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LIÇÃO 10 A PARÁBOLAS DO BOM SAMARITANO 1

A PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO

Escola Bíblica Dominical na Igreja Cristã Evangélica do Canto do Mar.


Cleiton Tenório, São Sebastião, 04 de fevereiro de 2018

Texto base: Lucas 10.25-37

INTRODUÇÃO

Hoje analisaremos uma das mais queridas parábolas da Bíblia, a “parábola do


bom samaritano”. A história é tão conhecida e admirada que até virou expressão proverbial.
Chamar alguém de “bom samaritano” é considerado não pouco elogio.

Não podemos deixar nos envolver em demasia pela beleza da atitude do bom
samaritano e assim deixarmos de percebermos a profundidade do todo do ensino de Jesus
contido nela. É tentador e não incomum reduzir essa parábola a meros ensinos éticos e
morais. Seu ensino principal não deve se perder de vista. Essa parábola não foi escrita com o
propósito de ensinar simples lições de comportamento, em como ajudar ao pobre, ou como
uma lição para crianças em como não serem mesquinhas e assim aprenderem a
compartilhar seus brinquedos ou seu lanchinho com o coleguinha. Muito menos serve pra
ensinar como, pelas boas obras, se tornar participante do Reino celestial.

Esse ímpeto em reduzir o precioso ensino dessa parábola em instruções de


bom procedimento deve-se pela atitude não incomum de desconectá-la do seu contexto,
tanto imediato, como do seu contexto mais remoto. Por contexto imediato dessa parábola,
compreende-se o diálogo que a antecede. Por contexto mais remoto refiro-me ao ensino do
Evangelho de Lucas, do Novo Testamento e até mesmo de toda a Bíblia. Além de que,
encontrar o cerne da passagem ajudaria muito a não cairmos no engano de que seu
propósito principal seria ensinar soteriologia, que, se assim o fosse, obviamente a salvação
aqui seria por obras, o que é reprovado, tanto pelo ensino de Cristo, como pelo ensino da
Bíblia como num todo.

Para uma boa compreensão do texto é necessário que o autor mergulhe


nesses contextos e que também tenha o mínimo de interesse em ler, pesquisar, estudar,
buscar compreender o contexto geográfico dos envolvidos, viajar no tempo, escrutar a
época, hábitos, cultura.

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Será que admitiríamos alguém se utilizar de 1Co 15.18 para afirmar que os
que morreram em Cristo pereceram? Ou então se utilizarem de alguma versão bíblica não
tão clara para dizerem, com base em 1Tm 2.15 que somente a mulher com filhos será salva?
A maioria dos cristãos acharia estranhas essas afirmações e correriam para o contexto a fim
de verificarem essa veracidade, talvez até buscassem outras versões para uma melhor
compreensão.

Não podemos negligenciar o fato do quanto somos influenciados pela cultura,


língua, economia, política, história, situação geográfica, enfim, por tudo o que nos cerca. Isso
nos coloca em desvantagem diante de um material de 2.000 anos. Há imensa distância em
todos os aspectos, que nos impõe não pequenas barreiras de compreensão do texto alvo.
Isso não deve servir de impedimento para que o intérprete atual busque compreender o
texto. Como já bem disse alguém: a Bíblia e tão rasa que um bebê pode tranquilamente
nadar sem que nenhum dano se lhe cause, mas também tão profunda a ponto de que um
elefante possa se afogar. Ela, as Sagradas Escrituras, está ao nível de compreensão de todos
os que sinceramente se achegam a ela, mas como é precioso nadar em sua superfície e
pouco a pouco ir mergulhando em suas profundezas. Negligenciar o contexto da passagem é
colocar em xeque sua interpretação.

Infelizmente não é o que a maioria faria com essa parábola. A interpretação


legalista, para muitos, não só seria a primeira opção como também a opção mais atrativa.
Temos, como dizem, uma quedinha para a auto justificação.

Veremos hoje e, creio, ficaremos impressionados em como nossa


compreensão sofrerá alteração, em como, numa leitura superficial percebíamos essa
parábola e em como, num estudo mais apurado podemos perceber o real sentido que ela
propõe.

