a partir de 1 de Janeiro de 1983, o actual Código Penal de 1982
reduziu, para o mesmo crime de homicídio, a pena para prisão de 8
a 16 anos (e o Anteprojecto, art. 137.°, de Eduardo Correia até pro-
punha, para este crime, a pena de prisão de 5 a 15 anos). E, quanto
ao homicídio qualificado, o Código de 1886 estabelecia prisão de
20 a 24 anos, enquanto o Código de 1982 reduziu-a para 12 a 20 anos
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável-. 319

de prisão (e o Anteprojecto de Eduardo Correia propunha a pena de


10 a 20 anos de prisão). Quer dizer que os limites mínimos da pena
legal, vigentes até 31 de Dezembro de 1982, eram iguais aos limites
máximos da pena legal, vigentes a partir de 1983.
Diante disto, quem, tendo em conta os princípios político-cri-
minais e jurídico-constítucionais, acima referidos, e não se podendo
esquecer da substancial diferença entre responsabilidade penal (mais
amplamente, punitiva) e responsabilidade civil (mais amplamente,
não punitiva) e, consequentemente, entre o caso julgado penal ,e o caso
julgado não penal, poderia aceitar como minimamente razoável que
alguém que tivesse sido condenado por sentença transitada em julgado,
por exemplo, em Julho de 1982, na pena de 18 anos de prisão,
tivesse de os cumprir, enquanto que aquele que, por exemplo, tendo
cometido o mesmo crime de homicídio, na mesma data, mas viesse
a ser definitivamente condenado em Janeiro de 1983, apenas sofresse
prisão de 12 anos1\... A resposta não pode deixar de ser a de que
seria injusto, para além de, pofftico-criminalmente, iirazoável e incons-
titucional.
A conclusão é a seguinte: quando a lei, que entra em vigor
depois do trânsito em julgado da sentença condenatória, reduz a pena
de prisão, há que re-determinar a pena, com base na lei nova. Esta
re-determinação far-se-á com base no que, se bem me lembro, se
chamava uma "regra de três simples", isto é, através de uma redu-
ção proporcional da pena aplicada. Por exemplo (simples, para não
ter que recorrer à máquina calculadora): para o crime x, a lei esta-
belecia uma pena de prisão de 2 a 8 anos; a lei, que entrou em vigor
após o caso julgado, reduziu a pena para prisão de 1 a 5 anos; se o
agente foi condenado em 5 anos de prisão, agora, por força da apli-
cação retroactiva da lei nova, a pena concreta será reduzida para
3 anos de prisão.
— O mesmo raciocínio vale para a pena de multa (429_A). Sendo
esta fixada em "dias de multa" (CP, art. 47.71) — acrescendo, ainda,

(42B-A) Conferindo o que está escrito em I., D), 3. deste 4.° Capítulo, vê-se que
alterei a minha posição quanto aos efeitos da aplicação retroactiva da lei mais favo-
rável sobre a pena de multa aplicada por sentença já transitada em julgado.
320 1 ° Parte — O princípio da aplicação

o facto de poder ser convertida em "prisão subsidiária", na propor-


ção de 3 dias de multa para 2 dias de prisão (CP, art. 49.71) —, tam-
bém, no caso de a lei, que .entre em vigor depois do trânsito em jul-
gado da sentença condenatória, reduzir o número de dias de multa,
deve esta lex mitior ser retroactivamente aplicada aos casos em que,
no momento da entrada em vigor da nova lei, ainda não tenha decor-
rido o número total de dias de multa.
Algumas observações devem ser feitas.
Para se determinar se (quando entra em vigor a nova lex mitior)
já estão, ou não, esgotados os dias de multa, é necessário determinar
o termo a quo da contagèm destes. Este termo coincide com o pri-
meiro dia após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Deve,
pois, ter-se por irrelevante que o condenado já tenha, ou não, efec-
tivamente, pago o montante da multa ou as correspondentes presta-
ções (CPP, art. 489°). Assim, na hipótese de ainda não ter decor-
rido o total dos dias de multa em que foi condenado, se já pagou o
montante correspondente à totalidade dos dias de multa, deve-lhe
ser devolvida a diferença entre o . valor correspondente aos dias de
multa efectivamente pagos (e nos quais tinha sido condenado) e o
valor correspondente aos dias de multa que resultaram da nova deter-
minação da pena, em consequência da aplicação retroactiva da lei nova
mais favorável.
Por exemplo: A foi condenado em 120 dias de multa, com base
na lei que estabelecia a pena até 240 dias de multa; mas, 30 dias após
o trânsito em julgado, entrou em vigor uma lei que, para esse crime,
reduziu a pena para multa até 120 dias; se o A já tiver pago o cor-
respondente aos 120 dias de multa (em que foi condenado), no
momento em que entrou em vigor a nova lei, deve-lhe ser devol-
vido o correspondente a 60 dias de multa, pois que tal corresponde
à diferença entre a pena que lhe foi aplicada, com base na lei antiga,
e a pena re-determinada, com base na lei nova. Já, na hipótese de,
quando entra em vigor a lei que reduziu a pena para multa até
120 dias, terem decomdo os 120 dias de multa em que foi condenado,
a nova lei não terá quaisquer efeitos; logo, mesmo que o condenado
ainda não tenha, efectivamente, pago a multa ou as respectivas pres-
tações, a nova lei não lhe aproveitará, permanecendo obrigado ao
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .321

pagamento do valor correspondente aos 120 dias de multa (ou, no caso


de não pagamento, à substituição por prisão subsidiária de 80 dias).
E, no caso de já terem decorrido, por exemplo, 90 dias, ocorrerá o
seguinte: se já pagou a totalidade da multa, deve-lhe ser devolvido o
correspondente a 30 dias; se ainda não pagou nada, ou o correspon-
dente a 90 dias, terá de pagar o correspondente aos 90 dias, ou o que
faltar para perfazer este montante, pois, caso contrário, terá que cum-
prir 60 dias de prisão subsidiária, ou o número de dias de prisão
subsidiária que corresponder aos dias de multa que falta pagar para
completar os referidos 90 dias de multa.

2. O que se acaba de dizer para as penas principais (prisão e


multa) também se aplica às penas acessórias (CP, art. 65° ss) e às
ditas "medidas de segurança não privativas da liberdade" apli-
cáveis a imputáveis (CP, art. 100." ss). Assim, se, quando após o
trânsito em julgado da sentença condenatória que aplicou também
uma pena acessória ou uma medida de segurança não privativa da
liberdade, entrar em vigor uma lei que elimine ou reduza o tempo de
duração destas, esta nova lei é aplicada retroactivamente.
— Isto também se aplica às medidas de segurança aplicáveis a
inimputáveis.

3. Como parece óbvio, e já o. referimos abundantemente, são


razões político-criminais e jurídico-constitucionais que determinam a
retroactividade da lei penal mais favorável, mesmo que já tenha ocor-
rido o caso julgado. Não está em causa uma "questão de partes"
(p. ex., jurídico-civil ou jurídico-administratíva), mas uma "questão
punitivo-pública".
Resulta daqui que a aplicação retroactiva da lex mitior é "dever
público", o que quer dizer e implica que a aplicação retroactiva
deve ser promovida oficiosamente pelo Ministério Público.
E, para que a aplicação retroactiva da nova lei mais favorável
seja eficaz, é necessário que o requerimento dirigido pelo Ministé-
rio Público ao Tribunal seja feito dentro de um prazo relativa-
mente curto, e que o Tribunal decida também num "prazo de
urgência".
.21
322 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Relativamente a condenados a cumprir pena de prisão, devem


estes prazos ser estabelecidos por lei, cabendo ao Ministério Público
junto dos Tribunais de Execução das Penas o dever de requerer ao
respectivo Tribunal a re-determinação da pena.

4. A re-determinação da pena principal e/ou acessória (ou, no


caso das penas acessórias e das medidas de segurança não privativas
da liberdade, a sua eventual revogação, se a lei nova as eliminar)
traduzir-se-á numa redução proporcional à redução da pena legal.

5. No caso da pena de prisão, a re-determinação pode tomar-se


necessária e obrigatória, mesmo que, no momento em que entra em
vigor a lex mitior, já esteja completamente cumprida a respectiva
pena de prisão. É que não pode esquecer-se os efeitos desta pena,
nomeadamente para uma eventual decisão (no futuro) sobre a apli-
cação, ou não, da "pena relativamente indeterminada" (CP, arts. 83.71,
84.71, 86.71 e 88.°) ou sobre a declaração, ou não, de reincidência
(CP, art. 75.71).

6. Fora do âmbito da eficácia retroactiva da lei penal mais


favorável, no caso de ter transitado em julgado a sentença condena-
tória, devem ficar as chamadas "penas de substituição", incluindo
nesta categoria a "suspensão da execução da pena de prisão".
São, fundamentalmente, três as razões que procedem a favor
desta exclusão. A primeira está no facto de tal exclusão não afec-
tar o principal das exigências que determinam a retroactividade da
lei penal mais favorável. A segunda razão é a necessidade de evi-
tar uma excessiva complexidade — que poderia resultar da obriga-
toriedade de proceder a novas diligências, para a decisão de aplicar,
ou não, a pena de substituição —, o que poderia tornar a aplicaçãb
retroactiva da lei nova mais favorável de difícil praticabilidade; há,
ainda, que não esquecer, como terceira razão, a necessidade de evi-
tar injustiças relativas.
Veremos, na crítica que faremos à solução radical (que passou
"do oito para o oitenta") adoptada pelo Legislador de 2007, o sentido
e a importância destas razões.
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .323

B) A Solução Estabelecida pela Lei N.° 48/2007, de 29


de Agosto, e pela Lei N.° 59/2007, de 4 de Setembro

1. Até 15 de Setembro de 2007, o Código Penal, art. 2.°,


número 4, estabelecia o seguinte: «Quando as disposições penais
vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das
estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que
concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já
tiver sido condenado por sentença transitada em julgado».
A Lei n.° 5912007, art. 1substituiu esta parte final (que puse-
mos em itálico) pela redacção seguinte: «; se tiver havido condena-
ção, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus
efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida
atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.».
— Como parece imediatamente evidente, esta alteração, con-
quanto pusesse em causa o (inconstitucional) obstáculo do caso jul-
gado à aplicação retroactiva da lex mitior, só evitava o absurdo dos
absurdos poffico-cximinais, qual seja o de impedir que alguém pudesse
permanecer na prisão, apesar de, segundo a nova lei, já ter sido ultra-
passado o limite que o legislador passou a considerar como o máximo
de pena aceitável (e, potítico-criminalmente, justificável) para aquele
crime. Quero, com isto, dizer que esta alteração legislativa não
afastava a inconstitucionalidade do obstáculo do caso julgado à
re-determinação da pena principal (nomeadamente, a pena de prisão)
com base na lei nova mais favorável. Os princípios, que funda-
mentam a inconstitucionalidade do caso julgado penal enquanto impe-
dimento à aplicação retroactiva da lex mitior, continuavam a não ser
respeitados.
Um simples exemplo torna esta minha afirmação claramente
patente: a lei do,tempus delicti estabelecia (para o crime x) a pena de
prisão de 2 a 10 anos, enquanto a lei posterior reduziu a pena (para
o dito crime x) para prisão de 1 a 5 anos; tendo A e B praticado
este crime na mesma data (seja na mesma comarca ou em diferentes
comarcas), aconteceu que, quando entrou em vigor a lei nova, o A já
tinha sido objecto de condenação na pena de 5 anos de prisão, tendo
a respectiva sentença já transitado em julgado, ao passo que o pro-
324 1 ° Parte — O princípio da aplicação

cesso de B ainda estava em recurso, e, por força da lei nova, veio a


ser condenado em 2 anos e 6 meses de prisão; ora, uma vez que o A,
quando entrou em vigor a lei nova, ainda só tinha cumprido 1 mês de
prisão, e, sobretudo, porque a pena concreta em que foi condenado é
igual ao limite máximo desta nova lei, temos que esta lei (que redu-
ziu, substancialmente, a pena) de nada lhe aproveitará, ao contrário do
que acontece com B, a quem irá ser aplicada a nova e muito menos
gravosa lei — injustiça relativa esta que, rejeitável em si mesma, até
poderá estar associada ao facto de A até ter colaborado com a inves-
tigação, ou de B, dadas as suas disponibilidades financeiras, ter recor-
rido a todas as legalmente possíveis "manobras" dilatórias.
A conclusão é a de que a alteração, operada, na parte final do
n.° 4 do art. 2.° do Código Penal, pela Lei n." 59/2007, não. afastava
o limite do caso julgado à aplicação retroactiva da lex mitior, per-
manecendo este obstáculo, e, portanto, continuando a ser violados os
princípios político-criminais e jurídico-constitucionais da mínima
restrição possível dos direitos e liberdades fundamentais (CRP,
art. 18.°/2) e da igualdade no tratamento de situações idênticas
(CRP, art. 13.°ll-2.a parte).

2. Foi a Lei n.° 48/2007 (que entrou em vigor no mesmo dia que
a Lei n.° 59/2007:15.09.2007) que, efectivamente, eliminou o incons-
titucional obstáculo do caso julgado à aplicação retroactiva da lei
penal mais favorável.
• Na verdade, o novo art. 371."-A do Código de Processo Penal
(artigo que tem a epígrafe: Abertura da audiência para aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável) estabelece que, «Se, após o
trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a exe-
cução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o conde-
nado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja
aplicado o novo regime.».
A conclusão inequívoca é esta: a partir de 15 de Setembro
de 2007, o caso julgado de sentença condenatória deixou de impe-
dir a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável.
Esta eliminação da ressalva do caso julgado penal ao princípio
da retroactividade da lex mitior está de acordo e era mesmo exigida
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável-. 325

ao legislador ordinário, para respeito dos princípios poKtico-criminais


e jurídico-constitucionais da mínima restrição possível dos direitos e
liberdades fundamentais (CRP, art. 18.72) e da igualdade relativa
ou tratamento igual de situações jurídico-penalmente idênticas (CRP,
art. 13,71-2." parte) — princípios estes que é que constituem o fun-
damento para a inaceitabilidade de uma interpretação restritiva da
2.a parte do n.° 4 do art. 29.° da CRP, que pretendia excluir a apli-
cação retroactiva da lex mitior, quando a condenação já tivesse tran-
sitado em julgado (429"B).

C29"B) Esta interpretação restritiva — em minha opinião, constitucionalmente


inaceitável — é defendida por FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal, 2007, p. 202), com
base nos seguintes argumentos: a necessidade de "razoabilidade" na interpretação das
próprias normas constitucionais; a difícil "exequibilidade" da aplicação retroactiva,
quando já houver caso julgado; e a afirmação de que o carácter absoluto do impe-
dimento do caso julgado à retroactividade da lex mitior não diminui «o "conteúdo
essencial" do preceito constitucional constante da última parte do art. 29.°-4 da CKP.».
— Estas três afirmações ou argumentos são, copio já várias vezes o procurei
contraditar e como os exemplos que apresentei, em 1. da subsecção A), o demons-
tram, improcedentes, quanto às penas principais, nomeadamente quanto à pena de pri-
são; devendo salientar-se, mais uma vez, que é (e sempre foi) a pena de prisão o
objecto da minha argumentação a favor da afirmação da inconstitucionalidade da res-
salva do caso julgado.
As três razões, apresentadas por FIGUEIREDO DIAS, são válidas mas é para as
"penas de substituição".
Mais uma vez, FIGUEIREDO DIAS invoca — em favor da sua radical oposição
à aplicação retroactiva da lex mitior, quando já houver caso julgado — o direito ale-
mão, escrevendo que «Nem será inútil lembrar que em outras.ordens jurídicas este
limite vale mesmo para as próprias leis descriminalizadoras, v. g., na Alemanha, CP
§ 2 (3), sem que tenha sido posta em causa a sua constitucionalidade à luz do prin-
cípio da legalidade.».
Apesar de já o ter dito (cf., neste 4." Cap., I, E), 5.°), não posso, com todo o
respeito e amizade que nos une — sendo, obviamente, evidente que o que está em
causa são opiniões ou ideias e não, de forma alguma, as pessoas —, deixar de dizer
que acho, efectivamente, inútil lembrar, nesta matéria, o exemplo alemão, pois que
trata-se, realmente de um mau exemplo. Sendo, ainda, caso para fazer dois repa-
ros. Primeiro: acha Figueiredo Dias que seria "coisa" normal uma pessoa ter de pas-
sar mais dois ou três anos na cadeia pela prática de um facto que deixou, pura e sim-
plesmente, de ser crime?!... Segunda observação: o que Figueiredo Dias até parece
sugerir como aceitável faz-nos lembrar e recuar à Escola Clássica, pois esta defen-
dia que sempre e só uma lei seria aplicável, e esta era e só podia ser a lei que esti-
vesse em vigor no momento da prática do facto. Só que esta posição da Escola .Clás-
sica era coerente com a sua rigorosa concepção ético-jurídico-retributiva da pena
326 1 ° Parte — O princípio da aplicação

C) Apreciação crítica da solução radical da plena retroac-


tividade de qualquer lei penal mais favorável, estabele-
cida pelo Artigo 371.°-A do Código de Processo Penal

1. O texto do art. 371,°-A do Código de Processo Penal consagra


uma plena retroactividade da lei penal mais favorável, mesmo que já
tenha transitado em julgado a sentença condenatória. Uma tal ampli-
tude implica que a aplicação retroactiva tenha de ser feita, não só
quando a lei posterior ao caso julgado reduza a pena principal (pri-
são ou multa), mas também quando altera as chamadas "penas de
substituição".
A alteração das penas de substituição pode ser directa ou indi-
recta.
A alteração é directa, quando uma lei cria uma nova pena de
substituição (429"c) ou altera os pressupostos da aplicação de uma pena
de substituição já existente, alargando o âmbito da sua aplicação (429"D).
. A alteração é indirecta, quando, por força da lei nova que redu-
ziu a pena legal aplicável a determinado crime, a pena concreta apli-
cada já permita, ao contrário do que acontecia na vigência da lei
anterior, a sua substituição — passe a redundância — por uma "pena
de substituição". .

(Kant, Hegel) — concepção que radicava na concepção metafísica do crime, da


culpa e da pena —, mas que, nem por isso, conseguiu convencer os legisladores do
tempo e dos países onde tal concepção foi dominante; já a posição de FIGUEIREDO
D I A S parece-me manifestamente incoerente com a sua (e, hoje, dominantemente
aceite) tese de que a p Ena .tem exclusivamente uma função preventiva, e, eni primeira
linha, preventivo-especial: então, para quê manter o condenado na cadeia, se o facto
que ele praticou deixou de ser considerado crime?!, se o legislador entende que, afi-
nal, esse facto não é merecedor de pena?!...
(429-C) Ou elimina uma pena de substituição. Mas esta eliminação é, para a
questão que nos ocupa, irrelevante, uma vez que a eliminação de uma tal pena sig-
nifica que a lei nova é desfavorável e, como tal, não pode ser retroactivamente
aplicável. Ora, o que está em causa é a lei nova favorável e a sua aplicação retroac-
tiva, mesmo que já haja caso julgado.
(429-D) jy alteração dos pressupostos de uma pena de substituição também
pode traduzir-se no estreitamento dos pressupostos da aplicação de uma pena de
substituição. Mas tal situação não nos interessa, pois a lei que o fizer é uma lei des-
favorável e, como tal, não pode ser retroactivamente aplicada.
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .327

Os dois aspectos da alteração directa das penas de substituição


verificaram-se precisamente com a recente Revisão do Código Penal,
operada pela Lei n.° 59/2007. Foram criadas as penas de "permanência
na habitação" — CP, art. 44.° — e de "proibição do exercício
de profissão, função ou actividade, públicas ou privadas" — CP,
art. 43.°/3 (429_E) — como penas de substituição da pena de prisão (não
superior, respectivamente, a 1 ou 2 anos, ou a 3 anos). E foi alargado
o âmbito de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão,
passando de 3 para 5 anos a possibilidade da suspensão (CP, art. 50.°).
A lei posterior à ocorrência do caso julgado pode, portanto, ser
considerada mais favorável nas hipóteses em que acrescenta uma
pena de substituição, em que alarga os pressupostos desta, e em que
reduz os limites (nomeadamente, o máximo) da pena principal.
E sendo-o, ou podendo ser, não pode o Tribunal deixar de reabrir o
processo, por força do art. 371.°-A do CPP, a fim de substituir (no
caso de se verificarem os pressupostos da substituição previstos pela
lei nova) a pena principal pela pena de substituição.

2. Mas a substituição da pena principal (nomeadamente, a pena


de prisão) por uma pena de substituição pode implicar — e, à primeira
vista, parece-me que implicará em muitos casos — a realização de
diligências em ordem a verificar se existem, no caso concreto, os
pressupostos da substituição. Com efeito, não se trata, obviamente,
de uma substituição automática, mas de uma substituição subordinada
ao juízo do Tribunal de que a pena de substituição «realiza de forma
adequada e suficiente as finalidades da punição» (cf. arts. 43.°/l e 3,
44.71, etc.).
Ora, se não constarem do processo os elementos necessários
para o Tribunal poder, seriamente, tomar a decisão de substituição (ou
não), terá de ordenar que sejam feitas as investigações ou diligências
indispensáveis para tal fim. Tais diligências implicarão uma sobre-

(429-B) À primeira vista, não parece, político-criminalmente, adequado que,


relativamente a agentes que exercem actividades públicas, a "proibição do exercício
de funções" esteja legalmente prevista como pena acessória (art. 66.°) e como pena
de substituição (art. 43.73).
328

carga de trabalho para os Tribunais que — uma vez salvaguardado


o essencial, que é o que tem que ver com as penas principais,
nomeadamente com. a pena de prisão — não se justifica.

3. Há, pelo menos, ainda uma outra razão contra a plena apli-
cação retroactiva da lei nova que altere directamente as penas de
substituição, ou que determine indirectamente a sua aplicação em
consequência da redução da pena principal (429~F); esta razão é a
necessidade de respeitar o princípio da igualdade.
Talvez que o melhor caminho para compreendermos este argu-
mento contra a extensão do âmbito da retroactividade às penas de
substituição seja o de atentarmos nos poucos (poucos, para já ...)
casos que os Tribunais das Relações já tiveram que decidir.
Confrontemos a Decisão do Tribunal da Relação de Guima-
rães, proferida no Acórdão de 10 de Dezembro de 2007 (processo
n.° 2361/07-1), com a Decisão do Tribunal da Relação do Porto, pro-
ferida no Ácórdão de 23 de Janeiro de 2008 (processo n.° 0747167).

O sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães


diz o seguinte: «I — Sendo um arguido condenado por um crime de
furto qualificado p. e p. pelos arts. 203°, n.° 1, e 204°, n.° 2, al. e),
por referênciá ao art. 202.°, al. d) do Código Penal, na pena de 2
(dois) anos e 3 (três) meses de prisão, que está a cumprir, não lhe
é aplicável o regime de reabertura da audiência previsto no
art. 371.°-A do novo Código de Processo Penal, com vista à sus-
pensão da pena, pois, com tal preceito, o legislador não visou, a
pretexto da entrada em vigor da Lei Nova, dar ao arguido a oportu-
nidade de um segundo julgamento, onde possam ser colmatadas defi-
ciências do primeiro ou ser considerados novos factos.

(429-F) As eventuais desvantagens político-criminais resultantes da inaplicabi-


lidade da retroactividade favorável às penas de substituição podiam ser anuladas
com o alargamento das possibilidades de os Tribunais de Execução das Penas mode-
larem, dentro dos limites estabelecidos pela lei, a execução da pena de prisão: como
poderem decidir a substituição da prisão contínua por regime de semidetenção ou pri-
são por dias livres, etc. Para tal é necessário que estes Tribunais deixem de ter um
estatuto secundário ou de menoridade.
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .329

II —• A redacção do art. 371.°-A do CPP é unívoca ao estabe-


lecer que a audiência nele prevista limita-se à aplicação do novo
regime penal mais favorável, ou seja, não basta que tenham exis-
tido alterações na lei penal geral, mas é necessário que o novo regime
contenha, pelo menos, uma qualquer norma que permita conjecturar
que, se já existisse, no momento da condenação, poderia ter levado
a uma decisão concretamente mais favorável ao arguido.
Hl — Ora, no caso, não existe nenhuma alteração na definição
dos elementos típicos do crime, na moldura penal abstracta, na espé-
cie de pena aplicável, nos critérios para a determinação da medida
concreta da pena de prisão, ou nos requisitos substantivos da sus-
pensão da execução da prisão.
IV — Tendo o arguido sido condenado em pena de prisão infe-
rior a três anos, a não opção pela suspensão decorreu de não ter sido
formulado o juízo de que "a simples censura do facto e a ameaça da
prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da
punição" e, nesta parte, são coincidentes as redacções da anterior
e da nova lei.».
"Foram estes, em resumo, os fundamentos da Decisão (correcta)
de indeferimento da reabertura da audiência: tal como a lei nova
(entrada em vigor depois do trânsito em julgado da sentença conde-
natória), também a lei antiga permitia que a concreta pena aplicada
(prisão não superior a.três anos) pudesse ser substituída pela "pena
de substituição" de suspensão da execução. O Tribunal entendeu
que não se verificavam os pressupostos da suspensão, pois conside-
rou que a esta suspensão se opunham as razões e necessidades de pre-
venção. O Tribunal tomou esta decisão, obviamente, em função das
circunstâncias (relativas ao facto e, nomeadamente, ao agente) exis-
tentes no momento da condenação.

Vejamos, agora, a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do


Porto (Acórdão de 23.01.2008, acima referido) cujo sumário é do
seguinte teor: «Em caso de reabertura da audiência para os efeitos pre-
vistos no art. 371.°-A dò Código de Processo Penal, os factos a con-
siderar na decisão são os da sentença ou sentenças em causa e os que
se provarem nessa audiência.
330 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Interessa fixarmos os pontos relevantes para a questão que nos


ocupa, questão que se reconduz ao seguinte: sem menosprezar a
complexidade e consequente sobrecarga de trabalho para os tribu-
nais, a aplicação, às penas de substituição, da retroactividade da
lei penal mais favorável — entrada em vigor depois de ter transitado
em julgado a sentença condenatória — pode dar origem a situações
de injustiça relativa.
Façamos, em primeiro lugar, o resumo dos factos, què foram
objecto de condenação em tês anos e cinco meses de prisão, transi-
tada em julgado em Dezembro de 2005; olhemos, em seguida, a
decisão de não suspensão da execução desta pena, decisão profe-
rida em Acórdão do Tribunal Criminal do Porto, em 10 de Dezem-
bro de 2007, na sequência da reabertura da audiência, com base
no art. 371.°-A do CPP, e no art. 50.71 do CP (que, a partir de
15.09.2007, permite a suspensão da execução da pena de prisão não
superior a 5 anos); analisemos, em terceiro lugar, os fundamentos
invocados, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, para a
decisão de suspender a execução da referida pena de 3 anos e
5 meses de prisão.
— Resumo dos factos: crime de ofensa à integridade física sim-
ples, cometido em 30.05.1999, e crime de homicídio, na forma ten-
tada, cometido na mesma data, tendo sido objecto de condenação na
pena única de 3 anos de prisão, pena que ficou suspensa pelo período
de 3 anos, e condenação que transitou em julgado em 24 de Janeiro
de 2003; crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade,
cometido em 04.06.2001, e crime de detenção de arma proibida,
cometido nesta mesma data. Feito o cúmulo jurídico com as penas
aplicadas no processo anterior (cuja decisão condenatória em 3 anos
de prisão, com a pena suspensa, já tinha transitado em julgado), e
tendo sido interposto recurso, foi o arguido, por Acórdão proferido pelo
Supremo Tribunal de Justiça, em 7 de Dezembro de 2005, conde-
nado na pena única de 3 anos e 5 meses de prisão. Como é óbvio,
esta pena não pôde ser suspensa, pois, nesta altura, só eram suscep-
tíveis de tal suspensão as penas não superiores a 3 anòs de prisão.
Estando o condenado a cumprir esta pena de 3 anos e 5 meses
de prisão, desde 14 de Agosto de 2006, sucedeu que, em 15
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .331

de Setembro de 2007, entraram em vigor o art. 371.°-A do CPP, e a


nova redacção• do art. 50."fl do CP, que, como sabemos, estabele-
ceram, respectivamente, a aplicação retroactiva da lei penal mais
favorável, mesmo que já tenha transitado em julgado a sentença con-
denatória, e a possibilidade de suspensão da pena de prisão não supe-
rior a 5 anos. Com base nestas novas disposições jurídico-penais, o
condenado requereu a reabertura da audiência, afim de ficar com a
sua pena suspensa.
Fundamentos da negação da suspensão da execução da pena
de 3 anos e 5 meses de prisão, constantes do respectivo Acórdão
proferido pelo Colectivo do Tribunal Criminal do Porto, em 10
de Dezembro de 2007: embora reconhecendo, com base no Relató-
rio elaborado pelo Instituto de Reinserção Social, em 28 de Setem-
bro de 2007, que, na perspectiva da prevenção especial, não havia
objecções à suspensão da execução da pena, todavia considerou que
razões de "prevenção geral positiva" (nomeadamente, a necessidade
de «manter a confiança da comunidade na validade da norma violada
pelo cometimento do crime», tendo, especialmente, em conta, a ten-
tativa de homicídio) se opunham à suspensão da execução da pena.
Importa, ainda, destacar que, segundo este Acórdão, os factos a ter
em conta, para a «eventual aplicação retroactiva da lei penal [são]
os factos fixados na decisão anterior à entrada em vigor da nova lei»;
ideia esta repetida, no mesmo acórdão, pelas seguintes palavras: «Os
factos a considerar para a aplicação retroactiva da lei são os factos
apurados e descritos no acórdão transitado em julgado».
- Chegamos, agora, à Decisão do Tribunal da Relação do Porto,
de 23 de Janeiro de 2008, o qual deu provimento ao recurso, deci-
dindo suspender a execução da pena de prisão.
A análise deste acórdão é importante, pois creio demonstrar-
nos (sobretudo, se tivermos presente o Acórdão do Tribunal da Rela-
ção de Guimarães, acima analisado) que a aplicação, às penas de
substituição, da lei nova mais favorável, quando já houver caso jul-
gado, ou obrigará a um trabalho eventualmente "incomportável"
(trabalho não justificável, tendo em conta que o essencial está sal-
vaguardado com a aplicação às penas principais, nomeadamente, à
pena de prisão, e, embora não com tanta acuidade, também às penas
332 1 ° Parte — O princípio da aplicação

acessórias e às medidas de segurança) ou gerará situações de injus-


tiça relativa
O Acórdão da Relação do Porto começa por discordar da afir-
mação do acórdão recorrido, afirmação que, acima, pus em itálico
e que diz que, na audiência reaberta, o tribunal não vai ter em conta
factos novos, mas apenas tem que se ater aos factos «apurados e des-
critos no. acórdão transitado em julgado». A esta afirmação contrapõe
o acórdão da Relação do Porto: «Este entendimento da decisão
recorrida parece-nos contrariar a norma à luz da qual a audiência
foi reaberta. Se o art. 371.°-A do CPP estabelece que, em caso de
sucessão de leis e havendo trânsito .em julgado da decisão, o con-
denado pode requerer a reabertura da audiência (para que lhe seja
aplicado o novo regime) é porque entende que pelo menos o con-
denado pode produzir prova tendente à demonstração de factos favo-
ráveis aos seus objectivos. E se pode produzir prova, então os fac-
tos daí resultantes terão que ser considerados na decisão a proferir:
esta terá que atender aos novos factos resultantes da audiência rea-
berta e, consequentemente, não se pode confinar aos factos descritos
e apurados na decisão transitada. Se os factos a atender com vista
à aplicação do novo regime fossem, apenas e tão só, os fixados na
decisão anterior à entrada em vigor da nova lei, para quê realizar
diligências, reabrir a audiência, se tudo o que dela resultasse fosse
irrelevante? Qual a razoabilidade de reabertura da audiência se os
factos desta resultantes não pudessem ser considerados!».
E conclui, logo de seguida, o Acórdão: «Entendemos, pois, que
os factos a considerar, em sede da decisão proferida na sequência
do disposto no art. 371.°-A do CPP, serão os descritos na decisão
transitada mais os que resultarem desta audiência.».
Aplicando este entendimento ao caso "sub iudice", o Acórdão,
tendo, entre outros factores, atendido ao Relatório elaborado pelo Ins-
tituto de Reinserção Social, em 28 de Setembro de 2007 (Relatório,
onde se afirma que o condenado, «Desde que está detido, tem man-
tido um comportamento correcto, não existindo qualquer registo dis-
ciplinar. Aproveitou para reiniciar os estudos, concluiu ò primeiro
ciclo escolar e está a frequentar o segundo ciclo», acrescendo que dei-
xou, há vários anos, de consumir drogas), decidiu «suspender a
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .333

pena aplicada ao arguido, porque a censura do facto e a ameaça


da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da
punição.».

