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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA (PUC/SP)

Francisco Beltrame Trento


Espelhos negros: mutações do desejo e da crítica na comunicação

Doutorado em Comunicação e Semiótica

São Paulo/SP
2017
Francisco Beltrame Trento

Espelhos negros: mutações do desejo e da crítica na comunicação

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Comunicação e semiótica, sob a
orientação do Prof. Dr. Rogério da Costa
Santos.

São Paulo/SP
2017
Banca examinadora

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__________________________________
Agradecimentos

Ao meu orientador, Rogério da Costa Santos.


Aos meus pais.

À contingência do sorteio com dados que fiz para ordenar os nomes de alguns itens desta
lista.

Agradeço aos professores José Luiz Aidar Prado, Christine Greiner, Rosana de Lima
Soares, Norval Baitello Jr, Suely Rolnik, Renato Sztutman, Oswaldo Giacóia Jr,

A Erin Manning e Brian Massumi e a todos os membros do Senselab/Concordia


University/Université de Montréal e aqueles espalhados pelo mundo todo por ter nos
recebido de maneira tão acolhedora: Halbe Kuipers, Leslie Plumb, Roberto Scienza, Mariana
Marcassa, Csenge Kolozsvari, Ronald Rose-Antoniette, Adam Szymanski, Céline Pereira,
Flo, Mayra Morales, Rett Rossi, Grécia Falcão.

Às pessoas que sabem em seus ventres que a realidade não é nada mais do que uma ficção
especulativa: Ana Carolina Garbuio, Thiago Venanzoni, Rodrigo Azevedo, Diana de
Hollanda, Fernanda Raquel, Tássia Arouche, Bianca Hisse, André Fogliano, João Paulo
Cuenca, Karen Oliveira, Tatiana Zilio, Davi Rocha, Seane Melo, Gisela Zaffalon.
Aos meus colegas do COS, Gabriela Zimberg, Jéssica Oliveira, Luísa Barreto, Luiza
Rosa, Ernesto Filho, Virgínia Souza, Julia(na) Feldens, Ana Catarina Holtz, Paola Mazzilli,
Renata Valentim, Bruna Freitag, Luíza Spínola.

E, é claro, a Tarquin, que esteve presente, sentado em minha mesa, trazendo bons afetos
que reverberaram na escritura desta tese e no projeto de pós-doutorado que a segue. (E a
Dinsdale, Smokey).
Klop9i I, 45r, AU* (Tarquin)
Lista de imagens
Figura 1: gravura atribuída a Albrecht Dürer, The Devil and The Coquette.
Fonte: Maillet (2009, p. 48). ................................................................................................................................. 13
Figura 2: flagra do ator pornô entrando no estúdio. ........................................................................................... 40
Figura 3: a resposta do artista. ............................................................................................................................. 40
Figura 4: selfie no banheiro do complexo jornalístico. ........................................................................................ 41
Figura 5: preparação para o ato sexual. ............................................................................................................... 42
Figura 6: transmissão focando nas expressões de gozo do primeiro-ministro,
que lembram o filme Blowjob, de Andy Warhol. ................................................................................................ 42
Figura 7: anúncio publicitário de uma câmera de segurança: “esteja
no controle” de tudo o que acontece ao seu redor. .............................................................................................. 52
Figura 8: menu de seleção dos álbuns das gravações feitas pelo dispositivo grão. ............................................ 55
Figura 9: Montréal, Quebec. Fotografia do autor. .............................................................................................. 56
Figura 10: Black Mirror, The Entire History of You. ........................................................................................ 57
Figura 11: Sasha Grey no filme P.O.V. Centerfolds 7. ....................................................................................... 57
Figura 12: a fuga não pela morte, mas pela mutilação material
e corpórea do dispositivo de controle. ................................................................................................................. 58
Figuras 13, 14, 15, 16 e 17: o inferno fractal e impossibilidade do fora para o Joe-Cookie.............................. 60
Figuras 18 e 19: há algo que resta na memória de Victoria, que emerge como glitches. ................................... 65
Figura 20: os frequentadores do parque de diversões querem registrar a imagem da julgada. ........................ 65
Figura 21: a agonia de Khadaffi. Ainda vivo (CNN e Al Arabyia),
seu corpo (BBC) e a disputa para fotografá-lo após o linchamento. .................................................................. 68
Figura 22: Shut up and Dance. Exposto e punido duas vezes, mas sem
a possibilidade de se matar. ................................................................................................................................. 69
Figura 23: “This is not a performance”. ............................................................................................................... 71
Figura 24: o teatro perverso. ................................................................................................................................ 73
Figura 25: Tudo-tela versus o son(h)o até então inatingível. ............................................................................. 94
Figura 26: Montagem de Endgame pela Sydney Theatre’s Company,
em 2015. Fotografia de Lisa Tomasetti (The Guardian). Aos personagens
é impossível enxergar ou pensar um fora (não há qualquer movimento no horizonte
da janela); são pouquíssimos os objetos com os quais podem interagir. ........................................................... 96
Figura 27: de suicida a garoto propaganda de um suvenir usado na sua
própria tentativa/encenação da morte. .............................................................................................................. 104
Figuras 28 e 29: Interface da primeira fase do contato com o “novo” Ash. ..................................................... 114
Figura 30: Äkta Människor. Fascista do movimento antiandroide se apaixona pela humanoide. .................. 116
Figura 31: Os gestos programados do novo Ash, baseados nos filmes
pornográficos a que costumava assistir. ............................................................................................................. 117
Figura 32: robôs não são programados para autodestruição, a não ser
quando possam decompor corpos humanos. ..................................................................................................... 120
Figura 33: Lacei experimenta um momento de autonomia na desprogramação
gestual de seu chacoalhar na lama. .................................................................................................................... 147
Figura 34: Performance de Lacei no casamento da ex-melhor amiga. ............................................................. 149
Figuras 35 e 36: “Cortando” a programação de seus gestos programáticos. .................................................... 151
Figura 37: Imagem de divulgação publicada no perfil oficial do Netflix
antes do lançamento da terceira temporada de Black Mirror (2016). ............................................................. 160

Lista de tabelas
Tabela 1: Conceitos-Chave. .................................................................................................................................. 19
Tabela 2: Da contingência à necessidade. ............................................................................................................ 49
Tabela 3: Levantamento de técnicas desviantes discutidas. .............................................................................. 165
Sumário
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................. 11
PARTE I – OUTROS ESPELHOS NEGROS ................................................................................................ 24
CAPÍTULO 1. Acontecimento e agenciamentos midiáticos .......................................................................... 25
1.1. O contingente, o possível e o espetacular ............................................................................................. 45
CAPÍTULO 2. Mídia e desejo de controle ...................................................................................................... 52
2.1. Controle, desejo e julgamento ............................................................................................................... 62
2.1.1. Masoch, Severin e a subversão da Lei ............................................................................................... 78
2.2. Desejo faltante e desejo produtivo ........................................................................................................ 81
PARTE II - COMUNICAÇÃO COMO AGENCIAMENTO ........................................................................ 90
CAPÍTULO 3. A (im)possibilidade do fora .................................................................................................... 92
3.1. Agenciar a repetição, gerenciar o tempo, amar e fugir ....................................................................... 105
CAPÍTULO 4. A materialidade dos agenciamentos midiáticos ................................................................... 109
4.1. Morte e mídia: encontros com protossubjetividades maquínicas ...................................................... 110
4.2. Máquinas comunicacionais .................................................................................................................. 121
PARTE III – DOIS MODOS DE CRÍTICA ................................................................................................. 136
CAPÍTULO 5. O amor e a crítica imanente ................................................................................................. 139
CAPÍTULO 6. Da micropolítica dos gestos menores................................................................................... 145
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................................................................................................................... 159
BIBLIOGRAFIA REFERENCIADA OU NÃO ........................................................................................... 167
FILMOGRAFIA ................................................................................................................................................ 182
RESUMO

O cerceamento dos seres humanos por múltiplas formas de mídia, ou por meio dos objetos
midiáticos materiais (nossos espelhos negros), ou dos estímulos e enunciados incorporais que
deles derivam, ou que neles se cristalizam momentaneamente, tem sido discutido no campo
audiovisual (cinema e televisão), nas artes cênicas, em performances e na literatura. A antologia
televisiva Black Mirror (Channel Four, 2011-2014; Netflix, 2016-), um dos guias ficcionais de
nossas análises, é um dos conjuntos de narrativas que, extremando essa possibilidade, mostra
como esses novos ecossistemas e agenciamentos midiáticos modulam de distintas formas a
produção de desejo nos indivíduos. Um de nossos objetivos é observar e cartografar tais novas
modulações de desejo e afetos. Dentre elas, detectamos a produção de um desejo de controle,
um modo de ser ou um conjunto de ideias de que temos o controle das situações por meio dos
mesmos dispositivos midiáticos que nos envolvem. Procuramos enfocar a comunicação como
agenciamento ou encontro (occursus). Por meio da narrativa de Black Mirror, buscamos
produzir e identificar uma cartografia de bons e maus encontros, não mediante uma moral, mas
sim, a partir da diferenciação entre os dois conceitos de acordo com a Ética, de Spinoza. Além
do desejo de controle, outros tipos de desejos são maquinados nas subjetividades acopladas aos
media onipresentes e suas inserções no capitalismo contemporâneo, como o desejo de
emulação ou o desejo de imitação. A difícil tarefa é pensar os foras a esses tipos de
agenciamentos midiáticos de controle, a partir das próprias ferramentas midiáticas maquínicas
ou enunciativas, discutindo novas possibilidades de construção de mundos e possíveis. Diante
da exaustão, os gestos disruptores e aparentemente contingentes resistem ao controle e à
normatização. É por meio deles que buscamos advogar a favor de uma crítica imanente das
mídias, que pretende não se adequar às bolhas e políticas identitárias discursivizadas nas
mídias, visando a vigilância e o julgamento moral sem observar sua causalidade a partir de uma
avaliação ética. Para pensar a comunicação como agenciamento ou encontro, bem como as
particularidades dos desejos que se agenciam nessas redes, nos aliamos à filosofia de Baruch
Spinoza, Gilles Deleuze, e a algumas leituras contemporâneas que com ela se relacionam, como
as feitas por Brian Massumi e Catherine Malabou. Para discutir essa problemática e pensar
uma crítica midiática imanente que não retroalimente o ideário de controle, Brian Massumi e
Erin Manning, com suas versões do conceito de crítica imanente, auxiliam-nos nessa questão.

PALAVRAS-CHAVE: desejo, Black Mirror, agenciamento, crítica imanente, acontecimento,


Spinoza, ética

Projeto de pesquisa financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq)
Minha alegria

Minha alegria permanece eternidades soterrada


e só sobe para a superfície
através dos tubos alquímicos
e não da causalidade natural.
Ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de incêndio.

Waly Salomão
ABSTRACT

Contemporaneity is characterized by the interweaving of human beings with multiple media


forms, through material mediatic objects (our black mirrors). Also by stimuli and incorporeal
enunciates that are embodied by them, or in which they momentarily crystallize themselves.
These dispositives and networks have been represented in the audiovisual field, scenic arts,
performance and literature frequently. The television anthology Black Mirror (Channel Four,
2011-2014; Netflix, 2016-), one of the fictional guides in our analysis, is a set of narratives
that, exacerbating this state of things, discusses how those media ecosystems are intrinsically
linked with the production of desires in the individuals. We aim to identify and map those
modulations through a Spinozist semiotic of affects. Among the affects, we have identified the
production of a desire to control, a mode of existence or set of ideas that presupposes that we
have the total control of situations and absolute truth through the same media dispositives that
involves us. We relate that to the production of subjectivity of the standard ideal neurotypical
human being, or of the fine products that emerges from the processes of the antropotecnical
eugenic machine, studied by Fabian Ludueña. Starting from this point, we aim to focus the
communication processes as agencements or encounters (occursus). Following Black Mirror’s
narrative, we seek to produce a mediatic cartography of good and bad encounters, not
constructed through moral systems, but following Spinoza’s ethical evaluation, mapping
composition and decompositions, increases and decreases of potency observing the semiotical
production of desires through affections. Besides the desire to control, which emerged from
the anthropocentric and anthropotechnical crusade, other types of desires can be machined in
the subjectivities engaged to the omnipresent media dispositives as part of the
contemporaneous capitalist system, as the desire of emulation or the desire of imitation,
explained in Spinoza's “definition of affects”. The difficult task is to think escapes or lines of
flight to these types of media agencements that can emerge performatively/artistically by
experimenting with the same media materialities or enunciative apparatuses (we don’t consider
them neither good or evil but they can be (re) allocated in agencements that produce good or
bad encounters in a field of immanence). It requires to look for the production of good
encounters and active agency, or to think new possibilities of world construction. We consider
that, in the presence of the exhaustion produced by the control systems, minor and apparently
contingent gestures and artistic practices can resist to the total control and normativity. It’s
through them that we advocate in favor of an immanent critique of media, incongruent to
identitarian bubbles and politics – that usually target moral judgement without observing
events’ causality network and the desires agenced in its nodes. Against that, we ally with the
philosophy of Baruch Spinoza, Gilles Deleuze, Catherine Malabou and other contemporary
rereadings of the Dutch philosopher that can relate with them, as the work of Brian Massumi.
To discuss the emergent issues of those complex questions, and try to develop an immanent
media critique, Brian Massumi and Erin Manning bring us their particular interpretations of
immanent critique, performed through research-creation art practices and minor/disruptive
gestures.

KEYWORDS: desire, Black Mirror, agencement, immanent critique, event, Spinoza, ethics

Research project funded by a Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq) scholarship.
11

INTRODUÇÃO
So: the object in Madam’s drawing room is a black mirror. It is seven
inches tall and six inches wide. It is framed within a worn black
leather case that is shaped like a book. Indeed, the case is lying open
on a table, just as though it were a deluxe edition meant to be picked
and browsed through; but there is nothing there to be read or seen –
except the mystery of one’s own image projected by the black mirror’s
surface before it recedes into endless depths, its corridors of
darkness.

Truman Capote

Um “espelho convexo tingido” é uma curta definição para um espelho negro


(MAILLET, 2009, p. 15), apesar de nem todos terem esse formato e aspecto. Esse aparato pode
ser fruto de muita ficção especulativa literária e também frutificá-la. Aquilo que vemos ao olhar
e sermos olhados por um espelho negro já foi o tema de muitas problematizações: “um grande
número de teóricos da arte como William Gilpin e Valenciennes impõem-nos a desconfiar das
distorções criadas por uma demasiadamente pronunciada convexidade dos espelhos [negros]
de Claude” (Ibid., p. 19). Estes também podem ser tingidos ou oriundos de substâncias que
produzem uma cor negra, como pedras preciosas em estado bruto (obsidiana, por exemplo). O
fato de serem convexos faz com que os espelhos negros reflitam imagens mais ainda distantes
e monstruosas (sem levar em consideração um juízo de valor sobre esse adjetivo) do que
aquelas com as quais nos deparamos ao entrecruzarmos olhares com nossos reflexos em
espelhos comuns, nas bolsas de maquiagem, nos banheiros, ou nas câmeras frontais de
smartphones.
Há alguns séculos, os espelhos negros usualmente vêm sendo descritos na literatura
científica e artística como redondos (Ibid., p. 19). Outras formas foram muito utilizadas. O fato
de serem redondos ou ovalados e de tamanho miniaturizado permitia que pudessem ser
carregados e segurados com apenas uma mão. Entretanto, conta-se que esse formato foi mais
utilizado apenas no século XVIII. Nos cem anos posteriores, foram sendo substituídos por
peças retangulares (Ibid., p. 19). Em contrapartida, lançando um olhar direcionado ao presente,
estamos cada vez mais acostumados com o enquadramento retangular das imagens em telas,
folhas de papel, outdoors, ou fotografias quadradas, que são similares às polaroids das décadas
passadas – reinseridas em um mercado de nicho.
Com a intenção de não serem riscados, marcados ou arranhados, os espelhos negros
passaram a ser guardados em capas; os criadores de espelhos que lapidavam as pedras preciosas
pretas de obsidiana em estado bruto passaram a proteger o objeto com revestimentos de tecidos,
12

“couro negro ou pele de tubarão” (MAILLET, 2009, p. 20). Os espelhos negros, aparentemente
renegados a estudos periféricos de magia ou artistas avant-garde, foram referenciados também
na literatura e nos textos herméticos de ocultismo, como nos lembra Maillet (Ibid., p. 20). Ao
citar Music for Chameleons, de Truman Capote: “O objeto... é um espelho negro. Possui sete
polegadas de altura e seis polegadas de largura. É emoldurado dentro de uma capa de couro
negro que o deixa com o formato de um livro”.
Maillet (Ibid., p. 22) também nos lembra que esse arquétipo de um objeto de fácil
portabilidade não deve ser o único em relação aos espelhos negros: foram e são produzidos nos
mais variáveis formatos e tamanhos, utilizados por pintores para refletir as formas de uma
paisagem por muito tempo tentando driblar as mudanças de temperatura e tonalidades de cor
na passagem de um dia, curiosos ou indivíduos que se relacionam com alguma forma de magia.
Hoje os exemplares antigos são quase impossíveis de serem encontrados, em caríssimos leilões
on-line ou brechós desconhecidos em vielas da Europa. O próprio pesquisador, em sua tese,
descreve a longa jornada para encontrar algum objeto “em pessoa” no continente europeu
(Ibid., p. 27-28); mas, em muitas regiões da Europa, podiam ser adquiridos com facilidade, em
qualquer mercado ou feira nas ruas, um artefato comum.
Grande parte dos espelhos negros descritos por Maillet (2009) eram convexos, pois esse
formato era mais fácil de ser produzido tecnicamente e sob um custo menor de manufatura;
portanto, mais economicamente viável. Entretanto, em sua pesquisa, o autor relata que teve
dificuldade de encontrar espelhos convexos porque eles foram “escondidos” – tanto discursiva
quanto fisicamente. Isso porque, quando in-formados dessa maneira, são capazes de refletir
uma imagem distorcida da “realidade como conhecida” e foram tidos como diabólicos. A
expressão “cu do diabo” foi utilizada ao falar desse tipo de aparato, pois acreditava-se que, ao
olhar para um espelho que distorce a imagem daquele que está vendo seu reflexo, era possível
ver o demônio e, algumas vezes, seu ânus. Um modo de visibilidade que foi condenado a ser
queimado com as bruxas da inquisição.
13

Figura 1: gravura atribuída a Albrecht Dürer, The Devil and The Coquette. Fonte: Maillet (2009, p. 48).