ANÁLISE DO TEXTO

Entrando na análise do texto, não podemos incorrer no erro de partirmos


direto para a Parábola sem que analisemos cuidadosamente o diálogo que a precede. Ainda
que o diálogo seja relativamente curto se comparado com a Parábola em si, está nele uma
das chaves de interpretação.

25 E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e
disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna?

Primeiro é necessário notar a posição que esse homem ocupava em seu povo.
Seja o que a ARA traz com intérprete da lei, ou o que a AA traz como doutor da lei, ou a NVI
como perito na Lei, ou a KJA como advogado da Lei, ou qualquer outro título que se dê em
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alguma outra versão, é evidente, à vista de como a sociedade israelita vivia, que esse
homem não era apenas uma espécie de jurista como também um teólogo, uma vez que por
Lei, compreende-se aqui a Lei de Deus, de forma mais abrangente compreendendo todo o
ensino do Antigo Testamento.

A atitude que esse homem teve, de se levantar diante de Jesus quando lhe foi
dirigir uma pergunta era a forma tradicional em que um aluno se dirigia ao seu mestre. Pelos
costumes, o professor se assentava e seus alunos, ao seu redor, ouviam seus ensinos. Ao
levantarem alguma questão, em sinal de respeito os alunos deveriam se levantar. Além
disso, o mestre da Lei se dirige a Cristo chamando-o de mestre. No mínimo ele reconhece a
Cristo como seu par, sendo, tanto quanto ele, um mestre na lei. Talvez até pretendesse ir
além, demonstrando aos que os cercavam que ele reconhecia a Cristo como um mestre
superior a ele, uma vez que, na qualidade de mestre, submeteu-se aos ensinos de outro
mestre. Mas não se engane, a atitude respeitosa desse homem era apenas superficial. Sua
real intenção era pôr Jesus a prova.

Sua pergunta: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Não foi uma
pergunta incomum no ministério de Jesus. O jovem rico (Mt 19.16) também foi até Ele com a
mesma intenção. Talvez por que essa expressão, “vida eterna”, tenha tido um importante
destaque nos ensinos de Cristo (Mt 19.29; 25.46; Jo 3.15,16,36; 4.14,36; 5.24,39;
6.27,40,47,54,68; 10.28; 12.25, 50; 17.2,3).

Olhando mais atentamente vê-se que a pergunta é sem sentido. Herança tem
a ver com ligação consanguínea ou por adoção. O que alguém pode fazer para herdar algo?
No Antigo Testamento a ideia de herança era aplicada a Israel e está mais especificamente
relacionada à terra de Canaã prometida por Deus a Abraão. Israel nada fez para herdar, foi
por espontânea disposição de Deus em concedendo-lhe. No Novo Testamento a herança
divina é colocada num padrão espiritual de concessão da vida eterna.

Todavia, não é difícil enxergar na atitude desse homem a proporção legalista


que a promessa tomou. Outro famoso mestre da lei, o Rabi Hillel, conterrâneo, mas mais
velho que Cristo, deixa isso transparecer quando diz que “aquele que ganhou para si as
palavras da Torá, ganhou para si a vida do mundo vindouro”, ainda outro mestre,
desconhecido, diz que “Grande é a Torá, pois ela dá aos que a praticam vida neste mundo e
no porvir”. Esses ensinos expõe a lição legalista que estabelece a herança por aquilo que eu
posso fazer, ou seja, uma conquista pela guarda da Lei. É óbvio aqui que a tradição na
interpretação da Lei passou a valer mais do que a própria Lei, como numa jurisprudência que
contraria, a título de interpretação, o que a Lei claramente parece dizer.

26 Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito na Lei? Como interpretas?

Impressionante notar a astúcia de Cristo em identificar a intenção do seu


interlocutor e o laço que almeja preparar. Cristo não responde a questão daquele homem e,
além disso, reverte-a a ele.
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Ao perguntar àquele mestre como ele interpretava essa questão, Jesus


pretendeu expor a sua tradição, ou seja, em como era interpretado esses mandamentos
dentro da tradição seguida por aquele mestre.

