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Heleieth I. B. Saffioti ..Género, patriarcado, violéncia Fundagio Perseu Abramo Instituida pelo Diret6rio Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996. Diretoria Hamilton Pereira (presidente) ~ Ricardo de Azevedo (vice-presidents) ‘Selma Rocha (disetora) ~ Flivio Jorge Redrigues da Silva (diretor) Editora Fundagio Persen Abramo Coordenacio Editorial ‘Flamarion Maués Editoragiio Eletronica ‘Enriqne Pablo Grande Foto da capa Photodise Impressio. Bartira Grafica 1 edigdo: margo de 2004 ‘Todos of direites reservados A tora Fundagio Perseu Abramo ‘Raa Francisco Cruz, 224 (041374091 — Sap Paulo ~ SP — Brasil 5873-4299 ~ Fax: (12) 5573-0910 Correio eletrOnico: editoravendas@fpabramo.ory.br Visite a home-page da Fundagio Perseu Abram Inttpi//wwewfpa.org.br Copyright © 2004 by Heleieth Iara Bongiovani Saffiot ISBN 85-7649-002-9 A Dra. Marisa Moura Verdade, que me ensinow a trilhar noves caminhos Tenho para minha vida A busca como medida 0 encontro como chegada E como ponto de partida. (Sergio Ricardo) Heleieth |. B. Saffioti Bacharel e licencieda, curso de Ciéncias Sociais, na entio chamada Faculdade de Filosofia, Ciéncias ¢ Letras, Universidade de Séo Paulo (USP) ~ 1960. Bacharel em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Arara- quara, 1983, Professora assistente de Sociologia na ento Faculdade de Filosofiz, Ciéncias e Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista (Unesp), 1962-1967, Professora titular de Sociologia, da mesma insti quando se aposentou. Doutora ¢ livre docente, na mesma instituico, em 1967. Professora de Sociologia, do Programa de Estudos Pés-Graduados em Faculdade de Ciéncias Sociais, Pontificia Universi- Gade Catdlica de Sio Paulo (PUC-SP), desde 1989, Pesquisadora, em Sociologia, na USP, 1988-1992. Pesquisadora, em Sociologia, na Universidade Federal do Rio de Ja- neiro (UFRJ), na qual fundou um niicleo de estudos de género, Faga/etnia, classes sociais (Gecem), orientou dois mestrados @ leci now no curso de mestrado por um semestre (por solicitagio da en dade, na medida em que, na condigao de pesquisadora, nao tinhe funcdes docentes), 1988-199: Atividades docentes de pesaui Publicago: + Livros: 10, um dos quais _publicado também nos Estados Unidos. + Artigos em revistas cientificas: 79, alguns dos quais publicados também nos Estades Unidos, em paises europeus e em outros pal- ses latino-americanos; + Capitulos de livros: 7, alguns dos quais publicados também nos Estados Unidos, em paises europeus e em outros paises latino- Outras publicagées: 12. Orientagio de dissertagdes e de teses: + Dissertagdes de mestrado: 11 + Teses de doutorado: 28 Conferéncias: 207 . Participagdes em congressos nacionais ¢ internacionais: 144 Premios + Cadeira-Prémio no Instituto de Edueagdo “Caetano de Campos", em 1954; + Prémio Mulher- (ei de 2002); + Prémio Florestan Fernandes (um dos seis soeidlogos que mais con- tribufram para o desenvolvimento da Sociologia no Brasil, concedi- do pela Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), na abertura do XI Congresso da SBS, em 01/09/2003 (prémio ins! gd, 1967-1982, jadora na Unesp e na PUC. jada Bertha Lutz, Senado da Repiiblica, 2002 iw le 3 iS =. IS Introdugio A realidade nua e crua © conceito de violéncia 0 tabu do incesto Género, raga/etnia, poder Descobertas da drea das perfumarias .... ‘A mulher brasileira nos espagos ptblico e privado..... 43 © coneeito de género.. Violéncia contra as mulheres... © conceito de patriarcado Lesio Corporal Dolosa.... ‘Genero, patriareado,volincia Para além da violéncia urbana. © significado da violéncia Pontos de referéncia Violéneia doméstica ern Delegacias de defesa da mulher..... ‘A maquina do patriareado .. As origens do conceito de género Genero e poder... 107 113 118 Género e patriarcado.. GBnerO e ideo rn 123 Interpretagdo patriarcal do patriareado 127 Género x patriareado ... 132 Referéneias bibliogrificas 144 Heleieth 1B Sace Introducéo Este livro, incidindo, grosso modo, sobre violéncia contra mu- Iheres, destina-se a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer fenémenos sociais relativamente ocultos ~ ou por que hé que se reservar a familia, por pior que ela seja, na medida em que esta instituigGo social esta envolta pelo sagrado, ou porque se tem vergonha de expé-los. Com efeito, um marido que espanca sua mulher, em geral, é poupado em varios dos ambientes por ele freqiientados, em virtude de este fato nao ser de conhecimento piblico. Também interessa a vitimas e agressores, jé que podem, certamente, identificar, em sua relagio violenta, algumas de suas. rafzes, encorajando-se a buscar ajuda. Os que ignoram o fendme- no, por terem tido sorte de nem sequer haver presenciado as modalidades de violéncia aqui tratadas, podem desejar ampliar sua cultura, Ha uma outra categoria de leitores, interessados por lises tebricas desta violéncia, pondo em especial relevo con- ceitos como 0 de género ¢ 0 de patriarcado, que, seguramente, Ginero patrancado, vo 9 ts se interessardo por ler este livro. Trata-se de iniciados(as) insa~ tisfeitos(as) com o que aprenderam, tendo agora a seu dispor is um texto seja para criticé-lo, seja para a ele aderir, seja, incorporar algumas idéias e rejeitar outras. Jo do nimero de paginas constitui um sério problema para uma sociéloga notoriamente prolixa. O volume de dados coligidos pela Fundagao Perseu Abramo com a pesquisa “A mu- her brasileira nos espacos piblico e privado”, realizada por seu Niicleo de Opinio Péblica, e que foi utilizada neste trabalho, ul- trapassa, de longe, as pretensbes de anélise de uma cientista so- cial, que talvez pudesse usé-los em dois livros ou mais. Jamais em um nico. Leitores em busca de dados sentir-se-do frustrados, imagina-se'. A autora tem o dlibi de que o ser humano niio é per~ feito, sobretudo ela prépria. Ser o caso de pedir desculpas ao leitor? Nao se pensa desta forma, pois é muito mais fécil divulgar dados que construir referenciais te6ricos para analisé-los. Ob- viamente, se nutre a perspectiva de agradar. Se, todavia, isto ndio ocorrer, como toda obra & datada e todos os membros da socie- dade esto sujeitos 2 mudanca, poderd surgir uma outra, menos subversiva que esta, em termos de conceitos reformulados e da propria concepgao da Histéria. Se o marxismo classico atribufa importancia exeessiva a0 macropoder e se os autores que cha- maram a atengfo para a relevancia do micropoder nfo apresen- taram um projeto de transformagio da sociedade na diregaio da democracia integral, este livro propde-se combinar macro e mi- croprocessos, a fim de avangar na obtengao deste objetivo. 