Sobre isso, em 1318, o papa João XXII divulgou uma carta, buscando a “perseguição
dos idólatras que utilizassem espelhos para rituais de repreensão” (MAILLET, 2009, p. 49).
Em 1326, o mesmo papa “divulgou uma bula, Super illius specula, declarando que o demônio
é particularmente passível de ser enclausurado em espelhos, e excomungando todos aqueles
que tentavam praticar catoptromancia – divinação com espelhos” (Ibid., p. 49).
Também os espelhos convexos negros (ou simplesmente black mirrors) eram vistos
como um instrumento de comunicação que permitia aos “necromantes conjurar e visualizar as
almas dos mortos e, portanto, entrar em comunicação com eles” (Ibid., p. 50). Uma porta de
acesso a uma espectralidade não humana. “Com a ajuda dessa pedra mágica, uma pessoa
poderia ver todas as pessoas que desejasse, não importa a parte do mundo na qual elas
estivessem, mesmo escondidas nos apartamentos mais inacessíveis, ou nas cavernas das
entranhas da Terra” (RAY, 1984, p. 316, apud MAILLET, 2009, p. 50)1.
Para (o) além da comunicação com os mortos na Idade Média, há mais tempo ainda, os
espelhos são – e desde quando não foram? – mídias. Siegfried Zielinski (2006, p. 36) nos
descreve a lenda conhecida como “o Ouvido de Dionísio”. Quando Siracusa foi atacada pelo
exército romano, (214-212 a.C), algo que depois desembocaria na anexação ao Império
Romano da Sicília, Arquimedes, para defender suas terras, ainda “sob o comando de Marcellus,
incendiou algumas galés do inimigo com a ajuda de espelhos” (Ibid., p. 36). O filósofo da mídia

1. Fizemos, aqui, uma citação da citação da citação, visto que Maillet recorre a trechos de um almanaque Warren
não identificado, do ano de 1857, copiados por Jean Ray em RAY, Jean. “Le Miroir Noir”. In: RAY, Jean. Le
Grand Nocturne: Les Cercles de l’epouvante. Bruxelas: Actes Sud/Editions Labor, 1984.
14

alemão ainda ressalta que Descartes tentou provar o contrário em sua obra Dioptrique,
calculando que as distâncias entre as cidades-estado que estavam no combate não permitiriam
que o ataque fosse feito de modo que a concentração de raios solares feita através de jogos de
espelhos côncavos e convexos atingisse as construções inimigas e iniciasse focos de incêndio.
Esse fato sempre permaneceu – e provavelmente continuará – controverso, mas
descobertas arqueológicas mostraram que os espelhos eram usados como mídias como
artefatos de transmissão de uma espécie de protocódigo morse. Funcionários do Império
Romano transmitiam as ordens dos imperadores às tropas através de luzes que piscavam de
maneira codificada e chegavam aos soldados com mais rapidez do que os mensageiros a cavalo,
já que não se pode vencer a velocidade da luz.
Vemos a “realidade como mera sombra do que é possível” (ZIELINSKI, 2006, p. 44).
A discussão sobre o status de veracidade das imagens supostamente distorcidas, observadas
quando se olha para um espelho negro, pode ser remetida à Antiguidade. Plínio afirma que o
que se vê quando se olha para um deles são “reflexos de sombras ao invés de imagens”
(MAILLET, 2009, p. 67). “O espelho reflete somente sombras porque somente os mortos
podem ser vistos nele” (Ibid., p. 67).
Discorrendo sobre o uso dos espelhos por pintores da época renascentista, como forma
de olhar para a obra feita de maneira que suas linhas e superfícies pareçam disformes, podendo
assim observar imperfeições que não seriam vistas a partir do contato visual direto com o
quadro, Maillet (Ibid., p. 109), ao comentar estudos e traduções de Roger de Piles, ressalta o
uso de alguns espelhos negros como ferramenta para refletir, de maneira distorcida, a
“realidade”, de modo a fazer com que o pintor, através de uma imagem chiaroscuro, reproduza
com maior organicidade uma paisagem.
Em outras palavras, “em ordem de atingir um efeito pictórico prazeroso, o artista [sic]
é levado a diretamente reduzir a sombra e a luz a uma unidade tonal” (Ibid., p. 109; grifo do
autor). Essa distribuição das colorações e das sombras da imagem, para de Piles, é perfeita em
algum momento do fim da tarde, mas dura cerca de um quarto de hora, enquanto “um espelho
poderia ser usado durante todo o dia” (de PILES, 1743 apud MAILLET, 2009, p. 111). Um
espelho negro é uma máquina que atua de maneira topológica: não produz novas configurações
de formas e elementos já dados em uma paisagem, mas estende e brinca com as proporções
entre eles, dados os índices de refração que cada tipo de material e arranjo físico usados na sua
manufatura podem ter. Que tipo de distorção uma concatenação de muitos black mirrors é
capaz de produzir? E brincar com isso não é a tarefa especulativa da fabulação?
15

Quando se começa a espelhar com o espelho, criam-se verdadeiros jogos filosóficos.


Se posicionados frente a frente, em determinado ângulo, espelham-se
reciprocamente, o que se pode fazer de forma fabulosa no computador. Resulta no
abismo ao infinito. [...] Vejo algo infinito, um buraco infinito. Como Wittgenstein
afirmou: “Com dois espelhos em um quarto vazio, pendurados em duas paredes
opostas, e nada entre eles, eu tenho o infinito do nada. (FLUSSER, 2014a, p. 237).

Haveria alguma semelhança entre os espelhos aqui descritos, produzidos para os mais
diversos fins, da magia e dos rituais pagãos até mesmo como ferramenta de reprodução de
paisagens ou imagens, e os nossos espelhos negros? Trabalhemos com analogias. Os espelhos
negros são formas ou meios de ver os acontecimentos; cada espelho negro, conforme o seu
nível de lapidação e pureza, material etc., produzirá um tipo de imagem que nos diz algo sobre
um acontecimento ao qual o contrapomos. São mídias, portanto. São vistos como mediadores
de acontecimentos. Lembremos, entretanto, que o contato entre nós e os afetos que recebemos
dos espelhos, através da percepção, é imediado.2
Na Idade Média, especula-se (dada a heterogeneidade cultural/subjetiva desse período),
essas imagens não eram consideradas mais ou menos reais do que o que se convenciona chamar
de realidade, mas mostravam algo dela que aos nossos olhos ficava escondido, como se ela
mesma se escondesse de nós em alguma instância, que de alguma maneira pudesse ser acessada
e desvelada por esses artefatos. Variações de um mesmo mito. Já citamos que alguns relatos
contam que o diabo se escondia e andava entre nós, mas seu rabo não conseguia ser disfarçado,
e uma forma de ver sua cauda era tentar ver uma paisagem através de um espelho negro,
abridores de portais interdimensionais. Múltiplas visibilidades, múltiplas formas de capturar
um mesmo acontecimento, um ou mais encontros de corpos. Nenhuma mais verdadeira, já que
do encontro em si não temos a total representação ou o esgotamento de um evento. Entendê-lo
completamente só seria acessível a uma inteligência/mente fora do tempo, entendimento das
relações a partir da eternidade, aquilo que Spinoza denomina o conhecimento de terceiro
gênero. Seria necessário que fosse possível construir um espelho tão grande e infinito quanto
a própria realidade, para que suas imagens pudessem representá-la.
Espelhos negros eram comuns, mas ainda assim se restringiam a ocasiões especiais,
rituais ou como ferramentas ópticas na construção de obras artísticas. Com a massificação dos
novos espelhos, eles continuaram a ser a forma de dar sentido, de capturar, seja em imagem ou

2. No sentido em que Christoph Brunner descreve, a partir de leituras de Erin Manning, Brian Massumi e Alfred
North Whitehead, há uma “qualidade imediata da percepção”, e “a imediação enfatiza a qualidade imediata de
diferenciação da experiência através da percepção” (BRUNNER, 2012, p. 08). Em relação às mídias, a “imediação
renderiza os corpos através de processos de incorporação. Nas mídias digitais, a produção e a relação de corpos
através de códigos e diferenciação desafiam aquilo que um corpo pode fazer ou pode tornar-se apto a fazer,
abrindo-o para formas de experimentação” (Ibid., p. 06).
16

em texto. Um espelho capaz de traduzir a realidade em letras. Eram múltiplas as formas de


produzir sentido a respeito dos eventos pelos espelhos, mas houve uma mudança desses objetos
não somente ontológica, que diz respeito às suas características essencialmente materiais.
Houve uma mutação de subjetividade. Cada uma dessas realidades escondidas na própria
realidade, que se desvelava em um jogo de mostra/esconde, era capturada como verdadeira,
como pontos de vista possíveis. A preocupação não era uma veridicção da imagem produzida,
trabalhava-se com analogias. Hoje os espelhos (mas não todos) estão inseridos em uma lógica
de fetiche pelo real, pela representação, o próprio encontro do qual emergiram esses traços
tímidos ou cheios de filtros nos espelhos é esquecido, busca-se criar imagens dos
acontecimentos mais reais do que a experiência de acontecer. Um gesto ético possível é
reavivar o potencial especulativo e fabulatório desses dispositivos.
O que está em discussão não é a perda da realidade, em favor de um universo técnico
de simulação do mundo externo, argumento de acadêmicos apocalípticos de boa parte da
filosofia pop. Como alega Joel Black (2002, p. 16), esse tipo de crítica faz com que voltemos
a uma ideia ontologicamente positivista, já que, “ao chamarmos atenção para o as distorções
da realidade pela mídia, temos a impressão que há um estado de coisas independente ‘lá fora’
que pode ser verificado objetivamente”, algo que foi perdido e a todo momento buscamos
recuperar, caçando esse passado ou futuro que nunca aconteceu, algo descrito por Mark Fisher
(2014) como a “melancolia de esquerda” que penetrou os círculos denominados erroneamente
progressistas. A cruzada pela busca desse efeito imparcial de realidade, para esse mesmo autor,
é claramente identificável ao observarmos a quantidade de produções cinematográficas (sejam
elas catalogadas como ficções ou documentários) que se valem de imagens fotográficas de
arquivo e vídeo para corroborar a ideia de que a obra tem um compromisso com a “realidade”.
Mais do que isso, os espelhos negros participam da própria nova lógica de produção de
encontros humanos. Eles, por si mesmos, não são bons nem ruins. Essa participação não deve
ser condenada, pois, seguindo a filosofia e ética de Spinoza, um encontro bom ou ruim com
algo só pode ser determinado a partir de uma perspectiva totalmente relacional, in-the-middle.
Não se trata de demonizá-los, tampouco pregar contra a sua massificação. Eles podem ser
máquinas bem úteis. Através de jogos de reflexão, podem transmitir informações importantes.
Devemos pensar em uma ética de uso dos espelhos negros. Tal ética tampouco é determinista,
e cada um está livre para desenvolver a sua, criar bons encontros com esses objetos, expandir-
se através deles. Para isso, comecemos pensando a jornada com dois elementos principais de
uma narrativa literária: uma personagem e um cenário.
17

Há um longo corredor. Por sua porta, está entrando um indivíduo. Suas duas paredes
laterais estão cobertas por espelhos negros. Não há fonte iluminação natural, mas as imagens
produzidas nessas telas transmitem muita luz, são luz. Nosso personagem começa a caminhar,
recebe essas imagens, afecções, que dizem algo mais a respeito das câmeras das quais são
oriundas do que daquilo que elas são. Conforme vai adentrando o lugar, a luminosidade dessas
emissões começa a ficar insuportável. Ele não consegue mais distinguir quais imagens vêm de
um espelho ou de outro, e seus olhos começam a se confundir, doem. Em alguns momentos,
ele deixa de sentir os próprios pés, não faz ideia de como é o terreno no qual está pisando, das
perfurações dos espinhos, da areia movediça. Em outros, sente-se coagido a sentir o pé com a
maior intensidade possível, a encostar nas paredes, tocá-las, esfregar-se nelas. Sente falta de
outros corpos, mas não consegue voltar, só anda para frente. Esse corredor é infinito, e infinitas
e infinitamente mais constantes são as afecções que ele passa a receber desses espelhos, assim
como seus confusos desejos. Em algum momento, ele fica desnorteado, mas busca,
incessantemente, num gesto equivocado, demarcar que um daqueles frames é uma verdade
absoluta, certeza, um chão firme.
Estamos criando uma analogia. Devemos nos questionar qual é a natureza dos
encontros com esses espelhos? Assumi-los como aquilo que produz o próprio fenômeno
comunicativo. São encontros com a mídia, via suas materialidades, enunciados, discursos, os
agenciamentos dos nos quais eles incorporam etc. Nessas engrenagens, funciona um
mecanismo de produção de desejos, modulados e negociados a partir dos afetos e afecções
desses encontros com a mídia, manifestados nos corpos. É, portanto, passividade. Em certa
instância, somos marionetes dos reflexos, não há livre arbítrio e escolha subjetiva. Mas também
é atividade, passa a sê-la quando buscamos compreender a rede de causalidades desses
encontros. Afirmar que esses encontros com a mídia são o próprio fenômeno comunicativo é
reduzir a comunicação ao contato com aquilo que conhecemos no senso comum como mídia.
Esses encontros nos fazem agir, colocam-nos em novas composições, agenciamentos, contato
com outros corpos, movimentam-nos. E é isso que defendemos ser o fenômeno comunicativo.
Aquilo que emerge no encontro, no acontecimento, no agenciamento, sobre o qual a
linguagem diz um pouco, podemos denominar de traços, signos, que nos produzem ideias,
colocando-nos em novas cadeias causais – que produzem desejos, conduzem à ação, agenciam.
E quais desejos são recorrentes nas comunicações contemporâneas? Para tanto, trataremos de
uma obra, dentre outras, que traz muito a respeito dos encontros entre humanos com espelhos
midiáticos contemporâneos, mas não somente isso: Black Mirror.
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Um eixo temático que perpassa pelas narrativas de Black Mirror, mais do que a própria
mídia e suas materialidades tecnológicas, são os encontros humanos, os agenciamentos
midiáticos. Pelo tom pessimista desenvolvido na trama, notaremos que os personagens, nesse
caso, estão imersos em mais agenciamentos que os decompõem, que minam suas possibilidades
de ação, tanto pelo excesso de estímulos de encontros com as imagens, textos, o fetiche pela
referencialidade do mundo, quanto pela repetição incessante e fatigante das mesmas
composições. Mas há como produzir novos possíveis, alternativas que os personagens tenham
para agir livremente. Nossa intenção não é ser apocalíptico, mas pensar como uma Ética dos
bons e maus encontros, como Spinoza propôs, poderia ser aplicada nesses casos, que estão
longe de pertencer somente ao gênero da ficção científica.
Sustentando que a comunicação é e somente acontece em um agenciamento, devemos
esclarecer uma questão teórica antes. Em alguns momentos, usamos a palavra encontro (do
latim occursus), em outros, agenciamento, em outros, acontecimento. Trata-se de conceitos
distintos – com bastante relação, mas de teóricos diferentes (Spinoza, Deleuze, os antigos
estóicos) –, e que são recorrentes na História da Filosofia, mas cujas abordagens escolhemos
seguem em um continuum. Ora um será mais pertinente do que outros, que impulsionam ações
e ativações em um campo relacional. Dizem respeito ao mundo físico (composição dos corpos)
ou à linguagem (composição e encadeamento de enunciados, discursos e ideias). Nomes para
aquilo que não pode ser nomeado, aquilo que é difícil de ser capturado.
O verbo agenciar, nesse caso, pode ter o sentido também de estar em uma composição
de corpos (agenciamento maquínico) ou de ideias (de enunciação), que nos induz a entrar em
novas composições, boas ou más à nossa existência.3 Trata-se de fazer algo, ou seja, produzir
uma ação sobre as ações dos indivíduos. É o caráter das afecções que emergem de nossos
encontros também, por meio da produção de desejos.