27 A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua
alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a
ti mesmo.

A resposta desse homem é uma citação de Dt 6.5 e Lv 19.18. Como tem sido
sugerido, a união desses textos foi feita pelo próprio Jesus (Mt 22.38,39; Mc 12.30,31; Lc
10.27) ou então, Jesus só segue e consequentemente endossa o que já se fazia nalguma
tradição. Em ambos os casos, no ato de recitar o resumo da Lei na mesma linha que Cristo o
fazia, aquele homem pode ter pretendido reafirmar sua intenção em testar a Jesus Cristo.
Seria uma forma de devolver a “batata quente", uma vez que esse homem provavelmente
reafirmava a tradição a quem Cristo criticou em Mateis 5.43 que ensinava o amor ao
próximo (compatriotas), mas ódio ao inimigo. Seguindo o oposto Cristo recomenda amar os
inimigos e orar pelos perseguidores (v.44).

Esse resumo da Lei da forma com fora recitada segue uma linha incomum,
uma vez que não segue a ordem cronológica dos registros; primeiro é citado Deuteronômio
e depois Levíticos. De qualquer forma, é fantástica a quebra de sua ordem cronológica e
estabelecimento de sua ordem lógica. Nosso amor para com Deus é o padrão do amor para
com o próximo. Nas palavras de Kenneth E. Bailey, “A experiência preceitua que é muito
difícil amar o desagradável próximo enquanto o coração do discípulo não está cheio do amor
de Deus, que dá a energia e motivação necessárias para a árdua tarefa de amar o próximo”.

Mas, há grande problema em ler a Bíblia de forma seletiva. O mesmo texto de


Levíticos que estabelecia a ideia de amar o próximo, estabelecia também quem era o
próximo de forma mais ampla do que interpretavam: Se o estrangeiro peregrinar na vossa
terra, não o oprimireis. Como o natural, será entre vós o estrangeiro que peregrina
convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou
o Senhor, vosso Deus. (Lv 19:33-34).

28 Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e viverás.

Jesus está levando esse homem para onde pretende. Daqui pra frente isso
ficará mais claro. Ele é quem está direcionando o rumo na conversa. Ficará claro também
que essa fala de Cristo não é um elogio àquele homem. A sentença “faze isso é viverá”
deixará isso explícito.

O que esse homem não tem ideia é que acaba de impor, para si mesmo, um
padrão inalcançável. Em Lucas 18.18-30 algo semelhante acontece quando um jovem rico
procura Jesus com a mesma intenção, a de herdar o reino dos céus. Jesus estabelece um
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padrão pela observância da Lei, ao que o jovem, de pronto afirma observar. Jesus então
aponta para o seu coração atraído pelas coisas desse mundo e que uma coisa só lhe faltava:
vender tudo o que possuía, distribuir o dinheiro aos pobres e segui-Lo. Ao que a própria
passagem afirma que o homem saiu entristecido, pois possuía muitas riquezas. O que aquele
homem dizia praticar, agora demonstra claramente que não. Dando prosseguimento ao
ensino Jesus disse que muito mais fácil seria um camelo passar pelo fundo de uma agulha do
que um rico entrar no reino de Deus. Seus discípulos ouvindo isso chegam a conclusão de
que então seria impossível ao homem se salvar, ao que Cristo afirma que aquilo que é
impossível aos homens não o é para Deus. Há uma nítida afirmação de que a salvação não
vem por vias do esforço humano, mas que é pelo poder de Deus.

Aquele homem parecia acreditar no impossível, que realmente lhe fosse


possível amar a Deus com todo o seu ser e semelhantemente o seu próximo a ponto de
merecer a salvação. Não conhecia a corrupção de seu próprio coração. Paulo declara que o
problema não é com a Lei em si e sim que não podemos cumpri-la (Rm 7.13-20). A lei
declarava maldito aquele que não cumprisse suas determinações (Dt 27.26) e o tropeçar
num só ponto, segundo Tiago, tornava o homem culpado de quebrá-la toda (Tg 2.10).
Portanto, a resposta de Cristo aqui segue uma linha um tanto quanto irônica, seria o mesmo
que ao ser perguntado sobre o que podemos fazer para ser salvo, respondesse: pare de
pecar!

