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O QUE É O REAL?

Gérard Pommier (2004)

O NASCIMENTO DO REAL

“Existia alguma coisa antes do meu nascimento e qual é a realidade disso que
vejo?” As crianças se colocam esse tipo de questões metafísicas e as endereçam às vezes
aos adultos que parecem ter, aliás, bem outras preocupações. À exceção do filósofo ou do
psicanalista, por uma vez caminhando juntos, a maior parte das pessoas adultas e razoáveis
se espantam quando um problema parecido lhes é colocado. Quando tentam responder, elas
notam, por exemplo, que se você bate contra uma cadeira, saberá do que se trata: é o real!
Você se choca com ele a todo instante! Nada como a dor para edificar os sonhadores que se
interrogam sobre a realidade ou sobre a facticidade de suas percepções! Elas talvez também
acrescentarão que os fisiologistas demonstraram desde sempre, com o reforço da química
do cérebro, que a visão funciona como uma adulta, sem se ocupar do que você pensa, em
perfeita harmonia com o perceptum.
Entretanto, não é verdade que se pode perfeitamente ter “visto” essa cadeira e, no
entanto, chocar-se contra ela? Incidentes assim desastrosos acontecem a toda hora e apenas
uma atenção constante permite evitá-los. Para que a percepção tenha conseqüência é
necessário que se acrescente a consciência. Desde os primórdios de sua obra, Freud sempre
juntou a percepção com a consciência, segundo um sistema “percepção-consciência”, de
modo que a consciência importe na percepção suas próprias condições de efetuação. Como
o ato de tomada de consciência não pertence senão àquele que percebe, esse percipiens
deverá subjetivar constantemente o perceptum. Para que a percepção se torne consciente,
um ato se impõe, um factum cuja facticidade potencial interpõe uma realidade apenas
psíquica (porque ela depende de um ato subjetivo). A consciência não faz senão registrar
com fidelidade o que os sentidos lhe propõem, ou bem esse ato exporta ao exterior ao
mesmo tempo suas próprias condições de efetuação? Do ponto de vista humano, a natureza
não é jamais mostrada nua, mas sempre vestida com todo um Panteão de forças obscuras:
desde o início dos tempos, os homens acrescentam ao que percebem outra coisa que isso aí
se encontra. Seus sentidos os extraviam com constância e eles não renunciam senão
dificilmente a suas crenças, a cada geração renovadas. Esvaziar a evidência obriga a
distinguir uma “realidade”, habitada pela subjetividade, de um real cuja existência é suposta
para além dele.
Tão longe quanto remontam os testemunhos históricos, o sujeito sempre se
enganou, senão sobre o fato de que existe alguma coisa fora dele, ao menos sobre a
natureza efetiva desse fora de chumbo. As crenças antigas, em seus tempos dados como
certos, fazem sorrir atualmente, mas elas levam também a se demandar se, por acaso, não
estaríamos também nós no erro, e com o mesmo entusiasmo. Torna-se urgente interrogar a
proveniência de uma obnubilação tão constante: sob o golpe de qual indução o sujeito é,
primeiro e, por princípio, enganado? Sobre que planeta ele vive primeiro, tal extra-
terrestre? É verdade que não é sobre essa terra que ele fez seus primeiros passos, porque,
antes que do macaco, ele descendeu do sonho de seus pais, dos quais ele habitou primeiro
os sonhos. Bem antes de seu nascimento, ele viveu primeiro no sonho de seus pais sobre
esse planeta ex-centrado de um desejo que não foi nem inteiramente aquele de seu pai, nem
aquele de sua mãe, mas um voto obscuro que os ultrapassou a eles também (compreende-se
aqui: o psicanalista e o filósofo se dizem adeus nessa encruzilhada do desejo).
Nessa vida anterior a seu primeiro vagido, ele se deslocava fora do mundo em uma
dimensão ideal. Em seguida, sabe-se seu nome. Seu lugar e seu sexo tinham sido
premeditados. Frente a ele o seu futuro estava já traçado. Mas, mais do que todos esses
votos futuros foi o fato mesmo de que ele nasce, o que lhe escapa primeiro totalmente e
pareceu depender de um determinismo absoluto. Mais tarde, não lhe ocorreria de pensar ou
de dizer que ele não tinha pedido para nascer? Como foi preciso que ele se tome para
desembarcar desse astro de sonho e se engajar em uma vida por sua própria conta? Sob que
condição lhe foi possível deixar o Outro planeta para colocar um pé sobre essa terra? Esse
simples preâmbulo da existência já lhe solicitou o esforço terrível de negar essa vida
anterior. O anjo recusa seu paraíso e se rebela: ele prefere a solidão, que vale mais que esse
reino.