3. Isso não significa que seja possível a existência de ideias sem corpo. Pelo contrário, a interpretação de Spinoza
que seguimos é que não há separabilidade de corpo e mente, que extensão e pensamento são atributos paralelos
de uma mesma e única substância ontológica; cada ente, ao ser afetado, reage no mesmo instante de distintas,
porém paralelas, maneiras. Tal mecanismo foi bem explicado por Chantal Jaquet, em seu livro A Unidade do
Corpo e da Mente: “Espinosa retoma as duas acepções do termo sob a unidade de um conceito que compreende
ao mesmo tempo uma afecção corporal e uma modificação mental. O afeto concerne, portanto, primeiramente ao
corpo enquanto pode ser modificado em virtude de sua natureza e de suas partes. Sua condição de possibilidade
reside na existência de um modo finito da extensão cuja natureza assaz composta o torna apto a ser disposto de
um grande número de maneiras tanto no nível de suas partes quanto na totalidade. O afeto se funda, portanto,
sobre uma física do corpo humano concebido como indivíduo complexo. É preciso notar, porém, que ele não é
exclusivo do homem, pois pode aplicar-se a indivíduos muito compostos, como os animais ou o corpo político.
Embora sua natureza difira da natureza humana, os animais estão sujeitos aos afetos e notadamente ao desejo de
procriar” (JAQUET, 2011, p. 103).
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Em relação ao acontecimento, é tudo aquilo que a mídia busca dar sentido, espremer (e
exprimir). Um espelho negro, desse tipo, é uma máquina de convocar, convocar corpos,
capturar subjetividades, mas também gerar novos possíveis. Na tabela 1, uma breve e
insuficiente comparação dos conceitos que acabaram por se entrecruzar na história da filosofia
processual.

Tabela 1: Conceitos-Chave.

Por ora, para operacionalizar os conceitos, pensemos em uma linha que atravessa essa
genealogia: corpo e mente sofrem concomitantemente quando postos em relação com outras
materialidades ou elementos linguísticos (os últimos são incorporados no dizer, por exemplo),
seja nas ações (verbos) que se busca exprimir e nomear pela linguagem, seja na proposição
acima, em que Spinoza busca ratificar o paralelismo entre corpo e mente.
20

Por sua vez, para Gilles Deleuze e Félix Guattari (1977, p. 118), um agenciamento “tem
duas fases [...]: é agenciamento coletivo de enunciação, é agenciamento maquínico do desejo”.
Não se trata de duas zonas separadamente distintas, já que não há “nenhum agenciamento
maquínico que não seja agenciamento social de desejo, nenhum agenciamento social de desejo
que não seja agenciamento coletivo de enunciação” (Ibid., p. 120) ou expressão. Por meio
desses conceitos, os autores nos permitem pensar que um enunciado não é produzido por um
sujeito, por mais isolado que ele esteja, mas é agenciado por uma série de elementos sociais,
psicológicos, biológicos etc., ou seja, do campo discursivo e das materialidades, produzindo
desejo (ou tendência de ação, causalidade) em outros seres, sejam humanos ou não. Assumir a
complexidade dos componentes em jogo “ é insistir mais uma vez na exterioridade (e não na
exteriorização) inerente ao desejo: todo desejo procede de um encontro” (ZOURABICHVILI,
2004, p. 10).

Detalhamento do corpus – por que esse espelho negro?

Partimos de um corpus inicial que é o conjunto de sete episódios até então lançados da
antologia televisiva britânica Black Mirror, produzida pela Zeppotron, empresa ligada ao canal
de televisão público Channel Four, no qual foram veiculadas as duas primeiras temporadas
(2011 e 2013) e um episódio especial de natal (2014). Até então, o programa foi distribuído
pelo braço britânico da Endemol, que, por sua vez, produziu e distribuiu uma série de reality
shows, dentre eles Big Brother (Holanda, 1999), e licenciou o formato para vários países,
inclusive o Brasil. Após 2015, Black Mirror passou a ser uma produção do serviço de vídeo on
demand Netflix, que encomendou, em um primeiro momento, doze novos capítulos e ganhou
popularidade graças à sua imensa base de assinantes.
Charlie Brooker, criador do programa e jornalista do The Guardian, define a série como
uma versão de “Twilight Zone para a geração Facebook”. Por sua vez, “o espelho negro [Black
Mirror] do título é aquele que você encontra em qualquer parede, em qualquer mesa, na palma
de cada mão: a tela brilhante e fria de uma TV, monitor ou smartphone” (BROOKER, 2011a).
A abertura de cada filmete é um frame negro com um pequeno círculo animado, ícone de espera
enquanto um aplicativo está sendo carregado em um iPhone ou Macbook, seguido do título da
série. O quadro mostra-se um espelho negro ou tela, a sonoplastia sugere o barulho do
rompimento de um vidro, o que se confirma depois pelas imagens: os espelhos negros foram
trincados. Há um potencial nos gestos capazes de in-formar os espelhos através de novas
brechas, rachaduras.
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Cada episódio é uma história narrativamente independente dos outros e, de maneira


hiperbólica e satírica, trata das relações entre seres humanos e ecossistemas extremamente
cerceados pela mídias e múltiplas telas, vigilância e controle, não em futuros necessariamente
distópicos e distantes, mas uma intensificação de elementos de nosso presente.
Black Mirror não é a primeira incursão de Brooker na metacrítica midiática, além de
sua coluna temática semanal no The Guardian. Dentre outras produções chanceladas sob seu
nome, estão How TV Ruined Your Life (BBC 2, 2011), e Charlie Brooker’s Screenwipe (BBC
4, 2006). Na última, sentado em um sofá, comentava um pot-pourri de imagens transmitidas
pela tv britânica, seja de noticiários ou produções dramatúrgicas. O formato foi adaptado e,
posteriormente, virou uma versão semanal do programa com cinco ou seis episódios por ano,
distribuídos durante um ou dois meses, intitulada Charlie Brooker’s Weekly Wipe (BBC2,
2013-) e posteriormente uma retrospectiva anual no mesmo canal, exibida todo final de
dezembro, alternando esquetes satíricos com a participação de atores britânicos. Em 2008,
Brooker desenvolveu a minissérie de cinco episódios Dead Set (E4), filmada na mesma casa
do Big Brother UK, que mostrava uma invasão zumbi em uma edição desse reality show.
Durante a escrita desta tese, seja pela multiplicidade de pontos passíveis de discussão
nas narrativas analisadas, seja pelo modo caótico e desordenado da confecção e do
confeccionador deste texto, o lugar e o papel exatos de ação de Black Mirror na pesquisa se
mantiveram (felizmente) como problemas não resolvidos. Em outras palavras, pensamos que
Black Mirror apresenta aquilo que Bergson define como problemas reais, aqueles que já não
nascem com as respostas de suas questões, mas que podem servir de ativadores para colocar o
pensamento em movimento. Muitas vezes, o texto se desdobra de maneira não esperada, foge,
encontra suas próprias saídas, gerando itens desconectados através de “puxadinhos” ou de
hyperlinks que ligam uma frase a um capítulo ainda não escrito. Se Spinoza era fiel e rigoroso
ao método geométrico de escritura de textos filosóficos europeus do final da Baixa Idade
Média, com escólios e definições remetendo umas às outras com uma alta organicidade textual
e conceitual, pensemos esses links como tentativas muito embrionárias de algo semelhante,
sem a pretensão, entretanto, de produzir um texto filosófico.
Black Mirror é um agenciamento que se desdobra por distintas camadas do texto, que,
através do espelhamento de várias camadas, produz novas variabilidades narrativas e teóricas
na construção deste texto. Não é um sujeito da tese, mas um elemento que se conecta a outros
e também é fruto e manifestação de uma série de sintomas. Uma antologia televisiva, mas, em
seu lugar, poderia estar um poema, qualquer conjunto de textos, imagens, mais ou menos
sintomáticos de um estado de coisas, da mesma maneira que um livro é sempre um
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agenciamento, que “ativa movimentos de pensamento, modos de devir, inventa novos modos
de existência” (MANNING, 2016, p. 124).
Black Mirror, aqui, atua como 1 - um agenciamento intertextual, que nos permite
encontrar e construir relações implícitas ou explícitas com outras obras audiovisuais,
cinematográficas, performáticas, ou literárias, como Endgame, de Beckett, através de sua
temática, estrutura narrativa, situações vividas pelos personagens etc.; 2 - agenciamento de
ativação teórica – atua como um tecido-base sobre o qual podemos estabelecer uma rede
conceitual de elementos que a nós são caros para pensar a comunicação e as modulações do
desejo, longe de um funcionalismo e próximo de uma teoria dos vínculos, das amarrações, dos
encontros, malhas etc., com maior ou menor dificuldade de integração, como a filosofia
francesa, que deve muito às leituras de Spinoza e à nova Filosofia Alemã da Mídia
(Medientheorie); 3 - um agenciamento metacrítico, que levanta e promove a discussão sobre
inúmeras práticas e dispositivos midiáticos; 4 - elemento com tamanha possibilidade de
abordagens, é também, em um agenciamento, um elemento actante de uma rede. É passividade,
sintoma de uma série de modos de existências moldados pela sociedade de controle e pelo
capitalismo mundial integrado (GUATTARI, 1997), bem como os pontos de resistência e
subversão micropolítico/artísticos. É uma narrativa que não só pode ser criticada, como pode
ser comparada a outros modelos de crítica da mídia e ética, ou de vários modos não excludentes
de realizar a primeira, seja em um nível molar (a crítica da mídia representacional na “grande”
mídia), seja no molecular (uma ética midiática do uso cotidiano).
Nossa narrativa, de certa maneira, também se espelhará e se refletirá, expandindo-se
em novos desdobramentos que parecem só dilatar a rede de elásticos que seguram nossos
personagens, dando-os certa flexibilidade de movimento, mas sem deixá-los definitivamente
escapar desse diagrama. Exaustos, resta a eles encontrar falhas nesse sistema, reorganizar essa
cadeia de acontecimentos, por meio de proposições éticas, mudanças de comportamento, gestos
subversivos, visando à construção de uma comunidade com corpos que agem com distintas
velocidades de pensar e sentir, para além dos ritmos impostos pela ecologia dos meios de
controle e do trabalho capitalista. Nosso objetivo, nesta tese ensaística, é permitir dar algum
fôlego a eles, propondo, por meio de uma crítica imanente das mídias, o encontro de alguns
respiros, buscando pensar nos gestos que quebram ou dilatam os espelhos.
23
24

PARTE I – OUTROS ESPELHOS NEGROS


There must be ghosts all over the world. They must be as countless as
the grains of the sands, it seems to me.

Henrik Ibsen
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CAPÍTULO 1. Acontecimento e agenciamentos midiáticos

Black Mirror é um micro universo cujos personagens dialogam com a


contemporaneidade a partir de alguns eixos temáticos, dentre os quais sublinhamos a
onipresença dos aparatos midiáticos nas suas mais distintas formas, materialidades e áreas de
atuação, desde a convencionalmente chamada “grande mídia” aos usos privados de
smartphones, rastreadores, a internet das coisas ou vestível etc. Os personagens de seus
episódios são apresentados nas tramas em situações que os mantêm encurralados e nas quais
potencialmente têm alguma relação com os dispositivos supracitados, tanto sendo flagrados em
situações que podem ser moralmente contestadas e passíveis de juízo penal ou com as próprias
mãos (o que podemos chamar de linchamento), quanto sendo gerenciados por mecanismos de
vigilância em regimes de trabalho cada vez mais exaustivos, nos quais devem ser reportados e
avaliados a todo instante, buscando minar qualquer potencial disruptivos dos corpos que estão
em um estado de servidão maquínica. Qualquer semelhança com os novos regimes de trabalho
exaltados pelos defensores do neoliberalismo em países em desenvolvimento e até mesmo em
alguns dos países até então marcados por um forte regime de bem-estar social não é
coincidência.
Durante a pesquisa, debruçados sobre os filmetes da antologia, notamos uma certa
lógica em seu desenrolar: a cadeia de enunciados, as imagens e os conteúdos diversos
produzidos nessas plataformas que são apresentadas como excessivamente ubíquas quase que
se descolam e criam uma autonomia absoluta ao determinar quase absolutamente o que os
corpos daqueles indivíduos deveriam fazer – dos confinados em um pequeno universo
aparentemente prisional que devem pedalar para gerar energia e promover o funcionamento da
prisão e do reality show que lá ocorre, da condenada por assassinato de uma criança que todo
dia deve passar por uma punição física de maneira a agradar os justiceiros que buscam registrar
as cenas de tortura, passando por um primeiro-ministro britânico que é obrigado a transar com
um porco em cadeia nacional, devido à transmissão de um vídeo que exigia esse feito em troca
da liberação de uma princesa sequestrada, e, para não nos estendermos mais neste momento, à
patricinha que busca regular todas os seus atos e gestos para agradar às outras pessoas que a
darão boas ou más notas em um sistema de avaliação via smartphone. Todos esses exemplos –
que serão mais bem trabalhados no decorrer da tese – mostram que a ação desses corpos é
sobredeterminada e orientada por esse campo enunciativo e incorporal que parte dos usos
dessas mídias – o desejo (que move os corpos) é aí modulado.
26

Não estaríamos, assim, caindo em um reducionismo determinista ao afirmar que tais


enunciados meramente determinam que esses corpos façam coisas? Sim, e esta é, de certa
maneira, a visão do seriado. E foi dessa inquietação que tivemos um encontro fortuito com os
três conceitos da tabela 1: acontecimento, agenciamento e encontro. Uma característica que os
atravessa é que, em todos esses conceitos, há a presença de um paralelismo entre o que acontece
no mundo dos corpos e no das ideias, enunciados, incorporais etc. Em Spinoza (2014c), o
mundo incorporal é aquele das ideias: adequadas ou inadequadas. Por ora, importa é que elas
atuam por encadeamento: uma ideia chama outra ideia, e assim por diante, em uma semiose
infinita. Os corpos, por sua vez, desejam se compor (encontrarem-se, para se comporem e
permanecerem na existência por mais tempo) – isso é o desejo. Para os estoicos, há um fluxo
disparado de causalidade entre os corpos, que se chocam desenfreadamente em um universo
sem vácuo, o que produz acontecimentos, e o mesmo acontece com a linguagem, que não
referencia os corpos, mas os nomeia, e o ato de nomeação, muitas vezes, faz com que o estado
dos corpos seja alterado, assim como as ideias interferem nos desejos, para Spinoza. Por último,
Deleuze e Guattari (1976) mantêm o desejo dos corpos por composições, mas trazendo um
maquinismo à tona. Os corpos são máquinas que incessantemente produzem algo e se acoplam
a outras máquinas (agenciamento maquínico). E os enunciados, por sua vez, nunca são isolados
ou dizem respeito a um sujeito ou indivíduo, mas são coletivos (agenciamento coletivo de
enunciação). Ou seja, de certa maneira, esses conceitos reforçam a ideia de que há esses corpos,
que são induzidos a agir, e as ideias ou aparatos midiáticos, que os propulsionam.
Sim, mas também não, pois a potência desses três conceitos reside na contingência dos
encontros (não podem ser paralisados e são vistos por nós como contingentes) e na
indissolubilidade entre corpo e mente. A potência mora nos encontros que produzem pequenas
insubordinações desses indivíduos e que podem ser utilizados politicamente como escapatória
a esses mecanismos de controle e que contestam as verdades consideradas absolutas pelos
motores do julgamento e do punitivismo contemporâneo.
Quando uma situação improvável e de apelo midiático acontece, com personagens que
povoam o imaginário de uma população, ela torna-se tentadora no que diz respeito à
impossibilidade de esgotamento da totalidade de um acontecimento4 e também no âmbito de
uma catalização, de produção, de uma nova enxurrada de enunciados que guiará novos
agenciamentos e acontecimentos por meio da expansão da visibilidade daquilo que é