28 Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo?

Se o homem havia respondido corretamente o que era o centro da Lei, aqui


continua ele a demonstrar o que realmente intentava, a auto-justificação. Kar Barth,
comentando esse episódio diz: “O doutor da lei não sabe que somente por misericórdia ele
pode viver e herdar a vida eterna. Ele não quer viver por misericórdia. Ele nem sabe o que é
isso. Ele de fato vive por algo bem diferente de misericórdia; pela sua própria intenção e
capacidade de se apresentar como homem justo diante de Deus.” O desejo de auto-
justificação por parte dos legalistas foi alvo de mais críticas por parte de Cristo (Lc 16.15;
18.9) e também do apóstolo Paulo (Rm 10.3).

Não há diferença entre esse homem e o jovem rico. Lá, Cristo demonstrou a
real intenção do coração do jovem e que o que ele entendia por cumprimento da lei cairia
por terra quando lhe fosse apontado sua disposição interna. Aqui, o amor a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a si mesmo desmoronaria quando o sentido pleno da Lei
fosse aplicado.

O próximo, dentro do contexto desse homem, era limitado aos seus irmãos
judeus; os gentios não eram incluídos. É aqui que a cena para a parábola se desenrola e o tal
doutor na lei será pego por um argumento tanto lógico quanto bíblico. Isso será
demonstrado por sua resposta final à última pergunta de Jesus. Aqui serão postos frente a
frente as Escrituras e a tradição, a Lei é a jurisprudência.

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30 Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em
mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos
ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto.

Jericó ficava cerca de 1200 metros abaixo de Jerusalém. O percurso de mais


ou menos 25 quilômetros entre uma cidade a outra era feito numa estrada sinuosa,
atravessando montanhas sem vegetação. Em algum ponto, um precipício de cerca de 100
metros acompanha o percurso. Pouquíssimas residências poderiam ser vistas durante o
trajeto. Cavernas e rochas enormes junto ao encosto tornavam possível o esconderijo de
ladrões, tornando a estrada mais perigosa do que parecia ser. Além disso, a estrada não
apresentava fluxo constante de pessoas, exceto durante as festas religiosas comemoradas
em Jerusalém, que faziam com que a estrada apresentasse constante fluxo de peregrinos
que para lá iam a fim de adorarem.

Por mais que a história contada por Cristo seja fictícia, ela parte de pontos
comuns e possíveis. Não só a estrada com todo o seu risco, a existência de salteadores por
lá, as atitudes do sacerdote e do levita, enfim, todo o cenário, é pintado partindo do ponto
daquilo que era provável. Apenas a atitude do samaritano é que é apresentado como um
ponto surpresa.

Não há descrição alguma da vítima a ponto de que pudesse ajudar-nos na sua


identificação. O que sabemos é, talvez devido à sua reação ao assalto foi, além de roubado,
espancado e deixado nu e desacordado. Duas eram as formas de identificar alguém, as
roupas e a língua, ou sotaque. Grande era a diferença das roupas entre os vários povos da
região a ponto de que não seria difícil reconhecer a qual nação ou tribo pertencia alguém.
No aspecto idiomático os judeus estudiosos falavam hebraico, ao passo que os camponeses
o aramaico; ao longo da costa fenícia ainda se falava a língua fenícia; ao redor do mar da
Galiléia, predominava o siríaco; Nas cidades gregas, o grego, e pessoas das tribos ao sul,
falavam árabe; ainda, as autoridades de governo, conheciam o latim. Mas aqui o homem
havia sido despido e estava desacordado, obviamente não poderia dar informações sobre
sua origem. A intenção de Cristo parece ser a de criar essa dificuldade mesmo, assim os
ajudantes não penderiam para favorecerem um eventual compatriota ou de desprezarem
um possível inimigo étnico. Esse homem deve apenas ser visto por sua necessidade.

31 Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de


largo.

A essa época os sacerdotes serviam por turno de duas semanas no templo em


Jerusalém e a maioria deles residia em Jericó.