— Apreciação destes dois Acórdãos (o da Relação de Guima-


rães e o da Relação do Porto) e conclusões sobre a desnecessidade
político-criminal e sobre os inconvenientes da extensão da aplica-
ção da lei nova às penas de substituição:
Analisando as decisões contidas nos dois Acórdãos, parece-me
que ambas estão, correctas: a da Relação de Guimarães confirmou o
indeferimento do requerimento de reabertura da audiência (feito com
base no art. 371.°-A do CPP), uma vez que a alteração operada no
art. 50.°/l do CP — passagem de não superior á 3 para não superior
a 5 anos de prisão — só pode ter por objecto de aplicação retroac-
tiva as condenações transitadas em julgado em penas de prisão supe-
riores a 3 anos e não superiores a 5 anos; a decisão da Relação do
Porto suspendeu a execução da pena de 3 anos e 5 meses, uma vez
que, reaberta a audiência, por força da alteração do art. 50.71 do
CP e do novo art. 371.°-A do CPP, considerou que, no momento da
decisão a tomar na audiência reaberta, se verificavam as condições
para a suspensão da execução da pena de prisão, condições referidas
na 2.a parte do mencionado art. 50.71 do Código Penal.
Mas a interpretação e os fundamentos invocados no Acórdão da
Relação de Guimarães (e no Acórdão do Tribunal Criminal do Porto)
são completamente divergentes da interpretação e dos fundamentos
invocados no Acórdão da Relação do Porttí. E a divergência — que
é essencial — está no seguinte: enquanto que, para o Acórdão da
Relação de Guimarães (e do Tribunal Criminal do Porto), não há
lugar para novas diligências, devendo a decisão de substituição, ou
não, da pena principal pela pefla de substituição basear-se somente nos
factos e circunstâncias constantes da sentença transitada em julgado,
já, para o Acórdão da Relação do Porto, a decisão de substituição, ou
não, da pena principal pela pena de substituição — decisão a profe-
rir no termo da audiência — tem de atender a novos factos ou cir-
cunstâncias, resultantes de eventuais novas diligências consideradas
necessárias para a respectiva decisão.
334 1 ° Parte — O princípio da aplicação

De iure constituto, isto é, analisando o art. 371.°-A do CPP,


cremos que a razão está com a inteipretação feita pelo Apórdão da
Relação do Porto: se é reaberta a audiência para se decidií se deve
ser aplicado o novo regime mais favorável, parece razoável que se
tenham de ter em consideração as circunstâncias eventualmente novas,
que se verifiquem no momento de decidir com base na nova lei.
Mas, se atentarmos bem, veremos que esta solução — para além
de não ser imperiosa, na perspectiva da política criminal, e de impli-
car um acrescido trabalho para os tribunais — gera situações de
injustiça relativa. Os dois casos apreciados pelos Tribunais da Rela-
ção de Guimarães e da Relação do Porto servem para nos patentear
esta injustiça. Enquanto que o condenado em 2 anos e 3 meses de
prisão não pôde beneficiar da suspensão da execução da pena de pri-
são, já o condenado em 3 anos e 5 meses de prisão pôde beneficiar
de tal suspensão! E qual a razão deste diferente tratamento? A res-
posta está no facto de ao primeiro ter sido recusada a possibilidade
de uma avaliação da sua, digamos "personalidade", da evolução do
seu comportamento, posteriormente ao trânsito em julgado da sentença
condenatória, enquanto que ao segundo condenado numa pena mais
grave foi concedida, por força da nova lei, a possibilidade de uma
avaliação do seu comportamento posterior ao trânsito em julgado da
sentença condenatória.
Deve observar-se que esta argumentação contra a aplicação (da
retroactividade da lei mais favorável, apesar de já haver caso jul-
gado) à suspensão da execução da pena de prisão também vale para
as outras penas de substituição, como, por exemplo, para a "prisão por
dias livres".
Poder-se-ia contrapor que a forma de evitar estas situações de
injustiça relativa era rever todas as situações, mesmo aquelas a que,
em abstracto, não são abrangidas pela nova lei mais favorável; exem-
plificando — para não nos alongarmos demasiado —: no caso da
elevação dos 3 para os 5 anos de prisão (a que nos temos referido),
a reabertura da audiência teria lugar não somente para os condena-
dos em penas entre mais de 3 anos de prisão e 5 anos de prisão,
mas também para os condenados em penas de prisão até 3 anos.
Mas uma tal solução poderia ser praticamente incomportável.
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .335

A conclusão é a seguinte: de iure constituendo, as "penas de


substituição" devem ficar fora do âmbito da aplicação retroactiva da
lei penal mais favorável, quando, obviamente, já tiver transitado em
julgado a sentença condenatória.
— Devemos fazer, aqui, uma breve nota sobre a necessidade
de o legislador articular as chamadas "penas de substituição" com a
execução da pena de prisão, nomeadamente com as penas de prisão
de curta ou média duração. E, neste aspecto, é caso para perguntar:
por que não alargar as possibilidades de os Tribunais de Execução
das Penas modelarem,' dentro
i dos limites estabelecidos na lei,' a exe-
cução da pena de prisão?-, por que não lhes atribuírem a competên-
cia de substituição da prisão contínua por "regime de semidetenção"
ou "prisão por dias livres"?
Nestas interrogações, que acabo de colocar, vai, obviamente, uma
critica ao Legislador. Nà verdade, não percebo como é possível fazer
tão amplas Reformas dos Códigos Penal e do Processo Penal e esque-
cer a Reforma da Execução das Penas e Medidas de Privação da Liber-
dade; nem se compreendé que os Tribunais de Execução das Penas con-
tinuem "apagados", distantes, dando a sensação de terem um estatuto
secundário e de menoridade, reduzidos (os respectivos Juízes e Magis-
trados do Ministério Público), porventura, a um papel de "despachantes"
dos "papéis" colocados, nas suas secretárias, pelos gestores prisionais.

4. Depois de ter salientado a importância — em nome dos prin-


cípios constitucionais e das exigências de uma política criminal huma-
nista — da abolição do obstáculo do caso julgado à aplicação retroac-
tiva da lex mitior, mas também de ter criticado o radicalismo do
art. 371.°-A do CPP, será compreensível que apresente uma proposta
nesta matéria.
Mas, antes de a apresentar, devo, para além das críticas que já
fiz, acrescentar mais dois reparos ao art. 371.°-A do Código de
Processo Penal.
— Este artigo condiciona a aplicação retroactiva da lei penal
mais favorável à não execução completa da pena aplicada na sentença
transitada em julgado: «Se, após o trânsito em julgado da condena-
ção mas antes de ter cessado a execução da pena [...]».
336 1 ° Parte — O princípio da aplicação

Entendo que esta condição, que restringe a aplicabilidade da


lex mitior, não é razoável, pois esquece os efeitos da condenação
numa determinada pena. Assim, nomeadamente nos casos de rein-
cidência e da pena relativamente indeterminada, a não aplicação
retroactiva da lex mitior (quando já tiver sido cumprida a pena) pode
traduzir-se, indevidamente, numa futura condenação como reinci-
dente (CP, art. 75.71) ou na aplicação de uma pena relativamente
indeterminada (CP, arts. 83.71, 84.71, 86.71, 88.°), enquanto que, se,
como deveria, tivesse sido aplicada a lex mitior, os pressupostos des-
tas duas figuras poderiam não se verificar.
— Também é criticável tornar a aplicação retroactiva da lex
mitior dependente de requerimento do condenado: «Se [...],.o con-
denado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja apli-
cado o novo regime.». Criticável, pois que não estamos perante um
"interesse privado", não estamos diante de uma "questão de partes",
mas sim diante de um "interesse" público, ou seja, está em causa uma
questão e um princípio político-criminal e constitucional da mínima
restrição possível dos direitos e das liberdades fundamentais. Logo,
o impulso, o requerimento para a aplicação da lex mitiór deve ser ofi-
cioso, deve ser função do Ministério Público. Acresce a esta razão
de princípio a razão prática de justiça social: evitar que os mais
"desgraçados", isto é, os económico-socialmente desfavorecidos (que
estão "esquecidos" nas prisões) acabem por não beneficiar da nova
lex mitior.

5. Depois de ter salientado a importância — em nome dos prin-


cípios constitucionais e das exigências de uma razoável política cri-
minal — da abolição do obstáculo do caso julgado à aplicação retro-
activa da lex mitior, mas também de ter criticado, no art. 371.°-A
do CPP, por um lado, o radicalismo (que, ao não excluir as penas de
substituição, é gerador de complexificação e de dificuldades na sua
aplicação prática) e, por outro, o esquecimento dos efeitos da con-
denação, e a dependência da aplicação da lex mitior da iniciativa do
condenado, será aconselhável que procure esboçar uma proposta,
que, mantendo o fundamental do princípio, evite as apontadas des-
vantagens.
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .337

Penso que o princípio da aplicação retroactiva da lex mitior


— quando já tiver transitado em julgado a sentença condenatória —
e o seu âmbito devem estar no n.° 4 do art. 2 ° do Código Penal; o
procedimento para a sua efectivação deve ser regulado no Código de
Processo Penal.
— O actual n.° 4 do artigo 2.° do Código Penal seria dividido
em duas partes, com a seguinte redacção:

Artigo 2.° (Aplicação no tempo)

1 - [•"]
2 - [ . . . ]
3 - [...]
4 — Quando as disposições penais vigentes no momento da
prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis pos-
teriores, é sempre, aplicado o regime que concretamente se mostrar
mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por
sentença transitada em julgado.

Mas a lei, que reduza as penas principais, que elimine ou reduza


as penas acessórias ou as medidas de segurança, aplica-se, mesmo que
já tenha transitado em julgado a sentença condenatória. A eficácia
desta lei, entrada em vigor posteriormente ao trânsito em julgado da sen-
tença condenatória, restringe-se à pena principal, à pena acessória e à
medida de segurança; e traduz-se, no caso de redução legal destas
consequências jlmdico-criminais, numa redução da sanção concretamente
aplicada proporcional à redução legal, e, no caso de eliminação da
pena acessória ou da medida de segurança, na extinção destas.

— O artigo, a estabelecer o procedimento para a efectivação


do disposto nesta 2.a parte do n.° 4 do art. 2.° do Código Penal,
deveria, porventura, passar a ser o art. 470 °-A do Código de Processo
Penal, com o seguinte teor:

Artigo 470.°-A (Aplicação retroactiva da lei mais favorável)


1 — Para efeito do disposto na 2.a parte do n.° 4 do artigo 2 °
do Código Penal, compete ao Ministério Público oficiosamente, ou ao
338 1 ° Parte — O princípio da aplicação

condenado, requerer ao Tribunal, que proferiu a decisão em primeira


instância, a re-determinação da pena principal, da pena acessória ou
da medida de segurança aplicada, ou a extinção da pena acessória ou
da medida de segurança, mesmo que estas penas ou medidas já
tenham sido cumpridas.
2 — No caso de o condenado estar a cumprir a pena de prisão,
quando entra em vigor a lei nova, o Ministério Público do Tribunal
de Execução das Penas apresenta o requerimento, a que se refere o
número anterior, no prazo de quinze dias a contar da entrada em
vigor da referida lei.
3 — No caso referido no número anterior, o juiz do Tribunal, a
que se refere o n.° 1, ordena, no prazo de oito dias a contar da recep-
ção do requerimento referido no n.° 2, a notificação do Ministério
Público junto deste Tribunal e do condenado e do seu defensor, com
a indicação da sua decisão sobre a pena e/ou medida de segurança
re-determinada, ou sobre a extinção da pena acessória ou da medida
de segurança, por força da nova lei mais favorável.
a) Deconidos oito dias a contar da recepção da notificação do
Tribunal, e não havendo oposição do Ministério Público ou do con-
denado à decisão, o juiz, no prazo de oito dias, profere despacho
que vale como sentença e transita imediatamente em julgado; este des-
pacho é, imediatamente, comunicado ao respectivo Tribunal de Exe-
cução das penas, sendo dele, imediatamente, notificados, o Ministé-
rio Público e o condenado;
b) Havendo oposição do Ministério Público ou do condenado,
esta oposição, com os respectivos fundamentos, tem de ser decla-
rada, no referido prazo de oito dias, ao Tribunal. Este, dentro do
prazo de oito dias a contar da recepção da declaração, profere a sua
decisão em despacho fundamentado, do qual serão, imediatamente,
notificados o Ministério Público e o condenado. Esta decisão é sus-
ceptível de recurso para o Tribunal da Relação, que, no prazo de
quinze dias, profere decisão definitiva.
4 — Não estando o condenado a cumprir pena de prisão, a
re-determinação ou a declaração de extinção, a que se refere o n.° 1,
podem ser requeridas em qualquer momento; no caso de julgamento
por um outro crime, se ainda não tiverem sido requeridas, podem
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .339

ser requeridas pelo arguido ou, oficiosamente, pelo Ministério Público


junto do Tribunal do Julgamento, sendo pór este decididas.

D) Apreciação Crítica da Posição de Paulo Pinto de Albu-


querque

Paulo Pinto de Albuquerqe (429"G), nas suas anotações ao Código de Pro-


cesso Penal (na versão de 2007), põe inteiramente de lado a histórica ratio
político-criminal e jurídico-constitucional do princípio ne bis in idem, e "esquece"
ou secundariza os princípios fundamentais — não só político-criminais mas até
jurídico-constitucionais — da máxima restrição da pena e da igualdade (CRP,
arts. 18.72 e 13.71).
Com todo o respeito, as anotações, que faz ao novo art. 371.°-A do Código
de Processo Penal e à 2 ° parte do n.° 4 do art. 2.° do Código Penal, quase se
resumem a meras afirmações de inconstitucionalidade, pois que não se vê uma
fundamentação minimamente consistente do que afirma ser, ou não ser, incons-
titucional.
Este Autor afirma, nas anotações (14 e ss.) ao art. 375.° (embora tais ano-
tações tenham por objecto o art. 371.°-A), que «os novos artigos 2 ° , n.° 4, in
fine, do CP e 371.°-A do CPP são, nos termos expostos, inconstitucionais.».
Vejamos o que leva Paulo Pinto de Albuquerque a tão rotunda e inovadora
afirmação. Inovadora, pois que, até agora, o que a maior parte da doutrina por-
tuguesa — e várias "declarações de voto" exaradas em Acórdãos do Tribunal
Constitucional (429*H) — afirmava era precisamente o contrário: a inconstitu-

(429"°) Comentário do Código de Processo Penal — à luz da Constituição da


República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Cató-
lica Editora (de Lisboa), 2007.
C29"H) Leiam-se, entre várias outras, as extensas, profundas e claras "declarações
de voto" dos Conselheiros José de Sousa e Brito e de Maria dos Prazeres Pizarro
Beleza, no Acórdão n.° 664/98, acórdão que, curiosamente, Paulo de Albuquerque
refere em seu favor, em termos que levarão o-leitor desprevenido a pensar que este
acórdão foi votado por uma mais que unanimidade absoluta ...
Também considero metodologicamente heterodoxo e abusivo que este Autor,
na anotação 25, escreva: o disposto, nos arts. 2.°, n.° 4, parte final, do CP, e 371.°-Á
do CPP, «contraria frontalmente a referida jurisprudência constitucional», ao viola-
rem «a garantia constitucional do caso julgado».
— Este discurso não é correcto, pois constitui uma extrapolação inteiramente
inadmissível: como é evidente, uma coisa é a Decisão de inconstitucionalidade, ou
não, do anterior obstáculo do caso julgado (anterior redacção da parte final do n.° 4
do art. 2.° do CP) à aplicação retroactiva da lex mitior, outra coisa, bem diferente,
340 1 ° Parte — O princípio da aplicação

cicmáliciade do limite do caso julgado à aplicação retroactiva da lei penal mais


favorável.
O Autor faz preceder esta sua inovadora afirmação da inconstitucionalidade
das referidas novas disposições do Código de Processo Penal e do Código Penal
das seguintes afirmações: «A solução maximalista do CPP esbarra com o prin-
cípio constitucional da protecção do caso julgado. Mas também a solução
minimalista do CP, em que não há novo julgamento, mas uma simples ordem
judicial de soltura do condenado quando esteja atingido o limite da pena apli-
cável da nova lei penal mais favorável, embora antes de ser atingido o limite da
pena concreta que lhe foi aplicada e transitou, viola de igual modo o bem jurí-
dico-constitucional do caso julgado. Em síntese, o caso julgado sofre ataque inad-
missível, haja ou não novo julgamento, o que contraria frontalmente a referida
jurisprudência constitucional e internacional.».
— Quase apetece dizer que só faltava acrescentar que até a própria "liber-
dade condicional" é inconstitucional, pois seria violadora do casò julgado: se foi
condenàdo em seis anos de prisão, terá, inevitavelmente, de permanecer, no
estabelecimento prisional, durante esses seis anos! ...
Para não nos alongarmos — pois acho que não se justifica — transcrevamos
apenas algumas das afirmações feitas por Paulo Pinto de Albuquerque.
Começa (anotação 14) por escrever: «O princípio da segurança jurídica ine-
rente ao Estado de Direito (artigo 2 ° da CRP), o princípio da força vinculativa espe-
cial das decisões dos tribunais (artigo 205°, n.° 2, da CRP), o princípio do ne bis

é a Decisão de inconstitucionalidade, ou não, da aplicação retroactiva da lex mitior,


apesar de a sentença condenatória já ter transitado em julgado.
Ora, como é evidente, nunca, ao Tribunal Constitucional, foi posta a questão
da eventual inconstitucionalidade de normas inexistentes ...
Logo, é descabida de sentido a afirmação de que o disposto, na 2.a parte do
n.° 4 do art. 2 ° do Código Penal, e no art. 371.''-A do Código de Processo Penal
(vigentes a partir de 15 de Setembro de 2007), «contraria frontalmente a referida juris-
prudência constitucional».
— Figueiredo Dias (Direito Penal, 2007, pág. 202), apesar de, repetidamente,
ter defendido a não inconstitucionalidade da anterior (vigente até 15 de Setembro
de 2007) ressalva do caso julgado à aplicação retroactiva da lex mitior — posição
que eu e a maioria da doutrina temos contestado — não deixa, todavia, de ter por
evidente que o legislador pode eliminar uma tal ressalva, sem qiie tal eliminação
possa, nem de longe nem de perto, ser susceptível de uma qualquer objecção de
inconstitucionalidade. Assim, escreve: «A conformidade com o art. 29.°-4 da CRP
da ressalva de casos julgados prevista no art. 2.°-4 do CP não significa, como é
evidente, que a mesma não possa ser eliminada ou restringida, fruto de uma nova
opção legislativa.». E, a seguir, refere-se, precisamente, ãs propostas de lei, que vie-
ram a concretizar-se em Lei, nas actuais 2." parte do n.° 4 do art. 2.° do CP, e no
art. 371.''-A do CPP.
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .341

in idem penal (artigo 29.°, n.° 5 da CRP), o princípio da revisão de sentença


penal em benefício do réu injustamente condenado (artigo 29.°, n.° 6 da CRP) e
o regime da ressalva do caso julgado previsto pelo artigo 282.°, n.° 3, da CRP, per-
mitem afirmar o direito de cidadania constitucional do princípio da tutela do
caso julgado dentro e fora do processo penal,», E, logo de imediato, enaltece
a nossa Constituição; pois que esta, nos artigos que o Autor acabou de referir, não
fica nada atrás da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em matéria de
consagração e sacralizaçâo do tão importante caso julgado!..., dizendo: «A Cons-
tituição da República não fica, pois, aquém da garantia do caso julgado fora do
processo penal decorrente do artigo 6.°, n.° 1, da Convenção Europeia dos Direi-
tos do Homem e da garantia do caso julgado no processo penal reconhecida pelo'
artigo 4 ° do protocolo adicional n.° 7 à Convenção».
— Uma vez que o Autor não nos esclarece a importância e a relação que
os arts. 2." e 205,72 da CRP tem com a sua afirmação da inconstitucionalidade da
retroactividade da lei penal mais favorável, quando já tiver transitado em julgado
a sentença condenatória, e não nos explica o que é isso de "direito de cidadania
do caso julgado" ("dentro e fora do processo penal"), tivemos que ir lê-los e, sin-
ceramente, não vemos, pelo menos eu não vejo, nenhuma relação. Pois, em que
é que «a garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais» — supo-
nho que é este inciso que estará na mente do Autor (42SM) — é posta em causa com
as novas disposições que determinam.que seja aplicável, retroactivamente, a lei penal
mais favorável? Note-se que não é a lei civil ou administrativa que está em causa
... — Sinceramente, não consigo ver qualquer incompatibilidade; pelo contrário,
até me parece que, tendo em conta o princípio da mínima restrição possível dos
direitos fundamentais (CRP, art. 18.°/2), tal inciso vai no sentido oposto ao que Paulo
de Albuquerque pretende. O mesmo se diga da invocação do art. 205.72 da
CRP ( 42W ): não vejo o que uma coisa tenha a ver com a outra.
Também não vejo como é que o Autor consegue descobrir, no n.° 6 do
art. 29.° da CRP — direito à revisão de sentença (429;L) — um argumento a favor

(429-i) CRP, art. 2 ° (Estado de Direita Democrático«A República Portuguesa


é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de
expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efecti-
vação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de
poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o apro-
fundamento da democracia participativa.».
(429-j) CRP, art. 205.°, n.° 2: «As decisões dos tribunais são obrigatórias para
todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras auto-
ridades». — Observe-se apenas: mas parece que as decisões dos Tribunais estão
"sujeitas" àLei ...
(429-L) CRP, art. 29.°, n.° 6: «Os cidadãos injustamente condenados têm direito,
nas condições que a lei prescrever, ã revisão da sentença [•••]•»•
342 1 ° Parte — O princípio da aplicação

da sua afirmação de que as normas, que eliminaram a ressalva do caso julgado


à aplicação retroactiva da lex mitior, são inconstitucionais!
Quanto à ressalva do caso julgado, no caso de declaração de inconstitu-
cionalidade (art, 2 8 2 ° , n.° 3, da CRP), basta só dizer que o Autor até entra em
contradição consigo mesmo (429~M): é que, se, aqui, considera tal ressalva como
um argumento a favor da sua afirmação de inconstitucionalidade da abolição do
caso julgado enquanto obstáculo à aplicação retroactiva da lei penal mais favo-
rável, mais à frente (anotação 24) vem a reconhecer como razoável — o que é,
obviamente, tão defensável quanto inaceitável (42D"N) é a equiparação que faz entre
caso julgado penal e caso julgado não penal (p. ex., civil, administrativo) — a
excepção da não ressalva do caso julgado, quando esteja em causa uma sentença
condenatória com base numa lei penal desfavorável, que venha a ser declarada
inconstitucional.
Relativamente ao argumento que pretende encontrar no princípio ne bis in
idem — CRP, art. 2 9 ° , n.° 5; CEDH, art. 6.°, n. 1; Protocolo n.° 7 à CEDH,
art. 4 ° ( 429 -°) —, já vimos que a posição de Paulo de Albuquerque esquece a

(429"M) Contradição em que, entre muitos outros, não incorrem Gomes Cano-
tilho e Vital Moreira, CRP — Constituição da República Portuguesa anotada, 1,2007,
anotação VH ao art. 29°. Assim, estes Autores vêem, precisamente na excepção pre-
vista, no art. 282.°/3, para o caso julgado penal (e punitivo não penal: contra-orde-
nacional e disciplinar), um argumento a favor da retroactividade da lex mitior,
mesmo que já tenha transitado em julgado a sentença condenatória.
Escrevem: «Se é proibida a aplicação retroactiva da lei penal desfavorável, já
é obrigatória a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (n.° 4, 2." parte).
Se o legislador [...] passa a puni-la [a conduta] menos severamente, então essa
nova valoração legislativa deve aproveitar a todos [...]. ». «[...] devendo notar-se
que, quando a Constituição manda respeitar os casos'julgados nos casos de decla-
ração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc, admite uma excepção exactamente
para a lei penal (ou equiparada) mais favorável. De facto, não faz sentido que
alguém continue a cumprir uma pena por um crime que, entretanto, [...] passou a
ser punido com pena mais leve.».
(429-N) Cf., neste 4 ° Cap., I, B).
(429-0) CRP, art. 29°, n.° 5: «Ninguém pode ser julgado mais que uma vez pela
prática do mesmo crime.».
— CEDH, art. 6 ° ("Direito a um processo equitativo"), n.° 1: «Qualquer pes-
soa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num
prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual
decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil,
quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria criminal dirigida contra
ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proi-
bido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a
bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade
democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das par-
4." Capítulo — O caso julgado e a lei mais favorável - .343

ratio histórica e actual da consagração político-criminal e jurídico-constitucio-


na] do princípio ne bis in idem ( 429_p ) e "mete no mesmo saco" o caso julgado
penal e o caso julgado não punitivo (civil, etc.).
Só mais algumas curiosidades destas anotações de Paulo de Albuquerque:
«O valor do caso julgado só pode ser postergado excepcionalmente e por
outros princípios constitucionais de idêntico ou maior valor.»; «O princípio
constitucional da protecção do caso julgado prevalece então sobre o princípio
constitucional da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável.».

tes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tri-
bunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial
para os interesses da justiça.».
— Protocolo n.° 7 à CEDH, art. 4.° ("Direito a não ser julgado ou punido mais
de uma vez"): «1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdi-
ções do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou
condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal
desse Estado.
2. As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo,
nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou
recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem
afectar o resultado do julgamento.».
Como observação final, é caso para, mais uma vez, perguntar e exclamar: em
que é que estas disposições impedem a aplicação retroactiva da lex mitior, mesmo
que já tenha ocorrido o trânsito em-julgado da sentença condenatória?! — A resposta,
como é manifestamente evidente, ê a seguinte: nada impedem; uma coisa não tem
nada que ver com a outra.
E deve acrescentar-se o seguinte: contrariamente ao que Paulo de Albuquerque
afirma, os Acórdãos do Tribunal Europeu, que este Autor refere (p. ex., casos Gra-
dinger vs Áustria, Nikitmi vs Rússia, Assenidze VJ Geórgia, Salov vs Ucrânia) como
obstando à aplicação retroactiva da lex mitior, quando já tiver ocorrido o trânsito
em julgado da sentença condenatória, não têm, realmente, nada que ver com a ques-
tão da cedência do caso julgado penal à retroactividade da lei nova mais favorável.
Aliás, logo à primeira vista, parecia evidente que tais Acórdãos do Tribunal
Europeu não poderiam dizer aquilo que Paulo de Albuquerque diz que dizem, bas-
tando para tanto pensar na função da CEDH e do respectivo Tribunal, que foi, e é,
a de "protecção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais". Como é que
alguém ia recorrer para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por ter sido
"favorecido" com a aplicação, ao seu caso, de uma lei que lhe veio diminuir a
pena?!...; e como é que uma Convenção e respectivos Protocolos — que visam a pro-
tecção dos direitos e liberdades individuais, através da exigência de um processo justo,
da proibição da dupla punição pelo mesmo facto, etc. — iam proibir que, em maté-
rias de punição (nomeadamente, penal, mas também contra-ordenacional ou disci-
plinar), se aplicasse a lei mais favorável, mesmo que já tivesse transitado em julgado
a sentença condenatória?!...
(429-P) Cf., neste 4.° Cap., I, A) e B).
344 1 ° Parte — O princípio da aplicação

— É caso para perguntar: frente a este princípio do caso julgado, que o


Autor eleva à categoria de "direito de cidadania constitucional", de "bem jurídico-
-constítucional", não há mais nenhum princípio constitucional senão o princípio
da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (GRP, art. 29.°, n,° 4-2.a parte)?!
O Autor esqueceu-se dos princípios constitucionais da máxima restrição da
pena (CRP, art. 18.°, n.° 2) e da igualdade (art. 13.°, n.° 1-2.11 parte) ... («9'Q).
O novo art. 371.°-A do CPP faz com que o arguido possa ser «submetido
[!] a um novo julgamento dos factos em função da lei penal nova. Trata-se de
um verdadeiro novo julgamento em que o Tribunal procede a um nova valora-
ção dos factos da acusação ou da pronúncia».
— Que exagero!: "novo julgamento", "nova valoração dos factos" ... Não
me parece nada disto. Pois, a matéria de facto mantém-se intocável. Para
além da redeterminação da pena, no caso de a lei nova reduzir a pena princi-
pal e/ou a pena acessória (redeterminação que se reconduzirá, praticamente, a
uma operação aritmética), haverá, porventura, no caso de a lei nova ter alterado
as penas de substituição (p. ex., ter passado a permitir a suspensão da pena de
prisão até 5 anos, quando a lei anterior só permitia a suspensão, quando a pena
concreta não fosse superior a 3 anos de prisão), que, à semelhança do que pode
acontecer no "conhecimento superveniente do concurso" (CPP, art. 472°, n.° 1),
poder ter que proceder a diligências que se afigurem ao Tribunal necessárias para
tomar a decisão de substituir, ou não, a pena aplicada.
Diga-se apenas mais isto: "nova valoração dos factos" — que não é a
mesma coisa que "novo julgamento dos factos" — haverá, sim, no caso de a lei
nova poder ser descriminalizadora (CP, art. 2.°, n.° 2), pois que, mantendo-se into-
cados os factos já dados como provados, ter-se-á de ver (questão de direito) se
tal facto foi, ou não, descriminalizado pela lei nova.

(429-Q) Cf„ neste 4.° Cap., I, C).


2.a PARTE
A SUCESSÃO DE LEIS' PROCESSUAIS
PENAIS MATERIAIS E O PRINCÍPIO DA
APLICAÇÃO DA LEI PENAL FAVORÁVEL
1.° CAPÍTULO

A APLICAÇÃO B O PRINCÍPIO DA LEI PENAL


FAVORÁVEL À SUCESSÃO DE NORMAS
PROCESSUAIS P I N A I S MATERIAIS

(Jurisdicionais, Processuais e de Execução da Pena)

I. Especificidade e Autonomia do Direito Processual Penal

1. A doutrina e jurisprudência tradicionais restringiam, na


generalidade, p problema do conflito temporal de leis penais ao
direito penal denominado material, ou seja, às normas relativas à
hipótese criminal (preceito incriminador) e à estatuição penal (preceito
sancionatório). Aqui, como vimos ( 430 ), as razões jutídico-política de
garantia do cidadão e político-criminal da indispensabilidade da pena
determinaram, sucessivamente, a proibição da retroactividade da lei
penal desfavorável (lei criminalizadora e lex severior) e a imposição
da retroactividade da lei penal favorável (lei descriminalizadora e
lex mitior).