Não é freqüente que o alarido do recém nascido não corresponde a nenhuma
demanda precisa, mesmo aquela da presença? Ele testemunha, então, mais o que reusa do
que aquilo que demanda. O desamparo primeiro (Hiflosigkeit) é menos o resultado de uma
impotência fisiológica e de uma dependência total do que essa escolha necessária à
existência. O grito do recém-nascido é menos o signo de uma necessidade do que o signo
de um exílio que ele prefere à dependência. Qualquer um que se debruçou sobre o berço de
uma criança em lágrimas pode pensar que seu desamparo se explicava por sua impotência
total. Mas, se ele escuta melhor o que esses gritos despertam nele, reconhecerá a violência
de sua recusa, e a angústia que ela faz nascer em seu fundo o mais íntimo. Os gritos
significam uma recusa do desamparo tanto quanto o próprio desamparo e eles testemunham
pela dignidade da negação. O ser o mais desarmado afirma sua paradoxal liberdade e sua
distância com relação a quem quer que pretenda assisti-lo. Às vezes paroxística, a cólera da
criança apenas mostra a potência última da impotência. Os gritos significam, portanto, sem
dúvida, o próprio desamparo, mas também aquele de recusar o apelo à ajuda. O anjo que
habitou o sonho de seus criadores caiu sobre a terra quando começou a dizer não. Foi
necessário que ele se dividisse entre o que ele teria devido ser (esse conjunto de
determinismos) e o fato de que ele não pode aí subscrever (negação de seus
determinismos). Ele teve que realizar esse tipo de salto do anjo que o deixou dividido, no
esquecimento de sua infidelidade a uma plenitude paradisíaca que ele abandonou
traiçoeiramente, mas vivo.
Na esfera sub-lunar, sua mãe teria querido que ele se identifique com sua própria
falta, e que ele forme com ela uma unidade edênica: ele foi primeiro ordenado a ser um
Uniano (mais do que um terrestre). A mãe coloca o corpo da criança no lugar de sua falta,
preenchendo todas as suas necessidades. Esse apoio sobre a necessidade define a pulsão,
indefinidamente relançada a perseguir o Um. O que é este “Unário” da origem? Trata-se de
“fazer um”, - unidade de significação do falo que falta à mãe. Essa unidade fictícia é não
terrestre, se bem que ela busca, entretanto, se materializar graças ao corpo. A mãe não tem
o falo e é a esse nada que o sujeito é convocado a se identificar, dando sua ratio a essa
conjunção do ser e do nada (to be e not to be, para retificar o devaneio de Hamlet) que a
filosofia se encarniçou a interrogar. Para ser conforme a esse desejo, nosso corpo teria
devido corresponder ao penisneid, quer dizer, equivaler a um falo inexistente. E o desejo
permanece assim constantemente esburacado de um nada ao qual ele tende e que o tende.
Independente de tudo o que se obtém, esse desejo persevera. Perseverança, menos no ser –
para parafrasear Spinoza – que, porque ele ainda não o tem, porque a unidade do ser se
transborda para além e em todos os seus entes (étants?). O desejo está tão bem além de tudo
o que pode se obter que uma nostalgia quanto uma nostalgia do que teria já sido: esse Nada
maior do que tudo, que assombra o desejo materno convocando um corpo a vir (au jour?).
Mas, porque se identificar até o fim teria tido como conseqüência o
desaparecimento, então a significação do falo foi recalcada, rejeitada para fora, deixando
atrás dela o mistério do que pode bem ser um corpo, assim esvaziado de seu sentido de
origem. Anti-natural, mais do que anti-humano, o ser humano não tem ser, pelo menos
corporal, senão aquele que o abarca imediatamente através do que lhe retorna de fora,
rejeitado nesse para-além pela angústia da castração materna.