0 feminismo aqui esposado traz, em seu bojo, um potencial ‘tico bastante capaz de apontar caminhos, trilhas, picadas para se atingir o alvo expresso e desejado, ou seja, a democra- ia plena, Entretanto, isto nao basta; & preciso saber utilizé-lo, selecionando as melhores estratégias em cada momento, o que ‘abe 20 leitor julgar e realizar. Esta avaliagio, certamente, abri- 14 A autora as portas que ela nZo logrou abrir sozinha. ' Os dados datalhados da pesquisa podem ser obtidos em wonn.tpa.org.brinop. 70 1. A tealidade nua e cru Sempre que se faz uma pesquisa com a finalidade de se verifi- car quais so as maiores preocupagGes dos brasileiros, apare- cem, infalivelmente, o desemprego e a violéncia. Ja ndo se trata de preocupacGes tio-somente dos habitantes dos grandes cen- tros urbanos, como Sio Paulo e Rio de Janeiro, isolados até hd alguns anos, mas de praticamente todas as capitais de estados e do Distrito Federal. Pior que isto, estes dois flagelos tomaram conta das cidades de porte médio e até de pequenos municipios. © crime organizado, expresstio méxima da violéncia, era restri- to ao Rio de Janeiro. Ha aproximadamente duas décadas, Sao Paulo passou a rivalizar com 0 Rio de Janeiro, nesta terrivel atividade. Hoje, este fendmeno est generalizado. De um lado, o crime organizado vive nababesca e tranqitila- mente nas entranhas do Estado, quer federal, estaduais ou mu- nicipais. Este fendmeno lesa 0 povo brasileiro, j& tio sacrificado pelo decréscimo real, ¢ até mesmo nominal, de seus rendi Gina pticadeinda tos, em virtude de demissdes de funcionérios, sucedidos por novos, recebendo saldrios mais baixos. Tal fato do tun over ou rotatividade da forga de trabalho, antes provocado pelos em- pregados, em busca de empresas dispostas a remuneré-los com certa generosidade, introduzindo fatores de humanizacio no ambiente de trabalho, hoje se produz em conseqiiéncia da ne: cessidade de menor dispéndio com salarios de trabalhadores, a fim de aprofundar o processo de exploragio-dominagio e, des- ta maneira, tornar mais rentdveis seus empreendimentos. ‘Tomando-se apenas o ano de 2003, aqueles que vivem de sa- lérios sofreram uma perda real de cerca de 15% em seus rendi- mentos, ou seja, em seu poder aquisitivo. Este fato, num con- texto de altas taxas de desemprego, que ultrapassa 20% da PEA (populagao economicamente ativa) do municipio de Sao Pau- Jo, outrora a Meca dos habitantes de outras regides, assume proporgées insustentéveis. Se, de um lado, a taxa de desem- prego é alta, de outro, um ntimero decrescente de trabalhado- res, com poder aquisitivo em queda, deve produzir o suficien- te para sustentar aqueles que nem sequer no setor informal de trabalho conseguiram inserir-se. A rede familiar de solidarie~ dade desempenha importante papel, evitando que cresgam, numa medida ainda mais cruel, os contingentes humanos sem teto, sem emprego, sem rendimento, isto é, em franco processo de desfiliagdo (Castel, 1995) Grosso modo e ligeiramente, a desfiliagéo consiste numa série de fatos sucessivos: desemprego, impossibilidade de pagar o alu- guel, perda da moradia e, portanto, do endereco, perda dos cole- gas e dos amigos, esfacelamento da familia, cortes erescentes dos lagos sociais, cortes estes responséveis pelo isolamento do cida- dio. Enfim, de perda em perda, 0 desfiliado encontra-se no nfo- lugar, talvez no vazio mais doloroso para um ser humano, que, como jé dizia Aristételes no 1v século a.C., 6 um ser politico*. » Palavra derivada de pls, isto &, cidade em grego. A mais corrota tracupéo de pélis, no contaxto em que escreveu 0 flésofo, & gregarismo. D Face it No Brasil, contingentes humanos nestas circunstancias fo- ram denominados inempregdveis pelo presidente socidlogo Este ignominioso apelido revela uma faceta da pedra angular do liberalismo ou neoliberalismo. Quando 0 trabalhador ex perimentou o desemprego de longa duragio, tendo buscado, durante anos, nova colocag&o e, em vez dela, encon- trado o isolamento, a solidio, o nao-lugar, a responsabilidade deste fracasso é-Ihe imputada pelo governante de plantio, que soube ser submisso, sobretudo ao Império, mas néo soube transformar a posig¢ao de seu proprio pais numa insergdo so- berana no cendrio internacional, tarefa que o presidente me- talirgico realizou, em grande parte e com extraordinéria ha- bilidade diplomatica, em apenas um ano de governo E piiblico e notério que este processo é cotidiano ¢ infinito, pensando-se 0 poder nfo como um objeto do qual se possa realizar uma definitiva apropriagdo, mas como algo que fl que circula nas e pelas relacdes sociais (FOUCAULT, 1981). Esta instabilidade do poder, ou melhor, esta rotatividade dos poderosos nfo ocorre apenas na micropolitica, mas também na macropolitica. A malha fina e a malha grossa nao séo ins- tancias isoladas, interpenetrando-se mutuamente, uma se nu- trindo da outra. Nao ha um plano ou nivel micro e um plano ow nivel macro, linguagem utilizada por certos autores (Guarrari, 1981; GUATTARI e ROLNIK, 1986; FOUCAULT, 1981; 1997), nfo obstante a relevancia de sua contribuigao teérica 0 poder deve sar analisado como algo que crcl, ou melhor, camo algo {que 65 funciona em cada. [..] O podar funciona e se exerce em rede. Nas ‘suas malhas os indviduos no s6 creulam, mas esto sempre em posicao de exercer este poder o de scirer sua ago: nunca s4o 0 alva inerte ou consentido do poder, s40 sempre centros de vansmissdo. Em outros tor- mos, 0 poder ndo se aplca aos indviduos, passa por eles. (.] Efetvamente, agulo que faz com quo um corpo, gestos, discursos © dasojos sejarn idanifieados e constituldes enquanio individuos é um dos pr depoder. Ou seja,oinsvidun nBo 6 0 outro do poder: 6um de seus prmelros fens. O individu é um efeite do poder e simultaneamente, ou pelo préprio. fio de ser um ofeto, & seu contro de transmissao. O poder passa através [sic] eo individuo que ele consti (1881, p. 183-4) Género, pateaneado, vi B Trata-se de microprocessos, assim como de macroprocessos, operando nas malhas fina e grossa, “uma sendo 0 avesso da outra, nao niveis distintos’ (SaFFIOT!, 1999, p. 86). Como 0 poder vincula-se, com freqiiéncia e estreitamente, a riquezas, talvez