2. Quanto à sucessão das leis do processo penal, da organiza-


ção judicial e da execução das penas, as referidas doutrina e juris-
prudência, partindo de uma eirada e precipitadamente redutora con-
cepção destas normas como de natureza exclusivamente processual,

(43D) Cf. 1." Parte, 1.° e 2 ° caps.


348 2," Parte — A sucessão de leis

organizatória, técnica ou formal, defenderam o princípio da sua apli-


cação imediata — tempus regit actum.
O pensamento jurídico-penal tradicional esqueceu-se de que, tal
como no chamado direito penal material, também no direito proces-
sual penal, no direito da organização judiciária e no direito de exe-
cução das penas (sobretudo da pena de prisão: direito penitenciário),
há normas que podem afectar os direitos individuais fundamentais.
A arbitrariedade legislativa e judicial — motivação e causa originá-
rias da consagração do princípio da legalidade penal e do seu coro-
lário da proibição da retroactividade penal desfavorável — tem, tam-
bém nestes domínios do direito penal em sentido amplo mas rigoroso,
um propício campo de afirmação.
Esta possibilidade real de arbítrio, através da aplicação retroac-
tiva de alterações legislativas destas categorias de normas, não foi tida
em atenção. Assim, a generalidade dos autores (431) contentou-se com
a superficial afirmação da sua natureza processual-técnica e com o
consequente princípio da aplicação imediata das normas processuais
penais, princípio que estendeu às normas sobre a constituição e com-
petência dos tribunais criminais e sobre a execução das penas. Quanto
ao cumprimento da pena de prisão, agravava-se, ainda, a situação
jurídica do recluso com a atribuição à Administração da competên-
cia para superintender e decidir do modus de execução da pena
(administrativização da execução da pena de prisão).

3. Paulatinamente, a consciência jurídico-política e político-


-criminal vai-se apercebendo de dois aspectos convergentes no sen-
tido de porem em questão o pacífico status quo jurídico-penal.
Por um lado, vai-se afirmando a ideia de que o processo penal
— dada a especificidade e autonomia dos pressupostos, da natureza e
da finalidade da responsabilidade penal face à responsabilidade civil —
é autónomo do processo civil e de que as leis processuais, penais não

C31) Vejam-se, todavia e em sentido contrário, as avisadas considerações de,


p: e„ HENRIQUES D A SILVA e de ALIMENA — injra, texto a que correspondem as notas
448 a 451.
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 349

se reduzem a meras normas formularias. No direito processual penal,


há-normas que condicionam, positiva (pressupostos processuais que são
verdadeiros pressupostos adicionais da punição: p. e., queixa e acusação
particular) ou negativamente (impedimentos processuais que são ver-
dadeiros impedimentos da punição: p. e., a prescrição do procedi-
mento criminal), a responsabilidade penal; há normas que dizem direc-
tamente respeito aos direitos e garantias de defesa do arguido (p. e.,
espécies de prova e valoração da sua eficácia probatória, graus de
recurso); há, ainda, normas que afectam directa, incisiva e gravemente
o direito fundamental da liberdade (caso da prisão preventiva).
Por outro lado, vai-se gerando a consciência de que o campo de
aplicação dos princípios da irretroactividade da lei penal desfavorá-
vel e da retroactividade da lei penal favorável é mais amplo do que
o tradicionalmente definido. As implicações práticas destes princí-
pios aumentam na proporção do aprofundamento e re-conscienciali-
zação das genuínas e perenes razões de garantia política e de máxima
restrição possível da pena, razões que determinaram a consagração
daqueles princípios.

4. A primeira manifestação desta dupla e convergente cons-


ciencialização jurídico-penal da especificidade e autonomia do pro-
cesso penal face às outras espécies de processo, nomeadamente ao pro-
cesso civil, e da distinção, no âmbito do direito processual penal,
entre normas de conteúdo material — as que condicionam a res-
ponsabilização penal ou que contendem com os direitos fundamen-
tais do arguido e do recluso — e as normas exclusivamente pro-
cessuais ou formais — as que estabelecem as formalidades do
«procedimento» criminal —, dizia, a primeira manifestação deu-se
com o instituto da prescrição do procedimento criminal.
Veremos (43Z) como a história da evolução da doutrina sobre o
regime a seguir na hipótese de sucessão de leis sobre a prescrição do
procedimento criminal, nomeadamente quanto ao aspecto da altera-
ção dos prazos, reflecte esta dupla consciencialização.

(432) Infra, 2. u. deste 1.° cap.


350 2," Parte — A sucessão de leis

5. Para além do que já escrevi ( 433 ) sobre a distinção estrutu-


ral e funcional entre o direito e processo penais e o direito e processo
civis, bastemo-nos com mais uma ou outra referência.
434
E M 1 9 8 8 ( ), afirmava FIGUEIREDO DIAS: há «extensas diver-
gências entre cada um dos principais tipos processuais, respeitantes
ou à sua estrutura ou, sobretudo, aos seus fundamentos e princípios
e às suas formas concretas de realização». Hoje, é reconhecida a
«necessária autonomia funcional e teleológica de cada tipo de pro-
cesso». «Ao processo civil cabe uma natureza privatística e ao pro-
cesso penal, pelo contrário, uma natureza e uma estrutura publi-
cística».
Diferentemente do que se passa com outros ramos do direito, há
entre o direito penal e o processo penal uma verdadeira relação de
mútua complementaridade funcional, podendo mesmo dizer-se rela-
ção de interdependência ou de implicação biunívoca: o processo
penal — tal como qualquer processo — pressupõe o direito penal, e
•o direito penal — diferentemente do que acontece com os ramos do
direito não sancionatório ( 43S ) — só se concretiza através do pro-
cesso penal. O processo penal é, em rigor, o modus existenãi do
direito penal ( 436 .
O pensamento jurídico-constitucional e jurídico-penal actual
reconhece que, tal como o direito penal, também o processo penal é
o espelho da forma do Estado, pois que no processo penal jogarn-se

C") Cf. l."P.-4. D cap.,I,B).


(434) Direito Processual Penal, Coimbra: Secção de Textos da FDUC
(1988-9), 34-6.
(435) Acontecendo, ainda, que o processo penal, diferentemente dos processos
disciplinar e contra-ordenacional, é, necessariamente, um processo judicial — nulla
poena sine indicio.
— Há, todavia, que ter em conta a Lei n.° 21/2007, de 12 de Junho, que,
embora a título experimental por dois anos, veio criar o "regime de mediação penal".
A regulamentação do procedimento de mediação penal, da selecção dos mediadores
penais, etc., estão previstas nas Portarias n.° 68-A/2008, n.° 68-B/2008, n.° 68-02008,
todas de 22 de Janeiro de 2008.
( 436 ) Assim, p. e„ FIGUEIREDO D I A S (n. 433), 4 ss.; J. L . RIBEIRO DE F A R I A ,
Indemnização por Perdas e Danos Arbitrada em Processo Penal, Coimbra: Alme-
dina (1978), 59-89; T A I P A DE C A R V A L H O (n. 15), 70-4; M . L E O N E (n. 129), 91.
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 351

os direitos e as liberdades fundamentais ( 437 ). Neste sentido, são


exactas as palavras de SAX: tal como a do direito penal, também «a
história do direito processual penal é, ao mesmo tempo, uma parte
essencial da história das relações entre o cidadão e o Estado».

II. Normas Processuais Penais Materiais e Normas Processuais


Penais Formais

1. O esquecimento prático desta especificidade e autonomia do


processo penal, aliado a um viciado método de dedução conceitua-
lístico-formal, conduziu à aceitação superficial do princípio da apli-
cação imediata das leis processuais penais na sua globabilidade.
Dominados por uma visão imediatista, segundo a qual toda a norma
que directamente condicionasse (p, e., queixa e prescrição), orien-
tasse (p. e., espécies de prova) ou pressupusesse (p. e., prisão pre-
ventiva) o processo era uma norma exclusivamente processual, par-
tiam para a afirmação indiscutível do princípio da aplicação imediata.
As objecções de que tal aplicação imediata violava a proibição
da retroactividade da lei penal (desfavorável) respondia-se, secunda-
rizando-se o ponto decisivo do tempus delicti, que não, retorquindo
que a lei nova se aplicava a actos ou situações que — embora inse-
ridos num processo iniciado e determinado por uma infracção prati-
cada na vigência da lei anterior — decorriam já na vigência da nova
lei: tempus regit actum.
Numa palavra: menosprezavam-se as rationes jurídico-política e
político-criminal da aplicação da lei penal favorável e descurava-se
a distinção entre normas processuais penais materiais e normas pro-
cessuais penais formais. «Esquecia-se» que as primeiras (de que
são exemplos, como já referimos, a queixa, a prescrição, as espé-
cies de prova, os graus de recurso, a prisão preventiva, a liberdade

( 4 3 7 ) FIGUEIREDO D I A S , A Nova Constituição da República e o Processo Penal,


Lisboa: ROA (1976); A. CRISTIANI, Istituzioni di Diritto e Procedura Penale, Milano:
Giuffrè (1983), 23-7 e 382-4; J. J. GOMES CANOTÍLHO, «Anotação ao Ac. n.° 70/90
do Tribunal Constitucional», in RU, n.° 3792, p. 94 ss.
352 2," Parte — A sucessão de leis

condicional) condicionam a efectivação da responsabilidade penal


ou contendem directamente com os direitos do arguido ou do recluso,
enquanto que as segundas (de que são exemplos as formas de cita-
ção ou convocação, a redacção dos mandados, as formas de audição
e registo dos intervenientes processuais: estenografia, vídeo, etc.,
prazos de notificação do arguido, formalidades e prazos dos exames
periciais, formalidades e horários das buscas), regulamentando o
desenvolvimento do processo, não produzem os efeitos jurídieo-mate-
riais derivados das primeiras.

2. Referimo-nos, no número anterior, ao passado. No presente,


contudo, o vício metodológico apontado continua a ser frequente,
embora cresça um movimento doutrinário no sentido desejado e
imposto pelas razões de ser do princípio da aplicação da lei penal
favorável e apoiado numa correcta metodologia teleológico-material.
O vício metodológico consiste em partir de argumentos superfi-
ciais, formais e, portanto, inconsistentes (como, p. e., a localização
sistemática, o facto de condicionar o procedimento) para decidir a
natureza jurídica (material ou processual) das normas penais em
causa e, no momento seguinte, deduzir formalmente da qualificação
(natureza) jurídica as soluções para os problemas concretos: se a lei
(norma) nova é de natureza material, rege o princípio da aplicação
da lei favorável (proibição da retroactividade, se é desfavorável;
retroactividade, se é favorável); se tem natureza processual, aplica-se
imediatamente.
Elucidativo desta imperfeição metodológica — que conduz a
fundamentações inseguras de decisões hesitantes - é o percurso
seguido pela jurisprudência e por grande parte da doutrina portu-
guesas, em matéria de sucessão de leis que alteram os prazos de
prescrição do procedimento criminal.
Raciocinava, nos seguintes termos, o STJ, ao fundamentar o'
Assento de 19 de Novembro de 1975; «o alegado princípio de a pres-
crição ser matéria de direito substantivo e não adjectivo, e estar, por
isso, sujeita à regra do art. 6.° referido, não leva, de modo nenhum,
a afastar a aplicação da lei nova, visto que tal aplicação é possível
sem que haja retroactividade».
1Capítulo — Normas processuais penais materiais 353

Comentário: a doutrina, réctius, a solução fixada pelo Assento


(aplicação aos prazos em curso da L,N. que os encurte) foi cor-
recta, mas a fundamentação é confusa e insegura. Esta inconsistên-
cia — resultante de uma imperfeita apreensão e interiorização da
ratio político-criminal da prescrição do procedimento criminal —
manifestou-se na relutância do STJ em aderir abertamente ao princípio
da aplicação retroactiva da lei nova processual mais favorável (na
medida em que reduzia o prazo da prescrição).
O STJ teria, certamente, presente que tanto CAVALEIRO DE FER-
438
REIRA ( ) como EDUARDO CORREIA ( 4 3 9 ) defendiam, embora sem
razão, a aplicação imediata destas leis aos prazos em curso. Sem
razão, porque, basicamente, se tratava, segundo estes Autores, de
afirmar o princípio da aplicação imediata como consequência
lógico-dedutiva de uma acrítica qualificação processual das normas
sobre a prescrição do procedimento criminal í 440 ); acrítica qualifica-
ção, porque desatendia as razões materiais jurídico-política (proibição
da retroactividade da lei que alargue os prazos).e político-criminal
(imposição da retroactividade da lei que encurte os prazos) que ilu-
minam o critério da resolução do conflito temporal de leis que alte-
ram os prazos da prescrição penal. Tudo isto «facilitado» pela
deslocação artificial do decisivo ponto de referência para o momento
do preenchimento do prazo.
Mutatis mutandis, ocorreram, nesta matéria, «desatenções» aná-
logas às que permitiram a retroactividade— sob a designação de
«aplicação imediata» — das medidas de segurança mais gravosas C441)
e que levaram parte da jurisprudência ( 442 a defender, incompreen-

(438) Lições de Direito Penal, Lisboa: FDUL (1945), 22.


(«9) Direito... (n. 5), 161.
(440) Actualmente C . FERREIRA (n. 5 ) , 1 2 8 , corrigiu este vício metodológico,
pois afirma que o problema dos prazos de prescrição do procedimento criminal é inde-
pendente da natureza substantiva ou processual da referida prescrição.
(«i) Cf. l. a P.-3.°c.-vm-3;
C442) Apesar de nos havermos de referir, desenvolvidamente, ao problema da
Presunção de Inocência do Arguido e Prisão Preventiva, não devo deixar de, hic et
nunc, criticar esta reprovável jurisprudência e de elogiar a correcta e justa — por-
que atenta à razão material do problema da aplicação da lei'penal no tempo —
23
354 2," Parte — A sucessão de leis

sivelmente, a aplicação imediata de lei nova que declare incaucionáveis


certos crimes (prisão preventiva ope legis).
Se a fundamentação foi insegura e confusa, a decisão doutrinal
concretizada no Assento propriamente dito conduz a interpretações
contraditórias quanto à resolução do problema em que a lei nova
estabeleça um prazo mais longo.
A fonte das interpretações contraditórias é, em resumo, a seguinte:
se, por um lado, a prescrição está sujeita «à regra do artigo 6.°»
(CP 1886), então o sentido do Assento é o de que a lei nova só se
aplica aos prazos em curso, quando for favorável, isto é, quando os
encurte; mas, por outro lado, esta interpretação — que era a mais cor-
recta, a que parece ter estado na mente dos Conselheiros e a que
foi, reafirmada, segundo me parece, pelo Assento publicado em
17-3-1989 — contradiz a interpretação extraída das afirmações de
que não há retroactividade na aplicação aos prazos em curso e de que
«a lei reguladora da prescrição do procedimento erinainal... é de
aplicação imediata».
Na verdade, estas afirmações tinham por consequência, logica-

jurisprudência exemplificada no Acórdão da RL, de 5 de Maio de 1976 (CJ, I, ano


1976,504).
— Tendo em atenção o que venho escrevendo, são desnecessários os meus
comentários, bastando a transcrição de umas breves passagens de dois Acórdãos.
Acórdão da RP, de 9-2-78 (CJ, m, ano 1978,176): «as normas sobre caução
são de natureza processual e, portanto, de aplicação imediata»!, vindo o Acórdão da
mesma RP, de 20-4-78 (CJ, Hl, ano 1978, 685) como que tentar justificar, doutri-
nalmente, tão aberrante posição: «a perigosidade do agente de que é índice o crime
perpetrado, não se esgota com a consumação deste, antes eclode e se prolonga,
dada a repercussão social da gravidade dos interesses ofendidos — liberdade, segu-
rança, tranquilidade, saúde e bens dos cidadãos — até ser por ele sentenciado. Daí
que a aplicação da nova lei de processo recaia, se mais gravosa para o agente,
como é o caso, não sobre um facto, mas antes sobre uma situação presente e actual
não envolvendo, por isso, aplicação retroactiva»!... — É caso para lembrar o
seguinte: é conatural à democracia, como regime da liberdade a existência de cer-
tos riscos; tentar, porém, eliminar, a todo o custo, esses riscos levará à negação do
regime democrático...
Acórdão da RL de 5-5-76 (CJ, I, ano 1976,504): «I — As disposições legais
que alteram a admissibilidade ou inadmissibilidade de caução, têm duplo carácter:
parte substantiva e parte processual. H — Por isso por princípio jurídico-constitucional
não podem ser de aplicação imediata aos casos pendentes».
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 355

mente necessária, que tanto se aplicariam imediatamente aos prazos


a decorrer a lei nova que os encurtasse como a que os alongasse.
A prova do que acabei de afirmar quanto aos equívocos e con-
tradições práticos, a que conduz a inadequada metodologia.referida,
está nas divergentes e contrapostas posições que resultaram do Assento
— e respectiva fundamentação — sumariamente analisado.
443
EDUARDO CORREIA, em Anotação a este Assento ( ), afirmou,
em síntese: «a doutrina firmada corresponde à melhor orientação»; é
certo que «uma coisa é a prescrição em direito criminal, outra em
direito civil»; dèpois de reconhecer que já tinha defendido, na sequên-
cia de BELEZA DOS SANTOS, que a lei sobre a prescrição era de apli-
cação imediata por ser a prescrição de natureza «eminentemente
adjectiva», acaba por modificar a "sua posição, embora invocando
para tal o facto de o STJ considerar a prescrição como instituto de
natureza material e, então, haver que tirar as conclusões que se
impõem e que, segundo EDUARDO CORREIA são as seguintes: «o reco-
nhecimento do ponto de vista de que a prescrição do procedimento
criminal é de natureza substantiva, parece envolver, além do mais, as
implicações referidas para a hipótese, paralela à do Assento, de uma
lei nova prolongar os prazos de prescrição. Quer dizer, então o
princípio da aplicação da lei mais favorável exigirá o respeito do
prazo anterior» C444).
Opostamente, afirmava MAIA GONÇALVES ( 445 ), em anotação ao
art. 6.° do Código Penal de 1886: «Quando uma nova lei altera os
prazos da prescrição da pena ou do procedimento criminal, deve
aplicar-se imediatamente»; é que «mesmo que os prazos sejam dila-

C 43 ) RU, n.° 3560, 361-3. - Itálico meu.


(444) Confronte-se esta argumentação com a de CAVALEIRO DE FERREIRA — cf.
supra, nota 440 —. A meu ver, ambas claudicam num aspecto: a de E. CORREIA
por reincidir no vício metodológico da dedução conceitualista; a de C. FERREIRA
por não assumir claramente a inequívoca natureza também material da prescrição do
procedimento criminal.
(<f«) Código... (n. 308). — Itálico meu. Hoje, porém, já reconhece que a pres-
crição penal tem «natureza substantiva» e que as respectivas normas devem seguir
o princípio da aplicação da lei mais favorável (cf. Código Penal anotado, 8.° ed.,
1995, p. 182).
356 2," Parte — A sucessão de leis

tados, não há, aqui, problema de retroactividade, pois se trata de


aplicar a nova lei a causa que está a decorrer. Esta solução foi
seguida pelo assento de 19 de Novembro de 1975».
Esta acrítica e, teleológico-materialmente, não fundamentada
imputação de uma natureza jurídica (exclusivamente) processual às
normas, tradicional e rotineiramente, integradas no direito proces-
sual penal, levou, como se viu, a soluções incorrectas, sob os, nesta
matéria, decisivos pontos de vista jurídico-político .e político-criminal.
Em muitos casos, não apenas incorrectas e injustas, mas claramente
inconstitucionais.
Esta míope e redutora perspectiva tem, também, dominado na
doutrina estrangeira, nomeadamente alemã ( 446 ).
447
MAURACH ( ) qualificava todos os pressupostos processuais
como de natureza exclusivamente processual por condicionarem o
procedimento criminal e, assim, considerava-os fora do alcance do
princípio da irretroactividade penal. Mas, já nessa altura, não se fez
esperar a adequada crítica de ALIMENA Í 4 4 8 ) , o qual, defendendo a
natureza material de institutos como a queixa e a acusação particu-
lar, afirmava: são, inequivocamente, «condições de punibilidade»,
pois só com a sua ocorrência, o legislador entende necessária a pena;
e, contra-argumentando àqueles que, como MAURACH, atribuíam a
estas figuras a natureza processual pelo facto de tais condições não
se referirem à ilicitude, esclarecia: é evidente que não pertencem ao
tipo legal, mas tal não lhes retira a sua natureza material, uma vez que
condicionam a punição, a aplicação da pena.
Interessante é referir, ainda, um aspecto focado por ALIMENA C449)
— e que, justamente, contraria um argumento que vinha sendo cor-
rentemente invocado ( 450 ) —: «O facto de a exigência da condição

fMS) c f , supra, p. e., texto a que corresponde a nota 49; nota 99; nota 306.
í 447 ) Tratado de Derecho Penal — trad. esp. —, v. H, 615.
C448) Le Condizioni... (n. 284), 133-4.
C*49) Le Condizioni... (n. 284), 242.
( 4 5 D ) E D U A R D O CORREIA (n. 5), 162: defendendo a aplicação imediata da L.N.
sobre prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, termina, dizendo:
«De resto não há, aqui, qualquer direito adquirido pelo delinquente».
M A I A GONÇALVES (n. 3 0 8 ) , anot. 6 ao art. 6 ° do CP 1 8 8 6 : «Como regra, as
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 357

de punibilidade não ser posta para favorecer o réu, não impede que
a situação que objectivamente dela resulta seja uma situação mais
favorável para o transgressor da norma penal». E prosseguia: se a
L.N. entende só dever punir sub conditione, é evidente que passa a
faltar a razão para punir o facto, quando não se verificar a condição.
Não devo deixar passar o momento, sem registar e salientar
que, muito antes desta válida contra-argumentação de ALIMENA, já o
nosso criterioso HENRIQUES DA SILVA ( 451 ) chamava a atenção para a
necessidade de distinguir entre o que eu designei de normas proces-
suais penais materiais e normas processuais penais formais. Obser-
vou este Autor: «As leis formularias [processuais] podem envolver fre-
quentemente offensa de direitos, e, sempre que possa haver offensa
de direitos fixados à sombra da lei, é substantiva a lei formularia e
não deve appliçar-se retroactivamente, por implicar com os direitos
dos cidadãos.
É preciso não confundir as leis formularias propriamente ditas
com as relativas aos direitos individuaes. Estas têm um carácter
constitucional, sendo exemplos deste caso as disposições dos §§ 7.°,
8.°, 11.° e 16.° do art. 145.° da Carta».
Fechado este parêntesis sobre as razoáveis posições de HENRIQUES
DA SILVA e de ALIMENA, desnecessário é multiplicarmos, aqui, indi-
cações de Autores estrangeiros que têm defendido — rectius, afirmado
mas não fundamentado — a acrítica posição (ainda, há não muito,
maioritária) que tenho vindo a refutar. Refira-se apenas, a título de
exemplo, a posição de JESCHECK (452): «A proibição da retroactividade

leis processuais não estão sujeitas ao princípio da não retroactividade, sendo de


aplicação imediata»; referindo-se à aplicabilidade da L.N. que alongue os prazos
de prescrição, escreve: «não há qualquer direito adquirido pelo delinquente». Como
já o refri na nota 445, hoje já alterou esta sua tradicional posição.
(451) Sociologia... (n. 66), 145-6. Veja-se, também, CAEIRO D A M A T T A , Pro-
cesso criminal — lições coligidas por Serras Pereira — (1911-2), 31: «As leis pro-
cessuais criminais são de aplicação imediata, a não ser que infrinjam os princípios
constitucionais».
(452) Tratado... (n. 5), 1,186. No mesmo sentido redutor — de que quase só
escapa a prescrição do procedimento criminal, precisamente porque o debate dou-
trina] sobre esta figura já é praticamente secular —, p. e., RUDOLPHI (n. 217), anot. 8
ao § 2. StGB; J. W E S S E L S , Strafrecht-A. T., 12. Auft., Heidelberg: Muller (1982), 9.
358 2," Parte — A sucessão de leis

não se aplica às normas processuais e, portanto, não é aplicável aos


pressupostos do processo».

3. Contra a perspectiva tradicional e, ainda, porventura, maio-


ritária no direito comparado ( 453 ) — que imputava e imputa, indis-
criminadamente, às normas vulgarmente integradas no direito pro-
cessual penal, uma exclusiva natureza jurídica processual —, contra
a sua viciada metódica formalístico-conceitualístico-dedutiva — que,
acriteriosa e voluntaristicamente, extraía daquela superficial e arbitrária
qualificação processual a exigência da aplicação imediata, menos-
prezando a função de garantia política do cidadão contra o exercício
arbitrário e, eventualmente, persecutório do ius puniendi estadual e a
razão político-criminal da indispensabilidade e da máxima restrição
possível da pena — está em crescendo uma corrente que acolhe
uma criteriosa perspectiva material — que distingue, dentro do direito
processual penal, as normas processuais penais materiais das nor-
mas processuais penais formais — e uma hermenêutica teleoló-
gico-materíal cujos cânones — conferindo o devido primado às
(investigações das) verdadeiras rationes jurídico-política e polí-
tico-criminal do princípio da aplicação da lei penal favorável —
determinam que à sucessão de leis processuais penais materiais
sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável
e o da retroactividade da lei favorável.
Nesta linha, afirma M. LEONE ( 454 ): o regime do art. 2.° do
Código Penal italiano (correspondente ao nosso art. 2.°) aplica-se
não apenas à norma substantiva mas também a «toda a larga esfera
de normas processuais que toca o interesse do arguido».
M. CAPPELLETTI ( 455 ) contesta, por sua vez, a classificação tra-
dicional das normas penais em «normas materiais» e «normas pro-
cessuais», contrapondo uma classificação teleológico-material de

( 453 ) Maioritária mas rotineira, pois que se tem limitado a repetir a afirmação
tradicional, sem qualquer estorço de íiindamentação, como se de evidência se tratasse.
(«") 11 Diritto... (n. 129), 90.
C 55 ) «La "Natura" delle Norme sulle Prove», in Scrítti Dedicati ad Alles-
sandro Roselli, i, Milano: Giuffrè (1971), 431-42.
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 359

«normas de garantia» e «normas técnico-processuais», precisando que


a nova categoria das «normas de garantia» não serve objectivos con-
ceituais, mas objectivos de soluções para uma série de problemas
de grande importância prática, como a sucessão de leis no tempo, a
taxatividade ou liberdade dos meios de prova penais, etc.
4S6
TIEDEMANN ( ) destaca a exigência metodológica e a impor-
tância prática da distinção das normas processuais em normas pro-
cessuais meramente formais ou técnicas e normas processuais subs-
tancialmente materiais.
Denunciada por R. SCHMITT ( 457 ) é a ilegítima e infundamentada
redução «(eine unzulássige Verkíirzung des Problems»), por parte
da doutrina tradicional, do problema da proibição da retroactividade,
em direito processual penal, quase exclusivamente à prescrição do pro-
cedimento criminal.
G . LEVASSEUR critica a doutrina dominante e analisa, desen-
volvidamente, a relevante questão da distinção entre as por mim
designadas normas processuais penais materiais ( 458 ) e normas pro-
cessuais penais formais. São deste Autor as seguintes afirmações:
é abusiva a classificação tradicional em «leis de fundo» e «leis for-
mais», reservando a primeira designação para o direito penal, e
incluindo na segunda todas as restantes leis; esta classificação esquece
que «a categoria das leis ditas «formais» é complexa e heterogé-
nea», abrangendo normas sobre constituição e competência dos tri-
bunais criminais, processo penal e normas sobre a execução das
penas ( 459 ).

(« 6 ) «Auslegung...» (n. 351), 137-8.


( 457 ) «Der Anwendungsbereich...» (n. 5), 228 e 231. Cf., ainda, SCHREÍBER
(n. 12), 361.
C5B) Designação que entendo mais rigorosa que a de «normas processuais
quasi-substantivas» utilizada por A N T Ó N I O BARREIROS, Manual de Processo Penal,
Lisboa: Universidade Lusíada (1989), 244. — É que, embora processuais, elas
são-no também plenamente materiais ou substantivas, como vimos. A amnistia
própria, p. e., não. deixa de ser plenamente material pelo facto de extinguir o pro-
cedimento criminal. Donde também correcta a designação normas penais de natu-
reza mista.
C59) «Opinions...» (n. 134), 198 e 206-7.
360 2," Parte — A sucessão de leis

O princípio da proibição da retroactividade da lei penal — que,


servindo de garantia política contra a arbitrariedade legislativa, judi-
cial ou penitenciária na função punitiva, tutela, portanto, a liberdade
e os direitos fundamentais do cidadão — aplica-se a todo o direito
repressivo. E , segundo LEVASSEUR ( 460 ), «o direito repressivo, em
cada um dos seus aspectos, limita e ameaça a liberdade dos cidadãos,
pelo que as regras que ele estabelece são impostas sob a mais estrita
necessidade. É assim para as leis do processo e .da condução do
processo penal, e para as leis e regulamentos sobre as modalidades
de execução das penas e medidas de segurança».
Nesta linha, afirma: «A regra da não-retroactividade das leis
repressivas, ligada como está ao princípio da legalidade da repres-
são, deve ter logicamente o alcance deste princípio, isto é, apli-
car-se a todas as leis repressivas, a todas as regras concernentes à
tarefa dos poderes públicos na luta contra a delinquência, desde a
investigação das infracções até ao termo da execução da sanção
pronunciada» ( 461 ).

— Não terá sido por mero acaso que o Congresso da Associação Inter-
nacional de Direito Penal, realizado em Berlim, em 1935, haja proclamado
que «Uma nova regulamentação relativa à execução das penas, quer ela sua-
vize ou agrave a execução, deve ser aplicada mesmo às pessoas cuja execução
já tenha sido ordenada, a menos que esta regulamentação disponha diferente-
mente».
L E V A S S E U R , Autor de onde extraí esta transcrição (Opinions..., 248-nota 126),
afirma, a pág. 252 — o que suponho ninguém, hoje, contestar —, o seguinte:
«Os exemplos históricos demonstram que as modificações no regime de execução
das penas redundam, muitas vezes, numa substituição da pena prevista pela lei
ou pronunciada pelo juiz».
Adequada e historicamente consciente é também a distinção referida por
C A V A L E I R O D E F E R R E I R A , no seu já referido Direito Penal Português de 1 9 8 1 ,
onde, a pág. 128, escreve: «Relativamente às leis sobre execução das penas
há que distinguir. Quando elas se reportam à essência das penas, os princípios
aplicáveis são os que ficam expostos [irrectroactividade da lei desfavorável;
retroactividade da lei favorável]. Se respeitam às modalidades administrativas

C1™) «Opinions...» (n. 134), 198 e 206-7.