4. Quando o acontecimento é “submetido à lógica da comunicação”, trata-se de “neutralizar o acontecimento, de


domesticá-lo, de reduzir o imprevisível, o desconhecido da relação acontecimental (linguística e expressiva) ao
previsível, ao conhecido, ao hábito comunicativo”. (LAZZARATO, 2006, p. 156).
27

considerado extremo ou “mal, moralmente”. Neste caso específico, a mídia, aquela que é
responsável por tentar abarcar o acontecimento, em suas mais distintas configurações e
tecnologias, é alçada ao papel de protagonista em uma narrativa em que o primeiro-ministro
inglês Michael Callow é colocado em uma posição encurralante. Ele é bombardeado por
informações referentes à chantagem feita por um artista anônimo. Em um vídeo carregado no
Youtube, foram divulgadas imagens de Susannah, a “princesa do Facebook”, sequestrada e
mantida em cativeiro. Uma personagem cuja figura pública sobrevive como imagem a ser
imitada, venerada e cultuada pela população britânica, magra e loira. Uma personagem que
ajuda os pobres, é vegetariana, ajuda entidades filantrópicas etc. Além disso, como nos lembra
Laura Pousa (2013, p. 52), é uma figura ecoante no imaginário britânico, que gera, nesse
episódio da antologia, “uma transposição emocional da do ícone popular de Lady Di, e um
desejo oculto de salvá-la e ressuscitá-la”.
O performer do ato anuncia que ela seria assassinada, caso o primeiro-ministro
britânico não praticasse, com transmissão em rede nacional de televisão, ato sexual com uma
porca. Apesar de ter conseguido evitar que o vídeo-chantagem viesse à tona pela mídia
“massiva” (a televisão estatal), a proibição imposta à mídia oficial para que não tocasse no
assunto não surtiu o efeito desejado. O clipe “viralizou” nas redes sociais e foi transmitido por
emissoras internacionais de televisão. A censura dos grandes meios de comunicação não durou
muito. As emissoras de TV se renderam ao fluxo de enunciados disparados on-line pela
população, que buscava notícias do caso e, posteriormente, após o coito, replicava através dos
dispositivos móveis o vídeo da relação sexual interespecífica (ou estupro), considerada
escatológica.
A narrativa se inicia quando o primeiro-ministro é acordado de sua noite de sono5 com
a esposa por uma chamada em seu smartphone, que não pode ser desligado nem enquanto ele
estiver dormindo. Sua presença é requerida em uma reunião, pois a jovem duquesa, princesa
Susannah, havia sido sequestrada. Quando ele chega a um encontro da cúpula do governo, uma
tela de televisão exibe um vídeo com a declaração da sequestrada, olhando obliquamente para

5. Para Jonathan Crary (2014a), a impossibilidade de captura do sonho, de sua oniricidade, pelas máquinas
capitalistas, faz com que elas produzam cada vez mais dispositivos materiais que atuam diretamente na redução
do tempo de sono, ou até mesmo de sua necessidade, com os já em desenvolvimento medicamentos feitos para
diminuir a necessidade do sono, que colocam o corpo humano e, principalmente, as subjetividades para serem
investidos pelos discursos e práticas produtivistas e consumistas do Capital. Essas máquinas vão desde os
celulares que não podem ser desligados em alguns postos de trabalho (inicialmente, médicos com seus pagers,
mas a prática que vem se estendendo a todos os ramos do trabalho material ou imaterial), até a experimentos
científicos com soldados nas últimas guerras travadas pelos Estados Unidos (Iraque, Afeganistão, Estado
Islâmico) para que estes consigam “funcionar” no campo de batalha sem a necessidade de dormir e sem prejudicar
a estrutura biológica do corpo. Crary (2014a), entretanto, alerta que esses fármacos não tardarão a chegar ao uso
civil, o que possibilitará a total ou quase captura dos homens pelas máquinas capitalistas.
28

a câmera em um ambiente de fundo esverdeado. Um dos funcionários do governo avisa que o


autor do vídeo é não rastreável, e o filme é pausado para que esclareçam que a autenticidade
do vídeo já foi verificada. “O que querem? Dinheiro? Uma guerra santa (jihad)? O fim da
dívida do terceiro mundo? Que salvem a porra das livrarias?”, questiona Callow. O pedido é
exibido na tela, e, chorando, a princesa afirma, coagida pelo sequestrador, que a única forma
de ela ser liberada com vida aconteceria mediante o cumprimento de uma performance: que o
primeiro-ministro estuprasse6 um porco ao vivo, na rede nacional pública de televisão. O ato
sexual deveria ser sem fingimentos e completo, com orgasmo e ejaculação. O vídeo é pausado,
e o funcionário afirma que o que se segue é uma série de especificações técnicas de filmagem
que dificultam a encenação do ato. O que se pede não é nenhum tipo de recompensa tradicional,
mas que a imagem do primeiro-ministro seja eternizada na mídia e no imaginário britânico,
enquanto ele penetra a porca.
Uma das primeiras reações do primeiro-ministro às exigências até então absurdas foi
tentar estabelecer uma censura, exigindo que as imagens “não fossem divulgadas” ou vazassem
de qualquer maneira. Recebeu como contra-argumentação de seus secretários o enunciado
“isso já está fora do governo”, visto que “esse vídeo veio do Youtube” e havia permanecido
nove minutos no servidor, até que o governo britânico conseguisse tirá-lo de lá, mas ele já havia
sido salvo e duplicado muitas vezes, tendo sido visualizado mais de cinquenta mil vezes
somente naquela madrugada. Ainda assim, o chefe de Estado exigiu que um ato de censura
fosse instituído, em uma tentativa de impedir que as emissoras televisivas britânicas exibissem
o vídeo ou falassem dele indiretamente; mesmo que o filme já estivesse circulando nos canais
estrangeiros, como CNN, Fox, MSNBC, Al Jazeera e NHK, e que, em uma redação de uma
emissora de TV, a censura tivesse sido tratada com ironia, já que o assunto já estava no topo
dos assuntos discutidos no Twitter naquele dia, no mundo todo.

6. Questão complicada. Para nós, modernos, ainda jamais tenhamos sido modernos, e defensores dos direitos dos
animais, ainda que das mais contraditórias maneiras, tal ato é descaradamente um estupro. Entretanto, alguns
teóricos buscam discutir a zoofilia fora do âmbito do etnocentrismo. Por exemplo: “Se equipara la zoofilia con la
violación. Se entiende que un animal nunca puede dar su consentimiento para estas prácticas y, por consiguiente,
siempre se estaría forzando. Evidentemente, por cuestiones obvias, es imposible que exista esa aprobación, pero
cabría preguntarse por qué se exige consentimiento a la hora habla de relaciones sexuales con animales y, en
cambio, no se les pide permiso para castrarlos, estabularlos o matarlos, por citar solo algún ejemplo. [...] Pero no
hay que llevarse a engaños, esta argumentación contra la zoofilia es relativamente nueva y tiene que ver con las
posiciones animalistas. Ni era así en el pasado ni, seguramente lo sea en el futuro. Las fronteras entre lo animal y
lo humano son cada vez más difusas ¿Significará esto que en el futuro podremos considerar lícito tener relaciones
sexuales con animales, lo mismo que ahora algunas personas consideran apropiado meter a sus perros en la cama?
Midas Dekkers, en su trabajo Dearest Pet, defiende que la zoofilia es una práctica aceptable siempre que no exista
crueldad. Afirmará que, a veces, la última consecuencia del amor por los animales será hacer el amor con ellos”.
(FERIA, 2013, p. 20).
29

Os acontecimentos só podem estar, ser expressos, no futuro ou no passado. A instância


do encontro dos corpos é inacessível, e quando entra na linguagem, já foi (passado) ou será
(futuro). É nesse ponto que o jornalismo tenta trazer os acontecimentos para o campo do
kronos, o tempo cronológico, organizado nas horas do relógio, das agendas, dos compromissos,
das burocracias, tempo instaurado depois que o deus grego Kronos devorou todos os seus
filhos. “A cronologia nos encaixa na ordem temporal das coisas. O sofrimento pode ser crônico,
mas a paixão nunca é” (ZIELINSKI, 2006, p. 47). Ao contrário do aion, o tempo da eternidade,
de Deus, o próprio tempo do acontecimento, intransponível, mas que é expresso segundo as
regras do primeiro. “Quando Kairos passa, já é muito tarde” (Ibid., p. 48). O que vemos nesse
jogo são dois regimes que atuam em distintas temporalidades, disputando o sentido de um
acontecimento midiático. Nesse sentido, nossa visão é consonante com a teoria do
acontecimento de Ciro Marcondes Filho (2010) e Karenine Cunha (2014), o acontecimento se
dá no tempo de sua efetuação,7 ou seja, naquilo que acima referenciamos pelo conceito de
encontro de Spinoza (2014c):

A comunicabilidade está, portanto, na concepção grega de tempo como kairos, ou


seja, o momento exato, oportuno, o durante, o tempo vivido do Acontecimento, que
não pode ser repetido. Cronos seria a sucessão linear dos momentos, o tempo rotineiro
marcado no relógio, no calendário, enfático no processo quantitativo; e aion, a
eternidade imensurável, que envolve passado e futuro. Para a Teoria do
Acontecimento Comunicacional, em aion, tem-se a história, as prospecções para o
futuro da sociedade e dos meios, mas não a comunicação, ou seja, aion é a
temporalidade das reverberações do Acontecimento Comunicacional que se fez e
desfez no ato da sua realização fugaz, em kairos. O tempo da comunicação é fugidio,
incapturável. (CUNHA, 2014, p. 27).

Em Lógica do Sentido, Gilles Deleuze retoma os filósofos estoicos para tratar do


conceito de acontecimento. Para eles, a realidade é constituída por um campo puramente
corporal, inacessível pela linguagem em sua plenitude e totalidade, porém referenciável,
nominável. Nesse campo, as coisas estão se agenciando, tocando-se, desenvolvendo relações
de forças. Esses corpos não são perceptíveis ou codificáveis isoladamente uns dos outros por
meio de nossa percepção cognitiva, mas, ao se tocarem, produzem um invólucro, um
acontecimento, é com as relações que nos envolvemos. Aos estados desses corpos os estoicos
atribuíam o tempo presente. O acontecimento tende sempre ao passado, já que diz respeito a
um estado de corpos que já não é mais ou mesmo, dado o perpétuo movimento. Ao mesmo
tempo, a partir do momento em que entramos em contato com um acontecimento, ele também

7. Como é possível estabelecer uma crítica midiática se o acontecimento sobre o qual os enunciados midiáticos
são desenvolvidos são formulados em outra ordem temporal? No último capítulo, trabalharemos com a questão
da crítica imanente no “pensar-sentir” ou thinking-feeling (MANNING; MASSUMI, 2014), com a qual tentamos
estender uma rede conceitual que se expande para o conceito de KorperDenken de Dietmar Kamper.
30

passa a fazer parte de um futuro possível, já que assumimos que aquilo que aconteceu pelo
menos uma vez pode acontecer de novo. Não se trata mais de algo contingente, mas passível
de repetição, de hábitos.
É com o acontecimento que entramos em contato, ainda assim de maneira parcial. Não
é possível desenvolver teoremas e teorias que o abarquem completamente. Tentativas para que
isso seja feito não faltam, quando, por meio de enunciados e da linguagem, buscamos dar um
sentido ao acontecimento, exprimi-lo através de séries de enunciados linguísticos. É o ato de
nominação do evento, que se diferencia do verbo infinitivo dos acontecimentos: a faca corta,
a boca cospe, o pé chuta etc. O ato de nominação estabiliza, pelo menos na linguagem, o
movimento dos corpos, que estão envelopados em acontecimentos. Não se trata de buscar dar
sentido à “faca”, à “boca” e ao “pé”, mas o “cortar”, o “cuspir”, o “chutar”, esses atos que,
usualmente exigem a existência de outro elemento. São, portanto, relacionais e qualitativos. O
sentido é:

[...] exterior à linguagem e aos entes, [Deleuze] define o sentido como a condição de
realidade tanto para as relações estruturais quanto para a distinção entre significante
e significado, palavras e coisas. Não é, portanto, aquilo que a linguagem denota,
manifesta ou significa, mas o próprio evento estrutural da linguagem, como uma
perfuração, um corte que atravessa todo o corpo, cortando situações e revelando a
autonomia da superfície na qual ocorrem. (van TUINEN, 2016, p. 100-101; tradução
nossa).8

Entretanto, um encontro de corpos9 “se expressa nas almas, no sentido em que produz
uma mudança de sensibilidade (transformação incorporal) que cria uma nova avaliação: a
distribuição dos desejos mudou” (LAZZARATO, 2006, p. 22). Em outras palavras, tudo o que
nos toca nos produz um afeto, um signo, a ideia de um corpo sobre nós, segundo Spinoza
(2014c, p. 197, Ética III, Definição III). “Entendo por afecções aquelas do corpo pelas quais a
potência de agir desse corpo aumenta ou diminui, é favorecida ou coagida, e, ao mesmo tempo,
as ideias dessas afecções”. Em outras palavras, marcas dos encontros em nós e nos outros, que
alteram a potência dos corpos (o que eles são capazes) e, quando combinadas, levam-nos a
participar de novas ações, já que alteram a estrutura metaestável dos indivíduos. Os afetos se

8. “Exterior to language and beings, he defines sense as the condition of reality both for the structural relations
and for the distinction between signifier and signified, words and things. It is therefore not what language
denotates, manifests or signifies, but the structural event of language itself insofar as, like the wound cutting
through the body, it cuts through corporeal states of affairs and reveals the autonomy of the surface where it takes
place”. (van TUINEN, 2016, p. 100-101).
9. Antes de tudo, é prudente deixar claro que, para os estoicos, só há corpos no mundo, misturando-se em um
fluxo contínuo, sem a existência de espaços de vácuo. Nessa ontologia, inclusive, os significantes são entendidos
como corpos. Afirma Gourinat (2013, p. 47): “o significante é uma voz, um som vocal. É um corpo, porque o som
vocal é ‘ar golpeado, sensível ao ouvido’, que se propaga no ar sob a forma de uma onda esférica”.
31

dividem em ações, “se podemos ser a causa adequada de algumas dessas afecções”, (2014c, p.
197, Ética III, Definição III) e as demais são denominadas paixões.
Todo acontecimento, ao alterar a capacidade dos corpos dados os seus afetos e coloca-
los em um novo estado de coisas, gera um leque de novas possibilidades de rotas e caminhos,
e, no que diz respeito ao campo epistemológico comunicacional, “ao falar, ao comunicar,
conferimos certa realidade ao mundo possível. Mas, essa nova realidade precisa ainda ser
efetuada, atualizada, ao difundir e ao estruturar novos agenciamentos corporais na sociedade”
(LAZZARATO, 2006, p. 22).
Sendo assim, todo acontecimento não é estanque e, ao retornar simbolizado na
linguagem, pode e irá gerar novos agenciamentos (ou acontecimentos) corpóreos – os
enunciados são performativos. Pode-se dizer que a tarefa primeira das mídias e da
discursividade é dar sentidos e exprimir os acontecimentos e encontros na rede de causalidade
em que estão inseridos. Quanto à sua simbolização, descrições, teoremas matemáticos
(veremos observações a esse respeito no item 1.1.), construções enunciativas, tudo isso e a
própria estrutura linguística tentam infinitamente atribuir sentidos a um acontecimento, ainda
que ele seja irredutível e ocorra em seu próprio tempo. O objeto de desejo da mídia é o
acontecimento, ainda que, para isso, ela o desacontecimentalize, colocando-o na ordem do
tempo cronológico do jornalismo, dos testemunhos, relatos. Alguns, mais do que outros.
Com a multiplicação dos objetos midiáticos, que possibilitam o ato de transmitir de
alguma maneira os enunciados produzidos sobre um acontecimento, multiplicam-se as
tentativas de abarcá-lo por meio de enunciados linguísticos, imagéticos, midiáticos, e a
polifonia que circula é intensificada, ainda que ressoando muitas vezes o mesmo discurso.
Consequentemente, o número de encontros que nossa mente e nossas ideias fazem com esses
enunciados aumenta, e dada a limitação dela em compreender os múltiplos encontros aos quais
estamos sujeitos, a partir deles, criamos cada vez mais ideias inadequadas.
Quando nos referirmos a ideias adequadas ou inadequadas, não falamos no sentido
coloquial, mas de acordo com a filosofia spinozista. A partir do livro II da Ética, um de seus
principais tratados, pode-se concluir que uma “ideia inadequada é como uma consequência sem
as suas premissas [...] ela não se explica pela nossa potência de compreender, não exprime
materialmente sua própria causa, e atém-se a uma ordem de encontros fortuitos em vez de
alcançar a concatenação das ideias” (DELEUZE, 2002, p. 84). Uma ideia inadequada “consiste
em identificar um objeto externo como a causa linear de uma dor, aflição ou erro. Esses afetos
‘tristes’ são em gênese sempre relacionais, emergem dos encontros, que por sua vez são sempre
complexos afetivos” (MASSUMI, 2016, p. 37-38; grifo nosso; tradução adaptada). As ideias
32

adequadas “são representativas, não mais de estados de coisas e do que nos acontece, mas
daquilo que somos e aquilo que as coisas são” (DELEUZE, 2002, p. 85). Como, para Spinoza,
as essências dos entes dependem de suas relações e estão em constante movimento, só
conhecemos as essências se conhecemos a totalidade da rede na qual esses elementos se
encontram. Nas ideias inadequadas, essencializamos corpos e pessoas como causas daquilo que
são consequência, para que possam ser julgadas.
Ter ideias inadequadas, para Spinoza, não é um problema10. A maior parte de nossas
vidas é regida, felizmente, pelos afetos passionais, que têm um sistema complexo de
funcionamento (não é à toa que o filósofo dedicou mais da metade de sua Ética para tentar
sistematizá-los). Buscamos, nos últimos capítulos, formas de subverter as sociedades de
controle pela via do sensível. O que deve ser criticada é a tomada do efeito de um
acontecimento como a causa na lógica da sociedade midiática, o senso comum é tomar um
registro de acontecimento como a sua representação.
Trata-se de uma situação ambivalente, já que, ao mesmo tempo em que os aparatos
midiáticos ubíquos possibilitam essa polifonia, não raramente cristalizam discursos
reacionários ou culpabilizadores, sobrecarregando de investimentos o campo dos desejos
produzidos. Sendo assim, com essa pluralidade de máquinas comunicacionais que se
encontram conosco, nada mais urgente do que estabelecer que o fenômeno comunicacional é e
emerge do próprio encontro ou agenciamento, e uma ética ou crítica midiática só pode surgir
in-the-middle.
Vale lembrar que os acontecimentos são quase-causas entre si, são parte de uma rede,
só existem como dependentes uns dos outros como incorporais, ou seja, dependem dos corpos
materiais para sua manifestação. Não há vácuo entre os corpos, como nos explica a
pesquisadora Valéria Loturco:

[...] os Estoicos inovam porque desmembram esta relação, fazendo uma unidade de
cada lado: a da relação das causas entre si (dos corpos) e a da relação dos efeitos
incorporais entre si (dos acontecimentos). Em outras palavras, entre os corpos,
elementos de mesma natureza, não há relação de causa e efeito e sim relação das
causas entre si, sendo o Destino considerado sua unidade, na extensão do presente
cósmico. Entre os efeitos, elementos de mesma natureza, há uma quase-causalidade:
uns são quase-causas em relação aos outros e em relação a um ponto aleatório de
superfície, como veremos mais adiante. Então, esse vínculo dobrado não ocorre da
mesma maneira, pois os efeitos incorporais não são jamais causas uns dos outros

10. “Há, contudo, algo de positivo na ideia inadequada: quando vejo o sol a duzentos pés, essa percepção, essa
afecção representa de fato o efeito do sol sobre mim, embora esteja separada das causas que a explicam (II, 35;
IV, 1). O que há de positivo na ideia adequada deve se definir da maneira seguinte: é que ela envolve o mais baixo
grau da nossa potência de compreender sem se explicar por ela, e indica a sua própria causa sem a exprimir (II,
17, esc.)”. (DELEUZE, 2002, p. 84-85).
33

(como entre os corpos), mas somente “quase-causas”, segundo leis que exprimem a
mistura corporal, que é sua causa real. (LOTURCO, 2006, p. 17)

Esse movimento, o de pensar os acontecimentos, ou o envelopar dos corpos em relação,


leva à discussão a respeito de uma dimensão da realidade apreendida pelo pensamento e pela
percepção, mas que não é física e palpável, pensamento em movimento e em relação. Como
consequência da impossibilidade da representação dessa rede infinita de quase-causas, uma
rede discursiva e polifônica só tende a aumentar conforme as tentativas de dar sentido ao não
capturável: vão passando de acontecimento a acontecimento, de trazê-lo para a
referencialidade. Para nós, a nocividade não está de alguma maneira nas ideias inadequadas,
mas em tentar vetorizá-las no sentido das verdades absolutas, em detrimento à fabulação e ao
sensível. Trata-se de tentativas de controle do sentido do acontecimento, em que os próprios
incorporais, ou seja, a linguagem e seus investimentos e agenciamentos dos desejos produzem
outros acontecimentos, mesmo que não os atingindo diretamente.
Os signos linguísticos e vocábulos não têm por referente direto um objeto físico externo
à linguagem, mas produzem semiose ao se referirem a outros signos, ideias de nossas ideias,
que podem ser adequadas, quando adquirimos pela razão uma noção da rede de acontecimentos
e encontros que provocou um fato capturado pela linguagem, ou inadequadas, ligadas à
percepção, quando, em uma ilusão de finalidade, tomamos os efeitos pelas causas. Spinoza nos
explica que ideias inadequadas geram novas ideias inadequadas por meio de um processo de
encadeamento delas que é paralelo àquilo que acontece com nossos corpos. Sabemos que se
trata de conceitos diferentes, mas podemos perceber um fundo de similaridade que é caro à
abordagem de nosso objeto epistemológico. Para Spinoza, as afecções do corpo ou da mente
sempre nos produzem ideias inadequadas, mas que nos geram, às vezes, um sentimento de
certeza sobre aquilo que aconteceu com nossos corpos ou em nossas relações. Na proposição
XXV do segundo livro de sua Ética, afirma:

A ideia de uma afecção qualquer do corpo humano não envolve o conhecimento


adequado do campo externo. [...] a ideia de uma afecção do corpo humano envolve a
natureza do corpo externo, na medida em que o corpo externo determina o próprio
corpo humano de certo modo. Mas, na medida em que o corpo externo é um indivíduo
que não se relaciona com o corpo humano, a ideia e o conhecimento dele estão em
Deus [...], na medida em que considera Deus como afetado pela ideia de outra coisa,
que é anterior por natureza ao corpo externo ele próprio. Razão pela qual o
conhecimento adequado do corpo externo não está em Deus, na medida em que ele
tem a ideia da afecção do corpo humano, ou seja, a ideia do corpo humano não
envolve o conhecimento adequado do corpo externo. (SPINOZA, 2014c, p. 164).

Assim como ao falar do encontro com um corpo externo falamos mais sobre nosso
próprio corpo e do encontro com outro corpo do que da própria coisa que nos afetou em sua
34

essência, a linguagem também fala do acontecimento e não das coisas em si, e nela ele se torna
sentido, ao expressá-lo. Nada tem sentido em si mesmo, mas como referência a algo. Se há
pelo menos duas coisas em um acontecimento, um único sentido para a coisa é impossível; do
acontecimento que se destaca como incorporal das relações entre coisas (maquínicas), só temos
a linguagem. A expressão como ato de fala incorporal toma corpo no conteúdo e nele pode
intervir (DELEUZE; GUATTARI, 1976; BRYANT, 2014). A um mesmo acontecimento podem
ser dados vários sentidos por meio da expressão da linguagem, infinitas palavras tantas quantas
forem as combinações de signos linguísticos podem apontar para um único evento. Quando
isso acontece, essas palavras são chamadas de unívocas. Ao mesmo tempo, uma palavra pode
apontar para infinitos acontecimentos, na medida em que o universo de relações é infinito. Já
dissemos que um agenciamento de enunciação, ou seja, uma proposição da linguagem, não fala
das coisas em si, da própria essência delas. Isso não significa que o ato de enunciação esteja
isolado da realidade e vivamos em uma espécie de idealismo completo. O falar, apesar de não
representar, intervém nas coisas, há uma capacidade performativa11 nele por meio do dizível
(lekton), que se torna um fazer (como o verbo jurar). O dizível ou enunciável não é

[...] meramente linguístico ou algo simplesmente factual: de acordo com fontes


antigas, é um meio entre o pensamento e a coisa, entre a palavra e o mundo, não é a
coisa separada da palavra, mas a coisa enquanto é dita e nomeada, não a palavra como
signo autônomo, mas a palavra no ato em que denomina e manifesta a coisa. Ou,
como poderia ser dito, a coisa em sua pura dizibilidade, em seu acontecer na
linguagem. (AGAMBEN, 2015, p. 58).12

Na trajetória filosófica de Gilles Deleuze, há dois tipos de agenciamento que podem ou


surgir de um acontecimento, já que este é o próprio encontro entre duas ou mais coisas, ou dar
origem a um. Não são isolados, nem devem ser entendidos como uma versão do binômio corpo
e mente. São eles o agenciamento de expressão, “(o preceito dos signos) [que] não é redutível
nem ao sujeito, nem às suas formas de expressão, nem às palavras, nem aos significantes, mas
ao conjunto de enunciados, aos diferentes regimes de signos [...] uma máquina de expressão

11. Prado (2015a, p. 113) disserta a respeito da performatividade da linguagem, trabalhada pela Teoria dos Atos
de Fala: “O interesse da ideia de performativo, introduzida por Austin e amparada na teoria habermasiana, está na
ampliação da ação de linguagem, antes limitada a um constatar dos estados de coisas do mundo, a uma semântica
que diz se a coisa está adequada a seu nome. Eu digo que o guarda matou o ativista e tenho de provar isso no
tribunal para obter a condenação: a verdade como correspondência e constatação é o centro da atividade da
linguagem nesse modelo. Com Austin (1962), a linguagem passa a assumir outra atividade, a de fazer coisas no
mundo: ao prometer algo, eu enuncio uma frase que, após dita, já é a promessa feita. Falar é fazer”.
12. “Il dicibile non è né qualcosa di soltanto linguistico né qualcosa di semplicemente fattuale: secondo una fonte
antica, esso è un medio tra il pensiero e la cosa, fra la parola e il mondo. Non la cosa separata dalla parola, ma la
cosa in quanto è detta e nominata; non la parola come segno autonomo, ma la parola nell’atto in cui nomina e
manifesta la cosa. Ovvero, come si potrebbe anche dire, la cosa nella sua pura dicibilità, nel suo accadere nel
linguaggio”. (AGAMBEN, 2015, p. 58).
35

que vai além do sujeito e da linguagem” (LAZZARATO, 2006, p. 24); e o agenciamento


maquínico, que remete “a um estado específico de mistura de corpos em uma dada sociedade,
que inclui todas as ações e repulsões, as simpatias e antipatias, alterações e alianças,
penetrações e expansões que afetam os corpos de todas as espécies” (Ibid., p. 24). Há um certo
paralelismo entre esses dois planos, assim como na filosofia spinozista há um paralelismo entre
o corpo e a mente. Vale lembrar que os agenciamentos corporais não se referem apenas a
interações antropológicas ou antropoformizadas, como as codificamos, entre humanos, mas
entre quaisquer corpos que se misturam e atuam em redes de causalidades tão infinitas quanto
a própria única substância.
No que diz respeito à urgência de pensar a comunicação como o próprio agenciamento
e encontro, a ubiquidade dos dispositivos de mídia nos apresenta esta dupla característica: a
multiplicação de aparatos, aparelhos miniaturizados, telefones, smartphones, smartwatches,
telas negras dos mais distintos tipos e tamanhos etc., todos fazem parte dos agenciamentos
corporais, maquínicos, do campo da extensão, são materialidades que entram em contato
fisicamente com nosso corpo, passando a fazer parte dele, e, ao mesmo tempo, atuam como
máquinas de expressão através das quais são produzidos novos enunciados, através dos quais
buscamos exprimir as coisas, sejam eles textuais ou imagéticos, que serão inseridos novamente
na cadeia de causalidades de novos acontecimentos.13 Essa produção incessante de enunciados
e de novos produtos é característica quase geral das bases do capitalismo mundial integrado,
que, por meio desses dispositivos de mídia, infiltra-se em todas as esferas da vida humana,
tomando-lhe quase todo o tempo e grande parte da energia vital e desejante, criando zonas de
estímulos durante todo o tempo.
A apropriação do acontecimento primeiro-ministro-porco-chantagem pela sociedade
midiática se dá com uma série de tentativas de produzir retcons por meio da enunciação de
protoacontecimentos, mas que acabam desacontecimentalizando, na maioria das vezes, um
ocorrido. Retcon é um termo utilizado por grupos de fãs, inicialmente de sagas de ficção
científica, para designar a inserção de um elemento na trama que faz com que boa parte da
lógica da narrativa – ações e traços subjetivos de personagens ou grupos deles – tenha de ser

13. Um bom exemplo desse tipo de pensamento e da relação entre agenciamentos corporais e de enunciação é
desenvolvido por Maurizio Lazzarato, ao comentar os estudos de Michel Foucault sobre os dispositivos e práticas
prisionais: “a prisão é um espaço de visibilidade que faz ver, que faz emergir uma mistura de corpos, um
agenciamento corporal (os detentos). O direito penal, como máquina de expressão, define um campo de
enunciação (discursos sobre a delinquência) que produz transformações incorporais sobre os corpos. Assim, os
veredictos da Suprema Corte transformam instantaneamente os detidos em condenados. Agenciamento maquínico
ou corporal, em sua forma (a prisão) e substância (os prisioneiros)”. (LAZZARATO, 2006, p. 68).
36

repensada de maneira totalmente distinta e, muitas vezes, contraditória àquela até então
vigente. Em outras palavras, altera sua “essência” inicial ou seu status de verdade.
O primeiro registro de uso do termo data de quando a empresa norte-americana de
quadrinhos DC chancelou que as histórias publicadas do grupo de super-heróis All-Star
Squadron se passavam no que ficou chamado como “Terra-2” (CLOVER, 2014, p. 13), um
universo paralelo que não coincidia com a “Terra-1”, habitada por outros grupos de super-
heróis mais conhecidos da empresa. Isso porque ela atingiu o status de uma das duas maiores
produtoras de histórias em quadrinhos, juntamente com a Marvel, e o número de personagens
e heróis distribuídos em revistas diferentes já era muito grande. Nesse momento, os fãs
começaram a observar e a relatar falhas lógicas, por exemplo, a coexistência entre uma revista
que mostrava que o Superman começou a atuar como herói quando adulto, e outra, Superboy,
que o retratava descobrindo seus poderes ainda criança. O mesmo personagem possui várias
versões, que estão em universos distintos dificilmente acessíveis uns aos outros, ainda que em
um mesmo multiverso (conjunto de universos que inclui até mesmo o nosso, em que ambas
realidades poderiam coexistir). Posteriormente, a DC Comics destituiu esse conceito, gerando
novas reviravoltas que alteraram todas as bases ontológicas e lógicas desses mundos ficcionais,
a posteriori.
Outro exemplo, agora nos livros de história, é o “acontecimento Cristo”. O filósofo
Slavoj Žižek, ainda que esteja mais próximo no espectro filósofico de uma visão do
acontecimento como a de Alain Badiou, desenvolvida pelo francês em sua trilogia-tratado: O
Ser e o Evento, Lógica dos Mundos e o último livro ainda não concluído, afirma que “[...] um
acontecimento portanto é um efeito que parece exceder suas causas” (ŽIŽEK, 2014, kindle loc.
67). Žižek aponta para o modo como esses acontecimentos se apresentam de maneira
retroativa, alterando o conjunto de enunciados históricos sobre um passado distante ou não.
“Eu não posso dizer que eu acredito em Cristo porque eu estou convencido pelas razões da
crença. É somente quando eu acredito que eu posso entender a razão pela qual eu acredito”.
Para o autor, a mesma relação circular se aplica para o amor: “eu não me apaixono por razões
precisas (seus lábios, seu sorriso etc...) É porque eu já a amo que seus lábios e sorriso me
atraem” (Ibid., kindle loc. 67). Esses acontecimentos, como as novas regras para o multiverso
da DC Comics, muitas vezes são repentinos e partem de estruturas hierarquizadas (da empresa
de quadrinhos impactando os fãs, ainda que eles não aceitem a nova canonicidade instaurada):

A mudança que constitui uma retcon às vezes ocorre por decreto – um acontecimento
é adicionado ou subtraído à força, de maneira mais ou menos óbvia. O mais famoso
deles é o de trazer os mortos de volta à vida, como o professor Moriarty, de Conan
37

Doyle. As formas mais sofisticadas e mais comuns de retcon da era moderna tardia
envolvem um tipo de rearranjo dos fatos já dados em uma nova constelação
logicamente consistente que pode explicar mais tarde desenvolvimentos inicialmente
inconsistentes. É, portanto, uma atividade hermenêutica, uma espécie de desafio
processual de reinterpretação. [...] O fato de a ficção científica andar muitas vezes de
mãos dadas com retcons é dificilmente contingente: é, afinal de contas, um tipo de
viagem no tempo, uma retrojeção para um momento anterior que gera consequências
no presente. É um tipo de argumento de destino: um pressentimento épico de
reificação. Sua fantasia de que o destino possa ser desreificado no seu ponto de
origem pode substituir o entendimento não fantástico do destino político, tanto como
constrangido quanto mutável: a oposição marxiana entre “as circunstâncias
preexistentes, dadas e transmitidas do passado” e “homens podem construir sua
própria história”. (CLOVER, 2014, p. 15; tradução nossa adaptada).14

Entretanto, os enunciados compartilhados nas redes sociais depois de um


acontecimento que até então parecia impossível buscam atingir um efeito de realidade e certeza
motivados por uma obsessão pelo real e pela produção de novos acontecimentos contingentes
onde não há nenhum. A tentativa de produzir o acaso faz com que ele deixe de ser, obviamente,
acaso. Cada nova imagem registrada pelos inúmeros dispositivos, como o flagra de um ator
pornô entrando no estúdio para se passar por primeiro-ministro e terminar o seu árduo serviço
em vista da liberação da princesa, é usada por seus autores para se tornar a nova verdade
estabelecida, ainda que, já tenhamos visto, não haja controle absoluto, e tal efeito de realidade
não tem referencialidade, já que a rede infinita de causalidades à qual Spinoza se refere sempre
será maior do que a parcialidade do evento capturado. “A superabundância de imagens no
mundo virtual, mais do que ter um ter um efeito de realidade, detém a realidade. Reestrutura o
mundo físico e tem efeitos concretos sobre as pessoas” (LÓPEZ GABRIELIDIS, 2015, p. 491).
Essa citação não é uma condenação à imagem, seja ela pictórica ou a partir de textos
pretensamente hiperdescritivos. Várias práticas artísticas se beneficiam dessa abundância,
como o filme de Harun Farocki, Gefängnisbilder (Imagens da Prisão, 2001), inúmeras
instalações ou performances. O que preocupa é um aumento da velocidade com a qual os
indivíduos da sociedade midiática buscam estabelecer retcons dos acontecimentos midiáticos
a todo momento, instaurando novas verdades e legislando ao estabelecer novos culpados para
cada crime que acontece e tem certo apelo midiático. Uma crítica a essa mudança de