È preciso trazer aqui uma precisão, que é menos uma interpretação do que colocar
em relevo da ponta mais avançada da concepção freudiana do recalcamento primordial.
Freud concebeu o recalcamento em dois tempos. Segundo ele, o recalcamento secundário
(recalcamento propriamente dito) não pode se conceber sem uma etapa anterior que ele
qualifica igualmente de recalcamento. Todavia essa denominação é ambígua, porque, do
ponto de vista espacial, ela deixa entender que alguma coisa é empurrada “para baixo”. Em
uma única ocorrência, aquela que se pode ler no texto sobre a denegação (Die Verneinung)
Freud emprega um outro conceito, aquele de “recusa” (Austossung). Tudo se esclarece
graças a essa palavra luminosa. É “para fora” que alguma coisa de insuportável foi
rejeitada, e se trata da significação fálica atribuída ao sujeito por sua mãe em falta do pênis.
A partir dessa recusa, a significação fálica vai investir todo o exterior, duplicando o
conjunto do mundo de sua medida mágica.
Por que haveria uma tal recusa? A satisfação da demanda começa por engendrar um
prazer, mas para além de um certo limiar, o acréscimo de prazer empurra para o nada,
porque ele identifica a um falo que a mãe não tem. É sobre essa fronteira de um prazer que
gira mal, que o anjo se rebela, e quando o empuxo pulsional vira o corpo na conta de um
vazio de pesadelo, ela é rejeitada para fora, Essa significação lhe tinha sido imposta do
exterior, e ele não faz senão re-enviar a bola situando-a por toda parte onde a pulsão faz
valer seus direitos, quer dizer, no domínio das sensações: o fora resulta da ex-pulsão. Esse
recalcamento originário traça a fronteira entre o exterior e o interior do corpo, que antes
desse momento não tinha limite: ele se espalhava por tudo onde havia sensação e só se
junta no lugar de uma consciência “interiorizada” graças a essa recusa. É preciso um re-
envio para fora para que, em retorno, se constitua um dentro. As sensações não fazem senão
retornar, à maneira de um bumerangue, sobre aquilo que as rejeitou sem poder dela ser
consciente, porque a condição de sua consciência é essa recusa.
Mais tarde, existir continuará a reclamar esse esforço de sobrevivência. O ato de
consciência da percepção jamais é estabelecido de uma vez por todas, uma vez que a pulsão
mantém intactas suas exigências de um prazer total, cuja realização completa seria letal. E o
sujeito permanece assim dividido por esse recorte esporádico da percepção pela
consciência, esse pestanejar sempre sobre o ponto de se apagar e sempre reanimado pela
culpabilidade de ter rejeitado: a rebelião do anjo inicia uma existência que não reconduz
seu sursis senão com a repetição do recalcamento. Seu exílio se repete quando de cada
percepção, desde que ela é consciente.
O ato iterativo de sobrevivência que nos torna conscientes investiu o real da
significação psíquica do falo; ele produz conjuntamente um exterior e um sujeito subtraído
desse real. E como esse sujeito permanece sob o golpe da demanda materna à qual ele não
satisfez, ele continua a realizar o ato de recusa da significação fálica. Rejeitar o um do
Unário constitui o eterno presente da dívida com relação ao Outro materno. A recusa é
necessária, porque identificar-se com o falo que a mãe não possui valeria como a morte e
anima a pulsão de morte. E, entretanto, esse nada se impõe no seio mesmo do ser como
uma condição da existência. A recusa se realiza sobre o fundo de um eterno retorno do ser
ao qual teria sido necessário que ele se identificasse. A origem, o eterno presente da pulsão,
joga sua partida em um “antes” equívoco: dizer que a origem do recalcamento primordial se
encontra “antes” significa tão bem uma “anterioridade” que teria sido produzida ontem
quanto um “para a frente”, quer dizer, um estado prometido para amanhã.
O primeiro real de pesadelo das crianças, do mesmo modo que o real das religiões
animistas, descreve um mundo invadido por esse valor antropomórfico do falo. Se existe
uma constante em todas as civilizações, é um estado animista do sentimento religioso cujas
manifestações fetichistas e totêmicas são universais: todos os tipos de demônios habitam os
círculos exteriores e buscam reintegrar a carne dos viventes. São essas duplicações errantes
que reclamam seu direito. Elas exigem o saldo da dívida materna como preço da traição do
amor. Para existir foi preciso expulsar o excesso de gozo da representação do corpo, mas,
em contrapartida, foi necessário, daí em diante, viver em exílio desse mundo da demanda,
essa terra sempre já materna, povoada de ponta a ponta de espectros fálicos.