( 461 ) «Opinions...» (n. 134), 196.
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 361

de execução da pena são de aplicação imediata. Mas não deve alterar-se, atra-
vés de tais modalidades, a substância da pena, porque seria alteração da própria
pena por regulamentação administrativa».
Em conclusão: as normas que concretizam a estrutura ou grandes linhas
do regime disciplinar penitenciário (p. e., regime de isolamento, .a assistência
social, religiosa ou médica, a obrigação ou não do trabalho e respectiva remu-
neração) estão sujeitas .ao princípio da proibição da retroactividade desfavorá-
vel e da aplicação retroactiva favorável. Assim, e apenas a título de exemplo,
estão sujeitas a este princípio de aplicação da lei mais favorável, apesar de
inseridas no CPP, normas como as dos arts. 474.°-l„ 488.°-3., 489.°-2.
Tem, portanto, de considerar-se inteiramente ultrapassada — até porque é
inconstitucional — a resposta que E D U A R D O C O R R E I A deu à pergunta de G U A R -
D A D O L O P E S («Actas...», in BMJ, 141,136): «se não seria bom pôr em evidência
que as disposições legais que regulam a execução da pena são de aplicação
imediata». A resposta foi a seguinte: «Quanto ao problema posto pelo Dr. Guar-
dado Lopes, ele tem, efectivamente, toda a razão de ser e deve decidir-se, como
preconizou, pelo princípio da aplicação imediata».

Deste «direito repressivo» e da consequente proibição da retroac-


tividade das suas normas desfavoráveis só se excluem as normas
processuais penais que se referem «aos actos de pura técnica pro-
cessual», valendo aqui, e só aqui, o princípio da aplicação imediata
— tempus regit actum —, respeitando-se os actos praticados e «não
podendo ser postos em questão, na sequência de uma lei nova, quer
esta seja ou não mais favorável à pessoa perseguida» ( 462 ).
Enquanto que ao «direito processual técnico» pertencem nor-
mas sobre, p. e., redacção do auto de notícia, forma de citação, modo
de realizar buscas ou apreensões, audição de testemunhas, já ao
«direito repressivo» pertencem as normas sobre as condições de pro-
cedibilidade, espécies de prova e sua eficácia probatória, sobre a
organização e competência dos tribunais penais, sobre o juízo de
culpabilidade, determinação concreta da pena e respectiva funda-
mentação, sobre graus de recurso, sobre a liberdade condicional,
sobre a reformatio in pejus ( 463 ), etc. ( 464 ).

C62) «Opinions...» (n. 134), 197 e 211-2.


C463) Assim, de recusar é a posição que foi acolhida peio STJ, no Ac.
de 20-03-1991 (ÇJ, 1991, tomo ir, p. 11 ss.), cujo sumário reza assim: «As normas
362 2," Parte — A sucessão de leis

IH. A Sujeição das Normas Processuais Penais Materiais ao


Princípio Constitucional da Aplicação da Lei Penal Favo-
rável: proibição da retroactividade desfavorável e imposição
da retroactividade favorável (CRP, arts. 18.°, n. os 2 e 3,29.°,
4-2. a parte, 282.°, n.° 3-2." parte; CP, art, 2°, n.° 4)

1. Toda a argumentação desenvolvida, ao longo desta investi-


gação monográfica — especialmente o que se acabou de dizer a pro-
pósito das leis processuais penais materiais, nas duas seções anteriores
desta 2.a Parte, e a análise jurídico-constitucional e político-criminal
desenvolvida na I a Parte, 1.° cap.-n e 2 ° cap, —, não só aponta
como também demonstra que os princípios constitucionais da proi-
bição da retroactividade da lei penal desfavorável e da imposição da
retroactividade da lei penal favorável se aplicam às normas pro-
cessuais penais materiais.
A ratio de garantia política do cidadão face a possíveis decisões
legislativas ou judiciais arbitrárias ou mesmo persecutórias, ao mesmo
tempo que determinou a consagração constitucional da proibição
da retroactividade da lei penal posterior desfavorável, determina a
sua aplicabilidade às referidas normas processuais penais materiais
— ubi eaâem ratio, ibi eadem iuris dispositio. Também nestas, os
direitos do arguido e do recluso estão em causa, não deixando, por-
tanto, de estar sempre presente a possibilidade de o poder punitivo ten-
tar servir-se de alterações legislativas posteriores ao tempus delicti para
agravar retroactivamente a situação jurídica dos referidos arguido ou
recluso.
Creio que, depois da denúncia feita da errada e detuipadora
metodologia formal e' conceitualista — que, no passado, foi adoptada
pela maioria da jurisprudência e por parte da doutrina —, não se

que proíbem a «reformado in pejus» não tem natureza substantiva, apesar de per-
mitirem a modificação da pena.
Por isso, não há que equacionar a aplicação da lei mais favorável para utili-
zação do Cód. Proc. Penal actual, na parte referente à regulamentação da proibição
da reformatio in pejus, em processos instaurados antes da sua entrada em vigor».
C64) «Opinions...» (n. 134), 190.
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 363

virá com o superficial argumento literal de que o art. 29.° da Cons-


tituição não fala de leis processuais, mas de penas, de medidas de
segurança e de leis penais.
A um tão despiciendo argumento literal haveria que responder,
em resumo: 1.° — não é pelo facto de a 2." parte do n.° 4 do art. 29.°
da CRP se referir somente a leis penais que alguém poderá vir dizer
que a CRP, na mesma disposição, teleológico-materialmente inter-
pretada, não abrange também a aplicação retroactiva das medidas de
segurança mais favoráveis; 2.° — Se uma tal argumentação for-
mal-literal tivesse alguma valia, então haveria que contra-argumentar
que a mesma disposição fecha com um termo jurídico-processual
«arguido»; 3.° — Os deputados constituintes não são, necessaria-
mente, especialistas em técnica legislativa — o que se compreende
em parte, embora não fosse nada mau que o fossem. Mais censurá-
vel é a redacção do art. 2.° do Código Penal, a que já me referi ( 465 );
4 ° — o art. 29.°da CRP assume-se, no campo da responsabilização
penal, como garantia dos direitos e liberdades, direitos e liberda-
des que tanto podem ser arbitrariamente afectados pela aplicação
retroactiva de leis sobre criminalização ou agravação da pena como
pela mesma retroactividade de alterações legislativas desfavoráveis
de normas processuais penais materiais (p. e., eliminação da exi-
gência da queixa, alargamento do prazo de prescrição do procedimento
criminal ou da pena, imposição ope legis da prisão preventiva).
A ratio político-criminal, constitucionalmente consagrada na Lei
Fundamental portuguesa ( 466 ), conduz, por sua vez, à aplicação
retroactiva das normas processuais penais materiais favoráveis.
Favoráveis, quer quando da sua aplicação resulta a impossibilidade
ou redução das possibilidades de aplicar a pena (caso do encurta-
mento dos prazos de prescrição ou da exigência de queixa), em con-
sequência da nova concepção político-criminal que a lei nova incarna,
quer quando, da sua aplicação aumentam os direitos de defesa do
arguido (p. e., aumento dos graus de recurso ou eliminação da sufi-

C65) Cf. supra, texto a que correspondem as notas 46 a 50.


C56) Cf. 1." P. - 2." c. - III.
364 2," Parte — A sucessão de leis

ciência probatória de determinado meio de prova) ou as possibili-


dades de o recluso ver, efectivamente, reduzida a pena (p. e., aumento
do período de liberdade condicional).
Poder-se-á até afirmar que, mesmo que não existisse a expressa
imposição constitucional da aplicação retroactiva das «leis penais de
conteúdo mais favorável ao arguido» (CRP, art. 29.°, 4.-2."), tal impo-
sição não deixava de, jurídico-constitucionalmente, se impor por vir-
tude do art. 18° que não só proíbe a retroactividade das leis restri-
tivas dos direitos, liberdades e garantias (n.° 3-2."), como também
impõe que as restrições destes direitos, liberdades e garantias se limi-
tem ao indispensável para realizar os fins prosseguidos pelas leis
que contêm as mencionadas restrições. Assim, se, p. e., a L.N. diz
que a responsabilização penal fica dependente da queixa, deve ser apli-
cada retroactivamente; já o inverso, isto é, a eliminação da exigên-
cia da queixa, não se poderá aplicar retroactivamente pois que tal
aplicação retroactiva seria uma porta aberta a eventuais decisões
legislativas arbitrárias ou mesmo persecutórias.
Quer dizer: o princípio da irretroactividade desfavorável e da
retroactividade favorável da lei penal — em que se incluem as nor-
mas processuais penais materiais —, afirmado no art. 29.°, não será
mais do que a concretização, no campo jurídico-penal, das razões
de garantia política e da máxima restrição possível das intervenções
estaduais nos direitos, liberdades e garantias,proclamadas pelo art. 18°

2. Deste modo, tem de concluir-se que a sucessão de leis pro-


, cessuais penais materiais rege-se pelos princípios constitucionais da
proibição da retroactividade da lei penal desfavorável e da imposição
da retroactividade da lei penal favorável. Estes princípios, que foram
pelo art. 29° da CRP elevados à dignidade constitucional, estão con-
sagrados no art. 2.°-4. do Código Penal.
Apesar de o inovador art. 5.° do Código de Processo Penal
de 1987 ( 467 ) referir, no n.° 2-a), a aplicabilidade da lei processual
vigente no início do processo penal, quando da aplicação imediata da

• C67) Cf., a propósito da referência do CPP a 1987, nota 9. -


1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 365

lei nova resultar um «agravamento sensível e ainda evitável da situa-


ção processual do arguido, nomeadamente do seu direito de defesa»,
há que afirmar claramente que todo este artigo só é aplicável às leis
(normas) processuais penais formais. Nestas, sim, o princípio geral
é o da aplicação imediata — tempus regit actum (CPP, art. 5.°,
n.° 1) —, sendo a excepção a aplicação da L.N. só aos processos ini-
ciados depois da sua entrada em vigor, o que significa a ultraactivi-
dade da L.Â. (CPP, art. 5.°, n.° 2-b)J.
Esclareça-se, ainda — e para evitar que a jurisprudência se apro-
veite do disposto nesta alínea a), para se radicalizar na errada e
inconstitucional doutrina da aplicação imediata da lei processual
penal, independentemente de se tratar de normas exclusivamente pro-
cessuais (normas processuais penais formais) ou de normas mistas
(normas processuais penais materiais) — esclareça-se, dizia, que o
momento decisivo para determinar, no caso de conflito temporal de
leis processuais penais materiais (onde se incluem as normas sobre
o direito de defesa do arguido, referidas, indevidamente, na al. a)),
a lei aplicável é, como, na secção seguinte, veremos, não o momento
em que se irucia o processo, mas o tempus delicti.
Em minha opinião, o disposto na referida al. a) não devia cons-
tar do art. 5°, pois que versa uma questão que, por exigência cons-
titucional e do Estado-de-Direito, está submetida ao princípio da
proibição da retroactividade da lei penal desfavorável, e, portanto, é
abrangida pelo art. 2.°-4. do Código Penal. Se a intenção foi boa, a
disposição é inútil e oxalá que não venha a servir de pretexto para
decisões injustas e inconstitucionais.

3. Acabei de dizer que a intenção, que terá motivado a al. a) do


n.° 2 do art. 5." do CPP de 1987, deve ter sido boa, isto é, inspirada
na boa doutrina, constitucionalmente anporada. Com efeito, FIGUEI-
REDO D I A S , Presidente da Comissão que elaborou o Projecto
do Código de Processo Penal, escreveu ( 468 ): «Para além do nulo

C168) Direito Processual Penal (n. 434). — Itálico do Autor a partir de «não
contrarie,..».
366 2," Parte — A sucessão de leis

valor da invocação da « instrumentalidade» do processo — o prin-


cípio jurídico-constitucional da legalidade se estende, em certo sen-
tido, a toda a repressão penal e abrange, nesta medida, o próprio
direito processual penal. Aqui deparamos com o essencial; tal como
vimos suceder no problema da analogia, importa que a aplicação
da lei processual penal a actos ou situações que decorrem na sua
vigência, mas se ligam a uma infracção cometida no domínio da lei
processual antiga, não contrarie nunca o conteúdo da garantia con-
ferida pelo princípio da legalidade» (469).
O mesmo Autor ( 470 ), referindo, como primeiro princípio da
política criminal, o princípio da sua «conformidade com a ideia do
Estado de Direito ou, nesta acepção, o princípio da legalidade»,
chama a atenção: «Só que o princípio deve agora ultrapassar, numa
dupla direcção, o seu conteúdo tradicional: deve, em certa medida,
estender-se às matérias do processo penal; e deve... abarcar... a
proibição da retroactividade» das medidas de segurança.
Anotando a CRP, art. 282.°, n.° 3-2.a parte [«... qiiando a norma
respeitar a matéria penal...»], escrevem GOMES CANOTILHO/VITAL
471
MOREIRA ( ): «O enunciado linguístico do preceito é suficientemente
extenso para abranger, não apenas o direito material sancionatório,
mas também as normas processuais de natureza substantiva».

Passando à doutrina estrangeira, SCHREIBER, referindo-se à prescrição,


observa ( 472 ) que já os trabalhos preparatórios do Código Prussiano de 1-851 jus-
tificavam a proibição da retroactividade da lei que alargasse os prazos da pres-
crição com fundamento na necessidade de garantia política e que, se a par de
muitos códigos penais que consagraram expressamente a proibição, outros o
não fizeram, tal ficou a dever-se ao facto de se entender desnecessário, tendo
em conta a ratio de garantia política do princípio da proibição da rectroactivi-
dade da lei penal em geral. Conclui da seguinte forma: vê-se como os defen-
sores da tese da kretroactividade da lei prescricional desfavorável tem a seu favor
a tradição do Estado-de-Direito.

C 65 ) Neste sentido, também CASTANHEIRA N E V E S (n. 366), 71 ss.


(470) Direito Penal — as consequências jurídicas do crime (1993), 71-2.
— Itálico meu.
(471) Constituição... (n. 333), 2.° v., anot. vi ao art. 2 8 2 ° — Itálico meu.
(472) Zur zulãssigkeit... (n. 12), 352-3 e 359.
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 367

Por sua vez, R , S C H M I T T ( 473 ) escreve: «a proibição da retroactividade


decorrente do art. 103.°-II da GG pode também aplicar-se no âmbito dos
pressupostos processuais». Este Autor refere que a jurisprudência do Tribu-
nal Constitucional alemão defende a aplicação da proibição da retroactivi-
dade desfavorável ao processo penal, argumentando com outras normas cons-
titucionais, especialmente com o princípio do Estado-de-Direito (arts. 20."
e 28." da GG).
SINISCALCO ( 474 ) reconhece que a liberdade do cidadão, garantida pelo
art. 25.°, n." 2, da Constituição Italiana, tanto pode ser lesada por normas subs-
tantivas como por normas processuais.

Passemos à lei ordinária, ou seja ao art. 2° do Código Penal.


Como é sabido, não pode uma lei ordinária restringir o alcance
das normas constitucionais protectoras dos direitos, liberdades e
garantias (CRP, art. 18.°, n.° 2). E, na realidade, neste aspecto ( 475 ),
o teor literal do art. 2°, n.° 4, do Código Penal é suficientemente
amplo para compreender a sucessão de leis processuais penais mate-
riais.
EDUARDO CORREIA, em sessão da Comissão que reviu o Ante-
projecto do Código Penal de 1982 ( 476 ) e a propósito do então n.° 2
do art. 3.° [cujo texto é praticamente idêntico ao do n.° 4 do art. 2.°
vigente], afirmou: «O n.° 2 do art. 3.° é, por um lado, uma disposi-
ção suficientemente elástica para abarcar todos os problemas que se
entenda dever tratar na sua base; mas esta elasticidade permite, jus-
tamente, por outro lado, que se deixe à doutrina e à jurisprudência
campo livre para subsumir ou não nele certas questões, entre as
quais se poderá precisamente contar o caso da prescrição». Quer
dizer — e bem — que o n.° 4 do art. 2° consagra um princípio
geral que abrange todo o caminho da responsabilização penal,
sendo ilegítima e desrespeitadora da Constituição toda a inter-
pretação que dele pretenda excíuir as normas processuais penais
materiais.

(473) Der Anwendungsbereich... (n. 5), 231.


(474) Irretroattività delle.leggi in Matéria Penale (1969), 120.
( 475 ) Que não no da excepção do caso julgado. Cf. l."P. — 4.° c.
(47«) Actas... (n. 279), 137.
368 2," Parte — A sucessão de leis

IV. Tempus Delicti (CP, Art. 3.°) — irretroactividade da lei


processual penal material desfavorável e retroactividade da
favorável

1. Vimos que é proibida a aplicação retroactiva de normas pro-


cessuais penais materiais desfavoráveis. Demonstrei que a ratio de
tal irretroactividade está na necessidade de garantir a pessoa contra
o exercício arbitrário ou mesmo persecutório do iits puniendi pelo
legislador, pelo juiz do facto ou pelo juiz da execução das penas.
Tal como dissemos, a propósito do tempus delicti relativamente
à irrectroactividade da lei criminalizadora e da lex severior (4T7),
também, aqui, no caso da sucessão de normas processuais penais
materiais, o cumprimento daquela ratio de garantia jurídico-politica
do cidadão e do consequente mandato constitucional de proibição da
retroactividade desfavorável passa pela determinação rigorosa do
momento que nos indique qual a lei temporalmente competente. Só
com a fixação deste momento, teremos o critério para a formulação
de um juízo de irretroactividade ou de retroactividade na aplicação da
lei nova processual penal material.
É, portanto, em função da razão de ser da proibição da retroac-
tividade que o momento-critério tem que ser fixado. Assim foi his-
toricamente para ás leis criminalizadoras ou agravantes da pena ( 47S ),
assim, também por exigência teleológico-material, o tem de ser para
a sucessão de leis processuais penais materiais.
Uma vez fixado, o momento determinante, então segue-se a apli-
cação da lei vigente neste referido momento (L.A.), quando a lei
posterior (L.N.) for desfavorável ao infractor, arguido ou condenado;
caso a lei posterior (L.N.) seja favorável, então, por força dos prin-
cípios político-criminais (constitucionais e com expressão na lei ordi-
nária ( 479 )) da máxima restrição da pena e da mínima limitação
dos direitos, liberdades e garantias, será a lei nova que se aplicará
retroactivamente.

(477) Cf. l . ' P , - l . ° c . - iv - 1.


C78) Cf. l . a P . - l . ° c . - u.
(479) Cf. 1." P. - 2." c. - u e nc; 2.a P. - 1.° c. - m.
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 369

Vê-se, em conclusão deste intróito, que é fulcral e decisiva esta


questão.

2. Antes de passarmos à determinação do referido momento-cri-


tério da lei aplicável, façamos um breve parêntesis para denunciar-
mos a leviandade com que esta questão tem sido encarada pela dou-
trina tradicional e, talvez, ainda dominante (480).
De facto, a posição tradicional não se tem preocupado com
este problema: superficial na qualificação- jurídica dos institutos
ditos processuais e formal na dedução automática da aplicação
imediata, também superficial e formal é na substituição arbitrária
do momento-critério (constitucionalmente imposto) por uma «situa-
ção de perigosidade» ( 481 ) ou na deslocação artificial do referido
momento.
Não se deu já o caso de haver quem pensasse aprovar uma lei
que alargasse os prazos da prisão preventiva, com o objectivo de
aplicar imediatamente essa «ansiada» nova lei a determinada categoria
del presos preventivos, invocando-se, pateticamente, que, além de tal
ser do «interesse público», juridicamente a tal nada haveria a opor,
pois que tal lei, ao ser aplicada imediatamente, não violava a proi-
bição constitucional da retroactividade da lei penal desfavorável, uma
vez que se aplicava a um prazo que ainda estava a correr, a uma
situação que não era do passado?!...
É caso para dizer que nem a evolução e, sobretudo, a razão de
ser da evolução do regime do conflito temporal de leis que estabe-
lecem medidas de segurança ( 482 ) tem servido, a certos sectores da
doutrina e da jurisprudência penais, de alerta-indicador.

(480) Afirmou SCHROEDER (n. 49), 787,.referindo-se ao tempus delicti no


âmbito do direito penal material (tipo legal e preceito sancionatório), que a impor-
tância fulcral do tempus delicti ainda por ninguém foi devidamente investigada.
Sendo válida esta observação quanto à lei criminalizadora e lex severior, creio
poder afirmar, no termo da presente investigação, que, relativamente às normas pro-
cessuais penais materiais, a questão do tempus delicti não só não foi devidamente
estudada, mas pura e simplesmente não- se tem consciência dela.
C81) Cf. Acórdãos da RP comentados, supra, nota 442.
C8Z) Cf. I." P. - 3.° c. - viu - 3.
24
370 2," Parte — A sucessão de leis

3. É, pois, de fundamental importância prática determinar o


momento-critério de qual das leis processuais penais materiais (L.A.,
L.N.) é a competente, é a que deve ser aplicada. Só a partir deste
momento-critério é que, por outras palavras, se poderá afirmar que há,
no caso concreto, um verdadeiro ou somente aparente conflito de
normas.
Configurando-se um real conflito, então aplicar-se-á a lei mais
favorável — o que significará a aplicação retroactiva da L.N., sem-
pre e só quando esta for mais favorável.
Haverá um verdadeiro conflito temporal nas seguintes hipóte-
ses: quando a L.A. ainda estiver em vigor no «momento-critério»,
mas a L.N. já estiver em vigor no momento em que se aplica a res-
pectiva norma processual penal material; e quando houver uma lei
intermédia, isto é, quando uma lei entrar em vigor depois do
momento-critério e for revogada antes da aplicação efectiva da
norma processual penal material. Como se vê, nesta segunda hipó-
tese, o conflito é entre, pelo menos, três leis: lei em vigor no
momento-critério; lei ainda não em vigor neste momento e já não em
vigor no momento da decisão-aplicação; lei em vigor no momento
da decisão-aplicação.
Convém fazer duas observações, a propósito do momento da
aplicação das normas processuais penais materiais. Este momento,
digamos, como que constitui o termo ad quem da situação de conflito
temporal desta categoria de normas, sendo o termo a quo o
momento-critério, isto é, o tempus delicti, como demonstraremos.
A primeira observação é para dizer que o momento da aplicação
das normas em causa é o momento em que estas se realizam, quer
dizer, o momento em que elas produzem e esgotam os seus efeitos
jurídicos.
Exemplifiquemos: os efeitos da prescrição do procedimento cri- .
minai são, como vimos, a extinção do procedimento e, portanto, a
extinção da (eventual) responsabilidade penal; ora estes efeitos pro-
duzem-se no dia em que se consumou, se esgotou o respectivo prazo;
logo, foi neste dia que a norma se realizou.
No caso da liberdade condicional, é o momento ém que o con-
denado cumpriu integralmente a pena; com efeito, até este momento,
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 371

é possível que uma alteração legislativa, nesta matéria da admissi-


bilidade ou não da libertação condicional e da parte do tempo de
prisão que pode ser substituída pela liberdade condicional, produza
efeitos.
A segunda observação é para lembrar que não se pode esquecer
que uma eventual declaração de inconstitucionalidade da norma pro-
cessual penal material já aplicada pode produzir efeitos (p. e., anu-
lação do julgamento), desde que estes sejam favoráveis, nos termos
da CRP, art. 282.°, 3.-2.a (483).

4. A fixação do momento-critério da determinação da lei com-


petente tem de respeitar e cumprir a ratio de garantia política. É a
necessidade de prevenir a eventual arbitrariedade no exercício da
justiça penal pelos órgãos legislativos, jurisdicionais ou prisionais, e
a possível instrumentalização política — quando não mesmo polí-
tico-partidária — do ius puniendi que há-de decidir qual das leis
processuais penais materiais (L.A., L.N.) é a aplicável.
Quer dizer: a mesma ratio de garantia jurídico-política do
cidadão contra a (possível) arbitrariedade do Estado determina a
proibição da retroactividade da lei penal — exclusivamente mate-
rial ou processual-materlal — desfavorável e impõe o momento-
-critério da determinação da lei aplicável. Se aquela ratio seria des-
respeitada, se se admitisse a retroactividade das referidas normas
desfavoráveis (i. é, prejudiciais ao infractor e ao cidadão em geral, pois
que há sempre a possibilidade de este vir a infringir a norma penal),
da mesma forma o seria, se fixássemos um momento-critério que
permitisse a arbitrariedade punitiva. Em conclusão: a função de
garantia jurídico-política, inerente ao princípio da legalidade penal,
impõe que o «momento-critério» seja visto e assumido como condi-
tio sine qua non da efectiva prevenção do arbítrio punitivo. Caso con-
trário, o sentido e conteúdo materiais da proibição da retroactividade
desfavorável esvair-se-ão, transformando-se o juízo de não rectroac-
tividade de uma determinada norma penal desfavorável num mero e

(483) v . 3.' P. da 2." edição.


372 2," Parte — A sucessão de leis

inútil juízo formal, que permitiria e daria cobertura (aparência de


decisão justa e jurídico-constitucionalmente correcta) a toda a deci-
são objectivamente arbitrária e inconstitucional ( 484 ). Exige-se, numa
fórmula mais sintética, que haja uma rigorosa coincidência entre o
juízo formal de irretroactividade e, digamos, o juízo material de irre-
troactividade.
Esta exigência jurídico-penal e jurídico-constitucional, esta
ratio de garantia política determina, como demonstrarei, que o
momento-critério, de que vimos falando, seja o tempus delicti.
O sentido, o alcance e o processo de delimitação do tempus
delicti são os mesmos, quer se trate de leis criminalizadoras
ou agravantes da pena, quer se trate de leis processuais penais
materiais. Por isto, remeto o leitor para a secção iv do 1.° cap.
da l. a Parte.
Aqui, cabe, somente, fazer a demonstração-ilustração de que
assim é.

5. Esta razão fundamental conduz à recusa, in limine, da pre-


tensão de situar e fazer coincidir o momento-critério com o momento
em que se inicia o processo penal. — Que arbitrariedades não eram
possíveis através de alteração legislativa que, entrada em vigor antes
de iniciado o respectivo processo mas depois da prática por A, B
e/ou C do crime x, viesse, por exemplo, transferir a competência,
para o julgamento daquele tipo de crime, dos tribunais judiciais para
os tribunais militares ( 485 ); ou que, na hipótese de' a L.A. (lei em

C M ) Cf. supra, nota 442 e n.° 2 desta secção iv.


(4SS) Escreve, a tal propósito, LEVASSEUR (n. 134), 210: «É muita hipocrisia
argumentar que nada se modifica nas condições de incriminação ou no tocante às
penas a aplicar; é que toda a gente sabe que a sanção pronunciada será mais pesada,
e é isso mesmo que procuram os poderes públicos.» — Concordo.
Quanto à constituição do tribunal do julgamento, pode apresentar-se o seguinte
exemplo: a L.A. impede que o juiz da instrução integre o tribunal do julgamento;
se uma L.N. vier eliminar tal impedimento, jamais esta lei se poderá aplicar aos fac-
tos praticadas antes da sua entrada em vigor. Na hipótese inversa, então a L.N.
— porque mais favorável — aplicava-se retroactivamente. Não se refere, pois não
é esse o objecto desta monografia, o aspecto da inconstitucionalidade material da L.N.
em si mesma.
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 373

vigor no tempus delicti) proibir a reformatio in peius ( 486 ) viesse


permiti-la; ou que viesse estabelecer que é prova suficiente a confissão
do arguido ou o depoimento de uma só testemunha; ou que viesse
extinguir a possibilidade de os condenados por aquele tipo de crime
beneficiarem de liberdade condicional ou, por exemplo, reduzir esta
de metade para um quarto da pena de prisão (487)?S
É por esta razão essencial e decisiva — ou será que já nos
esquecemos da motivação e função matriciais do princípio da lega-
lidade penal ou, então, será que pensamos que os homens, que detêm
o poder político-legislativo e judicial em regime democrático, são
assim tão puros que é uma injúria dizer que é preciso prevenir as suas
possíveis arbitrariedades? — que se tem de repudiar a ausência

(486) Cf. nota 463, onde se contempla a hipótese inversa (a L.N. proíbe a
reformatio in pejus), sendo, portanto, aplicável, retroactivamente, a L.N.
C 8 7 ) LEVASSEUR (n. 1 3 4 ) , 2 4 6 , diz que o momento decisivo é o do trânsito em
julgado da sentença, no tocante à liberdade condicional.
— O meu comentário: é de recusar inteiramente, como se justifica no texto,
esta posição. Como já referi (cf. supra, texto a que corresponde a nota 134), o
trabalho de LEVASSEUR, embora tenha o mérito de levantar problemas que têm sido
tabu e embora contenha alguns aspectos positivos, revela uma total e inadmissível
ausência de fundamentação jurídico-constitucional e político-criminal. Esta falta
de perspectiva político-criminal levou o mesmo Autor a considerar a liberdade con-
dicional como um «favop> (!) — cf. ob. cit. (n. 134), 246.
— É, por estas razões, desnecessária uma disposição como a constante do
Dec.-Lei n.° 48/95 (que aprovou a Revisão de 1995), art. 12." («O disposto no n.° 4
do artigo 61." apenas se aplica às penas por crimes cometidos após a entrada em vigor
do Código Penal»), ou como a que constava da Proposta de Lei 80/vn, de Abril
de 1997, que pretendia uma nova revisão do CP de 1982 revisto em 1995, «Expo-
sição de Motivos» («Todavia, este novo regime dos arts. 61.°, n.° 5, e 62°, n.° 3),
apenas será aplicável às penas por crimes cometidos após a sua entrada em vigor,
de acordo, com uma regra idêntica à consagrada no artigo 12.° do Decreto-Lei
n.° 48/95, de 15 de Março»), É desnecessária, pois assim teria necessariamente de
ser; é que, tratando-se de normas que dificultam a liberdade condicional, elas nunca
poderiam, sob pena de inconstitucionalidade, aplicár-se retroactivamente (i. é, apli-
car-se aos condenados por crimes cometidos antes da sua entrada em vigor).
Esta preocupação do legislador ordinário é reveladora do receio que este tem
de que a jurisprudência ainda não tenha interiorizado que estas, como normas pro-
cessuais penais materiais que o são, estão necessariamente submetidas ao princípio
penal geral da aplicação da lei penal mais favorável.
E de esperar que a jurisprudência assim o entenda. E que, na ausência de uma
disposição como esta, não vá para uma absurda interpretação a contrario.
374 2," Parte — A sucessão de leis

de princípios e .de rumo que grande parte da jurisprudência, com a


complacência de grande parte da doutrina ( 488 ), revelou (num passado
não distante) nesta matéria.

6. Vou dedicar, agora, a minha reflexão aos institutos proces-


suais penais materiais que, entre as suas componentes, bontam a dos
prazos.
O objectivo deste n.° 6 e do seguinte é o de alertar e desfazer
o equívoco em que a doutrina — que só tem abordado estas ques-
tões incidentalmente — tem caído. Este equívoco, que é causador
de frequentes e injustas decisões, consiste em confundir dois pro-
blemas inteiramente diferentes: o problema da fixação do termo a quo
da contagem do prazo e o problema — que é inteiramente distinto
daquele — da determinação da lei processual penal material aplicável
(aplicável quer ao prazo em si, quer às outras componentes do ins-
tituto).
Encandeada pelo facto de tanto o art. 3 ° («momento da prática
do facto») como o art. 119.°, n. os 1 e 4 ( 489 ) («início do prazo» da
prescrição do procedimento criminal), fazerem referência ao momento
da prática do crime — tempus delicti — e reparando que, no primeiro,
o decisivo é o momento da conduta, ao passo que, no caso da pres-
crição do procedimento criminal, é o momento do resultado ou con-
sumação material, extraíram a doutrina e a jurisprudência precipita-
das e erróneas conclusões.
1." — O momento que determina a lei penal (sobre crime e/ou
pena) aplicável é o momento da conduta; diferentemente, o momento
que determina qual das leis sobre a prescrição do procedimento cri-
minal é a aplicável é o momento do resultado.
2.a — Esta confusão, que não teve em atenção que um é o pro-
blema tratado no art. 3." — momento-critério para a determinação da

(4SS) Cf. nota 480 e Introdução, IV.