14. “The change that constitutes retcon is sometimes by fiat – an event is added or subtracted by main force, more
or less obviously. Most famously, the dead are brought back to life, as in Conan Doyle’s Moriarty. The more
sophisticated and in the late modern era far more common form of retcon involves a kind of rearrangement of the
already given facts into a new, logically consistent constellation that can account for later, initially inconsistent
developments. It is, therefore, a hermeneutic activity, a sort of processual challenge of reinterpretation. [...]
Retcon’s close company with science fiction is scarcely contingent: it is, after all, a kind of time travel, a
retrojection into a previous moment with consequences in the present. It is a kind of argument with destiny, that
epic presentiment of reification. Its fantasy that destiny can be dereified at its source might stand in for the entirely
nonfantastical understanding of political destiny as both constrained and mutable: the Marxian opposition between
‘circumstances existing already, given and transmitted from the past’ and “men make their own history”.
(CLOVER, 2014, p. 15).
38

comportamento não pode ser ludita ou essencialista, ou mesmo antitecnicista, mas uma crítica
em ato, sobre o que dissertaremos no terceiro capítulo. Mas trata-se de dois regimes de
velocidade caminhando juntos e se autointerferindo.
Várias cenas alternantes mostram a reação das pessoas ao ver a emissora de televisão
UKN confirmar a notícia, primeiramente sem a exibição do vídeo da refém e depois mostrando-
o em sua totalidade. Essa exibição acompanhada por distintos grupos de pessoas reunidos em
torno dos aparelhos de TV é um dos poucos momentos em que os personagens não são
mostrados se comunicando por múltiplos dispositivos midiáticos ao mesmo tempo, em especial
smartphones e tablets. As cenas passam a impressão de que as pessoas ainda precisam olhar e
ter uma chancela das emissoras de televisão para ter um nível a mais de confiança em respeito
ao que até então era um boato quase confirmado difundido pelas redes sociais.
Vale lembrar que todo o episódio é transpassado por inúmeras imagens da rede de
televisão fictícia UKN reproduzindo tweets ou entrevistas em vídeo com transeuntes sobre o
vídeo do sequestro. A improbabilidade de algo como isso ocorrer causa estranhamento, tanto
nos espectadores, quanto naqueles que trabalham na televisão. Um comentarista acaba usando
a expressão “fazer amor com um porco” ao tratar das exigências do sequestrador e é
repreendido pelos editores do programa, afinal, o que é “fazer amor com um corpo”? Trata-se
de uma composição válida e ética?
A impossível porém incessante captura desse acontecimento é mostrada pelas milhares
de tentativas daqueles que utilizam as mídias para dar sentido a ele. É também por meio da
expressão enunciativa e de outras mensagens divulgadas nas redes sociais que vemos ser
apresentada uma ideia da possibilidade de um controle da situação, do próprio acontecimento.
Esse fato coloca o primeiro-ministro, os assessores e a família real em outro agenciamento,
outros agenciamentos midiáticos, quando ele terminará por fornicar com a porca devido aos
resultados das pesquisas feitas com a população a partir do uso das mídias sociais.
Em relação ao controle, a população tem seu desejo modulado por imagens,
infográficos, mesas-redondas, tweets etc. e tem a impressão de ter o controle sobre o desfecho
da trama, assim como acontece nos reality shows do tipo Big Brother, quando, no momento da
votação que leva à eliminação dos participantes que sairão de uma casa, há a impressão de
controle dos espectadores sobre o jogo, sem que as pessoas consigam, na maioria das vezes,
refletir que tal desejo foi construído não somente pela própria situação, como por todo um
imaginário. Entretanto, esse jogo de agência não é tão simples e, como vimos, é mútuo: os
acontecimentos sempre estão se relacionando com outros acontecimentos, de modo que, por
um outro prisma, poderíamos tentar aceitar a ideia de que tudo isso foi desencadeado pelo
39

performer que, ao final da trama, consegue que seja realizado o espetáculo que idealizou.
Tratar-se-ia de outra visão simplista que não leva em consideração que o próprio artista está
agenciado por um conjunto de redes midiáticas que estabelecem regimes de visibilidade
marcados por uma produção incessante de imagens e registros sobre os indivíduos. É
importante e essencial que ele, ou melhor, que sua obra fosse vista ou assistida de alguma
maneira para que seu plano funcionasse. Uma sociedade de controle na qual ele próprio está
inserido, e é nesse momento histórico que todos esses acontecimentos se desenrolam, e que se
refletem no próprio modo de construção das imagens do espetáculo sexual primeiro-ministro-
porca, “cruas” como as feitas pelas câmeras de segurança que vigiam o inconsciente e imputam
nele uma culpabilidade pelo que pode ser feito e capturado, tentando prendê-lo em um conjunto
de ações que podem ser feitas sem que se seja condenado ou que sequer passe pelo vexame de
um julgamento.
Tais dimensões estéticas são vistas quando um enfermeiro que assistia à cena com os
colegas em um pequeno aparelho de televisão no trabalho discute as normas técnicas exigidas
na filmagem do coito do primeiro-ministro com a porca. “Uma única câmera em constante
movimento, em um estilo gonzo”, diz o enfermeiro ao comparar essas especificações com os
filmes oriundos do manifesto Dogma 95, uma série de normas criadas pelos diretores de cinema
dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vinterberg. Um “Voto de Castidade” a ser seguido por
aqueles que quisessem que seus filmes fizessem parte do movimento. Os cineastas deveriam
jurar que “seguiriam o conjunto de regras desenvolvidas e confirmadas pelo Dogma 95” (von
TRIER; VINTERBERG, 2002; tradução modificada). Dentre as exigências estéticas e
tecnológicas, “a filmagem deveria ocorrer toda em locações, sem sets e adereços; o som nunca
poderia ser produzido de qualquer maneira a não ser conjuntamente com a imagem” (Ibid.), de
modo a criar um efeito de verdade nos espectadores. “A câmera deve ser portátil, e qualquer
movimento ou mobilidade atingível pelas mãos é permitido; o filme deve ser colorido, sem o
uso de qualquer iluminação especial, trabalho óptico e filtros” (Ibid.). Além dessas exigências
estéticas e tecnológicas, um filme que pretenda seguir o Dogma 95 “não pode conter ação
superficial e era proibido de conter alienação temporal [histórica] e geográfica, e filmes de
gênero não são permitidos” (Ibid.). “O diretor não poderia ser creditado, e a gravação material
da filmagem deve ser feita em película 35 mm” (Ibid.). Aqui não estamos relacionando
diretamente a estética de Lars von Trier a uma estética do controle, sabe-se que o que o diretor
queria ou o que ele manifestou a respeito era a possibilidade de mais uma “crueza” nos filmes
do Dogma 95 do que uma semelhança com as imagens de controle, porém não podemos deixar
de estabelecer essa relação aparente que parece emergir no caso do primeiro-ministro.
40

Apesar das rígidas especificações feitas pelo homem que sequestrou a princesa
Susannah, uma encenação foi preparada. As tentativas de burlar o ato falham quando o governo
contrata um ator pornô para praticar o ato sexual no lugar do primeiro-ministro, com a
pretensão de “simular” o espetáculo com técnicas de chroma key. Isso porque um anônimo, em
frente à emissora estatal, fotografa a estrela dos filmes eróticos entrando na sede do canal. A
imagem vai para a internet e chega ao chantagista, ato que representa um regime sinóptico –
todos se vigiam, sem que haja mais a necessidade expressa de uma instituição transcendente
que determine essa conduta, o que não significa que essas instituições deixaram de existir. As
possibilidades de escapar das determinações provocadas por essa rede sinóptica parecem ser
quase nulas quando há todo um aparato conjunto de dispositivos de controle e vigilância que
buscam vigiar e garantir que as condutas sejam tomadas de acordo com aquilo que foi imposto.
A vigilância nada mais é do que a busca pelo controle dos efeitos dos acontecimentos passados
(retcon ou retrojeção) em relação aos futuros e das condutas presentes que os geram. No
entanto, há sempre um fora, mesmo que invaginado a partir de dentro da teia de controle, já
que o tempo do próprio acontecimento não é capturável e depende da compreensão de uma
rede causal infinita.

Figura 2: flagra do ator pornô entrando no estúdio.


Figura 3: a resposta do artista.
O fluxo narrativo do episódio é balizado por um grande número de objetos midiáticos
mediadores desse acontecimento: smartphones e tablets da população e dos jornalistas, por
meio dos quais são divulgados informações, imagens e enunciados que exprimiam a
expectativa do povo sobre a performance do ato sexual. Em contrapartida, as emissoras estatais
de televisão, no início da trama, censuraram as notícias do sequestro. A censura teve de ser
quebrada, dada a disseminação do vídeo e do fato via Youtube nas telas da população britânica.
Paralelamente a isso, um jogo de sedução ocorre quando uma jornalista e um alto
funcionário do governo fazem um escambo entre, respectivamente, suas fotografias nuas e
informações sobre o suposto paradeiro da sequestrada. Um rastreio feito pelo tipo de codec, ou
seja, o software de compressão utilizado para codificar o vídeo carregado no Youtube e dados
41

de geolocalização levaram o serviço de espionagem do governo britânico a suspeitar de que a


princesa estivesse sendo mantida em cativeiro em uma universidade abandonada. Assim como
a transmissão das notícias e do vídeo na televisão reuniu várias plateias em torno do televisor,
o mesmo aconteceu por conta de uma exigência feita ao grupo de militares que faria a busca
no local: o uso câmeras no capacete para que fosse possível que as autoridades pudessem
assistir à operação direto da sede do governo. Enquanto isso, a jornalista, após ter descoberto
o mesmo endereço que o funcionário que a chantageou, também começou a transmitir as
imagens de seu iPhone diretamente à redação. Com dois propósitos diferentes, mas com
intenções de capturar imagens de alto apelo afetivo-midiático, as duas pequenas plateias
passaram, no momento, a ter a ideia de um controle a distância da situação das invasões.
Também ambas as audiências foram remotamente frustradas quando descobriram que o
suposto local de cativeiro mantinha apenas um boneco amarrado a uma cadeira. Os militares
acertam a perna de Malaika, a jornalista, suspeitando que ela fosse a performer do ato, mas, ao
perceberem que se tratava de uma repórter transmitindo a missão falha, tentaram controlar
inevitavelmente a reprodução das imagens já transmitidas por streaming metralhando o seu
iPhone, visto que já haviam sido vazadas.

Figura 4: selfie no banheiro do complexo jornalístico.

As emissoras de televisão transmitem a informação de que havia acontecido uma


mudança de opinião da população britânica: os 28% iniciais das pessoas que queriam que o
42

primeiro-ministro praticasse o ato sexual com a porca passaram a 86%. Mais uma vez, o
público se reuniu em torno dos aparelhos de televisão para comentar sobre a transmissão feita
por um helicóptero do comboio do primeiro-ministro se dirigindo ao ato em que ele cumpriria
o prometido. Dentro do carro, ele recebe ligações de sua esposa, mas não as atende.
Um aviso na transmissão afirma que “após a meia-noite daquele dia, será proibido
gravar, possuir ou compartilhar o vídeo”, mas é uma proibição falha, mostrada por uma cena
em que, com deboche, um telespectador aciona seu TiVo para poder assistir, quantas vezes
quiser, à performance erótica. Vários planos mostram a cidade de Londres completamente
vazia, os bares e pubs lotados em torno da televisão. Novamente, um evento como esse é o que
consegue unir a população em torno de uma mídia “antiga”. O primeiro-ministro toma um
estimulante sexual Viagra e seu entorno é povoado por centenas de imagens de sexo explícito,
para mantê-lo excitado. Um psicólogo recomenda que ele “tome o tempo necessário”, porque,
se ele “for rápido demais, as pessoas perceberão ansiedade ou um gozo”. O ato dura mais de
uma hora, até o momento em que o primeiro-ministro ejacula ao vivo. É possível especular que
seja um dos poucos momentos em que uma população multiplamente agenciada a todo instante
por estímulos midiáticos tenha permanecido em atenção constante, com olhares fixos em uma
cena, por tanto tempo.

Figura 5: preparação para o ato sexual.


Figura 6: transmissão focando nas expressões de gozo do primeiro-ministro, que lembram o filme Blowjob, de Andy Warhol.

O performer se enforca assistindo à realização de sua obra de arte.15 A morte, na


narrativa, é a única linha de fuga à onipresença da mídia e à reprodução semiótica (seja

15. Alexi Kukuljevic (in MASCIANDARO; THACKER, 2014, p. 33) cita, em uma nota de rodapé, um texto de
Maurice Blanchot a respeito da relação entre as figuras do artista e do suicida. Aqui usamos a versão traduzida de
L’Espace Litteraire para o espanhol (BLANCHOT, 2002, p. 93): “Ambos proyectan lo que se sustrae a todo
proyecto, y si tienen un camino, no tienen un fin, no saben lo que hacen. Lo dos quieren firmemente, pero están
unidos a lo que quieren por una exigencia que ignora su voluntad. Los dos tienden hacia un punto al que deben
aproximarse con habilidad, savoir-faire; trabajo, con las certezas del mundo, y sin embargo ese punto no tiene
nada que ver con semejantes medios, no conoce el mundo, permanece extraño a toda realización, arruina
constantemente toda acción deliberada. ¿Cómo ir decididamente hacia lo que no se deja asignar dirección? Parece
que si los dos logran hacer algo, es sólo ganándose sobre lo que hacen: uno toma una muerte por otra, el otro
43

imagética ou discursiva) monotemática, possibilidade de escapar para um fora além dos


agenciamentos midiáticos ubíquos que tentam, de todas as maneiras, apropriar-se dos
acontecimentos que seguem a narrativa do primeiro-ministro e controlá-los. Ainda a respeito
do suicídio,16 como afirma Badiou seguindo a psicanálise lacaniana, a morte possibilita o único
contato com o Real antes que ele seja simbolizado pela linguagem. O grande fora. Um crítico
de arte dá uma declaração sintomática após o suicídio do sequestrador, Carlton Bloom. Ele
havia vencido o prêmio Peter Turner da arte: “esta é a primeira obra de arte do século XXI”.
Esse enunciado condiz com a proposição segundo a qual, após o 11 de setembro,
“acontecimentos políticos, cerimônias oficiais e até mesmo atentados terroristas são
concebidos, antes de tudo, como encenações para a televisão. [...] Os próprios acontecimentos
são hoje encenados como espetáculos para a televisão” (MACHADO; VELEZ, 2007, p. 08) e
para outras mídias, para serem replicados, remixados e distribuídos nas redes digitais, ou seja,
a existência humana é transpassada por um alto teor de comportamentos performativos que a
agenciam.
As imagens da população britânica reunida ansiosamente nos pubs ingleses para assistir
à performance na televisão mostram, paradoxalmente, um cenário que coloca em xeque o
próprio modelo das chamadas mídias massivas tradicionais, ainda que tal conceito seja
discutível: “o artista, ao planejar seu contra-espetáculo, busca o que é dito pelas palavras do
primeiro-ministro ao dar uma declaração: o ato tem o papel simbólico de um protesto moral,
mostrar a degradação do poder da política e das mídias de massa” (UNGUREANU, 2015, p.
27). Ato que, ainda que com objetivos e posicionamento político em lados opostos do espectro
ideológico, corroboram com a atual descrença na política institucional e de suas tradicionais
figuras, em favor de personalidades que buscam combater a degradação moral da estrutura de
organização representativa, posicionando-se como empresários, gestores, CEOs oriundos do
empreendedorismo.

confunde el libro con la obra, mala interpretación a la que se confían ciegamente, pero cuya sorda conciencia
convierte su tarea en una apuesta orgullosa, como si esbozaran una especie de acción que sólo podría encontrar
término en el infinito”.
16. Spinoza condena o suicídio, afirmando tratar-se de algo que contraria o princípio de que os corpos perseveram
para permanecer na existência. Entretanto, não se trata de um julgamento moral feito pelo filósofo. Para Spinoza,
o suicídio, de fato, acontece devido a maus encontros, fatores externos ao corpo que buscam decompô-lo ou partes
menores do mesmo que levam à sua decomposição. Spinoza ainda dá margem a algumas interpretações a respeito
de distintos tipos de suicídio. O primeiro, que seria condenado por Spinoza, acontece quando “um indivíduo é
dominado por paixões tristes enquanto vive na ilusão de uma incapacidade de continuar a viver bem, e é tomado
por um ‘instinto de morte’” (BEAULIEU; ORD, 2017, p. 123). Outra situação, seguem os autores acima, acontece
quando “causas externas levam ao indivíduo à real impossibilidade de continuar criando composições”. Para uma
análise do suicídio de Gilles Deleuze como criação de conceitos e reafirmação da vida ética spinozana, ver artigo
acima citado.
44

Um ano após o ocorrido, o primeiro-ministro ainda é escravo de sua imagem midiática,


embora ela tenha sido reconfigurada a partir do acontecimento midiático transmitido na TV.
Visto como um herói nacional e com recorde de aprovação de seu governo, ele é filmado
jogando futebol com crianças. A gravidez da princesa Susannah se torna o novo acontecimento
para a mídia, de acordo com as imagens transmitidas pela emissora ficcional oficial UKN. As
semelhanças com o “bebê real” de Kate Middleton, duquesa de Cambridge, que nasceria anos
depois, não são coincidências nem tampouco confirmações de um exercício de futurologia feito
pelo criador do seriado, apenas uma reificação da contingência do modo de existência
predominantemente midiático que presume essas visibilidades. A primeira-dama continua
casada com Michael Callow para manter as aparências perante a mídia, mas, dentro de casa,
não quer mais transar com ele.
De fato, a rede de dispositivos móveis e humanos, através dos enunciados da população
conectada, atuou como agente de disseminação de discursos que geraram consequências não
discursivas e políticas, como a realização do ato sexual. Em outras palavras, os campos dos
enunciados e das visibilidades levaram a modificações no campo das relações entre corpos
(performatividade). Provocaram mudanças na imagem simbólica do primeiro-ministro e do
partido conservador. Nesse caso, a espalhabilidade das imagens da princesa em cativeiro, bem
como as do próprio ato sexual do primeiro-ministro com a porca, ocorreu por meio dos mais
distintos dispositivos midiáticos. É preciso discutir, entretanto, como essa espalhabilidade pode
ser cooptada para agenciar um conjunto de ideias inadequadas, uma ilusão de controle,
enquanto não percebida ela mesma como um elemento produtor de condutas, visibilidades e
modos de existência por ela também determinados e que gera como sintoma um desejo
inautêntico17 de controle (no sentido spinozista, ou seja, produzido por uma causa exterior).