seja interessante fazer uma breve incursio pelo terreno econémico. Vive-se uma fase impar de hegemonia do capital financeiro, parasitério, porque nada ceria, Esta 6, certa- mente, a maior ¢ mais importante fonte da instabilidade social no mundo globalizado. A concentragéo mundial de riquezas atingiu to alto grau, que gerou um perigo politico a temer-se. Fruto de fuses de empresas ¢ outros mecanismos que tam- bém corroboram na realizagio de uma determinagao inerente a0 capitalismo: a acumulagio de bens em poucas mos e a far- ta distribuigao da miséria para muitos, nestas abissais desi- gualdades morando o inimigo, ou seja, a contradigio fundante deste modo de produgio, ao qual so inerentes a injustica e a iniqiiidade. Sem a concretizagio desta verdadeira lei, acumu- lagao e miséria, 0 capitalismo nfo se sustentaria, ou melhor, nem seria capitalismo. Exatamente em virtude disto, o capita~ lismo esta sujeito a crises de prosperidade e de recessao, che~ gando & depressio, cujo exemplo maximo, até 0 momento, foi a crise de 1929. 0 famoso crash da Bolsa de Nova Iorque trans- formou em pobres contingentes humanos riquissimos, do dia para a noite, repercutindo este desastre em todas as Areas da producdo e, por conseguinte, desorganizando a economia nor- te-americana e outras dela dependentes. 0 poder descreveu trajetoria semelhante. Hoje, tem-se uma economia-mundo, com a produgao de mercadorias, envolvendo, inclusive em termos de espago geogrifico, varios paises. Vale dizer que, atualmente, o mundo est organizado em redes de informa- ho, de produgio, de traca ete., exceto qualquer rede de soli- dariedade a nao ser esporddica e eventual, disto derivando, em caso de um crash de qualquer Bolsa importante, um verda- deiro desastre em termos globais. Com 0 predominio quase absoluto do capital financeiro, no momento presente, nao se est imune a um novo crash, capaz de levar de roldao paises 4 Heleith LB Suo8 ditos de primeiro mundo, assim como os agora denominados emergentes, para nZo falar nos pobres, cuja miséria se apro- fundaria. Disto talvez decorresse uma nova organizacéo mun- dial, incluindo-se mudangas do lugar ocupado por cada nagio no cenéric ternacional. Nas décadas de 1950-1960, o Brasil, como também outras nagées no mesmo estdgio de desenvolvimento, recebiam o nome de subdesenvolvidas. Na década de 1970, passaram a chamar-se paises em via de desenvolvimento e, a partir dos anos 1980, tornaram-se emergentes. Os nomes tém sofrido variag6es, mas a distancia econémico-social entre o niicleo orginico, a semiperiferia e a periferia ou continua a mesma ou aumenta (ARRIGHI, 1997). Mutatis mutandis, embora a globalizagio tenha gerado novos processos e produtos, que nio podem ser ignorados, a légica da dominacio-exploragéo entre paises e entre classes sociais, nos limites de cada nagao, continua a mesma. Todavia, nio se fala mais em imperialismo. Este termo sé é utilizado pelos alcunhados, com desprezo, de dinossauros. Mas, como diriam os franceses: Plus ca change, plus c'est la méme chose, isto é, quanto mais muda mais 6 a mesma coisa, As chamadas drogas pesadas, sem divida, desempenham importante papel no crescimento da violéncia conhecida como violéncia urbana, no Brasil. Cidades de porte médio, e também maiores e menores que estas, nas quais qualquer crime seria de clamor péblico, dada sua raridade, competem com os gran- des centros urbanos em matéria de violéneia. Ribeirdo Preto (sp) ilustra muito bem esta situacdo: de cidade pacata, tornou- se extremamente violenta, tendo o crime organizado do nar- cotrifico invadido o meio rural. Rota dos avides que transpor- tam drogas especialmente da Colémbia e da Bolivia, mas tam- bém do Peru, os fardos de drogas so atirados nos canaviais. Trabalhadores rurais de baixissimos saldrios recolhem tais far- dos para distribuigio. Como os adultos precisam trabalhar na cana, as criangas so transformadas em “avides”. Obviamente, no apenas suprem a demanda urbana por este produto, como (Genero, parincada, violinia 15 também passam a consumi-la. Assim, o trabalhador do campo tem sua vida cotidiana invadida por uma atividade mereantil fora da lei e por um vicio, ambos destruidores de seus valores culturais, desorganizando, desta sorte, até suas famflias. Que hijo se pense que tais trabalhadores sto camponeses. Quem Irabatha na cana tornou-se, hé muito tempo © necessariamen- assalariado. Pior que isto, 0 que Ihe sobrou foi ser um assa~ indo sazonal. Nos meses do corte da cana, os trabalhadores jeais sio insuficientes para atender 4 demanda de forga de abalho, chegando estas plantagées a absorver trabalhadores 10 Vale do Jequitinhonha mineiro, que para 14 migram todos < anos, deixando as mulheres para cuidar do rogado, isto & a pequena gleba na qual se plantam alimentos. Estes movi- entos migratérios ocorrem todos os anos. Nem todos os tra~ athadores, entretanto, voltam para o Vale, a fim de se juntar vos demais membros de suas familias. Muitos permanecem na eriferia da cidade, constituem novas familias, trabalham re- rularmente no perfodo do corte da cana, vivendo de pequenos ‘bieos” durante o restante do ano, Na auséncia de pesquisa, ndo se sabe quantos deles continua traficando drogas ¢/ou dquiriram o hébito de consumi-las. As fronteiras, jé muito lénues, entre o urbano e o rural deixaram de existir. A comercializagao das drogas também se globalizou, dissemi- nando-se por todo o territério nacional. Mais do que isto, to- mou conta do planeta. E, comprovadamente, ela produz.alte- rages do estado de consciéneia, eapazes de comprometer, de modo negativo, 0 cédigo de ética dos que se dedicavam ape- nas ao trabalho licito como ganha-pao. ‘A isto se deve acrescentar as drogas licitas, como éleool ¢ waco. Ha uma inegdvel permissividade social com relagio a0 1iso destes produtos. Ha, mesmo, incentivo a que os jovens 03 -onsumam, j4 que sua publicidade sempre os associa a forga, coragem, charme. S6 muito recentemente, a sociedade brasi- cira tomou conseiéncia da gravidade do consumo de massa, uyue atinge faixas etérias cada vez mais baixas, dos produtos em pauta, tendo comegado a alertar a populagdo para as enfer- eee esteem eet Helse Sato midades que seu consumo provoca. Caberia chamar a atencao dos brasileiros também para a alteragio do estado de conscién- cia, no sentido de que 0 uso constante do alcool, por exemplo, nao somente pode provocar acidentes de transito