(489) Referimos estas disposições do CP 1982. O facto de a primeira não exis-
tir no CP 1886 e de a segunda ter uma redacção diferente é, para o nosso caso, irre-
levante, uma vez que a doutrina, agora traduzida em lei, já era defendida tradicio-
nalmente.
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 375

lei aplicável —, outro, inteiramente distinto, é o problema resolvido


no art. 119." do Código Penal — o termo a quo da contagem do prazo
é o momento em que ocorre a consumação material —, levou a dou-
trina a duas sub-çonclusões enganadoras: o tempus delicti é um con-
ceito genérico a que sempre se tem de recorrer quando é preciso
resolver um problema de conflito de leis penais; o tempus delicti é
um conceito diferenciado, isto é, tem um significado e um alcance
variáveis em função da especificidade do instituto a que pertencem
as leis em conflito.
Já o dissemos e procuraremos demonstrar que estas conclusões
não são de aceitar; elas resultaram do equívoco já referido.
490
É certo, como diz CAVALEIRO DE FERREIRA ( ), que «o conceito
de tempus delicti tem natureza teleológica»; é o que tenho, supera-
bundantemente, referido: o tempus delicti é determinado em função
da ratio de garantia política, razão que .tem de ser respeitada e de ilu-
minar a solução do conflito temporal de leis penais (exclusivamente
materiais ou processuais penais materiais). Mas já falta demonstrar
o que o mesmo Autor afirma, logo a seguir: o tempus delicti «é
fixado em função dos fins próprios do instituto em que essa fixação
interessa».
Esta afirmação resulta do tal equívoco e leva-nos a fazer as
seguintes considerações: em primeiro lugar, nunca haverá contra-
dição entre a ratio do instituto e a ratio do tempus delicti (CP,
art. 3.°), pois a ratio de garantia deste está ao serviço do cidadão
e opõe-se à retroactividade (definida em função do critério que
ele, na consequência coerente da ratio do princípio da legalidade
penal, estabelece) das normas desfavoráveis; em segundo lugar,
há que dizer que, se, por mera hipótese, houvesse contradição, ela
ter-se-ia de desfazer em favor da ratio fundamental de garantia
política; finalmente, há que chamar a atenção para a incorrecção que
seria dizer, p. e., que o tempus delicti, no caso da prescrição da
pena, é o momento em que transita em julgado a sentença (CP,
art. 122.°- 2)1...

(4SD) Direito... (n. 5), 122.


376 2," Parte — A sucessão de leis

7. Cabe, agora, fazer a demonstração da validade do que defendo


e do pré-judicial equívoco que analisei no número anterior.

Exemplificação:

— O prazo para apresentar queixa é de 6 meses, a contar da data


(termo a quo) em que o titular do respectivo direito de queixa teve
conhecimento do facto e dos seus autores (CP, art. 115.°-1.). É claro
que não é este o momento-critério, isto é, não é a lei que, tendo
entrado em vigor depois da prática do facto mas antes do momento
em que o titular do direito de queixa dele teve conhecimento, vai deci-
dir sobre a necessidade ou não da queixa para haver procedimento cri-
minal, ou sobre o próprio termo a quo da contagem do prazo para
apresentar queixa.
A lei competente — ressalva-se, como já dissemos, o caso de a
lei posterior ser mais favorável, pois que se aplicaria retroactiva-
mente — é a lei que estava em vigor no momento da prática da
conduta: a lei do tempus delicti.
Esta solução é imposta pela mencionada razão de garantia polí-
tica. Na realidade, a solução contrária possibilitaria, p. e., uma ins-
trumentalização política do ius puniendi.
Atentemos na seguinte hipótese: determinado titular de um certo
órgão de soberania é injuriado no decorrer de uma manifestação.'
Desejando ardentemente que o infractor seja punido, teme, porém,
apresentar queixa: receia que o eleitorado, em eleições que estão à
porta, reaja mal a esse gesto.
Aproveita-se, então, do facto de ainda não ter conhecimento do
infractor, para fazer aprovar uma lei que entre em vigor antes de ele
saber quem é o criminoso, lei esta que tem artigo único e reza assim:
«o procedimento criminal por crimes de difamação ou injúria a titu-
lares de órgãos de soberania não depende de queixa».
Conclusão — É evidente que, para aquele caso concreto, teria
sido inútil todo aquele afã político-legislativo: a lei competente
continuava a ser a lei Vigente no tempus delicti (L.A.), uma vez que
a L.N. só se podia aplicar retroactivamente se fosse mais favorá-
vel ao infractor, o que não era o caso. Portanto, o referido titular,
1." Capítulo — Normas processuais penais materiais 377

se quisesse a punição do infractor, teria mesmo de apresentar


queixa..
— Um outro exemplo: o prazo de prescrição da peria conta-se
— e sempre se terá de contar ( 491 ) — a partir do momento em que
transita em julgado a sentença (CP, art. 122."-2.). — Mas isto em nada
interfere com o momento-critério da determinação da lei aplicável, que
não é o momento do trânsito em julgado, nem sequer o do início do
processo, mas, sim e unicamente, o tempus delicti.
Uma L.N., que entrasse em vigor posteriormente à prática do
facto, só se aplicaria (retroactivamente), se fosse mais favorável, o que
aconteceria se ela encurtasse o prazo da prescrição ou se eliminasse
alguma(s) causa(s) de; interrupção ou de suspensão da prescrição.
Esta é a solução imposta pela função de garantia política que
determina a irretroactividade desfavorável.

C91) Anote-se, todavia, que antes do CPP 1987, havia o processo de ausen-
tes; assim, o réu, apesar de ievel, era julgado e, eventualmente, condenado (CPP 1929,
art. 571."). Todavia, como era natural, a sentença não transitava em julgado,
enquanto o réu não comparecesse; comparecendo, acontecia que o réu poderia reque-
rer novo julgamento ou recorrer. Serve isto para dizer o seguinte: foi o legislador
de então incoerente ao estabelecer que, proferida a condenação do réu revel, a par-
tir desta começava a correr a prescrição da pena (CPP 1929, art. 585.°; CP 1886,
após revisão de 1972, art. 126.°, § 4.°), pois que, mantendo-se aberto o processo, só
de prescrição do procedimento criminal se poderia tratar. — Já, então, correcta-
mente, afirmava Luis O S Ó R I O , Notas ao Código Penal Português, Coimbra: França
e Arménio (1923), em nota ao art. 125." do CP 1886: «É o trânsito em julgado da
sentença o marco que delimita a prescrição da acção da prescrição da pena».
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2.° CAPÍTULO

APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEI PENAL


FAVORÁVEL À SUCESSÃO DE LEIS
SOBRE A PRESCRIÇÃO

I. Normas Processuais Penais Materiais

O instituto da prescrição é integrado por normas processuais


penais materiais ( 492 ) e por normas exclusivamente processuais.
À primeira categoria pertencem as normas sobre os termos, os pra-
zos, as causas de interrupção e de suspensão, os efeitos e a legiti-
midade para a invocar; à segunda pertencem as possíveis normas
sobre a forma de a invocar e de a declarar.

(492) De entre os muitos institutos processuais penais materiais, tem sido a


prescrição, esp. a do procedimento criminal, que tem monopolizado as atenções da
doutrina e da jurisprudência. Sobre os diversos aspectos desta figura (história; natu-
reza político-criminal derivada do seu fundamento que é a desnecessidade preventiva
geral-especial da pena, pelo decurso de um período relativamente longo de tempo; rela-
ção entre a sua ratio político-criminal e as causas de interrupção e/ou de suspensão;
sna aplicação ex officio, dado o referido interesse público — hoje mandato consti-
tucional da não aplicação de penas desnecessárias —, etc.), cf. M E L L O FREIRE, Ins-
titutsones luris Criminalis Lusitani 1." ed. (1794), tít. xxm, § li, 165-7; L. M. JORDÃO
(n. 62), comentário ao art. 123.°, p. 260-5; S O U S A PINTO (n. 64) L. 1.°, C . v«, §§ 10°
e 11°; L. OSÓRIO (n. 491), 398 ss. e 420 ss.; HENRIQUES D A SILVA (n. 66), 147-54;
BELEZA DOS SANTOS, in RLJ, n.° 2970, ano 77°, 322-3; E. CORREIA, «Actos Proces-
suais que Interrompem a Prescrição do Procedimento criminal», in RLJ, n.° 3212-3,
ano 94.°, MANZINI, Diritto Penale, m (1950), 473; KREY (n. 4), 12-3; R. SCHMITT (n. 5),
241; SCHREIBER (n. 12), 352, 359-64; C O B O D E L R O S A L (n. 86), 817-8.
380 2," Parte — A sucessão de leis

Interessam-me apenas as normas processuais penais materiais,


pois que o eventual conflito entre as exclusivamente processuais não
oferece dificuldades e rege-se pelo art. 5 ° do CPP.
Exemplo: A comete o crime x. Entre o momento da conduta
(acção ou omissão) e o da ocorrência do resultado passaram 6 meses.
No momento da conduta, estava em vigor uma lei que estabelecia um
prazo de prescrição do procedimento criminal de 6 anos. Posterior-
mente à prática da conduta, mas antes da ocorrência do resultado,
entrou em vigor uma lei que alongou o prazo de prescrição do refe-
rido crime de 6 para 10 anos.
Pergunta: qual é a lei que, vindo mais tarde a levantar-se o
problema da prescrição ou não, é competente para decidir? — A res-
posta não pode deixar de ser a de que é aplicável a L.A., uma vez
que, sendo desfavorável a L.N., a sua aplicação retroactiva é «vetada»
pela ratio de garantia política.
Mas, como se está a ver — e foi para isso que escolhi o exem-
plo —, o prazo, como é evidente, continuará (e continuaria, mesmo
que a LJN. o tivesse encurtado) a contar-se a partir do momento em
que se verificou o resultado.
— Variações em torno, ainda, deste aspecto do prazo. Imagi-
nemos que a LJSL — que elevou o prazo de 6 pára 10 anos — entrou
em vigor dois meses depois da conduta e, portanto, 4 meses antes do
resultado. Partamos, por outro lado, da hipótese de que não se veri-
ficou qualquer causa de interrupção ou de suspensão da prescrição
e de que o infractor só foi notificado para as primeiras declara-
ções, quando já tinham decorrido sobre a prática da conduta 6 anos
e 7 meses.
Pergunta: quándo se vier a levantar a questão da prescrição ou
não do procedimento criminal, dever-se-á declarar ou não a extinção
do procedimento criminal? — Resposta: sim. Fundamentação: a lei
competente é a lei em vigor no momento da conduta (LA.); ora esta
lei estabelece como prazo da prescrição 6 anos, prazo este cujo termo
a quo se manteve como sendo o momento da verificação do resul-
tado (CP, art. 119.°, n. os 1 e 4). Ora como sobre este momento já
tinham decorrido 6 anos e 1 mês, a conclusão é a de que já pres-
creveu.
2." Capitulo — Prescrição 381

Alteremos, agora, um pequeno-grande pormenor: em vez de


6 anos e 7 meses, imaginemos que só tinham decorrido sobre o
momento da conduta 6 anos e 5 meses. Pergunta: Já prescreveu
ou não? — Resposta: não prescreveu. Razão: embora o conflito
entre a L A . e a L.N. seja resolvido a favor da L.A. — uma vez
que esta estava em vigor no decisivo momento da conduta (tempus
delicti) e a L.N. não pode retroagir, pois é desfavorável —, esta (a
L.A.) estabelece um prazo de 6 anos que, tal como os 10 anos da
L,N., se contam a partir do resultado. Ora, desde este momento,
ainda só passaram 5 anos e 11 meses. Logo, ainda não estava pres-
crito.
— Suponhamos, ainda, como hipótese inteiramente inverosí-
mil ( 493 ), o seguinte: no momento da conduta, a lei estabelecia que
o termo a quo é o momento da conduta; antes da ocorrência do
resultado, entrou em vigor uma lei que o transferiu para o momento
do resultado.
Pergunta-se: qual seria a lei aplicável? — Resposta: seria a L A .
pois que esta, embora mal, era mais favorável que a L.N. A apli-
cabilidade desta afectaria a razão de garantia que, precisamente,
impõe como decisivo o momento da conduta;

(493) Tão inverosímil que, apesar de o CP 1886, no art. 125.°, § 4.°, não se
referir expressamente â consumação material sempre foi entendido que o termo a quo
não podia deixar de ser o momento do resultado. Isto vem ainda reforçar que este
problema nada tem a ver com o probléma da determinação do critério da lei com-
petente.
No caso do termo a quo, a razão da sua fixação no momento da consumação
material é a de impedir o absurdo de situações em que o procedimento criminal
pudesse prescrever antes de o respectivo crime se ter materialmente consumado;
isto não tem nada a ver com a ratio de garantia política que determina e é inerente
ao tempus delicti. Além da necessidade de evitar as referidas situações que, em certa
medida, seriam absurdas, funciona ainda em favor da fixação do termo a quo no
momento do resultado — ou no caso das situações especiais referidas no n.° 2 do
art. 119.° do Código Penal, nos momentos aí referidos — a ratio político-criminal
da prescrição, razão que os Antigos costumavam traduzir nas seguintes palavras: a
prescrição é o reconhecimento jurídico da força natural do decurso do tempo que
enfraquece a memória dos factos, que anula o interesse repressivo, que faz desa-
parecer a necessidade do exemplo. — Ora, só depois de produzido o resultado é que
estes fenómenos se desenvolvem.
382 2," Parte — A sucessão de leis

Tenho de fechar este número. Permita-se-me só que recorde


que as mesmas razões de garantia do cidadão impõem a mesma
solução para todas as normas processuais penais materiais: consti-
tuição e competência dos tribunais, meios de prova, graus de recurso,
liberdade condicional, modalidades de execução da pena, etc. A lei
aplicável, no caso de conflito temporal de leis desta categoria, é a
vigente no tempus delicti, isto é, no momento da prática da conduta,
independentemente do momento em que o resultado se produza (CP,
art. 3.°). A lei nova, isto é, a posterior ao momento da conduta, só
será aplicada retroactivamente, quando for mais favorável (CP, art. 2.°,
n.° 4).

II. Causas de Interrupção ou de Suspensão da Prescrição

Ao exemplo apresentado, em primeiro lugar, na anterior sec. i,


adicionemos o elemento seguinte: enquanto a lei vigente no momento
da conduta estabelecia (além do tal prazo, de 6 anos) como causas de
interrupção da prescrição as circunstâncias, a, b e c, já a lei, que
entrou em vigor entre o momento da conduta e o momento do resul-
tado, (além de elevar o prazo para 10 anos) eliminou a circunstância c.
Suponhamos, agora, que se levanta o problema da prescrição
ou não do procedimento criminal, sendo os dados da questão os
seguintes: face à LA., o prazo da prescrição já teria decorrido, se não
se tivesse verificado a circunstância c que essa lei previa como causa
de interrupção; face à LJM., esta circunstância deixou de ser consi-
derada causa de interrupção, mas, apesar de não ter havido qualquer
interrupção, ainda não decorreram os 10 anos que ela veio estabele-
cer. Quer dizer: só haverá prescrição se se aplicarem, simultanea-
mente, a norma favorável da L.A. quanto ao prazo e a norma favo-
rável da L.N. quanto à desqualificação da circunstância c como causa
de interrupção.
Resposta: o procedimento criminal prescreveu.
Fundamentação: aplicam-se, mutatis mutandis, os mesmos argu-
mentos que aduzi em favor da ponderação diferenciada, a propó-
sito das leis penais (crime, pena e efeitos penais). Portanto, o regime
2° Capítulo — Prescrição 383

aplicável é constituído pela norma sobre o prazo da L.A. e pela


norma sobre as causas de interrupção da L.N.
E não cabe contra-argumentar, dizendo: o legislador pretendeu
«compensar» a eliminação da causa de interrupção c com o alonga-
mento do prazo. Não! Esta objecção não procede ( 494 ), caso con-
trário, então também procedia relativamente às circunstâncias a e b,
quando é certo que elas permaneceram, apesar de o prazo ter passado
a ser mais longo. Pode ainda replicar-se, perguntando se teria qual-
quer sentido falar-se dessa hipotética «compensação», na muito vero-
símil hipótese de o legislador ter eliminado a causa de interrupção c,
mas ter acrescentado às causas a e b mais duas causas, tendo tam-
bém elevado o prazo para 10 anos.
Que razão válida haveria para não aplicar, retroactivamente, a
norma sobre causas de interrupção, simultaneamente, com a norma
da L.A. sobre os prazos? — Em minha opinião, não há nenhuma.
De recusar é, portanto, a jurisprudência do STJ nesta maté-
ria ( 49S ).

P O Só poderia proceder, se houvesse uma alteração radical em que a L.N.


extinguisse toda e qualquer causa de interrupção da prescrição do procedimento
criminal, e, em compensação, alongasse os prazos da respectiva prescrição.
— Segundo refere E D U A R D O CORREIA (n. 4 9 2 ) , 3 7 3 , foi esta a solução proposta
por C A R R A R A e acolhida pelo Código Toscano, a fim de evitar que, contra a ratio
político-criminal da própria prescrição, o processo se prolongasse indefinidamente.
O nosso Código Penal, embora atribuindo eficácia interraptiva a certos actos,
não deixou de ter em atenção esta ratio da prescrição e de impedir os inconve-
nientes resultantes de um exagerado prolongamento do processo devido às causas
de interrupção, estabelecendo (CP, art. 121.°, 3.) um prazo máximo, isto é, um
limite absoluto à eficácia da interrupção.
C95) Cf. Assento publicado em 17-3-89. — Veja-se a crítica que lhe move-
mos quanto à opção deste STJ pela ponderação global (supra, 1." P., 3.° c., vt,
3,C).
A tese correcta é a da ponderação diferenciada.
Saliente-se, todavia, que a fundamentação deste Assento acolhe, finalmente, a
boa doutrina em formulação adequada — quanto à retroactividade das normas pres-
cricionais favoráveis —, quando afirma: «O regime da prescrição do procedimento
criminal estatuído em lei nova é aplicável retroactivamente... quando seja mais
favorável» e quando — referindo-se ao momento até quando a prescrição pode ser
declarada — diz: «só a sentença com trânsito em julgado obsta à aplicação da lei
nova retroactiva».
3.° CAPÍTULO

APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEI PENAL


FAVORÁVEL À SUCESSÃO DE LEIS
SOBRE A QUEIXA E A ACUSAÇÃO PARTICULAR

I. Pressupostos Processuais (Positivos) da Responsabilização


Penal

Creio já ter dito o suficiente — ao longo de toda esta 2.a Parte


— para demonstrar que estes dois institutos, tál como a prescrição do
procedimento criminal, são de natureza processual penal material,
isto é, têm dupla natureza.
Na verdade, sendo condições (positivas) do procedimento criminal
(pressupostos processuais), do mesmo modo condicionam a respon-
sabilidade penal (496).
Não há qualquer fundamento para considerar estas figuras como
exclusivamente processuais.
A jurisprudência, na ausência, por parte da doutrina, de uma
abordagem sistemática — jurídico-constitucional e político-crimi-
nalmente fundamentada — desta matéria da sucessão de leis penais,
tem andado hesitante.
Apenas alguns acórdãos, a título de ilustração: Ac. do STJ,
de 25-1-84 (497) — «O Código Penal de 1982 é aplicável à desistência

(496) Assim, actualmente, também FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal — conse-


quências jurídicas do crime ( 1 9 9 3 ) , 6 6 3 .
(«") BMJ, 333,253.

25
386 2," Parte — A sucessão de leis

do direito de queixa pelo ofendido, que ocorra posteriormente à sua


entrada em vigor, ainda que o crime tenha sido cometido antes e o
regime então vigente fosse mais favorável ao réu». — É errada a
doutrina aqui vertida. Ac. do STJ, de 11-10-83 ( 498 ) — «tendo o
direito de queixa natureza processual, a sua modificação... do prazo
para o seu exercício, é de aplicação imediata, visto a |ei do processo
ser de aplicação imediata. Tal aplicação conduz a que se respei-
tem os factos praticados no domínio da lei antiga, mas que fiquem
sujeitos ao império da lei nova os que se realizam no domínio desta».
— Claramente eirada esta fundamentação.
Exemplos de uma decisão acertada: Ac. da RP, de 2-5-84 (499)
— «Se, face ao CP 1886, o procedimento criminal pela infracção
constante da pronúncia se não achava dependente de queixa, e esta
é exigida pelo novo C. Penal, então a incriminação por este último
diploma favorece o arguido.
Em tal caso, e tendo o arguido sido pronunciado, em alternativa,
pela lei antiga e pela lei actual, é de considerar relevante o perdão,
entretanto concedido pelo ofendido (500), e de arquivar o processo, sem
necessidade de julgamento».
Doutrina acertada é também a que consta do recente Ac. do STJ,
de 24-10-1996 ( 501 ), de que destaco o n.° rv do sumário: «As normas
processuais penais podem ter natureza material ou meramente formal,
e as primeiras, para além de constituírem condições positivas de pro-
cedimento criminal, condicionam a responsabilidade penal, ou seja,
produzem efeitos jurídico-materiais, pelo que, nessa medida, estão
sujeitas aos princípios constitucionais de imposição da lei material

C»8) BMJ, 330, 453.


C»9) CJ, ix, 292; cf.', também, Ac. do STJ, de 3-7-85, in BMJ, 349, 249.
(500) Correcto. E que não se venha formalisticamente objectar a esta doutrina
correcta, jurídico-eonstitucional e político-criminalmente, dizendo: se pela L A . o crime
era público e o processo já se iniciou antes de.entrar em vigor a L.N. — que pas-
sou a exigir a queixa —, então não pode haver desistência da gueixa («perdão»),
pois que não se pode desistir de uma coisa que se não fez: a apresentação da queixa.
— É que não se fez nem se podia fazer, uma vez que, antes, o crime era público.
(sói) CJ — Acs. do STJ, 1996, tomo iii, p. 177 ss. — A transcrição é do
n.° rv do sumário.
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 387

intertemporal mais favorável, contrariamente ao que ocorre com as


normas processuais puramente formais, que estão sujeitas ao princí-
pio da aplicação imediata da lei nova».
Não tem, pois, fundamento a posição doutrinal que classifica a
queixa e a acusação particular como figuras de natureza exclusiva-
mente processual ( 502 ), partindo daqui ( 503 ) para a afirmação da apli-
cação imediata da lei nova.

II. Crítica da Atribuição de Natureza Exclusivamente Processual

Não devo repetir-me e, assim, só um breve comentário sobre a


posição de JESCHECK. Diz: «Assim, p. e., um crime perseguível
mediante queixa ou acusação particular pode converter-se, retroacti-
vamente, em crime perseguível ex officio».
Comentário: espanta que se fale em retroactividade de lei
penal desfavorável. Quero dizer: ou o Autor utiliza incorrectamente
— estou a tentar introduzir-me no seu discurso — o termo retroacti-
vidade (que, efectivamente, existe no exemplo apresentado), estando a
pensar em aplicação imediata (o que se não deve fazer), ou esque-
ceu-se de que a passagem de crime semi-público a público é sempre des-
favorável, pois vai fazer com que infractores que, a manter-se a LA.,
não seriam punidos — sempre que os titulares do direito de queixa o
não quisessem exercer —, passem pela L.N. a sê-lo, dada a promoção
ex officio; ou nem se passou uma coisa nem outra e, então, teríamos
de concluir que o Autor se esqueceu do princípio constitucional (GG,
art. 103.°-H) da proibição da rectroactividade da lei penal desfavorável.
Mas continuemos com JESCHECK, pois a segunda crítica, que
farei à sua incidental análise e contraditória posição, permite-me des-
tacar os únicos aspectos duvidosos que há quanto à sucessão de leis
sobre a queixa ou a acusação particular: o caso de a L.N. encurtar o

( 502 ) Como é, p. e., o caso de M A U R A C H / Z I P F (n. 7 5 ) , 1 5 0 - 1 , aliás na sequên-


cia de M A U R A C H (cf., supra, texto a que corresponde a nota 447) e a cuja posição
já, na altura, se opôs, decidida e convincentemente, A L I M E N A .
( 5M ) Cf. 2. lido 1." cap.
388 2," Parte — A sucessão de leis

prazo para apresentar a queixa; o momento a partir do qual se deve


contar o prazo para exercer o direito de queixa, na hipótese de a LJSf.
converter o crime de «público» em «semi-público» ou «particular».
JESCHECK vai mesmo ao ponto de quase aceitar — parece só
não o aceitar mesmo, porque reconhece que há «algumas» (?) objec-
ções '—• que a tal L.N. se aplicasse retroactivamente, mesmo que,
no momento em que esta entrou em vigor, já tivesse decorrido, total-
mente, o prazo para apresentar queixa (!).
Comentário: para além de inconstitucional e político-criminal-
mente reprovável, isto está em contradição com os fundamentos des-
tas duas figuras — e que o Autor refere —: diminuta gravidade da
infracção, relação do crime com a intimidade pessoal dá vítima e pre-
ponderância do interesse da vítima (desde que se verifique um dos
fundamentos anteriores) sobre o interesse público na punição (neces-
sidade da prevenção) (504).
Sendo estas a maior parte das razões da consagração da exi-
gência da queixa, como é que se pode admitir que a L.N. se vá apli-
car retroactivamente, quando ela, além de desfavorável ao infractor
(logo, violação da Constituição), também é desfavorável à vítima,
uma vez que esta, contra a sua vontade, vai ter de ver desenvol-
ver-se um processo judicial em que a sua pessoa, embora na quali-
dade de vítima, estará em causa?
Há que abordar os dois aspectos referidos.

(504) jjá ainda que não esquecer que o próprio legislador se serve, por vezes,
destas figuras como técnica (instrumento ou meio, como se prefira) de «descrimi-
nalização de facto». Fazendo depender o processo penal por certo crime de apre-
sentação da queixa ou da acusação particular, o legislador sabe — e é isso que,
muitas vezes, pretende — que, em muitos casos, tal vai equivaler a uma não pena-
lização do agente, pois as estatísticas lhe indicam que muitos dos crimes, cujo pro-
cedimento depende de queixa, não chegam a ser julgados precisamente pela não
apresentação da queixa. — Cf., p. e., FIGUEIREDO D I Á S / C O S T A A N D R A D E (n. 218), 420.
Como se vê, este é mais um aspecto que vem reforçar — se de reforço hou-
vesse necessidade — a tese de que estes institutos não são puramente processuais,
mas sim, processuais penais materiais e, como tal, condicionando a responsabilidade
penal, estão sujeitos ao princípio da aplicação da lei mais favorável,
— Sobre as múltiplas razões da consagração das figuras da queixa e da acusação
particular, ver, ainda, FIGUEIREDO D I A S (n. 4 9 6 ) , 6 6 6 - 8 .
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 389

HL Passagem de Crime Público a Semipúblico (ou Particular) e


viee-versa

Em primeiro lugar, diga-se que há que distinguir, nos institutos


da queixa e da acusação particular, as normas exclusivamente pro-
cessuais (princípio da aplicação imediata — CPP, art. 5das nor-
mas processuais penais materiais (irretroactividade desfavorável,
retroactividade favorável — CP, arts. 2."-4. e 3.°). Às primeiras
pertencem, sem preocupação exaustiva de pormenor, as normas dos
arts. 49° a 52° do CPP às segundas pertencem, inequivocamente, as
normas constantes dos arts. 113° a 117° do CP.
Daqui, e em segundo lugar, resulta que nunca a L.N. desfavo-
rável ao infractor ou ao já arguido pode ser aplicada retroactiva-
mente. Exemplos de Ls. Ns. desfavoráveis: conversão de crime
semi-público (exigência de queixa) em público (promoção ex officio)
ou de crime particular (exigência de acusação particular) em semi-
-público (basta a queixa); alongamento do prazo para apresentar
queixa; eliminar á possibilidade de renunciar à queixa ou de desis-
tir da queixa apresentada, etc.
Em terceiro lugar, a LJST. favorável ao infractor ou ao já arguido,
é aplicável retroactivamente. Exemplos: L.A. — crime público,
L.N. — crime semi-público; L.A. — impossibilidade de desistência
da queixa, L.N. — possibilidade de desistência, etc.

IV. Distinção entre Direito de Apresentação da Queixa e Direito


de Desistência da Queixa: Condição de Procedibilidade;
Causa de Extinção do Processo

1. Acabei de apresentar duas hipóteses que, apesar de, prima


facie, poderem parecer sobrepostas, na realidade não o são. Toma-se,
pois, indicado esclarecê-las.
Vejamos:
Há, normalmente, uma implicação biunívoca entre crime
semi-público (ou particular) com a consequente exigência de queixa
e a possibilidade (direito) de desistência da queixa: se o crime é
390 2," Parte — A sucessão de leis

semi-público (ou particular), o início do procedimento criminal


depende da queixa; e, uma vez apresentada a queixa, pode o res-
pectivo titular desistir da queixa,"extinguindo, deste modo,-o pro-
cesso penal. A queixa é, portanto, uma condição de procedibili-
dade, isto é, uma conditio sine qua non do (início do) processo,
esgotando-se os seus efeitos jurídicos ( 50S ) na criação do pressuposto
da promoção da acção penal pelo Ministério Público; a desistência da
queixa é, diferentemente, uma causa de extinção do processo penal
("desencadeado" pela apresentação da queixa).
Não sendo, portanto, a queixa uma condição de prosseguibili-
dade ( 506 ) mas sim e apenas de procedibilidade, então, uma vez ini-
ciado o processo por iniciativa do Ministério Público, num momento
em que estava em vigor uma lei (LA.) que considerava o crime res-
pectivo como público, deixa de haver lugar e necessidade para a
apresentação de uma queixa cujos (possíveis) efeitos jurídicos já se
produziram, quando entra em vigor uma lei (L.N.) que passa a con-
siderar o respectivo crime como semi-público, isto é, a fazer depen-
der o início do procedimento criminal da queixa.
Disto não se pode concluir que, assim sendo, há como que uma
quebra ou excepção do princípio da aplicação retroactiva da lei nova
favorável. É que, de facto, não há qualquer desvio deste princípio.
Pois, após a entrada em vigor da LJST. que passa o crirrie de público
a semi-público, crime cujo processo já tenha sido iniciado, ex officio,
pelo MP, pode o ofendido (aquele que passar a ter o direito de queixa)
pôr termo ao processo, extinguindo-o pelo exercício do direito de
desistência. Esta "desistência da queixa", que é verdadeiramente um
«perdão da parte» (na designação do nosso direito anterior ao CP 1982)
e que não pode, por força da entrada em vigor da LJSÍ., ser negada ao
ofendido ( 507 ), faz com que a L.N. seja mais favorável ao infractor e,
consequentemente, torna-o possível de ser beneficiado por ela, no
caso de o ofendido decidir pôr termo ao processo.

( 5M ) Cf. supra, 3. iv. 1.° cap. desta 2." Parte.