17. Discutimos os três gêneros de conhecimento de Spinoza, bem como seu conceito de desejo como interpretado
por Deleuze, em “Mídia e Desejo de Controle”, no capítulo “Desejo”.
45

1.1. O contingente, o possível e o espetacular

Quando calouros passam a frequentar, nas universidades, as primeiras aulas de um


curso de Jornalismo e/ou Comunicação Social, usualmente se cansam de ouvir enunciados
como “se um cachorro morder um homem, acontece, nenhuma novidade. Se um homem
morder um cachorro, isso é uma notícia”. Tal enunciado foi usado tão exaustivamente que uma
busca combinada por termos “cachorro”, “morde” “pessoa” e “jornalismo” no Google Scholar,
plataforma de busca acadêmica, encontra mais de 1900 registros, dos quais mais de 500 tratam
diretamente de conceitos como “valor-notícia”.
O primeiro deles (DEJAVITE, 2001) disserta a respeito de tal enunciado ser uma
definição bem conhecida do que é um fait-diver (fato do dia): “faz parte das atividades normais
de um cachorro sair por aí mordendo as pernas daquelas pessoas com as quais ele não
simpatiza, mas um homem morder as pernas dos cachorros de que ele não gosta, podendo usar
o pé para enxotá-los, é absurdo” (Ibid., p. 07). Um fato como esse “narra o inusitado ou o
sensacional, no sentido do que causa sensação ou emociona” (Ibid., p. 07), instigando
curiosidade e interesse no leitor. É uma notícia, assim como “Caetano estaciona o carro no
Leblon nesta quinta-feira”18 ou “Chico Buarque compra baguetes para o lanche da tarde”19.
Não nos atentemos para julgamentos morais dessas notícias ou dos afetos alegres que
elas possam gerar em nossos corpos. Não usaremos as teorias do jornalismo nos parágrafos
seguintes, não por uma questão de desprezo, mas, sim, para manter a coerência com a
abordagem acontecimental/cartografia dos encontros que temos feito, de caráter spinozista.
Refletir sobre a totalidade das causas porque a performance primeiro-ministro/porca foi bem-
sucedida para o performer é impossível, mas, para além das redes sociotécnicas e dispositivos
midiáticos ubíquos, algumas definições nos ajudarão: o trio contingente/necessário/possível
além do risco e do espetacular.
Markus Gabriel (2016), ainda que faça uma jornada por outros referenciais teóricos (e,
vale lembrar, não somos filósofos), apresenta, de maneira introdutória, definições de
necessidade e contingência que não excluem a perspectiva por nós seguida:

[...] defino contingência como a possibilidade de ser de outra forma. A necessidade,


por outro lado, é a impossibilidade de ser de outra forma. Por exemplo: hoje eu
poderia não ter tomado café da manhã, é contingente que eu tenha tomado café da
manhã, ao passo que não poderia ser de outra forma que 2 + 2 = 4. A pergunta então

18. Disponível em: <http://diversao.terra.com.br/gente/caetano-estaciona-carro-no-leblon-nesta-quinta-


feira,41d3399ae915a310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 26 dez. 2015.
19. Disponível em: <http://ego.globo.com/Gente/Noticias/0,,MUL1363727-9798,00-
CHICO+BUARQUE+COMPRA+BAGUETES+PARA+O+LANCHE+DA+TARDE.html>. Acesso em: 26 dez.
2015.
46

é a seguinte: existem um campo de sentido e uma verdade associada a ele que


poderiam ser sempre uma necessidade absoluta? [...] Seja como for, basta para nós
compreender a contingência como uma organização de objetos, de estados de coisas
dentro de um campo de sentido que não poderia ser de outra forma. (GABRIEL, 2016,
p. 88).

O filósofo Richard Mason (1986, p. 313) vai direto ao cerne: “o ponto de vista de
Spinoza a respeito da modalidade é tão direto que não precisa de explicações” e inicia sua
análise citando duas proposições do primeiro livro da Ética: “nada existe, na natureza das
coisas, que seja contingente; em vez disso, tudo é determinado, pela necessidade da natureza
divina, a existir e a operar de uma maneira definida”. (SPINOZA, 2008, Ética I, Proposição
29). Em seguida, “as coisas não poderiam ter sido produzidas por Deus de nenhuma outra
maneira nem em qualquer outra ordem que não naquelas em foram produzidas”. (SPINOZA,
2008, Ética I, Proposição 33).
A partir disso, uma das conclusões que podem ser tiradas é a de que nada é contingente,
“exceto em caso de deficiência ou defeito de nosso entendimento” (MASON, 1986, p. 13).
Apesar do que discutiremos no item “Controle, desejo e julgamento”, em contraponto às
avaliações morais essencialistas características dos julgamentos de forte apelo midiático,
“temos que lidar com algumas dicas dadas por Spinoza de que há algum tipo de contingência,
ou que a necessidade não é inteiramente universal” (Ibid., p. 315). Para não nos contradizermos
com o item anteriormente citado nesse livro, adotamos a ideia de que perceber algo na
contingência é não entender suas causas necessárias, ainda que a possibilidade da existência
dos entes em um universo regido por uma absoluta contingência não possa ser negada. Em
outras palavras: “Curley acredita que Spinoza quis que todas as verdades fossem necessárias
em um sentido, mas não necessárias em outro” (Ibid., p. 320).

Todas as proposições são necessariamente verdadeiras ou necessariamente falsas.


Isso vale tanto para proposições existenciais quanto não existenciais. Mas, ao nos
restringirmos às verdades, nem todas elas são necessárias da mesma maneira.
Algumas são absolutamente necessárias no sentido leibniziano de que suas negações
são explícita ou implicitamente contraditórias. A verdade delas, ao invés disso, é
fundamentada no fato de elas seguirem logicamente outras proposições que também
são verdadeiras, proposições que dão uma explicação causal eficiente delas.
(CURLEY, 1969 apud MASON, 1986, p. 320; tradução nossa).20

20. “All propositions are either necessarily true or necessarily false. This will hold both for existential and for
non-existential propositions. But, restricting ourselves to truths, not all truths are necessary in the same sense.
Some are absolutely necessary in the Leibnizian sense that their denial is explicitly or implicidy self-contradictory:
their truth follows from the essence or definition of the subject. But others are only relatively necessary. Their
denial does not involve a contradiction, either explicitly or implicitly. Their truth, rather, is grounded in the fact
that they follow logically from other propositions which are true, propositions which give an efficient causal
explanation of them”. (CURLEY, 1969 apud MASON, 1986, p. 320).
47

Sendo assim, vamos às definições. Ser possível não é “poder existir ou subsistir em um
domínio obscuro de possibilidades, mas simplesmente ser o efeito disponível dentro da
estrutura da natureza ou das leis naturais” (MASON, 1985, p. 321). Uma situação possível
pode ser atualizada no mundo físico, algo que talvez não possa existir não é algo possível (Ibid.,
p. 327). O que é aparentemente contingente é aquilo cujas causas não conhecemos e, por isso,
aparenta ter surgido ex-nihilo. “Somente porque desconhecemos a essência das coisas e suas
causas, cremos que elas são contingentes” (HOYOS SÁNCHEZ, 2012, p. 101), mas, “na
Natureza, não há nada contingente” (SPINOZA, 2014c). Isso não impede que, para nós, no
campo da linguagem, ela exista para aquilo que dificilmente seria imaginável, dados os
agenciamentos com os quais estamos envolvidos e a complexidade de sua rede de causalidades.
A contingência, quando tratada já dentro da linguagem, é uma questão de ponto de vista. O
possível é real, subtraído aquilo que já está na existência. Algo que já aconteceu de alguma
maneira e, portanto, pode acontecer novamente. Está no campo do virtual, o que Spinoza chama
de Natureza Naturante, ou Deleuze e Guattari denominam máquina abstrata, aquilo que é
virtual, mas pode ser atualizado. É fonte imanente do novo.
Quando um elemento passa do campo da contingência ou do campo da possibilidade
para a existência, ele se realiza e passa a ser necessário. Não poderia ter sido de outro jeito
porque já é e já foi. Aquilo que passa a existir é necessário de acordo com a ontologia
spinozista: “já que Deus é infinito, sua realidade também o é, portanto, sua perfeição e sua
existência são absolutas e necessárias como as de nenhuma outra coisa” (HOYOS SÁNCHEZ,
2012 p. 101). O possível e o contingente (da linguagem) virtualmente serão atualizados na
realidade. Assim, tendemos a nos ocupar com aquilo que a nós aparenta ser possível em um
futuro próximo, ainda que

[...] preocupamo-nos mais com um desastre em nossa época do que com um desastre
na época de Gengis Khan. Segundo Spinoza, isso é irracional. Tudo o que acontece
integra o mundo eterno e atemporal visto por Deus; para Ele, data é um elemento
irrelevante. Na medida em que o permite a finitude humana, o sábio empenha-se para
ver o mundo tal qual Deus o vê, isto é, sub specie æternitatis: sob o aspecto da
eternidade. Todavia, é possível objetar que estamos certos em nos preocuparmos mais
com os infortúnios futuros que possam ser evitados do que com as calamidades
passadas, contra quais nada é possível fazer. A tal situação o determinismo de Spinoza
oferece resposta. Apenas a ignorância nos faz achar que podemos modificar o futuro:
o que será será. O futuro é tão fixo quanto o passado. (RUSSELL, 2015, p. 110).

Até 11 de setembro de 2001, não parecia possível à maioria de nós, ocidentais, que
aviões seriam jogados nas torres gêmeas do World Trade Center e tal acontecimento causaria
a implosão desses dois prédios. No cinema, vários filmes ensaiaram a possibilidade de um
ataque terrorista em Nova York, mas que não causaria essa específica plasticidade visual da
48

implosão no centro econômico dessa cidade. Na hora dos atentados e da queda dos edifícios,
muitas pessoas ficaram perplexas, em um primeiro instante, tamanha e inédita composição
visual plástica, sem conseguir explicar, por meio da linguagem, o que estava ocorrendo, o que
as levou a produzir enunciados como “é fim do mundo”, “é o apocalipse”, “Terceira Guerra
Mundial” etc., sem atentar para as possíveis causas de uma retaliação aos sucessivos ataques
norte-americanos a alvos militares e civis no Oriente Médio. Para essas pessoas, tal fato era
algo contingente, inexplicável. Entretanto, quando esse encontro de corpos ocorreu, ou
aconteceu, não pode ser desfeito, já está no campo do existente, e, portanto, é necessário como
elemento que, juntamente a infinitos elementos, causaria outras séries de ações e afetos (medo,
insegurança, intensificação dos dispositivos de vigilância da sociedade de controle, guerras
injustificáveis etc.).
Esses conceitos e imagens de cinema e documentos de arquivo podem nos auxiliar a
pensar o que permitiu que o agenciamento porca-primeiro-ministro pudesse ser atualizado,
como mostram a tabela seguinte (2):
49

Tabela 2: Da contingência à necessidade.


A possibilidade de uma contingência ontológica (ou seja, fora da linguagem) não está
nos planos de Spinoza. Para isso, precisaríamos recorrer à filosofia de Quentin Meillassoux
50

(2008, 2015; ver tabela acima). Mais adiante, discutiremos o caráter performático e
especulativo de tal ato, que pode parecer pouco operativo, já que, se tudo é contingente, tudo é
possível, até mesmo a restauração dos atuais agenciamentos para um período pré-catástrofe, e
a autorreorganização dos sistemas anteriores.
Há uma diferença, entretanto, para Spinoza, entre as instâncias da contingência, entre a
contingência acontecimental e a da causalidade. A primeira diz respeito à natureza dos
encontros, que de fato, é contingente, sujeitos a um acaso. No segundo caso, dado um um
estado de coisas específico, que resulta de uma rede de acontecimentos, o mesmo não é
contingente, pois o modo como está configurado num determinado momento depende de rede
de acontecimentos que pode ser, de alguma maneira, traçada, ainda que infinitamente.
O que buscamos, aqui, não é aproximar os aparatos midiáticos de uma absoluta
contingência, tampouco afirmar que devem ser divididos entre portadores de enunciados da
“verdade”, distribuem fake news, ou assumem posições ressaltando a “pós-verdade”. Todas
essas afirmações são calcadas em visões essencialistas do mundo e só têm diferença vetorial.
Ainda que, seguindo Spinoza, acreditemos que vemos como contingência apenas a rede de
agenciamentos que está fora de nosso alcance perceptivo e de nosso conhecimento de primeiro
e de segundo gênero, podemos pensar, para aquilo que não conseguimos determinar com
certeza, a contingência como um conceito operativo. Ou, como Brian Massumi afirma, ainda
que não sigamos a puramente formal absoluta contingência, é possível “usar um pouco da
contingência”, quando esta é aliada àquilo que é espontâneo, emergente, e, portanto, aquilo que
pode provocar uma disrupção no atual estado de coisas:

A versão influente do Realismo Especulativo de Quentin Meillassoux aplica


severamente a lei do meio excluído, ou a lei da não contradição, e lida com as aporias
a elas associadas, apelando não à positividade da inclusão mútua, mas à contingência,
entendida não criativamente, mas negativamente, como a impossibilidade absoluta
de aplicar a lei do meio excluído de uma maneira que efetivamente exclui a incerteza
(Meillassoux, 2008). [...] Em qualquer lugar, a não ser no ponto em que tudo
desaparece instantaneamente, a contingência absoluta é uma criatura da lógica
puramente formal (já que é contraditória, por distintas razões, pertence ao especioso
do negativo; para uma clássica crítica do negativo, ver Bergson, 1998, p. 272-298) A
contingência, como ocorre no mundo, está nas lacunas constitutivas na fabricação de
todas as emergências e, novamente, nas lacunas entre as estabilizações (capturas). A
contingência, pertencendo à emergência e insubordinação à captura, deve ser pensada
positivamente em termos de espontaneidade, não negativada como acidental (a mera
ausência de uma causa suficiente) ou assimilada à incerteza meramente lógica.
(MASSUMI, 2014, p. 48-49; tradução nossa).21

21. “Quentin Meillassoux’s influential version of speculative realism sternly applies the law of the excluded
middle, or the law of noncontradiction, and deals with the aporias associated with it by appealing not to the
positivity of mutual inclusion but to contingency, understood not creatively but negatively, as the ultimate
impossibility of applying the law of the excluded middle in a way that effectively excludes uncertainty
(Meillassoux, 2008) [...] Anywhere other than at the ineffective vanishing point of existence, absolute contingency
51

Dessa maneira, a contingência que buscamos é a dos gestos emergentes, daquilo que
pode criar falhas nos discursos maiores e normatizados que transitam pelos ecossistemas
midiáticos ou nos dispositivos de controle, sejam na sua rede corporal (ou o aspecto maquínico
deles, em termos de Gilles Deleuze e Félix Guattari), quanto em seus fluxos enunciativos (ou
os agenciamentos coletivos de enunciação). Abordaremos isso de maneira mais abrangente no
capítulo 6: “da micropolítica dos gestos menores”. Aquilo que é contingente perde sua potência
ao ser reinserido em uma lógica discursiva da reprodução de enunciados, até que eles se
esgotem completamente, devido àquilo que Derrida nomeia o “fracasso” da linguagem. Cabe
agora fazermos uma cartografia de tais dispositivos, ainda seguindo as narrativas de Black
Mirror. Há de ser possível estabelecer um balanço saudável entre assumir alguma contingência
e, ao mesmo tempo, buscar o entendimento de sujeitos e seus agenciamentos, de modo a evitar
linchamentos midiáticos que, não raramente, deixam cicatrizes corporais naqueles que
emergem como seus alvos.

is a purely formal creature of logic (as is contradiction, for different reasons pertaining to the speciousness of the
negative; for Bergson’s classic critique of the negative, see Bergson 1998, p. 272–298). Contingency as it occurs
in the world is in the constitutive gaps factoring into all emergences and, again, in the gaps between settlements
(captures). Contingency as it pertains to emergence and insubordination to capture must be thought positively in
terms of spontaneity, not negativized as accidental (the mere lack of a sufficient cause) or assimilated to the merely
logically uncertain”. (MASSUMI, 2014, p. 48-49).
52

CAPÍTULO 2. Mídia e desejo de controle


A câmara por onde passam os reclusos, assumiu o lugar de Deus, do
rei e do chefe do exército.
Harun Farocki

And it’s only when you commit a crime that the data is put together
and your story is reconstructed, backwards. k A portrait of you made
of data trails, the places you went, the things you bought, the pictures
you took, the emails you sent. And like Kierkegaard said, “Life can
only be understood backwards, but it must be lived forward”.
Laurie Anderson

Figura 7: anúncio publicitário de uma câmera de segurança: “esteja no controle” de tudo o que acontece ao seu redor.