Muito provavelmente o sacerdote da parábola não estivesse fazendo seu


percurso a pé, estaria numa montaria e isso seria dedução lógica dos ouvintes de Cristo. Isso

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se daria porque os sacerdotes pertenciam à classe mais elevada da sua sociedade. Os


membros da classe de elite jamais fariam um percurso de cerca de 25 quilômetros a pé. Os
pobres o faziam, os da elite, não. Além de que somente assim a história fará sentido,
demonstrando a possibilidade de que os demais viajantes tinham em ajudar e sua eventual
recusa em fazê-lo. O samaritano sim é cotado como portando um animal de montaria. Mas a
história segue, como bem afirmou Kenneth Bailey, presumindo “um potencial igual de
serviço”, Isso para que se evite qualquer conclusão precipitada de que o samaritano só o
ajudou porque era o único que podia fazê-lo, pois seria de mais exigir socorro por parte do
sacerdote e do levita numa estrada como aquela e na considerável distância em que teriam
que percorrer com o homem em seus ombros.

A atitude do sacerdote em passar de largo sugere que ao ver o homem ferido


afastou sua cavalgadura para a margem oposta da estrada.

A Lei estabelecia que aquele que tocasse num corpo morto deveria ser
considerado imundo por sete dias, devendo passar por um processo de purificação nesse
mesmo período (Nm 19.11-22). É digno ainda de nota que Arão e seus demais filhos foram
até impedidos de tocarem os corpos de Nadabe e Abiú – filhos de Arão – quando esses
foram mortos pelo Senhor ao Lhe oferecerem fogo estranho. Nem ainda puderam prantear
e velar seus mortos (Lv 10.1-7). As consequências para o sacerdote eram mais pesadas uma
vez que sendo considerado imundo não poderia, dentro desse período, se alimentar dos
dízimos que também eram considerados santos. Deveria ainda retornar pra Jerusalém a fim
de passar pelo processo de purificação durante os mesmos sete dias. Logo, vê-se que sua
família também sofreria as consequências de seu ato. Mas, perceba, o sacerdote nem se dá
ao trabalho de descer de sua cavalgadura a fim de verificar se o moribundo estava morto.
Certamente, estava muito longe do sentimento que deveria nortear sua função (Hb 5.2) ou
ainda o exposto em Tiago 2.13, cujo princípio se encontrava também no Antigo Testamento.
O Antigo Testamento exigia um alto padrão de misericórdia (Êx 23.4-5).

De maneira mais ampla, esse sacerdote representa qualquer homem que,


conhecedor das Escrituras, segue linhas opostas a ela no que concerne à aplicação da
misericórdia.

32 Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo.

Claro que os sacerdotes também eram levitas no sentido de que também


eram descendentes de Levi. Mas aqui claramente é feita uma diferenciação de classes e isso
se deve ao fato de que o serviço no tabernáculo e depois no templo foi entregue
especificamente à tribo de Levi, mas o ofício sacerdotal somente aos araonitas, ou melhor,
aos descendentes de Arão. Nesse sentido os levitas assumiam responsabilidades secundárias
no templo em serviços de assessoria aos sacerdotes, membros da polícia do templo, limpeza
e demais.

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Como já mencionado, os que serviam no templo o faziam por escala de duas


semanas. Não somente os sacerdotes estavam inseridos nessa escala como também os
levitas. Sendo assim, é certo que o levita sabia que estava sendo antecedido por um
sacerdote naquela estrada. Sabendo disso e vendo o homem lá caído, deve ter chegado a
conclusão de que se um sacerdote, que conhecia melhor a Lei, não ousou ajudar o homem,
por qual motivo ele o faria?

Diferente do sacerdote, muito provavelmente o levita fazia o trajeto a pé, não


era de classe elitizada como o primeiro. Mas isso em nada justifica sua negligência, uma vez
que, mesmo não estando em um animal de montaria, o que possibilitaria transportar o
homem até um local mais adequado para o tratamento de suas feridas, poderia ao menos
prestar os primeiros socorros e junto ao homem, aguardar alguém passar numa montaria ou
então um desenrolar mais trágico.