como, igual- mente, violéncia contra outrem. Os estudiosos da violéncia urbana nao encontram correla cio positiva entre desemprego e violéncia. Se, porventura, jé fa encontraram no contexto de altas taxas de desemprego de longa duragio, nao se tem conhecimento disto. Para os estu- diosos da violéncia de género, da violéncia contra mulheres, da violéneia doméstica e da violéncia intrafamiliar, esta asso- ciagio é clara, havendo relatos de funcionarias de albergues para mulheres vitimas de violéncia e seus filhos que demons- tram, com niimeros, tal correlagio. nceito de violénd “Antes de dar prosseguimento A anélise, cabe discutir 0 con- ceito de violéncia. Os habitantes do Brasil, ¢ até estrangeiros que aqui vém fazer turismo, saberiam muito bem definir vio- éncia, pois ou foram diretamente atingidos por algama moda- lidade dela ou tém, em suas famflias e/ou em seu circulo de amizades, algum caso a relatar. Os seqiiestros sfio freqitentes, como também 0 séo homic{dios, latrocinios, ameagas de mor- te, roubos, sendo a diferenga entre furto e roubo a componen- te violencia, contida neste ‘iltimo, enquanto no furto hé so- mente a subtracio de dinheiro e/ou outros objetos. As pes- soas habituaram-se tanto com atos violentos que, quando al- guém é assaltado e tem seu dinheiro e seus documentos furta- dos, dé-se gragas a Deus pelo fato de a cidada ou o cidadao ter saido ilesa(o) da ocorréncia, Assim, 0 entendimento popular da violéncia apdia-se num conceito, durante muito tempo, ¢ ainda hoje, aceito como 0 verdadeiro € o tinico, Trata-se da violéneia como ruptura de qualquer forma de integridade da vitima: integridade fisica, integridade psiquica, integridade sexual, integridade moral. Observa-se que apenas a psiquica (Generopatiarcado, vielncia 7 a moral situam-se fora do palpavel. Ainda assim, caso a violén- cia psiquica enlouquega a vitima, como pode ocozrer ~ e ocor- re com certa freqiiéncia, como resultado da prética da tortura por razées de ordem politica ou de cércere privado, isolando- sea vitima de qualquer comunicagao via rédio ou televiséo de qualquer contato humano -, ela torna-se palpfvel. Come 0 ser humano é gregério, 03 efeitos do isolamento podem ser trgicos. Mesmo nfo se tratando de efeitos tangiveis, siio pas- siveis de mensuragio. H4 escalas psiquiatricas e psicolégicas destinadas a medir as probabilidades de vir a vitima a cometer suicidio, a praticar atos violentos contra outrem, consideran- do-se, aqui, até mesmo animais assassinados com crueldade. A vitima de abusos fisicos, psicoldgicos, morais e/ou sexu- ais é vista por cientistas como individuo com mais probabili- dades de maltratar, sodomizar outros, enfim, de reproduziz, contra outros, as violéncias sofridas, do mesmo modo como se mostrar mais vulnerdvel as investidas sexuais ou violéncia fisica ou psiquica de outrem. Em pesquisa realizada em quase todas as capitais de estados, no Distrito Federal e em mais 20 cidades do estado de Sao Paulo, esta hipétese nfo foi provada. Nesta investigagio sobre violéncia doméstica (SAFFIOTI, iné- dito), nenhuma informante, que fora vitima de abuso sexual de qualquer espécie, revelou tendéncia, seja de fazer outras vitimas, seja de maior vulnerabilidade a tentativas de abuso contra si mesma, Nao se defende a postura de que abusos se- xuais sejam inécuos, néo provocando traumas de dificil cura. Ao contrério, em outra pesquisa, esta sobre abuso incestuoso, nfio se encontrou nenhama vitima resiliente (SAFFIOTY, 1992). A resiliéncia constitui fenémeno muito raro. So resilientes pessoas capazes de viver terriveis dramas, sem, contudo, apre- sentarem um s6 indicio de traumas, sendo, portanto, conside- radas, por meio da aplicagio de testes e da observagao de sua conduta, absolutamente normais. Na mencionada pesquisa, assim como na vastissima literatura especializada internacio- nal, 0 abuso sexual, sobretudo incestuoso, deixa feridas na alma, que sangram, no inicio sem cessar, e, posteriormente, 8 ekesth B Saou sempre que uma situag&o ou um fato lembre o abuso sofrido. A magnitude do trauma ndo guarda proporcionalidade com re- lagio ao abuso sofrido. Feridas do corpo podem ser tratadas com éxito num grande niimero de casos. Feridas da alma po- dem, igualmente, ser tratadas. Todavia, as probabilidades de sucesso, em termos de cura, so muito reduzidas e, em grande parte dos casos, nfo se obtém nenhum éxito Dominaram o século xx dois pensamentos: 0 de Marx eo de Freud. Ambos, cada um a seu modo e em seu campo, questio- naram agressivamente as sociedades em que viveram. Produ- ziram idéias e andlises, por conseguinte, subversivas, legando ambos as geragdes posteriores patrimdnios culturais até hoje valorizados. No caso de Freud, porém, uma parte desta heran- a tem produzido resultados extremamente deletérios as viti- mas de abuso sexual, em especial do abuso incestuoso. Para Freud, e hoje para muitos de seus seguidores, os relatos das mulheres, que freqiientavam seu consultorio, sobre abusos sexuais contra elas perpetrados por seus pais eram fantasias derivadas do desejo de serem possuidas por cles, destronan- do, assim, suas maes. Na pesquisa realizada entre 1988 © 1992 (Sarrioti, 1992), no se encontrou um s6 caso de fantasia. A nga pode, e 0 faz, enfeitar o sucedido, mas sua base é real, isto 6, foi, de fato, molestada por seu pai, Contudo, 0 eserito de Freud transformou-se em bfblia e a crianga perdeu credibili- dade. Trate-se, em sua maioria esmagadora, de mulheres, que representam cerca de 90% do universo de vitimas. Logo, os homens comparecem como vitimas em apenas 10% do total. De outra parte, as mulheres agressoras sexuais estio entre 1% e 3%, enquanto a presenca masculina esta entre 97% e 99%. Na pesquisa sobre abuso incestuoso, jé referida, nfio se encon- trou nenhum garoto como vitima. Por via de conseqiiéncia, tampouco havia mulheres na condigao de perpetradoras de abuso sexual. £ preciso, contudo, pensar que pais vitimizam nao apenas suas préprias filhas, como também seus filhos, Num pais tio machista quanto o Brasil, este é um segredo muito bem guardado. Se a vizinhanga souber, diré que o destin da- ‘Ginero patarado valine 9 quele garoto esté selado: serd homossexual, na medida em que foi penetrado, fendmeno especifico de mulher. Se o dado in- ternacional 6 de 10% de meninos sexualmente vitimizados, pode-se concluir que, aqui, o fato ocorre, pelo menos, nesta