( sos ) Condição de prosseguibilidade é a dedução da acusação particular, no caso
dos crimes particulares (CPP, art. 2 8 5 . ° , n ° 1 ) . Cf. FIGUEIREDO D I A S (n. 4 9 6 ) , 6 6 6 .
(50?) Cf. nota 500.
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 391

Conclusão: se, quando entra em vigor uma lei que converte um


crime de público em semi-público (ou particular), ainda não se ini-
ciou o procedimento criminal, o início deste passa a ficar depen-
dente da apresentação da queixa; mas se, quando entra em vigor a
referida lei, o procedimento criminal já foi iniciado, não é necessá-
ria a queixa (pois, o que já se iniciou, iniciado está; o que já se pro-
duziu, produzido está), mas pode o ofendido extinguir o processo,
desistindo do (impedindo o) prosseguimento da acção penal. No
caso de a lei entrar em vigor depois da «publicação da sentença
da 1." instância» ( 508 ), a «desistência» é possível até ao trânsito em
julgado.
2. Convém, neste momento, fazer uma apreciação crítica das
divergências, existentes na jurisprudência, sobre esta matéria:
efeitos e esgotamento dos efeitos da (exigência da) apresentação de
queixa (crimes semi-públicos) e da acusação particular (crimes par-
ticulares); legitimidade, do. Ministério Público para prosseguir com
o processo, quando, no momento em que entra em vigor a lei que con-
verte o crime de público em semi-público, o procedimento criminal
já está iniciado, e quando, no momento em que entra em vigor a lei
que converte o crime de público ou semi-público em particular, o
Ministério Público já deduziu a acusação; delimitação material e
temporal do âmbito da eficácia retroactiva da lei nova mais favorá-
vel que converte o crime de público em semi-público ou em particular,
ou de público ou semi-público em particular; necessidade da notifi-
cação do ofendido (relativamente aos processos iniciados, quando o
crime era público, mas que a nova lei, entrada, em vigor antes do trân-
sito em julgado da condenação, converteu em semi-público ou em par-
ticular) para que este declare se quer, ou não, a extinção do proce-
dimento criminal.
Para fazer esta apreciação das divergências jurisprudenciais e
para procurar clarificar a minha posição nesta matéria, creio que o
melhor caminho é começar por fazer o ponto da situação actual da
jurisprudência.

(50B) Cf. CP, art. 116°, n.° 2.


392 2," Parte — A sucessão de leis

Eis, então, as diferentes posições da jurisprudência',


a) Sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa,
de 29 de Abril de 1997:
II — Tendo o procedimento criminal sido validamente exercido
pelo M. P., na vigência da lei anterior (que considerava público o res-
pectivo crime — que, no caso sub iudice, era o crime de furto), o
facto de a lei nova [no caso, o DL 48/95, que operou a Revisão
do CP] ter determinado a qualificação do crime como semi-público
não afecta a validade da acusação deduzida, nem implica a perda
de legitimidade do M. P.
HE — As normas referentes à desistência da queixa são de natu-
reza processual penal material, pelo que os problemas de sucessão
devem ser resolvidos de acordo com o princípio do regime mais
favorável (art. 2.°, n.° 4, do CP).
IV — Se, após ter sido exercida a acção penal por crime público,
uma nova lei o converte em semi-público, é de considerar relevante
a desistência de queixa.
— A minha apreciação', considero (já desde a 1," edição,
de 1990) esta posição como a mais correcta. Eis as razões:
A legitimidade do Ministério Público para iniciar e prosseguir
com o procedimento criminal afere-se pela vigente no momento em
que se inicia o processo. Pois que, como já o dissemos (cf. anterior
1° capítulo, IV, 3.), as normas processuais penais materiais reali-
zam-se, isto é, produzem e esgotam os seus efeitos no momento da
sua aplicação. Logo, se o crime é público e o respectivo procedimento
se inicia no momento em que ainda está em vigor a respectiva lei, a
sua legitimidade mantém-se, mesmo que, posteriormente, entre em
vigor uma lei que o converta em crime semi-público. A exigência
de queixa é "apenas" uma condição para o início do procedimento cri-
minal, não tendo que ver com a legitimidade e titularidade da acção
penal, as quais são sempre do Ministério Público. A queixa é ape-
nas uma condição (posto que com uma fundamentação material polí-
tico-criminal) para que o processo se possa iniciar, e não para que
o processo possa prosseguir. Assim, tendo o Ministério Público legi-
timidade para, ex officio, iniciar o procedimento criminal, ele man-
tém a legitimidade para prosseguir o processo. Esta legitimidade só
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 393

teimina, se o titular do direito de queixa decidir, com base em lei nova


posterior ao início do processo (lei que converteu o crime de público
em semi-público), extinguir o procedimento, criminal, através de uma
como que "desistência de queixa".
Em conclusão: a competência e legitimidade para o Ministério
Público iniciar e prosseguir o procedimento criminal é definida pela
lei em vigor no momento em que se inicia o processo; a nova lei, que
entre em vigor depois do processo iniciado — e cuja decisão res-
pectiva ainda não tenha tramitado em julgado —, que converta o
crime de público em semi-público, aplica-se, retroactivamente, por-
que mais favorável, mas este "favor rei" consiste e resume-se ao
importante aspecto de o ofendido poder pôr termo ao processo atra-
vés da "desistência da queixa", isto é, através do antigamente deno-
minado "perdão de parte", desistência ou perdão que, face à lei
vigente, no momento do início do procedimento criminal, era irrele-
vante, mas que, com a entrada em vigor da lei nova se toma relevante,
no sentido de permitir ao ofendido, se assim o quiser, extinguir o pro-
cesso e, consequentemente, extinguir a eventual responsabilidade
penal do arguido.
Esta mesma argumentação aplica-se à sucessão de leis em que
a lei nova converta o crime de público ou semi-público em particu-
lar. Só que, agora, estamos, não diante de uma condição de proce-
dibilidade, mas diante de uma condição de prosseguibilidade, que é
a exigência da dedução da acusação particular (CPP, art. 285.71).
Neste caso, iniciado o procedimento criminal ex officio (se o crime
era público) ou mediante apresentação de queixa (se o crime era
semi-público), durante a vigência da lei anterior, estamos diante da
seguinte alternativa: se, no momento em que entra em vigor a lei
que converte o respectivo crime em particular, já tiver sido dedu-
zida a acusação pública (pelo Ministério Público), esta acusação
mantém-se válida e o Ministério Público mantém a legitimidade para
prosseguir com o processo, não sendo necessária a dedução da acu-
sação particular; se, diferentemente, apesar do processo já se ter vali-
damente iniciado, ex officio ou por força da queixa, consoante o
crime fosse público ou semi-público, mas ainda não tiver sido dedu-
zida a acusação pública, então o processo só pode prosseguir com a
394 2," Parte — A sucessão de leis

dedução da acusação particular. É óbvio que, na hipótese de já ter


sido deduzida a acusação pública, quando entra em vigor a lei nova,
o ofendido pode extinguir o procedimento criminal, através da "desis-
tência da queixa", que, no caso da lei anterior qualificar o crime
como semi-público, é, material e formalmente, uma rigorosa desis-
tência de queixa.
— Aproveitemos esta temática para procurarmos demonstrar,
mais uma vez (cf. 1." Parte, 3.° cap., VH, 3) que a persistência da
Jurisprudência na afirmação de que, no caso de sucessão de leis
penais que alteram, simultaneamente, penas (principais e/ou acessó-
rias) e pressupostos processuais, a aplicação de uma delas tem que
ser em bloco (ponderação unitária) — não podendo aplicar-se a dis-
posição mais favorável de uma e a disposição mais favorável da
outra (ponderação diferenciada) — não tem razão. E, para o demons-
trarmos, creio ser suficiente a seguinte pergunta-objecção: na hipó-
tese não inverosímil (posto que rara) de a lei nova passar o crime de
público a semi-público e, ao mesmo tempo, agravar a peiia, iria o tri-
bunal, no caso de o ofendido apresentar a respectiva queixa (lei nova
que, neste aspecto, é mais favorável, pois que exige queixa, e, se já
tiver sido iniciado o processo, pode este ser extinto por decisão do
ofendido), aplicar também a lei nova quanto à pena, apesar de esta
ser mais grave que a estabelecida na lei do tempus delictil A resposta
parece óbvia: é evidente que não.
E esta mesma argumentação vale para a situação inversa: a lei
nova converte o crime de semi-público em público e, simultanea-
mente, diminui a pena. Ora — contra o que a jurisprudência parece
ter assumido como um dogma —, é evidente que, quanto à exigên-
cia de queixa como condição de proeedibilidade, continuava a apli-
car-se a lei antiga, sob pena de aplicação retroactiva desfavorável da
lei nova; mas, quanto à aplicação da pena, no caso de ser apresen-
tada queixa, também é evidente que se aplicava a lei nova, sob pena
de violação do princípio da aplicação retroactiva da lei nova mais
favorável. Em síntese: a lei antiga (lei do tempus delicti) aplica-se
na componente dos pressupostos processuais (exigência de queixa e
faculdade de extinção do processo por desistência de queixa), porque,
neste ponto, é mais favorável que a lei nova; a lei nova aplica-se na
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 395

componente da pena, porque, neste aspecto, ela é mais favorável que


a lei antiga.

b) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29


de Novembro de 2006 (processo 166/03.8TATMR-A.C1): .
Sumário:
I — A queixa, condição de procedimento criminal, constitui um
pressuposto processual, de natureza adjectiva, mas é também uma
condição material de responsabilidade penal do agente.
II — Uma lei que transforma um crime público em semi-público
é mais favorável ao arguido do que a anterior, deixando a promoção
do processo criminal de estar na disponibilidade do Ministério Público.
Transcrevamos, agora, algumas passagens do Acórdão, que mais
interessam para a questão presente. Esclareçamos, desde já, que as
passagens, a seguir transcritas, constam do recurso [da decisão que
afirmou a legitimidade do Ministério Público para prosseguir a acção
penal já iniciada na vigência da lei anterior, não sendo necessária
para tal prossecução a apresentação de queixa, após a entrada em
vigor da lei nova]; mas, uma vez que o Acórdão da Relação de
Coimbra acolheu os argumentos dos recorrentes, a refutação que, a
seguir, faço destes argumentos são, simultaneamente, uma recusa da
posição defendida pelo Acórdão desta Relação.
«A queixa não é uma mera questão de procedibilidade que se
coloque somente no início do procedimento criminal, devendo ser
apreciada, enquanto condição positiva de punição, ao longo do mesmo,
essencialmente — mas não só — no momento da dedução da acu-
sação, sendo que, no caso em concreto, quando o Ministério Público
deduziu a acusação já vigorava o novo CPI, que atribui a natureza de
semi-público ao crime em causa [crime de contrafacção, imitação e
uso ilegal de marca].».
— A primeira observação a fazer é a seguinte: como já o pro-
curei demonstrar há que não confundir queixa (condição ou pressu-
posto do início do procedimento criminal) com desistência de queixa
(causa de extinção do procedimento criminal) — confusão em que
parece ter caído este acórdão. A queixa (a apresentar no prazo de seis
meses...) esgota-se no momento em que é exercida e só é exigida,
396 2," Parte — A sucessão de leis

como condição do início do procedimento criminal, quando a lei em


vigor, no momento em que é feita, qualifica o facto como crime
semi-público; o direito de desistência da queixa é que se prolonga
até determinado momento (CP, art. 116.72). Devo dizer, ainda, o
seguinte; creio não me enganar se disser que, pelo menos relativa-
mente à doutrina portuguesa, fui eu o primeiro a introduzir a desig-
nação "normas processuais penais materiais", precisamente em 1990,
na l. a edição desta monografia Sucessão de Leis Penais. Por outro
lado, deve haver o cuidado em não invocar o argumento dito de
autoridade a torto e a direito, muito menos quando tal invocação
pode induzir em erro os leitores: creio que nesta indução em erro caiu
este acórdão, quando, na transcrição feita, invoca em favor da sua
(incorrecta) posição, FIGUEIREDO D I A S , sugerindo que este Autor
defende que, quando entra em vigor uma lei que converte um crime
de público em semi-público, é exigida a apresentação de queixa,
mesmo que, no momento em que entra em vigor esta lei, o proce-
dimento criminal já se tenha legitimamente iniciado; ora, lendo o
que Figueiredo Dias escreveu, em 1993, sobre a queixa (em Conse-
quências Jurídicas do Crime, § 1061 ss), não vemos que este Autor
tenha tratado desta precisa questão.

É claro que, a partir desta errada concepção da queixa como


condição de procedibilidade e como permanente condição de pros-
seguibilidade, o discurso deste acórdão — como de vários outros,
incluindo acórdãos do Tribunal Constitucional — não podia deixar de
se arrastar para a afirmação de que, a não ter o ofendido manifestado
a vontade de proceder criminalmente contra o agente ou a não vir ao
processo apresentar queixa, o Ministério Público perdeu a legitimi-
dade para prosseguir com a acção penal. E, assim, diz o acórdão: «Se
o procedimento criminal depende de queixa e o ofendido, em nenhum
momento manifestou a vontade de exercer esse direito, o Ministério
Público não tem legitimidade para prosseguir com a acção penal.».
«[...] o ofendido podia e devia vir aos autos apresentar queixa no
prazo de 6 meses — artigo 115." do CP — a contar da entrada em
vigor da nova lei, assim conferindo legitimidade ao Ministério Público
para prosseguir com a acção penal.».
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 397

— Crítica: este acórdão ignora que a queixa é uma condição de


procedibilidade, mas não de prosseguibilidade. Ao falar de 6 meses,
a contar da entrada em vigor da nova lei que passa o crime de
público a semi-público, esquece que eu defendo esta solução mas é
para os casos em que, quando entra em vigor a lei nova, ainda não
se tenha iniciado o procedimento criminal (cf. o seguinte n.° V), e não
para aqueles em que o processo já se encontra iniciado quando entra
em vigor a nova lei. Pois que, nestes, a acção penal prosseguirá
normalmente, mantendo o Ministério Público a respectiva legitimidade;
o efeito favorável — para o arguido — da nova lei está na possibi-
lidade de, contrariamente à lei anterior, agora poder ser extinto o
processo pela "desistência da queixa", isto é, pela declaração da von-
tade do ofendido nessa extinção.

Ao dizer — e bem — que «O legislador não quis descrimina-


lizar a conduta, mas sim tornar o procedimento criminal dependente
de queixa», pelo que — agora mal — o Ministério Público perde, com
a entrada em vigor da lei nova, a legitimidade para prosseguir com
o processo, a não ser que o ofendido apresente queixa, está, mais uma
vez, o acórdão a confundir condição de procedibilidade (que é o que
a queixa é) com condição de prosseguibilidade (que é o caso da
dedução da acusação particular, nos crimes particulares).

Também não assiste razão ao acórdão, quando invoca o princí-


pio da igualdade para retirar ao Ministério Público a legitimidade
para prosseguir com um processo já iniciado, dizendo que este prin-
cípio da igualdade seria posto em causa, pois' que «aquele cujo pro-
cesso criminal fosse iniciado ao abrigo da lei anterior, não poderia
beneficiar da lei nova e aquele cujo procedimento criminal fosse ini-
ciado ao abrigo da lei nova — mesmo que com um dia de diferença
em relação ao outro — já beneficiaria do regime previsto nesta.»;
tirando a seguinte conclusão: «Em suma, a douta decisão recorrida
[que tinha decidido a manutenção da legitimidade do Ministério
Público para prosseguir com o processo já iniciado na vigência da lei
anterior que considerava o facto em causa como crime público] viola
o princípio da imposição da retroactividade da lei mais favorável
398 2," Parte — A sucessão de leis

(art. 29.°, n.° 4, da CRP e o art. 2.°, n.° 4, do CP) e ainda o princí-
pio da igualdade (art. 13.° da CRP).».
— De tudo o que já demonstrámos resulta que não é verdade o
que se lê no acórdão. Pois: a consideração jurídico-penal da queixa
como "mera" condição de procedibilidade (e não como condição de
procedibilidade è de prosseguibilidade) — com a consequência da afir-
mação da manutenção da legitimidade do Ministério Público para
prosseguir, naturalmente, com os processos já iniciados — não impede
a aplicação retroactiva da lei nova mais favorável (que converteu o
crime de público em semi-público) e, portanto, não trata desigualmente
os agentes cujos processos ainda se não tenham iniciado e aqueles
cujos processos já se tenham iniciado. Tanto uns como Os outros
podem beneficiar da aplicação retroactiva da lei nova: relativamente
aos primeiros, basta que o ofendido não apresente queixa; quanto
aos segundos, basta que o ofendido "desista da queixa", isto é, que
manifeste a suá vontade em que seja extinto o processo iniciado.

c) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24 de Outu-


bro de 2007 (processo 0742054):
Sumário: i
«Uma vez iniciado o procedimento por um crime público, a
constatação, após o julgamento, de que os factos integram a prática
de um crime semi-público não tem qualquer efeito sobre o procedi-
mento iniciado de forma válida, para além de, por ser favorável ao
arguido, se admitir a possibilidade de desistência da queixa.».
Esclareçamos, à cabeça, que o caso tratado, neste acórdão, não
tem, directamente, que ver com uma sucessão de leis penais — em que
a lei posterior converte o crime em semi-público —, mas refere-se à
situação em que, no início do procedimento criminal há a possibilidade
de se estar perante um crime público (no caso sub iudice, crime de
homicídio por negligência — CP, art. 137.71), acabando, no julga-
mento, por se concluir e decidir que houve, sim, um crime semi-público
(no caso, crime de ofensa à integridade física por negligência — C.P.
art. 148.71 e 4). Todavia, este caso coloca, materialmente, a mesifra
questão jurídica que a colocada pela conversão legal de um crime de
público em semi-público, razão por que tem interesse apresentá-lo.
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 399

Diz o Acórdão: «importa saber se, uma vez iniciado o processo


para investigação de um crime público, a constatação final, após o jul-
gamento, de que os factos integram a prática de um crime semi-
público tem algum efeito sobre o procedimento (iniciado de forma
válida e eficaz), por ser mais favorável ao arguido, se admitir a pos-
sibilidade de desistência de queixa.». «[...] nestes casos (crimes
semi-públicos), a compressão do princípio da oficialidade se recon-
duz a uma condição de procedibilidade segundo a qual o Ministério
Público só pode promover o processo quando o titular do direito de
queixa manifestou interesse de perseguição criminal. Ora, no caso pre-
sente, nenhuma anomalia se verifica no "arranque" e nà promoção do
•processo que levou a julgamento o arguido: na altura, os dados exis-
tentes apontavam, claramente,. para o preenchimento de um crime
de homicídio por negligência, cuja natureza pública dispensava o
Ministério Público de aguardar qualquer actividade de terceiros para
promover o processo. O que se passou 'foi que, mercê de uma cui-
dadosa averiguação em audiência de discussão e julgamento, a sen-
tença veio a determinar que "o atropelamento não foi causa ade-
quada a produzir a morte, da vítima": é causa adequada à produção
de lesões coiporais mas não'da morte da vítima — que sobreveio por
outras razões.».
Postos os dados da questão, o Acórdão precisa, então, com rigor,
qual o sentido e o âmbito da condição de procedibilidade, que é a
queixa, e qual o momento em que se deve averiguar a sua verifica-
ção, com os consequentes efeitos da legitimidade do Ministério
Público para iniciar o procedimento criminal e para prosseguir, nor-
malmente, com o processo validamente iniciado. Assim, equaciona
o problema nos seguintes termos: «será que faltou legitimidade ao
Ministério Público para promover o processo? — Não. Quando se
iniciou, o processo não estava dependente da satisfação de qualquer
condição de procedibilidade.». Portanto, «a promoção do processo
decorreu de forma válida e eficaz, perante as circunstâncias do caso
e à luz dos elementos que então se conheciam. Nenhuma irregula-
ridade se pode apontar ao início e ao desenvolvimento da actividade
do Ministério Público com vista à identificação do(s) autor(es) des-
tes factos. Além do mais, não se pode exigir às assistentes que ante-
400 2," Parte — A sucessão de leis

cipassem a configuração de uma condição de procedibilidade que


ao tempo em que podia ser exigida não o era. Nem é possível fazer
repercutir uma conjuntura futura sobre a legalidade dos actos asse-
gurada no tempo próprio [passado]. «No fundo, se o processo se ini-
ciou com plena legitimidade, é abusivo surpreender agora as assis-
tentes com uma exigência que nunca se prefigurou; efazê-lo sem lhes
dar sequer a oportunidade de se manifestarem sobre o que é deci-
sivo e medular: saber se querem perseguir criminalmente o autor dos
factos (agora que aquele e estes estão apurados).» [itálico meu].

— Pus em itálico esta parte da fundamentação do Acórdão


— dogmática e político-criminalmente rigorosa —, na medida em
que a sua justeza nos abre caminho para as observações que vou
fazer a um Acórdão do Tribunal Constitucional e para o interesse que
há em resolver (legalmente) o problema que, agora, vou considerar.
Há necessidade de resolver o seguinte problema: o que ê razoá-
vel e justo fazer, quando, iniciado um processo num momento em que
o respectivo e suposto crime era público, surge, posteriormente mas
antes de ter transitado em julgado a sentença condenatória, uma
lei que converte esse crime em semi-público?
Entre outros acórdãos (creio que muitos, entre os quais, p. ex.,
o da Relação de Lisboa, de 29.04.1997), que acolhem a doutrina
subjacente ao acórdão acabado de comentar, tenho à minha frente o
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.03.1997, cujo sumá-
rio é, nesta questão, lucidamente importante, no plano material. Eis
o ponto II do sumário: «Porque o crime de abuso de confiança sim-
ples passou [em 1 de Outubro de 1995, data da entrada em vigor da
Revisão de 1995] a ter a natureza de semi-público, três têm sido as
soluções encontradas para os casos em que o procedimento foi ini-
ciado no domínio do CP/82:
a) averiguar se, no decurso do processo, o ofendido manifestou
o desejo de pretender procedimento criminal; se o fez, o Ministério
Público continuou a ter legitimidade para prosseguir a acção penal;
b) ser ordenada a notificação do ofendido para vir ao processo
dizer se deseja procedimento criminal e, no caso afirmativo, fica o
Ministério Público com legitimidade para prosseguir a acção penal;
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 401

c) aguardar que, no prazo de seis meses, o ofendido, por sua


iniciativa, venha ao processo declarar se deseja procedimento criminal.».
— Penso que a segunda solução é a mais razoável e a que
evita dúvidas e eventuais recursos, no futuro. Por isto, a coloquei
em itálico. Apenas me parece que, no plano da precisão jurídica, a
vinda do ofendido ao processo é para que este declare se quer a
extinção do procedimento criminal, isto é, se quer como que a desis-
tência de uma suposta queixa. Esta formulação é, jurídico-crimi-
nalmente, mais correcta, uma vez que, iniciado validamente o pro-
cesso, o Ministério Público tem normal legitimidade para o prosseguir,
independentemente de uma nova lei transformar o respectivo crime
em semi-público. Este curso normal do processo só poderá ser impe-
dido pelo surgimento de um obstáculo legalmente reconhecido.
A desistência de (uma suposta) queixa, isto é, a declaração do ofen-
dido de que não quer o prosseguimento do procedimento criminal
— "desistência" ou declaração, a que, agora, a nova lei atribui rele-
vância, com a passagem do crime a semi-público — constitui esse
obstáculo ao prosseguimento do processo e, consequentemente, retira
a legitimidade ao Ministério Público para prosseguir com a acção
penal. Ou seja, por outras palavras: não é a declaração do ofendido
no sentido de que o processo prossiga que vai conferir ao Ministé-
rio Público a legitimidade para prosseguir com a acção penal — esta
declaração apenas significa que o Ministério Público continua com a
sua normal legitimidade para prosseguir o processo que validamente
iniciou —; é, sim, a eventual vontade do ofendido de que o pro-
cesso seja extinto o que retira ao Ministério Público a legitimidade
para prosseguir com a acção- penal.
Conclusão: a passagem do crime de público a semi-público não
retira, ipso iure, a legitimidade do Ministério Público para a prosse-
cução da acção penal (que ele tenha, oficiosamente, iniciado na
vigência da lei anterior); tal legitimidade só deixa de existir, a par-
tir do momento em que o ofendido exercer o direito de extinguir o
procedimento criminal (uma suposta desistência de queixa), direito que
a nova lei lhe atribui. Isto quer dizer que a lei nova, ao transformar
o crime de público em semi-público, não cria uma condição de pros-
seguibilidade (um pressuposto da legitimidade do Ministério Público
26
402 2," Parte — A sucessão de leis

para prosseguir a acção penal), mas cria a possibilidade de um


obstáculo à prossecução da acção penal (á possibilidade de retirar
ao Ministério Público a legitimidade para prosseguir).

c) Acórdãos do Tribunal Constitucional: 677/98, de 2 de Dezem-


bro de 1998; 1691/02, de 17 de Abril de 2002; 572/03, de 19
de Novembro de 2003:
Estes três acórdãos têm de especial, em relação aos acórdãos
que acabei de analisar, o facto de já terem transitado em julgado
as sentenças condenatórias proferidas com base na lei que qualificava
os respectivos factos (que, nos respectivos casos, eram os crimes de
emissão de cheque sem provisão e de violação) como crimes públi-
cos, e de, no decurso do processo, os ofendidos terem manifestado a
vontade de "desistirem da queixa", isto é, de não quererem a pros-
secução da respectiva acção penal contra os arguidos.
Estes três acórdãos consagram uma jurisprudência constitucio-
nal no sentido de que a lei, que converte em crime semi-público um
crime público, é de aplicação retroactiva, mesmo que, no momento
em que ela entra em vigor, já tenha transitado em julgado a sentença
condenatória.
Convém referir que aquilo que estava, directamente, em causa,
no recurso para o Tribunal Constitucional, era a inconstitucionalidade,
ou não, da ressalva do caso julgado constante da parte final do
n.° 4 do art. 2." do Código Penal (na redacção anterior à. Revisão
de 2007), na medida em que impeça a aplicação retroactiva da lei
nova (posterior ao caso julgado) que converta em semi-público um
crime público, e desde que, ao longo do processo, tenha sido mani-
festada pelo ofendido a vontade de "desistência da queixa".
O Tribunal Constitucional (Acórdãos 677/98 e 169/02) decidiu:
«julgar materialmente inconstitucional, por violação do princípio da
aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no n.° 4
do artigo 29.° da Constituição, a norma constante do artigo 2°, n.° 4,
do Código Penal, na interpretação segundo a qual veda a aplicação
da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime
público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e
trânsito em julgado da sentença condenatória».
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 403

O Acórdão 572/03 — embora tenha tomado decisão igual —


adoptou uma formulação diferente, dizendo: «julgar inconstitu-
cional, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei
penal mais favorável consagrado no n ° 4 do artigo 29° da Cons-
tituição, a norma constante do artigo 2°, n.° 4, do Código Penal
na interpretação de que veda a aplicação da lei nova que des-
criminaliza o facto típico, imputado ao arguido, já objecto de sen-
tença condenatória transitada em julgado», [itálicos e negritos
meus].

— Apreciação:
Poderá parecer, à primeira vista, que, após a entrada em vigor,
em 15 de Setembro de 2007, do novo art. 371.°-A do CPP — que
passou a estabelecer a aplicação retroactiva da lei nova mais favo-
rável, mesmo que já tenha transitado em julgado a sentença conde-
natória —, deixou de ter interesse prático a análise destes acórdãos
do Tribunal Constitucional. — Penso, todavia, que há interesse em
reflectir um pouco em três aspectos destes acórdãos.
Um dos pontos a xeferir e criticar é o da incorrecção jurídica da
terminologia utilizada. Na verdade, é incorrecto falar-se em apre-
sentação de queixa e desistência de queixa (sem colocar tais expres-
sões entre aspas), quando a lei em vigor, desde o início até ao termo
do processo (até ao trânsito em julgado da sentença condenatória), qua-
lificava o facto como crime público. Pois que, juridicamente, o que
houve foi uma participação ou denúncia, e não uma queixa stricto
sensu, pois esta é uma condição de procedibilidade, condição que
não existia, uma vez que o crime, então, era público. E, inexistindo,
em sentido jurídico, queixa, não é juridicamente possível a desis-
tência de queixa. O que acabo de dizer não significa, obviamente,
que não possam ou não devam utilizar-se estas expressões; mas, sim,
que devem ser colocadas entre aspas.
O segundo aspecto a considerar tem que ver com o enquadra-
mento jurídico-penal da retroactividade da lei que converte em semi-
público um crime público. E a questão é a seguinte: o fundamento
da aplicação retroactiva desta lei está no n.° 2 ou no n.° 4 do art. 2.°
do Código Penal?
404 2," Parte — A sucessão de leis

A leitura destes três acórdãos mostra-nos que o Tribunal Cons-


titucional teve presente a dúvida se a situação decorrente da lei, que
passa a semi-público um crime público, deve ser resolvida com base
no n.° 2 ou no n.° 4 do referido art. 2 ° do Código Penal. Com
efeito, neles aparece clara a ideia de que há uma analogia material
entre a lei que converte em semi-público um crime público — quando,
durante o processo, o ofendido tiver declarado a vontade de que a
acção.penal não prossiga contra o arguido, e este a tal não se opo-
nha — e a lei verdadeiramente descriminalizadora. Afirmam estes
acórdãos: «Com efeito, se a nova lei passa a fazer depender o pro-
cedimento de queixa da ofendida, e, consequentemente, a considerar
relevante a desistência da queixa, o resultado da sua aplicação é
equivalente ao que decorre de uma lei que descriminaliza, em sentido
próprio, a conduta do agente. Num caso como no outro, a aplicação
da lei nova determinaria a não punição.».
Apesar de, como se acaba de ver, o Tribunal Constitucional
considerar que há uma analogia material quanto aos resultados entre
estas duas diferentes espécies de leis penais e, portanto, propender
a subsumir o caso sub iudice ao n.° 2 do art. 2.° do CP, acabou por
— incoerentemente, na minha opinião — declarar a inconstitucio-
nalidade da «norma constante [da antiga ressalva da parte final] do
n.° 4 do artigo 2.° do Código Penal, na parte em que veda a apli-
cação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um
crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresen-
tada e trânsito em julgado da sentença condenatória». — Esta é a
formulação da declaração de inconstitucionalidade, utilizada pelo
Acórdão 677/98, sendo a do Acórdão 169/02 muito semelhante.
A formulação da declaração de inconstitucionalidade, utilizada pelo
Acórdão 572/03 (em que estava em causa uma situação igual à do
Acórdão 169/02), é, diferentemente da anterior, juridicamente incor-
recta, pois que trata um pressuposto processual (no caso, uma con-
dição de procedibilidade, a queixa, e a sua "contra-face", a desistência
da queixa) como se este fosse um elemento do tipo legal de crime:
«julgar inconstitucional [...] a norma constante do artigo 2°, n.° 4,
do Código Penal na interpretação de que veda a aplicação da lei
penal nova que descriminaliza o facto típico [itálico meu]»; como é
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 405

evidente, a lei que vem exigir a apresentação de queixa, como con-


dição de procedibilidade, não é, de forma alguma, uma lei descri-
minalizadora do facto típico: uma coisa é o facto típico (facto que
contém todas as circunstâncias ou elementos constitutivos do tipo
legal de crime); outra, bem diferente, é condicionar o procedimento
criminal e, consequentemente, a efectivação da responsabilidade
penal à exigência de apresentação de queixa. Não é pelo facto de
a lei nova vir tornar o procedimento criminal dependente de queixa
que, por exemplo, a emissão de cheque sem provisão ou a violação
(utilizando os crimes que estavam em causa nestes três acórdãos do
Tribunal Constitucional) deixaram de constituir os respectivos tipos
legais de crime.
A razão por que disse que achava incoerente esta postura do
Tribunal Constitucional é a seguinte: se este Tribunal considerava
que a questão era subsumível ao n.° 2, e não ao n.° 4, do Código
Penal — e acho que considerava bem —, então não tinha que
declarar a inconstitucionalidade da antiga ressalva do caso julgado
constante da antiga redacção do referido n.° 4, relativa e exclusi-
vamente à situação da lei que converte um crime de público em
semi-público, mas sim de declarar que a norma a aplicar era o
n. a 2, e não o n.° 4, do art. 2.° do Código Penal. Estando a ques-
tão fundamental na exigência constitucional (CRP, art. 18.72) da
mínima restrição possível dos direitos e liberdades fundamentais, e
subsumindo-se a questão sub iudice ao n.° 2 do art. 2.° do CP, que
dava uma solução respeitadora dessa exigência constitucional, acho
que era este o caminho que o Tribunal Constitucional devia ter
seguido. Parece-me que não é pelo facto de as decisões recorridas
e, portanto, o objecto do recurso para o Tribunal Constitucional se
centrar, incorrectamente, numa determinada norma que este Tribu-
nal fica impedido de resolver, correctamente, a questão constitucional
que lhe é suscitada. Considerar que a norma aplicável é a norma X
e declarar inconstitucional a norma Y, acho eu que é algo de estra-
nho, apesar de a conclusão-decisão final estar constitucionalmente
correcta.
O terceiro e mais importante aspecto a considerar tem que ver
com o princípio da igualdade.
406 2," Parte — A sucessão de leis

