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(...) a questão da representação...

A abstração não pode ser encarada como mera recusa do figurativo, e “em termos
estritos, a literatura abstrata exigiria o cancelamento dos dicionários” (Costa Lima, 200,
289), mas ao mesmo tempo ela está progressivamente ligada ao que se mostra sensível,
ao movimento de produção da obra de arte, à relação com o tempo, à apresentação
(Darstellung), enquanto o movimento de representação (Vorstellung) liga-se ao
empírico, ao figurativo.
Costa Lima acentua o caráter de interação entre apresentação e representação,
“enquanto atividades diferencialmente produtivas” (Costa Lima, 2000, 285) e reitera
que “o movimento da apresentação não se efetua sem uma parcela de representação”,
pois é esta que possibilita “o efeito do mundo no agente, que então se lança” (idem,
ibidem).
Isto explica mais uma vez a relação teórica que há entre sujeito fraturado e
representação-efeito (cf.: Costa Lima, 2000, 278). Afinal, “o sujeito fraturado implica o
lançar-se apresentativo, que, por não poder se cumprir sem a apresentação de quem se
lança, traz consigo uma marca ou mancha de representação” (Costa Lima, 2000, 286).
...
O que em princípio a formulação de Costa Lima sobre a abstração na poesia
parece mostrar é que quanto mais a combinação entre as palavras proporcionar uma
desautomatização das mesmas, maior será a potência da lírica. No entanto, o que
importa ressaltar é que esta desautomatização não significa um rompimento com o real.
Toda a teorização de Costa Lima sobre o conceito de mímesis reforça a importância da
manutenção do vínculo entre obra de arte e mundo. O que o autor defende é o abandono
da representação tradicional, atrelada à concepção do sujeito da tradição clássica, pois
deste modo, seria possível tornar a obra independente de sua intencionalidade (cf.:
Costa Lima, 2000, 277).
A alternativa oferecida por Costa Lima para se pensar além desta
intencionalidade é justamente o foco de toda sua obra intelectual, o conceito de
mímesis. Sucintamente podemos dizer que a experiência da mímesis é histórica e
culturalmente variável (depende do horizonte de expectativa dos receptores), é a
correspondência entre obra de arte e mundo, a mímesis literária “supõe a sensação de
semelhança, a que se acrescenta a sensação de diferença” e se cumpre “dentro de um
circuito específico, o da experiência estética” (Costa Lima, 1989, 68-9).
Vejamos nas palavras do autor o papel que ele reserva à mímesis:

a arte não tem o perceptivo por necessária matéria-prima. Mas como


iluminar a circulação do que ela então produz? Como fazê-lo sem a tornar
ou exclusividade da intencionalidade do produtor ou da interpretação
proposta? Ou seja, como romper o privilégio, operacionalmente danoso, de
um sujeito privilegiado? É este o papel que reservamos à mímesis (Costa
Lima, 2000, 55).

Se a mímesis está na correspondência entre obra e mundo, e a constitui a interação


entre semelhança e diferença, lembremos que estas diferenças, por mais radicais,
sempre mantêm “um resto de semelhança, uma correspondência, não necessariamente
com a natureza, mas sim com o que tem significado em uma sociedade, com a maneira
como a sociedade concebe a própria natureza” (Costa Lima, 2000, 64). O hermetismo
estaria, então, na eliminação do referente e, portanto, do próprio sujeito, dando lugar ao
divórcio entre arte e mundo.
Esta reflexão sobre o papel da mímesis, o sujeito fraturado e a recepção-efeito,
que perpassam a questão da representação, nos remete diretamente ao que coloquei
anteriormente como o dilema do artista moderno. Consciente de sua subjetividade
fraturada, oscilante, necessita, ao expressar-se, equacionar a relação entre os
movimentos de diferença e semelhança, apresentação e representação, sem que sejam
desatados os laços com o mundo, mas ainda assim mantenha a potência de
transformação, e seu efeito resulte numa experiência estética.

Trecho de: “Na vertigem da vida: a poesia de Ferreira Gullar”, Claudia Dias
Sampaio
Disponível em: academia.edu

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