proporgio, © machismo, numa de suas facetas altamente ne~ gativas para os homens ~ e ha muitas -, oculta estas ocorrén- ccias, em vez de fazer face a elas e implementar politicas que visem, no minimo, a sua dréstica redugéo. Retomando resul- tados da investigagio mencionada, todos os agressores sexu- ais eram homens e, entre eles, 71,5% eram os préprios pais biolégicos, vindo os padrastos em segundo lugar e bem distan- tes dos primeiros, ou seja, representando 11,1% do universo de agressores. Em pequenos percentuais, compareceram avés, tios, primos. Como a pesquisa foi concluida em 1992, era pertinente le- vantar a hipétese de estes dados jé nfo corresponderem a rea- lidade atual. A pertinéncia da hipétese reside na mudanga da composic&o das familias. Dada a facilidade com que se desfa- zem as unides conjugais ~ legais ou consensuais - ¢ a mesma facilidade com que cada membro do casal reconstitui sua vida amorosa com outras pessoas, as familias com padrastos ( madrastas) aumentaram em nfimeros absolutos ¢ relativos. Nada mais justo, portanto, do que suspeitar que houvesse eres cido o percentual de padrastos no universo do abuso inces- tuoso. Mais uma vez, os dados obtidos de casas-abrigo para vitimas de violéncia confirmaram os obtidos na investigagio realizada entre 1988 e 1992. O pai continua a ser o grande v: lao, devorando sua propria prole, constituindo este fato uma agravante tanto penal quanto psicolégica. Otabu do incesto O pai biolégico é 0 adulto masculino no qual a crianga (me- nor de 18 anos) mais confia. Este fato responde pela magni- tude e pela profundidade do trauma. Nas camadas mais bem aquinhoadas, social e economicamente falando, 0 abuso obe- 20 Hileeth 1B Sf eae nee dece A receita da seducao: maior atengao para aquela filha, mais presentes, mais passeios, mais viagens etc. As técnicas sdo bastante sofisticadas, avangando lentamente nas cari- cias, que passam da ternura A lascivia. Muitas vezes e de- pendendo da idade da crianca, esta nem sabe discernir en- tre um e outro tipo de caricia, sendo incapaz de localizar 0 momento dz mudanca. Como a sexualidade da mulher ¢ difusa por todo 0 corpo e a sexualidade infantil nao é genitalizada, as caricias percorrem toda a superficie de seu corpo, proporcio- nando prazer vitima. Posteriormente, recorrendo 0 adulto a pomadas especiais, dilata o Anus e o reto da filha (ou filho), a fim de preparar 0 caminho da penetraco anal, pois a oral j4 ocorre- rae também esta provocara prazer na menina. A pritica da cunnilingus é relatada pelas meninas como muito prazerosa. Nem todas apreciam o fellatio. Acaba, no entanto, sendo uma unanimidade entre as vitimas, uma vez que obedece A lei da reciprocidade. Depois de todos estes passos, que integram a iniciagdo da crianga na sexualidade do adulto, ver a penetracao vaginal, Alguns homens, assim que a menina tem sua menarca, ou pri- meira menstruagdo, controlam seu ciclo menstrual, s6 man- tendo relagées sexuais com ela nos perfodos estéreis. Outros preferem administrar as filhas o anticoncepeion: dando para que elas 0 tomem todos os dias. Nao se encontrou nenhum caso de gravidez de meninas pertencentes as classes médias altas, nas quais € comum o pai ter educacio superior. Nas camadas social e economicamente desfavorecidas, 0 pro- cesso é rapido e brutal. O pai coloca um revélver, na mais fina das hipéteses, ou uma faca de cozinha junto & cama ou sobre ela, joga a menina sobre o leito, rasga-Ihe as roupas a estu- pra, ameagando-a de morte, se gritar, ou ameagando matar toda sua familia, se abrir a boca para contar o sucedido a al- guém, Nao se pode negar que o pai instrufdo procede a inicia- gao sexual de sua filha de forma delicada, sem violencia fisica ou ameagas neste sentido. Simplesmente, pede a menina para nio contar a ninguém, especialmente a sua mie, “justificando’ v4 que esta sentiria citime, daf podendo derivar sérios conflitos. No caso do pai pobre e de baixa escolaridade, vai-se direta- mente ao ato sexual, sem prolegémenos de nenhuma espécie: nao ha caricias, nfo hé um avangar paulatino. Por estas ra- zes, & brutal. Todavia, as conseqiiéneias, para a vitima, so amente opostas ds esperadas pelo leitor. te poderia, acredita-se, imaginar uma associagio positiva entre a brutalidade do pai na abordagem da menina ou menino das camadas sociais menos favorecidas e a profundidade do trauma causado em sua filha pelo estupro ou pela penetragio no caso do garoto. Um caso de abuso incestuoso, numa pobre, mas nao miserdvel, revelou que 0 marido de uma senhora, tendo esta levado para seu segundo casamento duas filhas de uma unio anterior, foi capaz de estuprar, em ordem cronolégica, a enteada mais velha, a enteada mais jo- ver, a propria filha. Em seguida, chegou a vez dos filhos. Fez penetracio oral e anal no mais velho, no que sucedeu a este na ordem dos nascimentos, e, finalmente, no mais novo, que apre- sentava retardo mental, ou seja, agravante penal. Além de cunnilingus, fellatio, penetragao anal e estupro, néo se encon- trou nenhum outro tipo de abuso nas camadas desfavorecidas. Em razdo da sexualidade ser exercida de diferentes maneiras, segundo o momento histérico (a pederastia na antiga Atenas niio era 0 mesmo que o homossexualismo de hoje), 0 tipo de sociedade, a classe social, a etnia, pode-se esperar que a abor- dagem “amorosa” no abuso sexual perpetrado pelo homem rude e sem instrugio seja igualmente rude. E, de fato, é isto que ocorre, Entretanto, e felizmente, porque a pobreza atinge 2 maioria dos habitantes, esta “brutalidade” nao produz trau- mas a ela proporcionais. Se assim ndo fora, haveria mais um item negativo a ser incluido na chamada cultura do pobre. A menina pobre, sozinha em casa com sew pai, nfo tem a quem apelar. A presenga da arma branea ou de fogo reitera permanentemente as ameagas verbais. Ela nfo tem eseapat6- a. Entrar em lute corporal com seu pai s6 pioraria as coisas. Primeiro, ndo podendo medir forcas com um homem adulto, 22 Hleieth 18 Satfiod poderia sair muito ferida daquela situagéo. Segundo, e em iltima instaneia, poderia perder a vida nesta brincadeira de mau gosto. A rigor, nfo havia saida. Se nao havia escapat6- ria, cla é, indubitavelmente, vitima e como tal se concebe € define, Logo, nao hA razdes para sentir-se culpada. As mulhe- res sfio treinadas para sentir culpa. Ainda que nao haja razbes aparentes para se culpabilizarem, culpabilizam-se, pois vi- vem numa civilizacio da culpa, para usar a linguagem de Ruth Benedict (1988). No caso aqui narrado, porém, talvez a meni- na ainda nfo houvesse introjetado a “necessidade” cristi de se culpabilizar. Ademais, salvou sua famflia da morte. Desta sorte, esta menina nao se vé como culpada; vé-se como viti- ma. Entre as 63 vitimas estudadas, nenhuma delas, nas con digdes da descrita, se culpabilizou. Dadas as condicdes do estupro, 11 delas tiveram filhos dos proprios pais. Nao é raro ouvir destes pais: “Dona, eu pus esta menina no mundo, eu criei ela, cla é minha, A senhora acha que vou entregar ela a qualquer um? Nao, ela é minha. $6 néo sei como registrar a crianga. Registra como filho ou como neto?”