Dissemos, acima (quando comentámos o Acórdão do STJ, de


19.03.1997), que, relativamente aos processos em curso, quando entra
em vigor uma lei que converte o crime de público em semi-público,
deve ser notificado o ofendido para vir ao processo declarar se quer
que este prossiga ou se quer que seja extinto.
Agora, o que está em causa é a situação (situações) em que,
quando entra em vigor a lei que passou o crime de público a semi-
público, já transitou em julgado a respectiva condenação.
Os Acórdãos do Tribunal Constitucional, que estamos a analisar,
limitaram-se a considerar as situações em que, durante o processo, os
ofendidos tinham "desistido da queixa", isto é, tinham manifestado
a vontade de que o arguido não fosse condenado, o que quer dizer
que queriam que o procedimento criminal fosse extinto. Só que,
como o crime era, então, público, tal "desistência", tal vontade era irre-
levante, tendo o processo de prosseguir necessariamente.
Ora, sendo irrelevante, temos que partir do pressuposto de que
a não manifestação da vontade de "desistência", ao longo do pro-
cesso, não significa, necessariamente, que o ofendido não estivesse
na disposição de "desistir", de "perdoar", de extinguir o processo.
Pois pode ter acontecido que o ofendido, sabendo da irrelevância da
sua vontade para extinguir o procedimento criminal, pura e sim-
plesmente não a manifestou.
Daqui resulta que, com fundamento no princípio da igualdade,
deve, também em relação aos já condenados por sentença transi-
tada em julgado, ser aberta a possibilidade de beneficiarem da nova
lei que passou o respectivo crime de público a semi-público. Neste
sentido — pelo menos em relação aos processos em que não haja ele-
mentos que indiquem claramente que o ofendido não quis "desistir da
queixa" —, deverá ser relevante a eventual declaração do ofendido
de que teria desejado que o procedimento criminal fosse extinto.
E uma tal declaração fará extinguir a pena e os seus efeitos.
A declaração da vontade do ofendido, no sentido de que teria
querido que o processo tivesse sido extinto (se tal tivesse sido legal-
mente possível) ou no de que não teria querido, pode resultar da ini-
ciativa do próprio ofendido, da iniciativa do condenado ou da noti-
ficação oficiosa do ofendido, feita pelo Ministério Público.
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 407

V. Termo a quo da Contagem do Prazo

Surge, porém, um problema quanto ao termo a quo da contagem


do prazo para exercer o direito de queixa, quando a L.N., que con-
verte o crime de público em semi-público (ou particular), entrar em
vigor num momento em que já tenha decorrido o prazo para apresentar
queixa (cf. CP, art. 115.°-!.) e o Ministério Público ainda não tenha
promovido o processo penal. Problema idêntico surge, quando a
L.N. que encurta, o prazo para exercer o direito de queixa, entre em
vigor num momento em que o novo prazo — que não o antigo — já
correu.
Nestes casos — e só nestes — é preciso ter em conta as espe-
cialidades da queixa e da acusação particular, antes de apresentar a
solução.
Assim, é necessário ter em conta que, enquanto a ratio da pres-
crição é exclusiva ou, pelo menos, predominantemente político-cri-
minal (desnecessidade da pena, sob os aspectos da prevenção geral
e especial) ( 509 ), já, como vimos, na queixa e na acusação parti-
cular, confluem razões (públicas) político-criminais e razões pessoais
do ofendido (51°). Há, por outro lado, que ter em conta o «principio
da adesão» (CPP, arts. 71." e segs.), o que se pode traduzir num inte-
resse, numa expectativa legítima do ofendido-lesado.
Daqui resulta que, ressalvado o princípio da aplicação retroac-
tiva da lei nova favorável ao infractor, seja razoável consagrar uma
solução que também contemple a posição pessoal do ofendido, posi-
ção que o legislador também teve em atenção ao estabelecer a exi-
gência da queixa.
Neste sentido, poderá apresentar-se a seguinte conclusão: quanto
ao aspecto do termo a quo da contagem do prazo — na hipótese de
a LN., converter o crime de público em semi-público —, este, no caso
de o titular do direito já conhecer o facto e os seus autores, con-

(509) c f , nota 492. Repare-se, ainda, que — diferentemente do prazo da


queixa — o prazo da prescrição varia em função da gravidade do crime.
— Assim, FIGUEIREDO D I A S (n. 4 9 6 ) , 7 0 0 ss.
(SI°) Assim, FIGUEIREDO D I A S (n. 4 9 6 ) , 6 6 6 - 8 .
408 2," Parte — A sucessão de leis

tar-se-á a partir do momento em que entrou em vigor a L.N.


— Repare-se que tal já não acontece se a L.N. converte o crime de
semi-público em particular, pois, nesta hipótese, ele já, face à L.A.,
não podia contar com a promoção oficiosa do MP, mediante simples
denúncia.
Na hipótese de a LJSÍ. encurtar o prazo, a solução será a
seguinte: aplicar-se-á a LN., se o tempo que ainda falta decorrer
para preencher o prazo da LA. for superior ao prazo da LN.; caso
contrário, continuará a aplicar-se a L A .
— Tem sido esta a posição (no mínimo, maioritária) seguida
pela jurisprudência.
Neste sentido, diz o n.° DI do sumário do Acórdão do STJ,
de 19 de Março de 1997: «O que não pode é considerar-se que o
prazo de seis meses começa a contar-se a partir do último acto cri-
minoso imputado ao arguido na acusação e, não havendo declaração
a desejar procedimento criminal nesse prazo, julgar extinto o proce-
dimento criminal por aplicação do regime mais favorável do CP/95
e inexistência de queixa.» [estava em causa o crime de abuso de
confiança simples, crime que a Revisão Penal de 1995 tinha pas-
sado de público a semi-público].
Por sua vez, o Acórdão n.° 523/99, de 28 de Setembro de 1999,
do Tribunal Constitucional considera: «não estando em causa, na
"transformação" de um crime público em semi-público, a descrimi-
nalização da conduta, mas tão só um "desvalorização" do bem jurí-
dico —, torna-se evidente a necessidade de chegar a uma solução
que permita equilibrar o interesse do arguido em ver-lhe aplicada a
lei mais favorável (artigo 29.°, n.° 4 da Constituição da República
Portuguesa), e o interesse do ofendido em ver-lhe reconhecido o
direito de desencadear o procedimento criminal, que encontra apoio
no princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito
Democrático (artigo 2.° da Constituição). A solução parece ser a de,
aceitando a aplicação retroactiva do regime do crime que de público
passa a semi-público [no caso, estava em causa o crime de usura cri-
minosa que, pela Revisão Penal de 1995, passou de público a semi-
público], possibilitar ao ofendido, que no regime anterior não mani-
festou a sua vontade de perseguir criminalmente o agente — porque
3." Capítulo — Queixa e acusação particular 409

tal não era exigido —, cumprir esse ónus, no prazo indicado na lei
antiga, mas contado a partir do início da vigência da lei nova. É esta,
aliás, a via proposta pelo representante do Ministério Público junto
do Tribunal Constitucional, quando afirma que esta lhe parece "razoá-
vel e adequada, em termos de operar um justo equilíbrio entre os
princípios constitucionais da aplicação retroactiva dà lei mais favo-
rável ao arguido e da confiança [...] que não pode deixar de ser
considerado ao valorar a situação ou posição do ofendido, "sur-
preendido" no decurso do processo criminal pela alteração legislativa
que modificou a natureza do crime cometido". Seria absurdo, além
de praticamente impossível, obrigar o ofendido a retroceder no tempo
e a apresentar uma queixa num prazo que a lei estabelecia para cri-
mes de outra natureza, a fim de impedir a extinção do procedimento
criminal. O ofendido não contava, nem tinha razoavelmente motivos
para contar, com a alteração legislativa. Logo, não estava sujeito a
qualquer prazo para desencadear o exercício da acção penal.».
Creio esta argumentação inteiramente correcta e constitucional-
mente harmoniosa. Quero fazer, todavia, um reparo, que não tem que
ver com a concreta questão em análise, mas, sim e ainda, com a
minha tese da chamada "ponderação diferenciada" e contra a tese
da jurisprudência de que a ponderação entre as leis sucessivas deve
ser global. Diferentemente do que se lê, no acórdão, a passagem
de crime público a semi-público não significa, necessariamente, uma
"desvalorização" do respectivo bem jurídico, embora, na maioria dos
casos, as duas coisas andem de "braço dado". Assim, basta recordar
que a Revisão Penal de 1995, apesar de ter passado o crime de maus
tratos entre cônjuges de público a semi-público, elevou a pena de
até três anos para até cinco anos de prisão. Donde se conclui que a
conversão deste crime em semi-público não significou, de modo
algum, uma desvalorização do respectivo bem jurídico.

VI. Oposição à Desistência da Queixa

O CP 1982 consagrou a figura da oposição à desistência, tor-


nando, assim, a eficácia desta dependente da não oposição da pessoa
410 2," Parte — A sucessão de leis

contra a qual foi exercido o direito de queixa (CP, art. 116.°, n.° 2).
Portanto, havendo oposição, o processo prosseguirá, podendo vir a ter-
minar na condenação penal do arguido-opositor que impediu, por
decisão própria, a extinção do procedimento criminal.
Embora a consagração legal da figura da oposição à desistência
se fundamente no eventual justo interesse de o arguido mostrar a
sua inocência ( 511 ), ela, a oposição, acaba por impedir a extinção do
processo e, consequentemente, a possibilidade da extinção pura e
simples da (eventual) responsabilidade penal. Logo, a oposição cons-
titui um impedimento à extinção da eventual responsabilização penal,
extinção que, via extinção do procedimento, ocorreria por força da
desistência.
Mas as formas como o legislador resolve o conflito de interes-
ses (o interesse do arguido na extinção do processo versus o even-
tual interesse do mesmo arguido em mostrar a sua inocência) — ou
dá prevalência ao critério do arguido, assegurando-lhe o direito de opo-
sição à desistência, ou impõe o seu critério de não deixar na depen-
dência da vontade do arguido a prossecução de um processo crimi-
nal com a possibilidade de lhe vir a ser aplicada uma pena, não lhe
atribuindo o direito de oposição — não pode fazer esquecer que,
sob o aspecto que ora nos importa, deve sempre ser considerada
como lei penal mais favorável aquela que exclui o direito de oposi-
ção à desistência.
Donde a conclusão seguinte, num caso de sucessão de leis
penais: se a L.A. prevê o diíeito de oposição e a LJST. o exclui, apli-
car-se-á (retroactivamente) a L.N., pois que esta vem criar uma pos-
sibilidade de pura e simples extinção do procedimento criminal, via
desistência do ofendido; se a L.A. exclui o direito de oposição e
a L.N. o prevê, aplicar-se-á a L.A. (a lei vigente no "tempo do
delito"), só podendo aplicar-se a L.N. relativamente aos factos pra-
ticados depois da sua entrada em vigor, uma vez que, sob o ponto de
vista da responsabilização penal, esta é menos favorável.

(«') Assim, FIGUEIREDO D I A S (n. 496), 679.


4.° CAPÍTULO

PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA DO ARGUIDO


(CRP 3 ART. 32.% N.° 2) E PRISÃO PREVENTIVA
(CRP, ART. 28.°, E CPP, ARTS. 191.° E SEGS.)

I. Motivação e Objecto deste Capítulo

O presente capítulo não se destina apenas a analisar a questão


do conflito temporal de leis sobre a prisão preventiva. Este pro-
blema, e respectiva resolução, já foi, suficientemente, tratado no
1.° capítulo desta 2.a Parte. Como vimos, é, jurídico-penal e jurí-
dico-constitucionalmente, ponto assente e que deveria ter-se por
indiscutível — apesar de ter sido ( 512 ) e ainda, de certa forma, con-
tinuar a ser ( 513 ) objecto de decisões inadmissíveis — que a suces-
são de leis sobre a prisão preventiva (pressupostos, prazos, termos da
contagem, etc.) rege-se pelo princípio da aplicação da lei mais favo-
rável: proibição da aplicação retroactiva da lei desfavorável e impo-

(5>2) Cf. nota 442.


( S!3 ) Por exemplo, Ac. da RL, de 19-12-1995 (CJ, V, 174 ss.), cujo resumo
da fundamentação da decisão de prisão preventiva consta do respectivo sumário
que se transcreve: «Apesar dos factos terem ocorrido em Abril ou Março de 1992,
justifica-se a aplicação e manutenção da prisão preventiva a um arguido acusado de
um crime de roubo previsto e punido no art. 210.°, n.os l e 2, alínea b), do CPenal
revisto, atendendo não só à natureza deste crime, mas também a que foi praticado
em jardim público, com o uso de uma navalha, e a que o arguido não aparenta
estar integrado na vida em sociedade, com respeito pelos respectivos valores, não tem
trabalho, nem revela o propósito de obtê-lo».
412 2," Parte — A sucessão de leis

sição da retroactividade da lei favorável ao arguido. Creio ter, tam-


bém, demonstrado que o momento de referência para o cumprimento
daquela irretroactividade desfavorável e desta retroactividade favo-
rável é o tempus delicti, isto é, o momento da prática da conduta,
independentemente do momento da ocorrência do resultado ( 5 U ).
Apesar de, como acabo de dizer, o aspecto da prisão preventiva,
relacionado com a sucessão de leis respectivas, já ter sido tratado, vou,
ainda, desenvolver o problema da aplicação retroactiva de lei nova que
encurta o prazo da prisão preventiva.
As outras secções deste capítulo vão ser dedicadas à reflexão dou-
trinal sobre os graves, importantes e actuais problemas que á prisão
preventiva em si mesma coloca.

H. Aplicação Retroactiva da Lei Nova que Encurta o Prazo da


Prisão Preventiva

1. Referi e ilustrei, no 1.° capítulo, como em matéria tão grave


para a liberdade, a jurisprudência, não tem andado bem.
Comecemos por transcrever, parcialmente, mais alguns acórdãos
de sinal contrário.
Correctamente e com rigor, lê-se no Ac. da RE de 19-7-83 (515):
«A lei que fixa prazos de prisão preventiva tem natureza substantiva
e está, por isso, sujeita ao sistema da determinação do regime legal
mais favorável quando se sucedem, temporalmente, disposições que
modifiquem esses prazos». No mesmo sentido, o Ac. da RL,
de 11-5-83 ( 516 ): «A lei que estabelece a duração máxima dos prazos
de prisão preventiva tem natureza substantiva, mesmo quando inserida
em lei processual, por respeitar directamente ao direito fundamental
da liberdade. Por tal razão, quando se sucedem temporalmente leis que
estabelecem prazos diferentes para a prisão preventiva, tem de ser
adoptada a regra da aplicação do regime mais favorável».

(S14) Cf., IV, 1.° c. desta 2 = Parte.


(5«) CJ, vm, 332.
(5i6) CJ, viu, 175.
4." Capítulo — Prisão preventiva 413

Curiosamente — mas desgraçadamente para o arguido em


causa —, doutrina oposta e errada era afirmada pela mesma Relação
de Lisboa, em Ac. de 18-5-83 (517): «A lei que modifica os prazos da
prisão preventiva tem natureza puramente adjectiva [?!], pelo que é
de aplicação imediata às situações anteriores à sua entrada em vigor».

2. Consideremos apenas uma hipotética objecção que poderá


vir, sobretudo, daqueles que são muito receptivos à raison d'État
mas bastante alérgicos ao Estado de Razão, isto é, ao Estado Demo-
crático, convertendo a razão instrumental (do Estado) em razão final.
A objecção à aplicação retroactiva de lei nova que encurte os pra-
zos da prisão preventiva (logo mais favorável ao arguido-preso)
poderá ser a seguinte: a necessidade de evitar que os arguidos-presos,
por vezes perigosos e mesmo, porventura, já condenados, embora
não definitivamente, consigam a liberdade, dada a demora processual.
A refutação da validade desta objecção passa por um conjunto
de argumentos-razões que passo a indicar:

1° — A presunção de inocência do arguido até ao trânsito em


julgado da sentença condenatória é um direito e uma garantia fun-
damental ( 518 ).

(=") CJ, vm.


• ( Sl8 ) Assim, é de criticar o Ac. do STJ, de 23-02-1995 (CJ — Acs. do STJ, I,
224), insustentável tanto na decisão como na fundamentação. Vejamos. Começa o
Ac. por referir que o arguido requereu, com base no CPP, art. 215.°, n.° 4 (que, relem-
bremos, estabelecia o máximo dos máximos da prisão preventiva: 4 anos e seis
meses), a extinção da prisão preventiva e a consequente libertação. O acréscimo de
6 meses ao máximo de 4 anos de prisão preventiva resultou da circunstância de o
arguido ter interposto recurso para o Tribunal Constitucional. Como o STJ o é
obrigado a reconhecer, a sentença proferida não transita em julgado antes de ser deci-
dida pelo TC «a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma em causa,
pois, consoante a decisão do TC, pode a sentença proferida pelo STJ ter de vir a ser
reformada.
Diante deste quadro que obrigava, inequivocamente, o STJ a deferir o reque-
rimento do arguido, ordenando a extinção da prisão preventiva, olhemos para a
forma objectivamente injustificada como o Supremo desrespeitou, não cumpriu, vio-
lou a norma constante do CPP, art. 217°, n.° 1 («O arguido sujeito a prisão pre-
ventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir»), inventando uma
414 2," Parte — A sucessão de leis

2° — O carácter excepcional (5I9) da prisão preventiva impõe


que se aplique retroactivamente («imediatamente») a lei nova que
reduza os prazos, independentemente de «razões» processuais (com-
plexidade do processo — aspecto que mesmo a lei nova poderá con-
templar, apesar de reduzir o prazo —, sobrecarga de processos ou, por-
ventura, negligência ou mesmo arbitrariedade na demora do processo),
das necessidades de defesa social ou das ditas razões, de Estado ( 520 ).
3.° — É de recusar — na sequência-imposição constitucional
(CRP, art. 32°, 2.-2.°) — uma concepção gradualista da presunção
de inocência (5Z1), segundo a qual esta presunção se ia relativizando,

tese claramente violadora da CRP, art. 32°, n." 2 («Todo o arguido se presume ino-
cente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação»). Com efeito, o STJ
diz o seguinte: «O Tribunal Constitucional não vai proferir directamente uma deci-
são sobre a natureza da prisão a que o arguido está sujeito, circunscrevendo a sua
competência a verificar a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma que Ibe é sub-
metida». E, logo de seguida, vai o STJ alcandorar-se a "super-legislador" e a
"tutor" dos interesses do arguido, pelo facto de ocupar o topo da hierarquia dos
tribunais, "doutrinando" deste modo: «Por outro lado, e sem prejuízo da compe-
tência própria do Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão
superior da hierarquia dos tribunais judiciais (art. 212°, n.° 1, da CRP), compe-
tindo-lhe definir em última instância a situação dos agentes de infracções criminais.
E assim se compreende que, no interesse dos próprios arguidos, aqui termine para
eles, com a decisão condenatória, o regime de prisão preventiva e se inicie o cum-
primento da pena, mesmo que tal decisão não transite em julgado [?!], em conse-
quência de recurso para o Tribunal Constitucional. .Esta é a doutrina que inequi-
vocamente [?1] se retira das disposições combinadas do art. 212.°, n.° 1, da CRP, e
do art. 28°, n.° 3, al. a), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, constante da Lei
n.° 38/87, de 23-12».
E, depois disto, imediatamente conclui, indeferindo o requerimento, não, sem
antes, deixar de observar: «Não havendo, pois, neste aspecto, razões que justifi-
quem a alteração da corrente dominante [será?!] no Supremo Tribunal de Justiça, tem
de ser indeferido o requerimento do arguido».
(519) Ver GIULIO ILLUMINATI, «Presunzione d'innocenza e uso delia carcera-
zione preventiva come sanzione atípica», RIDPP (1978), 956 ss.
( H 0 ) Há que evitar que a justiça penal se transforme em instrumento nas
mãos do poder económico e/ou do poder político, pois, tal acontecendo, as garan-
tias fundamentais reduzir-se-ão a algo de meramente formal. — Sobre este ponto
essencial, ver GIULIO ILLUMINATI (n. 5 1 9 ) , 9 1 9 ss.
( 521 ) Concepção esta que, na Itália, parece ter estado na origem de um aumento
dos prazos parcelares, à medida que o processo se ia aproximando do seu termo
(ex., maior o prazo entre a condenação em 1instância e a condenação com trân-
4." Capítulo — Prisão preventiva 415

esbatendo, à medida que o processo avançasse (dedução da acusação,


decisão instrutória, etc.), de modo que, como alguns pensariam, com
a condenação em primeira instância, se não ocorreria a inversão da
presunção de inocência em presunção de culpa, desapareceria, con-
tudo, a presunção de inocência.
Como é evidente, este «estado neutro» não existe. Â presunção
da inocência vale e impõe-se, sem quaisquer graduações-, até ao trân-
sito em julgado (522).' Daqui não se compreender como é que possa
ter havido, na jurisprudência, quem, pelo facto de o CPP revogado,
art. 273°, § l.°-l.a (523), não referir o termo ad quem do prazo máximo
de 3 anos de prisão preventiva que ele estabelecia, tenha defendido
que esse termo ad quem era a condenação em l. a instância (!) ( 524 )
— É caso para perguntar a certo sector, oxalá que minoritário, da
jurisprudência onde está a «recriação» das normas jurídicas a partir
dos princípios fundamentais do Direito, das normas constitucionais e
dos princípios jurídico-penais e político-criminais? ( 525 ).
4.° — Diferentemente do que dissemos a propósito de lei nova
que cria a exigência da queixa para o procedimento criminal ou que
encurta o prazo para exercer o direito de queixa ( 52S ), não se coloca,
aqui — na lei que encurta os prazos da prisão preventiva —, qual-
quer necessidade de acautelar legítimas expectativas. Pois cabe,
desde já, perguntar: expectativas de quem? Do legislador? — evi-

sito em julgado do que entre o despacho de pronúncia e a condenação em 1 i n s -


tância). — Este aumento progressivo foi vivamente criticado pela doutrina, com o
correcto argumento de que tal partia de uma concepção da prisão preventiva como
antecipação da expiação da pena, violando-se, deste modo, o princípio constitucio-
nal da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da condenação e desvir-
tuando-se a função processual da prisão preventiva, — Entre muitos, cf., p. e., PIER-
MARIA CORSO, «Immediata Applicazzione di Norme Processuali piii sfavorevoli per
la liberta dell'imputato e processi pendenti: dubbi di costituzionalità», in RIDPP, xxrv
(1981), 434-6.
(522) E não apenas até à sentença proferida pelo STJ. Ver nota 518.
(523) Na redacção dada pelo Dec.-Lei n.° 402/82, de 23 de Setembro.
( 5M ) Criticando também uma tal interpretação jurisprudencial, FIGUEIREDO
D I A S citado in RMP, n.° 2 6 , 1 6 4 - 7 .
F 5 ) Cf. nota 442.
(52S) Cf. 3." cap. desta 2°Parte.
416 2," Parte — A sucessão de leis

dentemente que não: ele, legislador ordinário bem sabe — por vezes
não sabe, mas é presumido saber, não podendo a sua eventual igno-
rância isentar o juiz do cumprimento do princípio constitucional da
aplicação retroactiva das normas processuais penais materiais favo-
ráveis ( 527 ) — que a sua lei, porque mais favorável (ao arguido,
claro; não aos tribunais) tem de ser aplicada aos arguidos-presos pre-
ventivamente.
Expectativas do tribunal? — também é evidente que não: se o
legislador entende que o novo prazo da prisão preventiva é o razoá-
vel, em função da gravidade do tipo legal de crime em questão e da
correspondente complexidade processual, é este que se tem de aplicar
retroactivamente («imediatamente») às prisões preventivas em curso.
Se, porventura, as expectativas do tribunal se baseavam na rela-
ção que ele, tribunal, estabelecia entre o tempo durante o qual podia
manter preso o arguido e a dinâmica a imprimir ao processo, então
tais expectativas não só não são legítimas, mas são mesmo ilegítimas.
Ilegítimas, pois que: são mesmo inconstitucionais — CRP, art. 32°,
n.° 2, estabelece a correcta e justa relação entre a presunção da
inocência do arguido (l. a parte) e a exigência de julgamento defini-
tivo «no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa»
(2.a parte), o que, valendo para o caso de arguido não preso, por
maioria de razão se impõe, estando preso o arguido — e revelam uma
distorção da função processual da prisão preventiva. Esta distorção
teleológica é, mesmo sob o critério constitucional, ilegítima, uma
vez que, como dizemos já de seguida, atenta contra o referido prin-
cípio da presunção de inocência e contra o princípio-base constitu-
cional da dignidade da pessoa humana, na medida em que as tais
expectativas se traduzem numa instrumentalização da pessoa do
arguido-preso.
Mesmo que não seja o caso reprovável de expectativas ilegítimas,
o certo é que nunca há quaisquer expectativas que possam impedir
a aplicação «imediata» (retroactiva) da LN. que reduza os prazos
da prisão.

(*») Cf. 2. a P. - l.°c. - M.


4." Capítulo — Prisão preventiva Ali

I
5 ° — Por último, há que ter presente que uma L.N. que encurte
o prazo de prescrição do procedimento criminal se aplica retroacti-
vamente aos prazos em curso ( 528 ), o que, em certos casos, significa
a extinção imediata da responsabilidade penal por mais grave que
seja o crime em questão. — Que razão há para impedir que uma L.N.
que encurta o prázo da prisão preventiva se aplique ao arguido-preso,
mesmo que tal aplicação determine a sua imediata libertação provi-
sória? — Nenhuma; pode mesmo afirmar-se que, aqui, se deve apli-
car mesmo por maioria de razões: l .a — diferentemente da prescri-
ção, aqui não se trata de extinguir a responsabilidade penal pelos
eventuais crimes cometidos, mas apenas de aguardar, em liber-
dade ( 529 ), a condenação ou a absolvição definitiva; 2." — a prisão
preventiva constitui — nada disto se passando na prescrição —, nas
adequadas palavras de MUNOZ CONDE ( 530 ), «a mais grave intromis-
são que pode exercer o poder estatal na esfera da liberdade do indi-
víduo, sem que medeie uma sentença judicial firme, com fundamento
em crime que a justifique» ( 531 ).

HL Do Desvirtuamento da Função Processual da Prisão Pre-


ventiva à Neutralização do Princípio Constitucional da Pre-
sunção de Inocência do Arguido e, consequentemente, à Vio-
lação «Ope Legis» ou «Ope Judieis» do Direito da Liberdade
Individual

1. O perigo, que em epígrafe se enuncia, não é meramente


hipotético ou académico.

(52B) Cf. 2 ° P., 1.° c., h-2 e 2.° c., I..


C529) Cf. infra, 3. m deste capítulo.
( 5 3 0 ) M U N O Z C O N D E / M O R E N O C A T E N A , «La Prisión Provisional en el Dere-
cho Espaiiol», in La Reforma Penal y Penitenciaria, Santiago de Compostela (1980),
350-1. •
( 531 ) Com razão, escreve GOMES CANOTILHO (n. 437), 95: «se algumas normas
processuais existem com inequívocas dimensões substanciais essas são as que influem
directamente na posição pessoal do arguido quanto à própria liberdade». Donde a
conclusão: «3 — aplicação retroactiva da lei processual penal reguladora dos pra-
zos de prisão preventiva mais favorável ao arguido».
27
418 2," Parte — A sucessão de leis

Em 1980, PALOMBARINI, Juiz de Instrução Criminal do Tribunal


de Pádua, fazia constar de um seu despacho, com data de 3 de Maio,
as seguintes afirmações ( 532 ): «Pena e prisão preventiva têm diversa
natureza jurídica, diferentes objectivos, diversa função... Para deci-
dir se uma certa garantia individual deve aplicar-se a um determinado
instituto, é necessário atender, em primeiro lugar, à incidência do
mesmo instituto sobre a esfera do indivíduo. Ora a prisão preven-
tiva (533) — embora diversa, como se disse, da pena — traduz-se para
o indivíduo numa restrição total da sua liberdade. Diferentes os ins-
titutos, idênticos os valores em jogo e os perigos de lesão do fun-
damental direito da liberdade».
Aludindo ao carácter excepcionalmente gravoso da prisão pre-
ventiva e ao perigo que há em fazer do aumento dos prazos um
expediente para compensar a ineficácia do sistema punitivo, observa
534
GUIDO SALVINI ( ), em anotação crítica do acórdão da Corte Cos-
tituzionale: «a tutela de um bem tão delicado como a liberdade pes-
soal não pode ser sacrificada por circunstâncias que não se ligam
com a disponibilidade do tempo adequado, mas que só encontram jus-
tificação na crise da eficácia da administração da justiça, crise de efi-
ciência que não pode transformar-se em prejuízo do arguido».
Há, por outro lado, que resistir à tentação de ver a prisão pre-
ventiva, na prática, como um meio de intimidação (prevenção geral
negativa) — o que acontece sempre que ela é ope legis, isto é,
imposta por lei —, como uma expiação antecipada da pena — o

(532) RIDPP ( 1 9 8 1 ) , 4 4 3 - 4 .
( 533 ) Sobre a prisão preventiva era geral (função, pressupostos, excepcionali-
dade, subsidiariedade, etc.), V. J. CASTRO E SOUSA, «Os Meios de Coacção no Novo
Código de Processo Penal», in JDPP, Coimbra: Almedina ( 1 9 8 8 ) , 1 4 9 - 6 3 ; ODETE
MARIA DE OLIVEIRA, « A S Medidas de Coacção no Novo Código de Processo Penal»,
in JDPP citadas, 1 6 5 - 1 9 0 ; A N T Ó N I O BARREIROS (n. 4 5 8 ) , 5 2 7 - 8 1 e 5 9 1 - 6 ; G I L
M O R E I R A DOS S A N T O S , Noções de Processo Penal, Porto: Oiro do Dia ( 1 9 8 7 ) ,
2 5 7 s s . ; CAVALEIRO DE FERREIRA ( n . 1 1 ) , 1." v . , 2 3 7 - 7 4 ; E D U A R D O CORREIA, La
Détention Avant Jugement.
( 534 ) «La Sentenza n. 15 dei 1982 delia Corte Costituzionale...», in RIDPP,
XXV (1982), 1220. Quanto às implicações do princípio da presunção da inocência
do arguido sobre a configuração da prisão preventiva cf., também, GREVI, Liberta
Personale deli'Imputado e Costituzione, Milano (1976), 37 ss.
4." Capítulo — Prisão preventiva 419

que é razoável presumir acontecer, quando as diligências de investi-


gação e os actos processuais são dinamizados em função do prazo
limite da prisão preventiva — ou como um meio de coacção em
ordem à obtenção de uma confissão.
Em qualquer uma destas situações, há uma perversão da'função
processual e do carácter excepcional e subsidiário da prisão preven-
tiva. Esta perversão ou desvirtuamento atenta contra a dignidade da
pessoa humana — na medida em que instrumentaliza o arguido r-
e contra o expresso princípio constitucional da presunção de ino-
cência ( 535 ).
Nesta linha de crítica e de alerta contra a utilização abusiva da
prisão preventiva para fins que lhe são absolutamente estranhos, diz
535
MÁRIO CHIAVARIO ( ): «Será um grande equívoco pensar que a
Constituição configurou uma espécie de «normalidade» da prisão
preventiva, desde que decidida pelo juiz... É de temer, è não sem
fundamento, que, na prática, os vários fins, a que se orientam as
medidas restritivas da liberdade, não sejam invocados senão para
encobrir a mais inaceitável das possíveis instrumentalizações da pri-
são preventiva: a de a transformar numa «antecipação» da pena».
E este Autor vai mesmo ao ponto de entender útil recordar a hipo-

(535) GIULIO ILLUMINATI (n. 519), 922 ss., refere-se à «crise do processo e à
utilização dos institutos processuais como meios de controle social», considerando
que, entre os vários factores desta perigosa (para o Estado-de-Direito e para a pes-
soa humana que o legitima) tendência, está «a discricionariedade decisória do juiz,
nem sempre insensível aos desígnios políticos do poden> e «a pouca sensibilidade
da consciência social relativamente ao princípio da presunção da inocência do
arguido»; insensibilidade que, além de não deixar de ter algumas consequências
nas decisões do poder político, faz com que o arguido, especialmente quando é pre-
ventivamente preso, seja tido pela opinião comum como um verdadeiro criminoso,
«sem que se tenha consciência da substancial iniquidade» de uma tal atitude. Assim,
conclui o Autor que «A defesa dos princípios garantísticos torna-se, hoje mais que
nunca, uma actualidade urgente. Especialmente no momento em que à objectiva dis-
função da administração da justiça se responde invocando o «processo forte».
(536) «Profili di Disciplina delia Liberta Personale nelPItalia degli Anni Set-
tanta», in La Liberta Personale, Torino; E. Torinese (1977), 222 e 239-41. — Itá-
lico meu. Cf., ainda, LEOPOLDO E L I A , «Premessa», in La Liberta... acabada de
citar, xvm: «Inegavelmente é muito perigoso, em tema de liberdade, toriiar «con-
juntural» a interpretação e efectivação da Constituição».
420 2," Parte — A sucessão de leis

crisia do «legislador fascista que, enquanto, por um lado, repudiava


com desprezo a por ele designada «absurda presunção de inocência,
qual extravagância derivada dos velhos conceitos, germinados pelos
princípios da Revolução francesa, os quais levaram as garantias indi-
viduais aos mais-exagerados e incoerentes excessos», simultanea-
mente proclamava como «certo e indiscutido o princípio de que o
arguido não pode ser considerado culpado antes da sentença irrevo-
gável de condenação» ( 537 ).
Depois de analisar a tensão aguda entre o interesse social e os
direitos individuais, MORILLAS CUEVA ( 538 ), conclui, salientando a
necessidade de que seja considerada, na prática, como medida ver-
dadeiramente excepcional e não como meio de coacção ( 539 ) para
obter a confissão dos factos. Recorda que a tortura de épocas pas-
sadas foi «considerada pelos juízes daqueles tempos como meio
indispensável para a realização da missão de que tinham sido incum-
bidos; a sua abolição não impediu, contudo, a manutenção da ordem
pública. Quem poderá negar que com a prisão preventiva se não
virá a passar o mesmo?».