O recalcamento originário se reitera a cada instante da consciência e, uma vez
executado, o pensamento vai considerar como um dado a priori as próprias dimensões do
fora e do dentro, que não são, entretanto, senão conseqüências. Uma vez traçada a linha de
demarcação (para sempre em beligerância) entre o exterior e o interior pelo recalcamento,
toda representação do real dará a certeza de que esse real é incognoscível. Mas, é
justamente isso o objetivo do recalcamento! Ele não quer nada saber da castração materna e
recusa a significação do falo em um fora que, por conseqüência, será tão enigmático quanto
o próprio inconsciente. A angústia engendrada pelo real permanece incompreensível, se não
vemos que se trata de um avatar da angústia da castração materna.
O que foi assim recusado pelo sujeito foi, primeiro, e continua a ser, isso a que o
amor materno o assujeitou. De modo que a percepção vai tentar ganhar novamente sobre o
recalcamento. Ela é animada por um desejo de reconquista que dá seu sentido enigmático
ao antropomorfismo latente do mundo. Qualquer coisa que nos assemelha, que nos é
íntima, nos vigia de fora. O que foi expulso insiste de modo alucinatório no real (regra de
tensão do simbólico, e não sua forclusão). Essa duplicação da matéria, potencialmente
alucinatória, dá ao real sua dimensão angustiante, essa mesma que as crianças percebem
mais ou menos tempo em seus pesadelos e armaduras fóbicas – e é ela que exorcizam como
podem, graças à nominação e ao ciframento. Pois, de um lado elas rejeitam o que as
aniquila se elas aí se identificam completamente e, de outro elas ficam em dívida com
relação a que acabaram de rejeitar: a exigência desse recalcamento permanece assim
constante, suspensa em um eterno presente (atemporalidade do inconsciente).
O que é deste modo rejeitado concerne ao excesso da demanda materna, mas esse
penisneid não busca a se realizar diretamente: ele se ativa pelo viés das pulsões. É no
sentido pulsional, não no sentido ordinário da relação sexual, que a demanda materna é
incestuosa: o que preenche as necessidades identifica o corpo ao símbolo da copulação, e
esse corpo símbolo está, por conseqüência, à mercê da mãe em contrapartida de cada um de
seus atos de alimentar ou de cuidar. Pelo viés da alimentação e do asseio – o que entra ou
sai d corpo – a plenitude busca dia a dia se realizar. As pulsões vêm do Outro, e a
materialidade das necessidades lhes dá um apoio.
Trata-se, aliás, de um mercado de enganos, porque essas necessidades não pesam
muito com relação aos apetites pulsionais. A clínica psicanalítica (e em particular aquela da
anorexia e da bulimia) mostra que o desejo prima sempre sobre a necessidade, condenado
por contumácia a servir de andaime certamente prático, mas enganoso: não apenas esse
apoio é apenas visível, mas o momento em que se poderia retirá-lo, não chega nunca. O
corp é incessantemente tomado em uma armadura exterior que o sustenta; e os serviços
rendidos em nome da vida – a enganadora – abatem tão bem a carta da morte, uma vez que
a pulsão empurra até essa extremidade: sob a cobertura da satisfação das necessidades, uma
outra partida se joga, porque, por seu próprio movimento, infinito, a pulsão explodiria um
pouco por um triz! Erigido pela oralidade e pela analidade, o corpo da criança vem no lugar
(au lieu e place?) da inveja do pênis, por um instante satisfeita, quando o recém nascido
pleno adormece (e com o que pode ele sonhar, senão com o seu astro de origem sobre o
qual reinava, verdadeiro rei do nada?).