. Das mes, mas sem unanimidade, ouve-se: “Dona, se eu posso agiientar, por que ela nfo pode me ajudar a earregar este fardo?”. Esta res~ posta vem de mulheres socializadas para “sofrer” a relagdo sexual, destinada A procriagdo, nfo para dela desfrutar, néo para dela extrair prazer, independentemente de ela resultar numa gravidez. Pensando deste modo, nfo se lastima por nfo haver sido capaz de proteger a filha das investidas sexuais de seu proprio pai, Mais do que isto, a relago sexual é, para ela, um fardo tio pesado, que necesita do auxilio da filha para carregé-lo vida afora. Outras maes tentam culpabilizar as fi- Thas, pois, a seu ver, as meninas seduziram seus pais. Pode, portanto ~ e isto foi encontrado -, surgir o conflito entre mae ¢ filha; até mesmo a ruptura da relagao. Todavia, a menina nfo se vé como culpada. Afinal, nZo foi ela que salvou toda sua familia? Sé se encontrou um caso de rejeicao da crianca por parte de sua jovem mae, Em todos os demais, elas adora- ‘vam os filhos que tiveram como fruto de estupro incestuoso. 3 Ginero,putvarcado violencia Houve uma que até fez 0 ché-de-bebé, quando estava no séti- mo més de gravidez. Elas recusaram ofertas de aborto. Néo havia, naquela ocasifio, hospitais que realizassem os chama- dos abortos legais. Legais, porque estavam previstos como atos nao-criminosos, como continuam, alids, no Codigo Pe~ nal em vigor, de 1940. Apenas sua parte geral sofreu altera~ gies, a especifica, nfo. Isto equivale a dizer que nao houve nenhuma mudanga nos tipos penais, Afirmou-se, anterior~ mente, que nas camadas sociais subprivilegiadas encontram- se cunnilingus, fellatio, penetragio anal e estupro. Eventual- mente, um pai mais “sensivel” pode fazer certas caricias. A possibilidade esta aberta, embora nfo se tenha nenhum caso para expor. A mengio dos quatro atos sexualmente abusivos foi necessaria em virtude de 0 Codigo Penal referir-se a rela~ gdo sexual ocorrida no estupro com a expresso “conjun- go carnal”, comum na época para designar penetragao va~ ginal. Assim, é erréneo dizer-se que Pixote (quem nao se lembra do filme?) foi estuprado. Como homens nao tém va- gina, as tnicas penetragdes que podem sofrer sdo a oral ea anal. Algumas feministas elaboraram uma proposta de re~ forma da parte especifica do Cédigo Penal, ampliando 0 con- ceito de estupro, que passaria a incluir os trés tipos de pene- tragio: oral, anal e vaginal’ Retomando-se a comparacio do abuso incestuoso entre po- bres e entre ricos, para simplificar, ha que dizer que, de outro Jado, esté a menina mimada, acariciada, pensando estar 0 pai ‘Nesta sesso, trabalhamos: uma repesentante do CFENEA, grupo que ‘atuajunto ao legislativo federal nos assuntos pertinontes & causa rista, a advogada Silvia '@ eu, pelo fato de ter fet © curso de Dirolo @ ve, como sociéloga, ter estudado 0 abuso sexual © © abuso inepstvese, Crelo que solitaram minha colaboragHo, sobretudo, po'o 0 de quo disingo Incesto de abuso incestuaso, @ uma das questbes ida exelarnente na pergunta: dove-se ou ndo criminalizar 0 incesto? ule sou contra pelas raz6es que so seguem. Se um rapaz e uma moga, irmaoe entre si, 8e apaixonarem um pelo outro, terdo cue enfrantar @ aprovagao quese unanime da sociecade por haverem vielada um dos alg series tabus socials, Se eles tiverem idades préximas, maioridace 24 — i jel. B Saou apaixonado por ela ¢ jé ndio amando sua esposa. Vé sua mae como sua competidora, sua rival, diante da qual ela, bem jo- vem, leva vantagens: sua beleza fresca é de lolita, sua pele nao tem rugas e, portanto, é acetinada, Na medida em que sua mae 6 considerada rival, nfo pode se inteirar dos fatos, que, em casos semelhantes a este, duram de sete a oito anos, podendo ir mais longe. Esta crianga foi, cautelosa e gradativamente, introduzida nas artes do amor por seu préprio pai, provedor também de prazer sexual. Trata-se, por conseguinte, de um pai amado, Entretanto, hé a outra face da moeda: como nunca reagiu contra as provocagdes de seu pai, como nem sequer soube identificar 0 momento da transformagio da ternura em ‘bidinagem, colaborou com o pai durante todo o proceso. ‘Ainda que, a rigor, ndo tenha nenhuma culpa, tampouco res- ponsabilidade, no se vé como vitima, que realmente é, mas como co-participe. Disto deriva uma profunda culpa. Embora néo haja sido, em nenhum momento, ciimplice de seu pai, sen- te-se como tal e inimiga de sua mie. Sua culpa é proporcional 4 delicadeza do processo de sedugio utilizado por seu pai. Ela sente-se a sedutora. Logo, seu pai foi sua vitima, Obviamente, nenhuma das duas abordagens convém a crianga, Em termos de danos psiquicos ¢ distirbios sexuais posteriormente mani- festados, 0 abuso sexual via sedugio ¢ infinitamente pior que a prutalidade do pai menos instrufdo e menos maneiroso. Isto é importante para que, mais uma vez, nfo se caracterize tudo que é mau como integrante da cultura do pobre, Fulano ce realmente se amarem, ndo me sinto, nem como profissional, nem come idada, no dever de dafendé-los nam no de acusévlos, Sua relagéo & par umn ndo tendo poder sobre © outro; o sua vontade & convergent, luto distinto disto 6 0 abuso Incestuoso: as idades eo muito diferen tes, 0 que traz consigo uma relapio dispar, ou seja, atravessada pelo poder, As partes encontrar-se em posigdes muito diversas, uma tendo Butoridade sobre @ outra, e nao existe convergéncia de vortades. Pai Ses em que 0 incesto era considerado crime tm procedide no sentido ide descriminav(o, Para citar apenas alguns: Estados Unidos, muitos pal Ses europeus @ latino-americanos. © Equador, que tem umael especi Camente sobre violénsia doméstica, descriminou 0 incesto, estuprou sua filha, espanca regularmente sua mulher? Isto ocorre nas