Como já dissemos acima, a estrada oferecia seus perigos, os próprios


assaltantes ainda poderiam estar a espreita aguardando sua próxima vítima. Poderíamos
citar os problemas já mencionados no caso do sacerdote quanto à sua obrigação pela pureza
litúrgica. Nesse segundo caso, o levita não estava limitado por tantas regras com o
sacerdote. Comentaristas têm dito que a observação de pureza ritual aos levitas estava
restrita as suas atividades litúrgicas, logo, não era esse o caso. Sua escala de serviço já havia
sido cumprida.

Além de tudo isso, as leis de pureza cerimonial não poderiam suplantar a


misericórdia. Apenas traziam em seu bojo a ideia de que aquele que havia quebrado sua
observação deveria passar por um ritual de purificação. Mas o espírito religioso tende a ver
além, tende a fazer do homem apenas um observador de regras e preceitos morais que
tende a levá-lo a pensar que por eles alcançará justificação. Será que nada justificaria a
quebra desse preceito?

Vimos que os religiosos da alta estirpe, que detinham o serviço no templo e


eram profundos conhecedores da Lei, não entenderam plenamente o sentido de “próximo”
estabelecido na lei. Mas não só os personagens da parábola, o próprio doutor da Lei não
entendeu isso. Ser a que se encaixavam eles na descrição de Cristo em Lucas 10.21?

33 Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se
dele.

A sequência natural da história para a mente de qualquer judeu seria que o


próximo ator dessa trama fosse um judeu leigo, talvez aquele que seguiu para Jerusalém a
fim de apresentar suas ofertas.

Mas, para surpresa de seus ouvintes, Jesus não segue a sequência lógica
aguardada e os surpreende inserindo um personagem inesperado e inimaginável – um
samaritano. Eles eram muito mais desprezados do que os próprios incrédulos, eram uma

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classe de heréticos. Os samaritanos não eram gentios, eram judeus mistos (2Rs 17.6),
reconheciam a mesma Torá 1, mas ainda assim eram heréticos, odiosos heréticos.

O ódio que o os judeus nutriam pelos samaritanos chegava a tanto que


orações diárias nas sinagogas eram feitas, com a petição de que os samaritanos não fossem
feitos participantes da vida eterna. A Mishna declara que “aquele que come o pão dos
samaritanos é como aquele que come carne de suínos.” (Mishna Shebiith 8.20, Danby, 49).
Esse ódio foi ainda mais intensificado quando os samaritanos, durante uma festa de Páscoa,
poucos anos antes, contaminaram o templo espalhando ossos humanos em seu pátio. (cf.
Josefo, Antiguidades, 18.20).

Raramente um samaritano passaria pela estrada que ligava Jerusalém a Jericó.


A hostilidade mútua fazia com que esse trajeto fosse percorrido por um samaritano somente
em casos de extrema urgência.

É impressionante, tendo esse cenário em mente, a ousadia de Cristo em


inserir em sua parábola um personagem tão odiado, ainda mais o colocando como
personagem principal no uso adequando da misericórdia. O que Cristo fez foi declarar
publicamente em sua estória a superioridade de um samaritano sobre a classe sacerdotal, a
mais estimada no conceito de pureza. Mas palavras de Kenneth Bailey, “Assim, Jesus atinge
um dos sentimentos de ódio mais profundos do auditório, e dolorosamente o expõe.”

Mesmo os samaritanos adotando a Torá, compreendiam também (de forma


errada, tanto quanto os judeus) que seu próximo era apenas seus compatriotas, mas, nessa
estória aquele samaritano quebra qualquer barreira de separação pelo uso da misericórdia.

34 E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o


sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele.

Aqui o primeiro paralelo é traçado com o levita, ao contrário dele que podia,
mas não o fez, o samaritano fez a aplicação dos primeiros procedimentos de socorro.

No primeiro século, às vezes se misturavam azeite e vinho com o propósito de


compor um medicamento para feridas, ou ainda o azeite pode ter sido utilizado como um
agente de limpeza das feridas e o vinho como agente desinfetante/antisséptico. De qualquer
forma fica claro que o samaritano usa todo seu recurso disponível para prover a salvação do
homem.