A expressão um pouco complexa “investimento do exterior pela significação fálica”
quer assim dizer que o mundo é habitado pela pulsão e é ela que, a partir do modelo oral e
anal, dá seu valor psíquico de prazer ou desprazer ao conjunto das sensações. As
percepções não acederiam à consciência sem esse investimento que divide automaticamente
o mundo entre o “bom” e o “mau”, o “belo” e o “feio”, etc. Sem o traçado dessas
demarcações, as sensações não se inscrevem em nenhum lugar do qual há consciência. A
exterioridade do real, o sentimento que nos escapa, é confirmada por esse ato de
nascimento que é também o nosso, nós que falamos dele. Sensacionalmente, o real retorna
sobre nós pelo viés das percepções, indefinidamente duplicadas pelas pulsões, sem a recusa
das quais a consciência se dissolveria.
Essa demarcação entre o fora e o dentro poderia deixar pensar que o investimento
fálico rejeitado vem apenas recobrir a materialidade das coisas. Mas, é necessário precisar
com insistência: o fora não “tornou-se” um equivalente dessa significação fálica que
esclarece a faísca metonímica das pulsões, recobrindo o mundo com suas peles de gozo em
excesso. Não se trata de um povoamento no “só-depois” da matéria que seria o verdadeiro
real. De fato, sem essa recusa, não haveria nenhum sujeito, e nenhuma exterioridade teria
sido discernível no sentido da percepção-consciência.
Uma vez a operação do recalcamento realizada, temos a impressão de que o fora
está dividido entre o que ele é (a coisa em si) e o que o investiu (a significação fálica).
Entretanto, essa duplicidade do real está dada de uma vez e não se decompõe entre a
existência de um exterior e, em seguida, o investimento desse exterior. De um só golpe o
homem se exila e habita um território em beligerância, povoado por daimons, imagens
desconhecidas de si mesmo que ele caçou e que o caçaram, sem que se saiba quem é o
caçador.
Não se pode encontrar traço de nenhuma existência humana antes do início desse
cortejo de perseguição: não saberíamos jamais o que teriam sido nossas sensações
“animais”, nós cuja recusa da demanda materna nos separa de nosso corpo. Do mesmo
modo que nenhuma consciência de um real material não antecede o investimento do
exterior, do mesmo modo não se encontrará nenhum animal designável sob o homem ou
anterior a ele. O corpo humano jamais viveu fora de sua humanidade de palavra.O pretenso
homem neurônico não sobrevive fora do laço social. Permanecemos para sempre separados
de nossa insondável natureza de bestas: cada sujeito terá primeiro sido falado pelo Outro,
antes de se por a falar sua língua, que o distingue desse saco de pele do organismo, ereto
graças às palavras.
A valência alucinatória latente do real se esfuma no ordinário durante a vida
desperta. Seu nível mínimo aparece no estranhamento dos objetos em certos momentos, ou
ainda mais simplesmente, ela brilha no que se acostumou chamar de “belo”. Uma questão
importante, todavia, se coloca: a potência alucinatória do real (descrita até agora) é da
mesma ordem que a alucinação propriamente dita? Impõe-se uma distinção, pois a
alucinação de uma entidade inexistente (por exemplo, quando alguém crê bruscamente ver
um lobo sobre a mesa) difere das visões oníricas, ou mesmo da angústia provocada à noite
pela estranheza das formas, entretanto familiares. Mas, essa distinção depende apenas da
natureza da sensação investida pela significação fálica rejeitada.
Até o presente, o real foi definido como a materialidade tal como ela é habitada pela
pulsão rejeitada por causa da angústia de castração, operação que delimita um “exterior”.
Entretanto, esse pode também ser constituído tanto pelas percepções externas quanto as
percepções internas. O investimento do real concerne não importa que percepção, tanto
aquelas intrapsíquicas quanto aquelas que se tem o hábito de considerar como materiais.
Uma imagem de sonho, até mesmo um sonho desperto, pode também ser investida pela
pulsão e tornar-se a fonte de uma criação alucinatória percebida no exterior. É quando as
percepções internas (por exemplo uma imagem onírica) são projetadas no exterior que se
produzem as alucinações forjadas de todas as peças (de toutes pièces?) Quando se trata
apenas de percepções externas, esse real guarda na sua posse uma potencialidade
alucinatória (investida pela duplicidade da significação fálica) aquela que faz se demandar
se a vida é um sonho.
Se existe uma dúvida a propósito do grau de realidade do exterior, é porque o
interior rejeitado o investiu. Essa interpenetração não aparece jamais tão bem quanto em
certas ocasiões como aquela do despertar, quando se misturam o interior e o exterior (ele
reitera o recalcamento primordial). A partir dele, o trabalho constante do pensamento de
vigília busca delimitar o Unário originário em exílio, acampado no universo.