favelas, nos cortigos, no meio pobre*, diz-se. No seio das camadas abastadas, forma-se uma cumplicidade dos membros da familia, estabelecendo-se 0 sigilo em torno dos fatos. O nome da familia nao pode ter macula. Conseguiu-se descobrir uma tinica familia incestuosa. Chegou-se ao porto, mas néo foi possivel ultrapassé-lo. As informagées disponi- veis foram facilitadas A pesquisadora por uma amiga de uma das filhas. Esta filha sofria abusos sexuais de toda ordem, per- petrados por seu pai. $6 confiou seu segredo a esta amiga Embora no haja dito nada explicitamente, hé indicios de que 0 pai abusava sexualmente de todos os filhos e filhas. Recebia- os, cada um de uma vez, em seu quarto, 0 que, por si s6, & no minim, estranho. Que 0 abuso ocorresse com todos os filhos e filhas constitui uma hipétese, nao inteiramente infundada. A conspiragio do siléncio, todavia, impediu a pesquisadora de estudar esta familia. © argumento de quem justifiea, se nio defende, a conduta de agressores sexuais reside no tipo de sexualidade masculina, di- Uma otientanda minha, cuja tase esta praticamante pronta para a dete sa, tom, entre suas entrevistadas (‘odes de classe média alta e alta), fesposa de um juiz. Também em caso de violéncia domestica, as mulne- Fes mals bem aquinhosdas levam desvantagem. Em sua enirevist spancada observa: como posso denuncid-io, se a investigaréo dev fia ser realizada por profissionals que o respeltam muito (ele & respel- {adissimo na cidade em que atua como profissional e vive num municipio dde cerea de 200 mil habitantes, na Bahia) e, em utima instancia, o caso ‘Sera julgado por um colaga seu? Guando esta maga, que jé havia feito restrado, seb minha atientagSo, sobre violéncia contra mulheres das ‘amadas socials menos favorecidas, procuroume cizendo desejar con tinua’ com 0 mesmo tema, et ss0 que os pesquisadores adoram festudar pobres, porque 6 mals tcl, elas esto quase sernpre abartos & falar sobre o assunto (no case de vioiéncia doméstica, quem fain so as rmunheres, os hemens foger; em minha pesquisa sobre abuso incestuo- So, entievistel vitimas, suas mes e outros parentes ou vizinhos conhe- Cevores dos fatos; tantel arduamonte entrevistar agressores, mes con ‘Segui falar com muito pouses 0 todos mentiram descaradamente), que o Gticll € estudar os ricos, j& que, para no ter seu status ebalado, sou ome su, eles se fecham, Ela aceltou o desafo a, palo que au Ihe disse lo da tase € O prego do silénci. Bi ferente da feminina. Afirmam que a sexualidade da mulher sé aflora quando provocada, e varios so os meios de fazé-lo, 0 que é uma meia verdade, A mulher foi socializada para conduzir-se como caga, que espera o “ataque” do cacador. A medida, no entanto, que se liberta deste condicionamento, passa a tomar a iniciativa, seja no seio do casamento, seja quando deseja namo- rar um rapaz. Como o homem foi educado para ir & caca, para, na condigo de macho, tomar sempre a iniciativa, tende a néo ver com bons olhos a atitude de mulheres desinibidas, quer para tomar a dianteira no inicio do namoro, quer para provocar 0 homem na cama, visando a com ele manter uma relagio sexual, salvo no seio de tribos da juventude, pelo menos das grandes cidades, em que isto é uma pratica corrente. Os condiciona- mentos sociais induzem muitos a acreditar na incontrolabilidade da sexualidade masculina, Se assim fora, ter-se-iam relagées sexuais, ou mesmo estupros, nas ruas, nos sales de danga, nos restaurantes, nos cafés ete. Obviamente, qualquer pessoa, seja homem ou mulher, pode controlar seu desejo, postergar sua concretizagdo, esperar 0 momento e o local apropriados para a busca do prazer sexual. £ evidente que a esmagadora maioria de homens e de mulheres atua desta maneira, mesmo porque a sociedade é regida por numerosas normas. Nao se trata de leis como as da Fisica, que ocorrem inexoravelmente. Quer Newton desejasse ou nfo que a magi solta por ele cais~ se 20 solo, ela cairia da mesma forma, As regres sociais so passiveis de transgressio e sito efetivamente violadas. No caso em pauta, hé o tabu do incesto, segundo Lévi-Strauss (1976), de carter universal, embora o interdito nao recaia sempre sobre es mesmas pessoas, quando se passa de uma sociedade a outra. A universalidade do tabu do incesto € contestada por Meillassoux (1975). © tabu em pauta significa uma interdigio, um nao & possibilidade socialmente nio-aceita de certas pes~ soas se casarem entre si, Na sociedade ocidental moderna, 0 interdito recai sobre parentes consangiifneos ou afins. No caso especifico do Brasil, 0 novo Cédigo Civil, em vigor desde 11 de janeiro de 2003, afirma: (Ganeropatireado,vslenda 7 “Art, 1.521, No podem casar: I~ 8 ascendentes com os descendentes, seja 0 parentes- co natural ou civil; II ~ 0s afins em linha reta; 11] ~ 0 adotante com quem foi cdnjuge do adotado e 0 adota- do com quem o foi do adotante; IV ~ 0s irmaos, unilaterais ou bilaterais, ¢ demais colaterais, até o tereeiro grau inclusive; V — 0 adotado com o filho do adotante; VI ~ as pessoas casad: ‘VII ~ 0 cénjuge sobrevivente com 0 condenado por homici dio ow tentativa de homicidio contra o seu consorte” 0 projeto deste novo Cédigo Civil tramitou no Congreso Na- cional, muito lentamente, durante 26 anos, o que equivale for que ele j4 nasceu desatualizado. Conservou o impedimen to do matriménio entre primos (parentes de terceito grau), in- terdito cnja violagdo havia ocorrido milhares de vezes, sendo este tipo de unido plenamente aceito pela sociedade. O tabu do incesto 6 inteiramente social, nada havendo nele de bicl6gico. Como a sociedade brasileira perdeu, ao longo de sua histéria, os rituais de transmisséo destas proibicGes, ela mesma criou as defesas sustentadoras do interdito. Trata-se de socializar as ge- ragGes imaturas na erenga de que a prole de casais ligados entre si pelo parenteseo apresenta anomalias de maior ow menor gra- vidade. As estatisticas existentes sobre mas-formagées fetais, mortes pré ou pés-natais ndo resistem @ mais ténue eritica, ‘A histéria de outras sociedades constitui um recurso extraordinario em prol da natureza exclusivamente social do tabu do incesto. No Havai, era prescrito, portanto mais que permitido, o casamento entre irmaos. O mesmo ocorria no Egito, primeiro no seio da realeza, disseminando-se posteri- ormente por toda a populagao. Os descendentes de irmaos casados entre si eram de muito boa qualidade, nem pior nem melhor