A passagem é clara em afirmar que o samaritano o colocou em seu próprio


animal. Como observador da Torá, ele – ao contrário dos dois personagens que o

1
Só reconheciam a Torá. Não reconheciam os profetas e nem adotaram o templo em Jerusalém
como centro da adoração. Seu centro de adoração era o monte Gerizim. Lá existia um templo em
que oficiavam culto e sacrifícios que foi destruído cerca de 130 anos a.C., pelo rei judeu João Hircano,
da dinastia dos macabeus. Mesmo sem reconstruir o templo, asseguraram que aquele era o local de
adoração (Jo 8.48)
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antecederam – se compromete em se “contaminar”, estendendo-a também ao seu animal.


Além disso, estava também passível ao ataque dos mesmos salteadores, risco de forma
alguma assumido pelo sacerdote e pelo levita. Esse segundo evento traça o paralelo com o
sacerdote que sem dúvidas portava uma montaria e poderia levar o homem até lugar
seguro, mas não o fez.

A atitude de ceder seu animal ao moribundo, demonstra algo a mais, a atitude


de servir. A ideia de sobre a própria cavalgadura pode indicar que possuía outro ou outros
animais que o acompanhavam, talvez indicando sua profissão, um mercador. Daí a
necessidade de ceder seu animal e colocar sobre ele o moribundo. Mas pode também
indicar que desceu de seu único animal, procedeu com os primeiros socorros, e então viu a
necessidade de tratamento mais adequado colocando o moribundo sobre seu animal para
levá-lo a lugar seguro. Nos dois casos precisamos reconhecer que ao descer de seu animal,
colocar sobre ele o estranho e precisar seguir a pé conduzindo o animal, ele se coloca à
serviço do outro. A diferença tecida no Oriente Médio entre cavaleiro e cavaleiriço denota a
diferença de posição entre o que serve e o que é servido, em que o segundo está em posição
privilegiada e admirada, em detrimento ao primeiro.

Poderia levar o homem até um local seguro e lá deixá-lo, mas, mais uma vez
seu amor se demonstra abnegado.

As dificuldades que provavelmente pudessem ser apresentadas para a


identificação do moribundo, a ausência de roupas e a impossibilidade de conversar, parece
que não apresentaram dificuldades ao samaritano, que, ao que parece, identificou o homem
como um judeu, pois seguiu com ele para Jericó, uma cidade judia. Poderia, por segurança
própria, ter levado o homem para Samaria.

O homem se arrisca ao seguir com o moribundo para, talvez, um vilarejo em


Jericó. A Lei de Talião estabelecia olho por olho e dente por dente. Sendo uma persona non
grata para os judeus e entrando com um judeu em terra judia, aquele homem assume o
risco de ser identificado como sendo o autor do ato violento e assim receber a pena capital.

Não contente em aplicar os primeiros procedimentos de socorro, em ceder


seu animal e levar o moribundo até um local seguro, o samaritano fica na estalagem a fim de
cuidar do homem que mui provavelmente ainda pudesse estar desacordado.

35 No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste
homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar.

Com tudo o que fora feito, poderia dar-se por contente, mas o samaritano
conhece as leis e sabendo que o homem não teria dinheiro pra cobrir os custos da
estalagem, uma vez que foi roubado, podendo assim ser preso e decretado como escravo
até que sua dívida fosse paga com serviços (Mt 18.25), assumiu os custos de hospedagem
pelo tempo necessário. Paga primeiro dois denários, o que seria equivalente para cobrir os

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custos entre uma ou duas semanas, e promete retornar para cobrir eventuais custos que
ultrapassassem seu aprovisionamento. Ele simplesmente não pretendia recuperar esse
valor, uma vez que ao retornar o homem já poderia ter se recuperado e deixado o local ou,
mesmo que ainda estivesse lá, naquela condição – em terra judia – jamais poderia forçar o
homem a devolver seu dinheiro ou então forçá-lo a serviços escravos até que a dívida fosse
paga. Seu amor e sua misericórdia se demonstram de fato, abnegados.