A essas duas ordens de percepções, interna e externa – fáceis de distinguir – se
acrescenta uma terceira: aquela das palavras que, elas também, podem ser a ocasião de uma
percepção ao mesmo título que não importa qual coisa. Esquece-se freqüentemente sua
materialidade ao falar, porque seu valor sonoro é, de ordinário, mascarado pelo que elas
pretendem dizer. Essa “significação” resulta da reunião de várias palavras, unidas pela
cópula de um verbo (ele mesmo redutível ao verbo ser). Na palavra corrente,
desinteressamo-nos da imagem sonora dos significantes em benefício de seus conceitos,
que se retiram graças ao conjunto de uma frase. Nós não escutamos mais a música das
frases, para prestar atenção ao que elas buscam dizer.
Esse recalcamento do valor sonoro “real” desaparece em certas formas de psicose
(como a mania) quando se produz um acontecimento cuja significação não pode ser
integrada. Desse fato, todas as significações das frases se tornam problemáticas. As
palavras retomam, então, seu valor sonoro real - alucinatório: desligadas da significação,
elas escapam umas das outras ao infinito (ils se fuient les uns les autres à l´infini?). É o real
de uma palavra que uma nova palavra busca afastar, até isso que parece por sua vez como
uma percepção “real” (etc.). Esse caso particular das psicoses permite compreender o
funcionamento dos significantes: desde que são tomados na significação de uma frase, eles
protegem do real. De um lado, eles são materiais e eles mesmos reais. E, de outro, unindo-
se entre si, servem para forjar conceitos abstratos perdendo esse valor real. Sua ligação
esmaga contra isso de que eles mesmos são constituídos. Deste modo, eles tem um papel de
laca giratória de primeiro plano na relação do sujeito com o exterior e com o interior. Por
sua porção material, as palavras são fabricadas com o de fora: é um fora mágico, o único
que o sujeito pode domesticar para se fazer uma armadura contra o resto do exterior.
Porque sua matéria pode ser amassada/plena (pétrie?), pode ser colocada à disposição da
criação subjetiva de significações que, ordinariamente, protegem desse exterior.
Um sujeito pode sempre se servir de sons para associá-los entre si, e fazê-los
também trair sua origem pulsional. Mas, as palavras podem se resistir, elas e lembram
sempre de sua musicalidade de origem, de sua selvageria de nascimento.Elas estão sempre
próximas de mostrar seu substrato, a se deixar ir num deslizamento sonoro, a deixar fazer
um lapso. São os escravos bem ao corrente dos sistemas de proteção, mas podem, de um só
golpe, retomar a sua liberdade. Qualquer um que fale pode bruscamente sentir se abrir sob
os seus pés um abismo poético, se podemos chamar assim as sombras familiares da palavra,
quando ela se vira contra seu mestre.
Por exemplo, a imagem do lobo (loup em francês) é evocada pelo som lou. Mas,
quando esse som faz parte de uma outra palavra, como louvoyer ou loustic (etc.) a imagem
do “lobo” que pôde em um instante fazer estremecer, será logo recoberta pela significação à
qual o som lou deu vida. Pode acontecer também que esse recalcamento do som pelo
sentido não funcione mais. É o caso no sonho por princípio, quando o processo primário
(que associa as percepções como os sons) está em primeiro plano. Ocorre o mesmo nos
estados alucinatórios em vigília, notadamente aqueles das psicoses. Nessas situações, o som
lou pode se associar à imagem do lobo que será investida pulsionalmente e rejeitada para o
exterior. De modo que o som lou, mesmo quando encontrado em uma frase sem relação
com o predador (por exemplo: “Encontrei Louis que ia ao Louvre em um carro alugado”
(em francês louée) pode dar a luz bruscamente à alucinação do lobo. O lobo pode surgir de
não importa qual floresta de palavras, por pouco que o processo primário imponha sua
imagem às custas do sentido. Naturalmente, essa evocação carnívora tem apenas um
interesse didático porque, de maneira geral, todos os vocábulos são predadores em
potencial. Qualquer palavra morde, desde que ela seja solta da significação.

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