2. A prisão preventiva ope Iegis é, seguramente, inconstitu-


cional. Uma tal lei, que impusesse a prisão preventiva, constituiria
uma distorção da função cautelar processual, uma violação do seu
carácter rigorosamente excepcional e subsidiário, sendo inconstitucional
a vários títulos ( 540 )

( 537 ) As transcrições feitas por C M A V A R I O são da «Relazione al Progetto Pre-


liminare di un Nuovo Códice di Procedura Penaie», in Lavori Preparatorí dei Códice
Penale e dei Códice di Procedura Penaie, viu, Roma (1929), 22.
(538) «Regimen de Prision Preventiva tiene por Objecto Retener al Interno a
Disposicion Judicial. El Principio de la Presunción de Inocência presidirá el Regi-
men Penitenciário de los Preventivos», in Comentários a la Legislaciân Penal, t. vi,
V. 1, 112 e 129-30.
(539) E porque não deve ser meio de coacção, penso que foi infeliz a desig-
nação adoptada pelo novo CPP, Livro TV, título II: «Das Medidas de Coacção». Mais
adequada à função e aos respectivos pressupostos (cf. art. 204.°) seria, p. e., a deno-
minação Medidas Cautelares, que é utilizada pelo CPP italiano.
( M ) O mesmo se diga para a «obrigação de permanência na habitação» (CPP,
art. 201.°). Mesmo as outras medidas, incluindo a própria caução jamais podem ser
4." Capítulo — Prisão preventiva 421

O que acabei de afirmar já foi ex abundanti fundamentado


no n.° 1 desta secção m. Agora, apenas focarei mais um outro
aspecto.
Dada a sua função cautelar, a prisão preventiva ope legis é uma
medida excessiva e desproporcionada ( 541 ). Uma tal imposição legal
violaria, pois, o art. 18°, n.° 2-2." parte, da CRP. Basta pensar que
ela iria ter de ser imposta pelo juiz a muitos arguidos que não preen-
chiam os pressupostos da aplicação tanto desta como de qualquer
outra «medida de coacção».
Por sua vez, a imposição legal da aplicação da prisão preventiva
violava, frontalmente, o princípio constitucional da presunção de
inocência até ao trânsito em julgado (CRP, art. 32.°, n,° 2-1°). Esta
presunção de inocência não é menor pelo facto de estar em causa um
crime mais grave; pode dizer-se que, seja qual for o crime de que se
é arguido, a presunção é sempre absoluta.
Uma tal determinação legal da aplicação necessária da prisão
preventiva era, por outro lado, violadora do princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana (CRP, art. 1."). Esta dignidade era
duplamente instrumentalizada: a própria imposição ope legis cons-
tituía em si mesma uma instrumentalização, na medida em que sig-
nificava a imputação à prisão preventiva de uma função de intimi-
dação da comunidade (prevenção geral negativa), função que só à
pena cabe; instrumentalização, ainda, daqueles arguidos, relativa-
mente aos quais não se verificassem os pressupostos cautelares da
prisão preventiva.

objecto de imposição automática. Tal aplicação ope legis violaria como em texto
se comprova, de igual modo — embora com efeitos no arguido menos graves — o
princípio da presunção de inocência do arguido e, fosse qual fosse a sua motivação,
constituiria uma instrumentalização da pessoa do arguido.
O princípio geral é o da liberdade provisória sem qualquer condição, salvo a
exigência compreensível do «termo de identidade e residência» (CPP, art. 196.").
(»!) De tudo o que escrevi até ao momento, creio não haver lugar para qual-
quer dúvida sobre á inconstitucionalidade da prisão preventiva ope legis, isto é,
obrigatória. É, inequivocamente, inconstitucional.
Cf. G O M E S C A N O T I L H O / V I T A L M O R E I R A (n. 333), 1 . ° v„ anot. IVao art. 28°;
I. TAVARES DE A L M E I D A , A Precaridade da Prisão Preventiva e os Delitos Incau-
cionáveis — sep. dá ROA (SetiDez. — 1982).
422 2," Parte — A sucessão de leis

— Deste modo, nem sequer a «declaração do estado de sítio ou


do estado de emergência» pode justificar a prisão preventiva obri-
gatória, isto é, ope legis.
Uma aplicação automática da prisão preventiva violaria, mesmo
nestas situações, os princípios constitucionais acabados de referir, do
mesmo modo que desrespeitaria o princípio da proporcionalidade e
da necessidade consagrado no próprio art. 19°, n.° 4, da CRP (542).
Consideremos ainda mais dois aspectos relacionados com o
«estado de emergência» ou o «estado de sítio».
Nunca as alterações legislativas do regime da prisão preven-
tiva (pressupostos, prazos, competência, etc.) — mesmo ressalvados
os limites constitucionais da necessidade e da proporcionalidade
(CRP, art. 19.°, n.° 4) — podem aplicar-se retroactivamente, na
medida em que, sendo (como se dá por suposto serem) desfavoráveis,
só podem aplicar-se aos crimes cometidos depois da entrada em
vigor da alteração legislativa.
Por outro lado, uma vez terminado o estado de sítio ou de emer-
gência, consideram-se ipso iure e imediatamente revogadas (cadu-
cadas) as normas sobre a prisão preventiva desfavoráveis e publica-
das em conexão com esse estado. Assim, p. e., uma lei que, em
função do estado de sítio ou de emergência, tenha permitido a prisão
preventiva relativamente a determinado crime, cujo limite máximo da
pena aplicável seja igual ou inferior a três anos de prisão (agora,
após a Revisão de 2007, igual ou inferior a cinco anos de prisão), dei-

(542) N i o se invoque — pois tal constituía um despropósito — o regime das


leis temporárias (cf. I. 1 P. — 3 ° c. — vu). Nestas, trata-se da punição: criminalização
ou agravação da pena para uma conduta que, dada a excepcionalidade da situação, se
torna mais perigosa para determinados bens jurídicos; na prisão preventiva, está em
causa uma medida processual cautelar, cuja aplicação, ou não, depende do preenchi-
mento dos respectivos pressupostos, cabendo ao juiz decidir em função do arguido con-
creto. A situação de excepção nada tem a ver e, como tal, nunca poderia levar a uma
inversão do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido: de presumido
inocente a presumido culpado. Por outro lado, uma possível intenção preventivo-geral
de intimidação também não retiraria, como já vimos, a inconstitucionalidade de uma
tal imposição obrigatória da prisão preventiva. Na verdade, o estado de sítio ou de
emergência não justifica a instrumentalização da pessoa do arguido que, seja qual
for a situação de excepcionalidade, tem sempre de ser presumido inocente.
4." Capítulo — Prisão preventiva 423

xará de vigorar no exacto momento em que cessar a situação de


emergência. Em consequência necessária, os eventuais arguidos,
presos preventivamente com fundamento nessa lei, terão de ser ime-
diatamente libertados.

3. O prazo limite da prisão preventiva é absoluto. Assim, a


libeitação não pode ficar dependente da prestação de caução.
Mesmo fora da hipótese do preenchimento do prazo máximo
da prisão preventiva, é inconstitucional subordinar a «liberdade pro-
visória» à prestação de caução, quando as capacidades económicas do
arguido não permitem prestá-la ( 543 ). Se o juiz de instrução entende
que o arguido pode aguardar julgamento fora da prisão, não pode
negar a liberdade com fundamento na não prestação de caução,
quando tal não-prestação não pode ser imputada ao arguido.
Seria inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade
e da intervenção mínima nos direitos fundamentais, que a incapaci-
dade económica para prestar caução pudesse determinar a prisão pre-
ventiva.

IV. A Obrigação de Indemnização nos Casos de Prisão Preven-


tiva ou de Obrigação de Permanência na Habitação Injusti-
ficadas.

1. Vejamos, em primeiro lugar, a evolução do regime legal


de indemnização por prisão preventiva injustificada.
O Código de Processo Penal de 1987, ait. 225.72 (na versão pri-
mitiva), estabelecia a obrigação de indemnização dos danos sofridos
com a privação da liberdade, quando a prisão preventiva «venha a
revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressu-
postos de facto de que dependia, se a privação da liberdade lhe tiver
causado prejuízos anómalos e de particular gravidade».

(543) Cf. CPP, art. 197.°, n.° 2. Não se entenda que a substituição referida
nesta disposição só é possível quando estiver em causa crime punível com pena de
prisão. Como digo em texto, tal entendimento é errado, podendo mesmo levar a deci-
sões inconstitucionais.
424 2," Parte — A sucessão de leis

— Como crítica à exigência de erro grosseiro, repetimos, aqui


e agora, o que já, na primeira (ano 1990) e na segunda (ano 1997)
edições desta monografia, escrevemos: se, nas relações civis, alguém
que causa prejuízos a outrem, é obrigado a indeminzá-lo, mesmo
que a conduta causal tenha sido objectivamente lícita, que razão há
para que o Estado não seja obrigado a indemnizar, adequadamente,
os danos morais e patrimoniais derivados de uma objectivamente
injustificada violação do bem jurídico fundamental que é a liber-
dade?!; isto é, derivados de uma decisão que, posto que justificada
(e, portanto, lícita) no momento em que foi tomada, veio, posterior-
mente, a revelar-se como objectivamente desnecessária.
Se, numa ponderação entre o interesse da Sociedade e do Estado
na investigação criminal e o interesse do cidadão-arguido no res-
peito da sua liberdade, pode prevalecer aquele e, portanto, justifi-
car-se o sacrifício deste, já é absolutamente injustificável — nomea-
damente num Estado de Direito — que, vindo, posteriormente, a
revelar-se que o sacrifício da liberdade não teria sido necessário, se
se conhecessem as circunstâncias que, hoje (isto é, no momento do
arquivamento ou da sentença absolutória definitivos), se conhecem,
que o Estado não repare os danos causados por tal privação da Uber-
dade. No momento em que é tomada a decisão da prisão preventiva
(ou da manutenção desta) há, sempre e naturalmente, o risco de que
a privação da liberdade se venha a revelar como desnecessária; ora,
se este risco se vier a comprovar, o que tomou a decisão (posto que
justa), que implicou este risco, tem o elementar dever de justiça de
reparar os correspondentes danos. Trata-se de um dever de justiça
natural e decorrente dos princípios basilares do Estado de Direito.
Logo, a afirmação deste dever de o Estado reparar os respecti-
vos danos, e do correspondente direito do cidadão-arguido, nem
sequer precisava de estar expressamente prevista na Constituição.
E, pelas mesmas razões, é de discordar, abertamente, da argu-
mentação formal e legalista — em nada me parecendo consentânea
com a perspectiva exigível a um Tribunal Constitucional — utili-
zada pelo Acórdão 12/2005'do Tribunal Constitucional, quando, no
n.° 15, afirma: o artigo 27.°, n.° 5, da Constituição, ao prever o dever
de o Estado indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer [...]
4." Capítulo — Prisão preventiva 425

«devolveu ao legislador a incumbência de construir o conteúdo do


próprio direito fundamental em causa.». «Na verdade, no caso do.
artigo 27.°, ii.0 5, a intervenção legislativa, mais do que apenas uma
concretização ou promoção do direito fundamental (e, assim, do que
uma mera regulação da fixação da indemnização, na sua forma e
quantuni), é, por decisão do próprio legislador constitucional, cons-
titutiva e conformadora do seu conteúdo, no exercício de uma liber-
dade que a Constituição quis deixar às opções de política legisla-
tiva. Assim, é claro que o controlo judicial da conformidade com a
Constituição se poderá fazer aqui apenas segundo um critério de evi-
dência (isto é, destinado a apurar se é manifesta a inconstitucionali-
dade), e, designadamente, apenas quanto ao respeito pelo núcleo
essencial do direito assegurado pelo artigo 27°, n.° 5, da Constitui-
ção, evitando que ele seja esvaziado ou aniquilado pelo concreto
regime conformador.».
— Diante desta argumentação do Tribunal Constitucional, é,
então, caso para dizer que o "núcleo essencial" do art. 27.°15 parece
que só seria afectado, se o art. 225.72 do CPP restringisse o dever
de indemnização a cargo do Estado, quando a decisão de aplicação
da prisão preventiva configurasse o crime de prisão ilegal dolosa
(CP, art. 369.74)!...
Esta argumentação do Tribunal Constitucional é inteiramente
inaceitável ( 544 ), pois que ela até consideraria normal a negação do

(544) Os Conselheiros FERNANDA PALMA e M Á R I O TORRES também se distan-


ciaram da argumentação desenvolvida por este Acórdão, defendendo, nas respecti-
vas Declarações de voto, a inconstitucionalidade da dependência da obrigação de
indemnização da existência de "erro grosseiro" na aplicação da prisão preventiva.
Assim, na linha dos argumentos que já venho defendendo — e que, nesta
3. A edição, reafirmo e desenvolvo —, salienta FERNANDA PALMA: «A questão que este
Tribunal, como intérprete dos valores constitucionais, cabe dilucidar é, todavia, a de
saber se os danos pelo risco de uma inutilidade da prisão preventiva revelada ex post
não devem ser suportados pelo Estado em vez de onerarem, exclusivamente, o
arguido. Tal questão não é apenas atinente ao regime dos pressupostos da prisão pre-
ventiva e à sua legitimidade, mas antes um problema de justiça no relacionamento
entre o Estado e os cidadãos, função de justiça que cabe ao Estado assegurar.».
«Não se tratará porém de um problema de verificação dos pressupostos ex ante da
prisão preventiva e de uma avaliação da sua justificação, mas sim, num plano objec-
426 2," Parte — A sucessão de leis

dever de o Estado indemnizar, mesmo na hipótese de se vir a provar


que o arguido, que esteve preso preventivamente, não foi o agente do
crime, ou que o facto típico por ele praticado não foi ilícito, pois foi
cometido no exercício de uma causa de justificação — hipótese esta
a que, hoje, com a alteração do art. 225.71-c) do CPP, operada pela
Revisão de 2007, é expressamente atribuído o direito à indemnização.
— A redacção primitiva do art. 225.72 do CPP de 1987 ia ao
ponto de exigir, para além do erro grosseiro, que os "prejuízos"
causados, com a prisão preventiva injustificada, fossem "anómalos e
de particular gravidade". Quanto a esta inadmissível segunda exi-
gência, basta transcrever aquilo que já, nas l. a e 2.a edições (de 1990
e de 1997), escrevi: «Inadmissivelmente, este normativo, no momento
de chamar à responsabilidade o Estado, parece que esqueceu que

tivo (e necessariamente ex post), da contemplação da "vitimização" do agente pelo


próprio juízo de prognose correcto realizado pelo órgão de justiça penal. Se o
agente não foi, ele mesmo, fonte do risco da aparência de indícios da prática de um
facto criminoso, não poderá recair sobre si o ónus de suportar todos os custos-da pri-
vação da liberdade sem qualquer posterior reparação»; «se a Constituição admite em
certos casos a sobreposição do interesse público' ao individua], também tal princípio
tem como geral contrapartida a ressarcibilidade da lesão dos interesses e direitos indi-
viduais.». «Mesmo a mais perfeita justifícabilidade da prisão preventiva numa pers-
pectiva ex ante não pode, em nome do carácter absoluto de uma necessidade pro-
cessual, sobrepor-se ao direito do arguido — que não deu causa a essa situação
por qualquer comportamento doloso ou negligente — a ser reparado dos prejuízos
sofridos nos seus direitos fundamentais.».
Depois de referir que tal restrição do direito à indemnização afecta o princí-
pio da presunção de inocência — como o têm salientado várias decisões do Tribu-
nal Europeu dos Direitos do Homem —, de ter anotado que «o sistema de repara-
ção abrangente é dominante no Direito europeu», e de ter chamado a atenção para
a desigualdade existente entre o que vem a ser condenado (a cuja pena é descontado
o tempo da prisão preventiva) e o que vem a ser absolvido (que não receberia qual-
quer compensação pela privação da liberdade que ex post se vem a revelar injusti-
ficada), conclui que «Não é, apenas, a interpretação literal do artigo 27.°, n.° 5, que
se equaciona neste problema, mas um conjunto mais amplo de princípios que for-
mam a coerência global do Estado de Direito democrático baseado na dignidade
da pessoa humana.».
— No sentido da inconstitucionalidade da exigência de "erro grosseiro", tam-
bém P A U L A RIBEIRO DE F A R I A , «Indemnização Por Prisão Preventiva Injustificada
— Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 12/05», in Jurisprudência
Constitucional, n.D 5, Janeiro-Março, 11-18.
4." Capítulo — Prisão preventiva 427

houve sempre um bem inestimável — mas compensável — que foi


violado: o bem liberdade que é sempre de particular importância,
trate-se da liberdade de um ministro ou de um empresário [ao que
podemos acrescentar, hoje: ou de um administrador de um banco,
milionariamente e escandalosamente — num Estado de Direito Social
— pago], trate-se de um mendigo, de um desempregado ou de um
vagabundo.
E é de aproveitar este momento para salientar dois aspectos,
ainda não previstos na actual redacção (dada.pela Revisão de 2007).
O primeiro tem que ver com a necessidade de se estabelecer as impor-
tâncias mínima e máxima a atribuir (a título de indemnização dos
prejuízos patrimoniais e de compensação do dano moral) por cada mês
(e, proporcionalmente, por cada dia) de privação da liberdade injus-
tificada: num Estado de Direito [que se diz e pretende] Social, o
montante mínimo deve corresponder ao salário mínimo nacional, e
o máximo deve ser limitado pelo vencimento máximo existente na Fun-
ção Pública. O segundo ponto a considerar refere-se à medida cau-
telar de suspensão do exercício de profissão, de função e de activi-
dade (art. 199.71 -a)): podendo esta medida causar — e normalmente
causa — danos patrimoniais e morais ao arguido, é também dever
de o Estado indemnizá-los, quando o arguido vem a ser absolvido.

A Lei n.° 59198, de 25 de Agosto (Revisão do CPP), eliminou a


exigência de que tivessem resultado da injustificada prisão preventiva
"prejuízos anómalos e de particular gravidade". Tendo em conta a
crítica acabada de tecer a esta condição, a eliminação foi algo de
positivo.
— Mas, ao não eliminar a exigência de erro, mantendo, pelo
contrário, a exigência de "erro grosseiro", o juízo de inconstitucio-
nalidade desta exigência legal, estabelecida pelo n.° 2 do art. 225.°
do CPP, devia continuar a afirmar-se, pelas razões já apresentadas.

A recente Revisão do Código de Processo Penal, operada pela


Lei n.° 4812007, de 29 de Agosto, "suavizou" um pouco mais a
inconstitucionalidade da restrição ao direito à indemnização por pri-
vação injustificada da liberdade. As duas novidades desta Revisão
428 2," Parte — A sucessão de leis

de 2007 são as seguintes: por um lado, estendeu o dever de indem-


nização à "obrigação de permanência na habitação" (art. 225.71);
por outro, estabeleceu que, mesmo não tendo havido "erro gros-
seiro", há o dever de indemnização, quando se provar que o arguido
não cometeu o crime, ou quando se provar que o facto típico
praticado não foi ilícito porque houve uma causa de justificação
(art. 225.71-cj).
— Embora louváveis estas inovações, entendo que a mantida
exigência legal de erro grosseiro (art. 225.71-Ô), fora dos casos
em que se prove que o arguido não cometeu o crime ou que agiu
justificadamente —, e mesmo tão só a exigência de erro, mesmo que
objectivamente inevitável — continua a fundamentar o juízo de
inconstitucionalidade.
Com efeito, exigir, fora das duas situações referidas, o erro e,
a fortiori, "erro grosseiro" é, pelo que já se disse, inconstitucional.
E a distinção entre a absolvição com base no princípio in dúbio pro reo
(inerente ao Estado de Direito e à Constituição, que tem como pedra
angular o princípio da dignidade da pessoa humana — CRP, art. l.Q)
e aquela em que se prova que não foi o arguido quem cometeu o
crime, ou em que se prova que não houve crime porque ele actuou jus-
tificadamente (art. 225.71-cJ), é uma distinção que violá o princípio
constitucional da presunção de inocência (CRP, art. 32.72) e que tam-
bém viola o princípio in dúbio pro reo, ao transformar, neste aspecto
da indemnização, o in dúbio pro reo em in dúbio contra reum (S45).

resume, in RPCC, 2 0 0 2 (ano 1 2 — n.° 2 ) ,


( S 4 5 ) A N T Ó N I O HENRIQUES G A S P A R
297-298, o Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 2 0 de Dezem-
bro de 2001, sobre o caso Weixerbraun versus Áustria. Neste resumo, lê-se: «O res-
peito pelo princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 6.°, § 2, da Con-
venção, foi objecto de apreciação pelo Tribunal no caso WEICHERBRAUN C. Áustria.
O requerente queixava-se de violação desta disposição convencional, invo-
cando que os tribunais internos ao efectuarem, na decisão de um pedido de indem-
nização por prisão preventiva injustificada, uma distinção entre absolvição por prova
de inocência e absolvição in dúbio pro reo, estabeleceram uma dualidade de espé-
cies de absolvição incompatível com o princípio da presunção de inocência.
O Tribunal, referindo-se a anterior jurisprudência, recordou que uma pessoa pode '
invocar o artigo 6.°, § 2°, após a decisão final de absolvição, independentemente do
facto de ter sido absolvida par se ter provado estar inocente ou por dúvidas; após
4." Capítulo — Prisão preventiva 429

À presunção de inocência afirma-se e torna-se absoluta, sem-


pre que há absolvição, independentemente de tal decisão resultar de
dúvida sobre quem praticou o facto, ou de haver a certeza de que não
foi o arguido quem o cometeu ou de que o praticou justificada-
mente ( 546 ).

2. Parece indiscutivelmente razoável e justo que o Estado


tenha a obrigação jurídica de reparar os danos não patrimoniais
(compensação) e os danos patrimoniais (indemnização) causados por
uma privação da liberdade que, a posteriori, se veio a revelar como
objectivamente injustificada. E a prisão preventiva, tal como a obri-
gação de permanência na habitação, deve considerar-se objectiva-
mente injustificada sempre que o arguido é absolvido. E, mesmo
sendo condenado numa pena inferior ao tempo em que esteve em pri-
são preventiva ou em regime de permanência na habitação, deve
considerar-se como injustificada a diferença entre a privação da liber-
dade como medida cautelar e a privação da liberdade como pena.
Esta obrigação jurídica de o Estado reparar os danos resul-
tantes da privação da liberdade não pode ficar dependente da exis-
tência de erro «na apreciação dos pressupostos de facto de que
dependia»; e muito menos de "erro grosseiro", como o exige a alí-
nea b) do n.° 1 do art. 225.° do Código de Processo Penal. Este
dever jurídico de reparação impõe-se, mesmo que a decisão do juiz
que determinou tais medidas seja irrepreensível e inteiramente jus-
tificada. Pois, o que está em causa não é o juízo sobre razoabilidade
ou irrazoabilidade da decisão, mas sim o facto objectivo — consta-

uma decisão final de absolvição, é inadmissível qualquer invocação pelas autorida-


des de rumores de suspeita, mesmo se tais suspeitas tiverem sido expressas nos
motivos da absolvição (decisão não unânime do júri). Sempre que tenha transitado
uma decisão absolutória — mesmo que a absolvição tenha sido determinada pela
regra "in dúbio" —, qualquer rumor ou indicação de suspeitas de culpabilidade,
incluindo as que foram expressas na motivação da absolvição, é incompatível com
a presunção de inocência.
Consequentemente, o TEDH considerou que os tribunais austríacos, invo-
cando tais motivos na decisão sobre o pedida de uidemnização, violaram o artigo 6.°,
§ 2°, da Convenção.» [itálicos meus],
(545) Ver nota 545.
430 2," Parte — A sucessão de leis

tado a posteriori — de que alguém esteve privado da sua liberdade


injustificadamente (547).
De forma algo análoga com o que se passa com a figura do
"direito de necessidade" ou estado de necessidade justificante (Código
Civil, art. 339.72) — em que, apesar de justificado o acto lesivo do
interesse de um terceiro e de este ter de o suportar, em nome da
solidariedade e para'salvaguarda de um interesse superior, o terceiro
tem o direito de ser indemnizado dos danos que sofreu —, também
a Sociedade pode precisar de ter de sacrificar a liberdade de uma
determinada pessoa, mas vindo a verificar-se que este sacrifício foi,
objectivamente, injustificado, tem o Estado a obrigação de reparar
um tal sacrifício.
O artigo 225." do Código de Processo Penal restringe a obrigação
de reparação dos danos causados por prisão preventiva ou obrigação
de permanência na habitação injustificadas a duas situações: quando
houver "erro grosseiro" na apreciação dos pressupostos (al. b) do
n.° 1), ou quando se provar que o arguido actuou justificadamente ou
que não foi ele quem cometeu o crime (al. c) do n.° 1). Ora, estas
condições não são compatíveis com um Estado de Direito", elas afron-
tam e violam o princípio da presunção de inocência, pois que, se
não há fundamento jurídico para condenar o arguido, negar-lhe o
direito a ser indemnizado é negar o direito à reparação de uma
injustiça cometida sobre quem é juridicamente considerado inocente.
Por outro lado, a alínea c), ao exigir, como. condição da indemniza-
ção, a prova de que não foi o arguido que cometeu o crime ou de que
ele actuou justificadamente, está a transformar, neste aspecto da
indemnização, o princípio in dúbio pro reo em in dúbio cont)-a reum.
Não há qualquer justificação para estabelecer uma distinção entre
uma absolvição com fundamento no princípio in dúbio pro reo e
uma absolvição resultante da constatação de que não foi o arguido que
cometeu a infracção ou de que agiu com fundamento numa causa de
justificação: na primeira, da mesma forma que na segunda hipótese,
o arguido é considerado inocente e, como tal, tem igual direito a ser

(S47) Conferir nota 544.


4." Capítulo — Prisão preventiva 431

indemnizado. Não podem estabelecer-se distinções entre absol-


vições de l. a e absolvições de 2.a categoria ( 548 ). Num Estado
de Direito, não pode o Legislador Constitucional delegar no legisla-
dor ordinário o poder de estabelecer esta distinção e de, em função
de tal distinção, atribuir ou negar o direito à indemnização'ao arguido
que, tendo estado preso preventivamente ou obrigado a permanecer
na habitação (ou proibido de exercer a sua profissão), vem a ser
absolvido.

3. Conclusões sobre o art. 225° do Código de Processo Penal:


— No corpo do n.° 1, deverá incluir-se a suspensão do exercí-
cio de profissão, de função ou de actividade, públicas ou privadas
(art. 199.°/l-a);
— A redacção da alínea b) deverá ser substituída pela seguinte:
relativamente à prisão, à obrigação ou à suspensão, a que se refe-
rem o n.° 1, o processo criminal venha a ser definitivamente arqui-
vado ou o arguido venha a ser absolvido por sentença transitada em
julgado.
— A alínea c) deverá ser eliminada.
— Deverá acrescentar-se um n.° 3, com a seguinte redacção: os
limites mínimo e máximo da indemnização dos danos patrimoniais
e/ou dos danos morais são, respectivamente, correspondentes ao
salário mínimo nacional e ao vencimento máximo da Função Pública.

( M8 ) Neste sentido, P A U L O DE A L B U Q U E R Q U E , Comentário do Código de Pro-


cesso Penal, 2007, anotações 5. ss. ao art. 225.° do CPP: a al. c) do n.° 1 do art. 225.°,
ao estabelecer a distinção entre absolvições, ofende o princípio da presunção de
inocência, e, ainda, «põe graves problemas em termos de legitimidade para a inter-
posição de recurso, pois o arguido absolvido por ter funcionado o in dúbio pro reo
(ou qualquer outra causa de extinção da responsabilidade criminal que não a justi-
ficação do acto) tem claramente interesse em impugnar a sentença absolutória, pois
ela prejudica-o, uma vez que não lhe permite obter indemnização pela prisão pre-
ventiva sofrida no processo.».
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