36 Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos
salteadores?

Cristo simplesmente se recusa em responder a pergunta do doutor da Lei,


sobre quem era seu próximo. Ao contrário, suscita uma pergunta mais intrigante: Quem foi
o próximo do homem moribundo? O próximo é o samaritano e não o homem ferido.

A primeira pergunta restringe-se no ato de bondade por aquele que faz por
merecer. A segunda é abrangente e contempla a todos aqueles que estão ao meu alcance.
Portanto, o alvo de Cristo sou eu e não o outro. A própria ideia de amar o outro como a ti
mesmo trás a ideia de que sempre começa por mim.

Fica aqui evidente de que o alvo da parábola não é o que posso fazer para ser
salvo, mas surge em resposta a pergunta do doutor da Lei sobre quem seria seu próximo.

37 Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe
disse: Vai e procede tu de igual modo.

Ainda pode ser percebido certo preconceito no religioso. Ele não ousou nem
falar que o samaritano foi o próximo do moribundo, apenas respondeu que foi aquele que
usou de misericórdia, talvez por medo dos sees compatriotas que o circundavam, mas,
mesmo assim foi obrigado a admitir aquilo que, de outra forma, jamais o faria.

Jesus, o mestre por excelência, conhecia bem o princípio de Pv 25.15.

ALGUNS ENSINOS

1. A vida eterna: o doutor da lei deve ter percebido com sua


resposta final que não conseguia, mesmo que quisesse, cumprir toda a Lei de forma a
justificar-se. Fica, portanto, evidente que a salvação é um dom gracioso de Deus.
2. Tornando-se um próximo: a pergunta do mestre da lei foi
invertida com o propósito de trazer à tona o real sentido da Lei que estabelece a
misericórdia para com todos, sem distinção alguma.
3. Os limites da tradição: a compaixão ultrapassa os limites
impostos pela tradição. Parece que a lei não impunha esses limites uma vez

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LIÇÃO 10 A PARÁBOLAS DO BOM SAMARITANO 12

estabelecia procedimentos de purificação para aquele que quebrou os


procedimentos de pureza cerimonial.
4. Racismo: a atitude racista e preconceituosa foi quebrada
dentro dessa parábola de Cristo. Bem poderia ser um bom judeus que socorresse um
samaritano, mas o contrário foi feito e o propósito se demonstra.
5. Jesus como mestre: a história demonstra a capacidade
persuasiva de Cristo em ensinar mesmo aquele que resistia com a sequência de
tentativa para desmerecê-Lo.
6. Cristologia: os teólogos mais primitivos (Orígenes, Ambrósio,
Agostinho) não hesitavam em ver no bom samaritano a figura de Cristo, que é um
agente de salvação que vem de fora, indesejável e que não leva em conta o custo da
salvação.
7. Padrão ético: ainda que a parábola não tenha o propósito de
mostrar o que podemos fazer para sermos salvos – e graças a Deus por isso – ela
estabelece um padrão ético para o cristão, para o homem já justificado.
8. A verdade sobre o pecado: a parábola relaciona dois tipos de
pecadores e dois tipos de pecados. Os salteadores agem com violência e ferem o
homem, o sacerdote e o levita o ferem por negligência.

“Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é
escravo do pecado.” (João 8:34)

“Portanto, aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz nisso está pecando.”
(Tiago 4:17)

9. A verdade sobre o amor: para Cristo o amor está muito mais


relacionado à ação do que ao sentimento. Não exclui o sentimento, obviamente, mas
não o coloca como impedimento para uma boa ação.

BIBLIOGRAFIA

• NEALE, David A. – Novo comentário bíblico Beacon – Lucas 9-24, Ed. Central Gospel
• MORRIS, Leon L. – Lucas – introdução e comentário – série cultura bíblica, Ed, Vida
Nova
• MACARTHUR, John – As parábolas de Jesus, Ed. Thomas Nelson Brasil
• BAILEY, Kenneth – As Parábolas de Lucas, Ed. Vida Nova
• BAILEY, Kenneth – Jesus pela ótica do oriente médio – estudos culturais sobre os
evangelhos, Ed. Vida Nova

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