que as populagdes nas quais o interdito recafa sobre jrmios, Todo interdito, ao mesmo tempo em que é um néo, € ieee também um sim. Simplificando, se irmés nfo sio sexualmen- te disponiveis para seus irmfos, 0 sfo para aqueles que nao so seus irmaos. Evidentemente, no caso brasileiro, ter-se-ia que excluir todas as classes de individuos sobre quem pesa 0 nao, para afirmar-se que todos os demais sio sexualmente disponiveis, ou seja, aqueles que carregam um sim. Isto equi- vale a dizer que, excluidas as classes de pessoas mencionadas no Cédigo Civil, todas as demais mulheres so sexualmente disponiveis para quaisquer homens. ‘Nao e sim residem no interior de todas as interdigées. Para ilustrar de modo simples, pode-se tomar as leis de tnsito. Uma tabuleta mostra o simbolo de que caminhdes néo podem trafegar naquela via. O mesmo simbolo significa sim para to- dos os demais vefeulos, Se, todavia, o motorista de um cami- nhao passar por aquela rua, sera negativamente sancionado pela sociedade. A pena poder ser o pagamento de uma multa, pontos na carteira de habilitagdo etc. Quanto ao matriménio, os que nao podem se casar entre si podem infringir esta norma social, Como, no civil, casamento sera impossivel, ele pode- r4 concretizar-se pela unifio consensual, realizando-se ou nfo no religioso. Isto ocorre muito no Brasil, sobretudo nas areas de dificil acesso, longe do poder constituido. Entretanto, nao consta que tais populagées apresentem, por exemplo, elevado percentual de individuos malformados. Entéo, para que con- servar o tabu do incesto, cuja transgressio, sobretudo entre ascendentes e descendentes, é altamente reprovada pela socie~ dade, isto é, sancionada de forma muito negativa? Para que serve este tabu? O tabu do incesto apresenta alta relevancia, pois é ele que revela a cada um seu lugar na familia, em varios outros grupos, enfim, na sociedade em geral, Rigorosamente, a sociedade brasileira nfo tolera mesmo a unio entre ascendentes e descendentes. Caso haja filhos desta unio, as sangGes negativas sio ainda mais severas. Uma hipd- Genero, parireado, violncia 29 tese bastante plausivel pode ser levantada: a prole destes ca- sais mostraria A sociedade que nenhum argumento biolégico apresenta consisténcia. E a sociedade nao pode abrir mao de umentos desta ordem, na medida em que jé no tem re- cursos para resgatar as antigas praticas de transmissio, sem questionamentos, do interdito. Isto posto, caberia uma per- gunta: por que se curram, nos presidios, estupradores de qual- quer mulher, em especial de criangas? Se toda interdic&o con- tém um sim e um néo, é pertinente responder a esta indaga- cdo da seguinte maneira: a estuprada no era sexualmente disponivel para o estuprador, pois, se 0 fora, ndo teria ocor- rido estupro, Mas por que nao poderia sé-lo para o& demais presos? Trata-se, por conseguinte, de invasio de territério, procedimento muito pouco tolerado, especialmente por ma- ches e bandidos. Ecologistas falam bastante, e com pertinéncia, sobre a ne- cessidade de preservacio do meio ambiente, da natureza. No se ouvem, porém, ecologistas preocupados com a ecologia mental nem com a ecologia social. Guattari, num pequeno e primoreso livro (1990), trata da ecosofia, englobando este ter- mo as trés ecologias. Com efeito, supondo-se que 0 ser huma- no padesse se abster de agredir a natureza, que sentido teria este fato, ja que no se poderia desfrutar de uma ecologia men- tal, tampouco de uma ecologia social, num mundo penetrado pela corrupedo, af incluso o crime organizado, atravessado pela ambic3o desmedida, levando filhos a matarem seus pais, com requintes de crueldade, e vice-versa, invadido pelo dio fandamentalista, disto decorrendo o terrorismo e as igualmen- te fundamentalistas reagGes a ele, enfim, num mundo cujos poros foram preenchidos por projetos de dominagao-explo- ragio de longufssima duracdo, dos quais derivam a fome, 0 medo, a morte prematura, a auséncia de solidariedade, a into- lerancia as diferencas? A este propésito, a resposta de homens negros ao racismo, mormente dos que conquistaram uma po- sigdo social e/ou econémiea privilegiada, foi 0 casamento com mulheres loiras. Se eles siio socialmente inferiores a elas em 30 Heliath i Sato razdo da cor de sua pele e da textura de seus cabelos, elas stio inferiores a eles na ordem patriarcal de género. Resultado: soma zero. Transformaram-se em ignais, nas suas diferencas, transformadas em desigualdades, Ocorre que isto tem conse- qiiéncias. Hé um contingente de mulheres negras que nao tém com quem se casar. Como os negros branqueados pelo di- mheiro se casaram e ainda se casam com brancas, em funcdo de uma equalizagao das discriminagées sofridas, de um lado, pelos negros, de outro, pelas mulheres brancas, em fungio de seu sexo, no ha como se estabelecer tal igualdade entre mulheres negras e homens brancos, pois estes sio “superio- res" pela cor de sua pele e pela textura de seus cabelos, sendo “superiores” também em razio de seu sexo, Na ordem patri- areal de género, 0 branco encontra sua segunda vantagem. Caso seja rico, encontra sua terceira vantagem, o que mostra que 0 poder é macho, branco e, de preferéneia, heterossexual (SaFFIoT!, 1987). A demografia repercute estes eventos, for- mando-se nela um buraco: # auséncia de homens para mulhe- res negras casadouras. H& mais um buraco demogréfico a ser sentido e deplorado crescentemente, Nas guertas entre gangues do narcotréfico, na delingiiéncia em geral, nos entreveros com a policia, mor rem muito mais jovens de 17 a 25 anos que adultos. Que futu- ro, em termos matrimoniais, terdio as adolescentes de hoje, uma vez que as mulheres costumam casar-se com homens mais velhos? Ou se inverte a situagio, com o processo jé em curso de casamentos entre homens jovens com mulheres bem mais velhas e poderosas, ou estas jovens conformam-se com sua condigio de populacio casadoura excedente. No fundo, pare- ce que ambos, homens e mulheres, casam-se com 0 poder. Se esta hipétese for verdadeira, é possivel encontrar © homem- ser-humano ea mulher-ser-humano em meio a tanto poder? Do Angulo da sexualidade, os homens deveriam, nos casa. mentos, ter idade inferior A das mulheres, uma vez que estas podem ter vida sexual ativa enquanto durar sua propria vida, contando 0 homem com um tempo limitado: Alias, quanto & enero patrercado, lbncia Hi

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