O caso da princesa marca a ideia de um controle sobre o futuro sobre o qual os humanos
assumem ter uma agência absoluta, intermediado pelas mídias e pelas possibilidades de uso
dos logs espalhados pela nuvem digital (que possibilitaram o fracasso de todas as tentativas de
burlar a exigência de o primeiro-ministro fazer sexo com a porca). Também passamos ao
controle mediado do passado, ou de seu registro, via outro tipo de logs, que se dá diretamente
com a modificação do corpo a serviço tanto da vigilância em massa quanto para o bom
funcionamento da estrutura tradicional familiar.
Um dispositivo semelhante à forma de uma gota de chuva, denominado grão,
implantado nas têmporas humanas, passa a ser comercializado e tem penetração quase total na
sociedade britânica (ainda que seja um reducionismo falar apenas em uma sociedade britânica,
já que a diegese não chancela essa restrição). Ao passar pela habitual checagem de raio x na
entrada da sala de embarque de um aeroporto, Liam, um dos personagens principais, tem o que
53

seriam gravações de sua memória revistadas e reviradas pelos guardas. Mais de três décadas
de backup daquilo que seus olhos registraram, agora dotados de lentes e câmeras de gravação,
estão armazenadas. Esses dados são “vistos” e conferidos pelos algoritmos de identificação do
software de segurança, exibidos em uma daquelas telas que anteriormente eram apenas usadas
para bisbilhotar as malas dos viajantes em busca de líquidos inflamáveis ou objetos perfurantes.
O software faz uma análise imagética e semântica, em busca de atos com alguma ligação ao
crime e terrorismo.
O grão, que grava tudo o que uma pessoa enxerga desde o momento de sua instalação
e permite o compartilhamento dessas imagens e áudios, também torna impossível (ou pelo
menos dificulta) a possibilidade de redenção de atos cometidos em qualquer época da vida, o
que faz com que uma ação possa ser julgada infinitas vezes. E aqui não somente nos referimos
a atos cometidos que podem infringir um dispositivo de regras e leis internacionais
antiterrorismo, mas também às cobranças em relacionamentos afetivos e sexuais.
Liam, ao chegar em casa, é recebido por sua esposa e por mais algumas pessoas que
estão em uma reunião festiva, assistindo a gravações capturadas pelos olhos dos outros de uma
maneira similar àquela que, em determinados lugares, era comum ver exibições de slides em
festas de família ou amigos, projetados nas paredes ou em cortinas brancas. Geoff, um dos
personagens que participam desse banquete, é quase um analista parnasiano das imagens
exibidas e observa todos os mínimos detalhes dos objetos transmitidos dos olhos de um
indivíduo para a tela, como os tecidos dos tapetes, a textura e a disposição dos objetos na
filmagem. A partir de um elemento visual, esmiúça um longo texto e discorre sobre ele. Jonas,
outro convidado, ele próprio se descreve como um serial monogamist, pois é contra
relacionamentos estáveis e namoros, é descolado e enuncia isso a todo momento. A busca pelo
controle por meio dessa mídia ligada diretamente ao tecido corpóreo é enunciada por outra
personagem, que afirma que instalou o grão porque tem medo das “memórias falsas” que
podem surgir com o passar do tempo. Para ela, a solução é gravar tudo e, na dúvida, rever
alguma cena em particular.
Nesse regime de visibilidades, o que reina é o extremo sinopticismo. Trata-se, talvez,
de uma das caraterísticas principais de sociedades de controle, que “caracterizam-se pela
potência e pelo poder das máquinas de expressão” (LAZZARATO, 2006, p. 155), nas quais
quase todos os indivíduos têm a possibilidade do acesso aos registros do outro. O casal de
usuários do grão assiste às gravações do olhar da babá da criança, conferindo se houve maus-
tratos. A discussão sobre a vigilância nas sociedades de controle é intensa desde a publicação
de seu Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle e mesmo antes dela. Muito se discute
54

sobre o potencial de governos e corporações com dados pessoais de indivíduos registrados


sendo arquivados em seus discos rígidos, mas nosso objetivo, aqui, é salientar como isso se
manifesta na micropolítica e que desejos estão em jogo, sendo acionados.
Ao continuar a sessão de slides e vídeos, Liam não para de interrogar a esposa sobre um
suposto affair que ela teria tido com Jonas, o convidado garanhão da reunião. A conversa se
torna um interrogatório, e ele traz como seu aliado todos os momentos que havia captado com
seus olhos quando fitava Jonas distribuindo indiretas anteriormente.
O Poeta Waly Salomão (2014), em um de seus poemas mais replicados, declara: “a
memória é uma ilha de edição”, “eu tenho o pé no chão porque sou de virgem, mas a cabeça,
gosto que avoe”. Para Liam, a memória também é uma ilha de edição, mas ele não considera
que exista a possibilidade de uma “viagem mental” com entrelaçamento de memórias
guardadas e já alteradas pelas mudanças temporais de uma subjetividade, tampouco passível
de ficcionalização, em um sentido amplo. Só se atenta àquilo que foi gravado. É a tentativa de
construção de uma memória sem a participação do esquecimento. Nesse momento, vale a pena
nos questionarmos se o dispositivo registra a imagem que passa pelos olhos – como uma
câmera POV, ou de fato a memória produzida naquele instante, ou seja, como ela é
ressignificada pelas redes neurais. Cada imagem, ao ser assistida, mistura-se com uma
intencionalidade – ainda que falsa – do indivíduo que a assiste e é algo distinto da experiência
vivida do acontecimento. Assumindo que o que ocorra seja a primeira opção, observamos o
desejo de manter o acontecimento-memória estanque, com medo de que sua construção
posterior não permaneça de fato estática. Controlar o passado para controlar presente e futuro.
Mais do que isso, a própria estética e o formato de vídeo, podemos dizer, o filtro através
do qual as imagens que os olhos dos personagens enxergaram, são gravadas e podem ser
reflexos de um tipo de modo de olhar ou visibilidade que se tornou predominante nas culturas
ocidentais, quando o modelo predominante de máquina cinematográfica emergiu, levando ao
esquecimento outras encarnações de cinematoscópio (CRARY, 2012). Friedrich Kittler afirma
que praticantes de esportes radicais em condições de temperatura extrema, como escalada em
montanhas geladas, que não sabiam se resistiriam aos seus desafios, pararam de enxergar a
presença da morte como uma contingência que irrompe com toda a existência de um indivíduo.
Quando estes se arriscavam, uma quase-morte em um acidente era um rompimento bruto de
um fluxo de vida e pensamento.
Ao contrário, após o século XIX, quando o modelo de visão do cinema narrativo ganhou
força, pessoas que experienciam um grande risco súbito, como um caminhão que passa a dois
palmos de alguém que está atravessando a rua, frequentemente enunciam: “vi um filme de toda
55

a minha vida passar diante de meus olhos”. Nas palavras do próprio autor alemão, “em 1900,
a alma deixou de ser uma memória gravada em cera ou livros, como Platão descrevia, ao
contrário, foi tecnicamente avançada e transformada em um filme de cinema” (KITTLER,
2012, p. 35). As mídias que intermedeiam e agenciam a existência, em Black Mirror, fazem
com que se viva para estabelecer uma narrativa coerente, que pode ser acessada pelo parceiro
ciumento ou para que os amigos contemplem as viagens ao exterior do olho-tela. Uma tripa de
imagens com início, meio e fim, como os rolos de negativos.

Figura 8: menu de seleção dos álbuns das gravações feitas pelo dispositivo grão.

“A memória é uma ilha de edição”. Waly Salomão estava certo, mas a memória que se
constrói para que os outros contemplem, em imagens nas redes sociais, como textos ou
fotografias com textos, é um filme com narrativa clássica hollywoodiana, final feliz e belas
paisagens. O poeta, ao pensar na memória como ilha de edição, certamente não se referia a
uma edição linear e sequencial das imagens que passam diante de nossos olhos, mas, sim, a
uma ilha de edição que atuasse como um cartógrafo, analogia que Antonio Damasio faz do
funcionamento do cérebro.
Além desses elementos estéticos, o acesso ao vídeo de captura de determinada memória
a distância seria o ápice – até então – da tentacularidade da sociedade de controle. Deve-se
lembrar que “as instituições das sociedades de controle são assim caracterizadas pelo emprego
das tecnologias de ação a distância, mais do que pelas tecnologias mecânicas (sociedades da
soberania) ou termodinâmicas (sociedades disciplinares)” (LAZZARATO, 2006, p. 77). A
56

memória, ou a imagem que é chamada de memória, é prova, em seu tribunal, quando Liam
mostra vídeos antigos, gravados por ele, em que a esposa falava de um caso com um homem
que havia conhecido em Marrakesh, e induz a esposa a confessar que esse namoro havia sido
com Jonas. A imagem gravada na mídia está a serviço de um dispositivo de controle sobre si
mesmo e sobre o outro, estriando as possibilidades de fuga e invenção, de ficcionalização da
vida, tudo pela busca do chancelamento de uma “verdade”. A existência de uma sociedade de
controle somente é possível se, ao mesmo tempo, produzir um desejo de controle nos
indivíduos que nela vivem. Deleuze nos lembra que uma sociedade de controle não reduz ou
substitui os elementos de uma sociedade disciplinar como descrita por Michel Foucault, com
instituições normatizadoras que apresentam certa fixidez: igreja, casa, família, prisão etc.

Figura 9: Montréal, Quebec. Fotografia do autor.

Dada a indisposição no ápice da desconfiança de que o caso entre Jonas e sua esposa
ainda perdura, o casal faz sexo levado por uma quase obrigação matrimonial. A edição do
episódio alterna entre as imagens dos dois na cama, com pouco contato a não ser através dos
órgãos sexuais, enquanto outra sequência nos mostra as imagens que Liam baixou de seu
dispositivo, provavelmente do início do casamento ou antes. Uma relação sexual mais
intensificada e apaixonada, em que ambos gozam e parecem satisfeitos. A imagem que Liam
usa para sua excitação se assemelha a filmes pornográficos do gênero POV (Point-Of-View),
ou seja, filmados do ponto de vista de um dos participantes do intercurso. Seu tesão é agenciado
57

de maneira sensorial pela mídia. Esse tipo de vídeo (filmados com câmeras como a GoPro ou
mesmo o Google Glass) usualmente mostra a visão de homens penetrando mulheres.

Figura 10: Black Mirror, The Entire History of You.


Figura 11: Sasha Grey no filme P.O.V. Centerfolds 7.

Liam faz com que a esposa confesse que está tendo um caso com Jonas e, bêbado, vai à
casa do amante da esposa. Após os dois discutirem, uma cena mostra Liam com o carro batido,
no meio de uma estrada. Ele acorda de ressaca e tem de rever o que seus olhos registraram,
mas que havia sido apagado pela amnésia alcoólica. Esse fato comprova a nossa tese de que o
que se grava são imagens daquilo que se passa na altura de seus olhos, e não as memórias cujos
sentidos são dados nos novos acontecimentos nos quais são acionadas. Uma sociedade que não
permite sequer que as pessoas bebam para esquecer os vexames. Quase tudo pode ser
recuperado, qualquer imagem. O vídeo recuperado mostra ele com um caco de garrafa
ameaçando Jonas, repetindo o gesto de Bing, em Fifteen Million Merits, reticente, mas tentando
matá-lo, cortando seu pescoço com um pedaço de vidro, a não ser que Jonas apague todas as
memórias dele fazendo sexo com sua esposa. Durante o processo de apagamento dos vídeos
de Jonas, Liam assiste à “traição” e todas as vezes em que sua esposa transou fora do
casamento. Quando ele volta para casa, mostra tudo para a esposa e exige que ela exiba todos
os vídeos de todas as vezes que transou com Jonas, enquanto Liam viajava, meses antes de ela
engravidar. Ele analisa os vídeos e usa os recursos de ampliação das imagens para checar se
Jonas estava usando camisinha durante o sexo. Descobrindo o contrário, não tem mais certeza
da paternidade biológica do bebê.
Essa obsessão por uma escapatória a esse regime de controle leva o indivíduo a cortar a
própria têmpora com um uma gilete e puxar o grão com um alicate, logo após ter revisto mais
cenas de sexo da esposa, em uma visualização que podemos chamar de fractal, já que ele estava
58

assistindo ao vídeo do vídeo de eles assistindo anteriormente. De certa maneira, tanto The
National Anthem quanto The Entire History of You terminam com dois gestos de assistir ao
sexo alheio motivados por um desejo de controle excessivo pelo outro. No primeiro caso, trata-
se do desejo de uma multidão ver o primeiro-ministro transando com uma porca; no segundo,
de um desejo de, mais do que ver a esposa transando, ter acesso a um suposto conhecimento
total (já salientamos que inatingível) dos afetos da esposa e daquilo que consideraria como
traição. Em ambos, a morte ou a mutilação parecem ser as poucas linhas de fuga não
capturáveis, já que o performer do primeiro episódio corta o próprio dedo como parte de sua
obra e depois se enforca e, no segundo, a possibilidade de corte dos agenciamentos grão-sujeito
que leva ao comportamento obsessivamente controlador é, senão o próprio corte material de
sua carne e do objeto mídia, dispositivo de captura que estava alocado em sua cabeça.

Figura 12: a fuga não pela morte, mas pela mutilação material e corpórea do dispositivo de controle.

O grão parece retornar transmutado e com novas funcionalidades no episódio White


Christimas, quando se torna um cookie, dispositivo de formato e tamanho parecido com o
dispositivo anterior, que age como um espelho das informações do cérebro de alguém, após
passar um tempo alojado dentro da cabeça dos indivíduos. As imagens de “dentro” do cookie
o representam como uma entidade dotada de subjetividade, com acesso ao mundo externo e
que deve ser adestrada e escravizada por Matt, um especialista em uso da lábia nas conquistas
amorosas e burocráticas e técnicas de tortura. Por meio de um dispositivo, ele controla o passar
do tempo dentro do indivíduo eletrônico, a percepção temporal distinta de seu fora,
59

condenando-o a milhares de anos em um nada absoluto (um plano branco infinito em todas as
suas dimensões) e afirmando que acionaria o mesmo método de tortura, caso o cookie não
realizasse as tarefas daquele que foi espelhado, controlando a gestão da casa conectado pela
rede sem fio.
Trata-se de uma aparente sujeição dessa máquina ao humano, mas o vetor de direção
do controle se inverte quando Matt é mostrado em sua principal profissão. Durante todo o
episódio, ele conta várias histórias de suas profissões (orientador de paquera via aplicativos,
por exemplo) para um colega, em uma estação de pesquisas no Polo Norte. Com sua lábia,
convence o colega a confessar um crime de assassinato. O cenário se abre, e Matt tira os olhos
da máquina de acesso à realidade virtual (aqui nos referimos ao sentido usual, não ao conceito
de realidade. Estamos nos referindo-nos aos óculos utilizados em jogos de videogame
imersivos). Ele estava extraindo essas informações, na verdade, da subjetividade espelhada,
retirada do cookie que estava na cabeça de Joe, o outro personagem principal, que, na realidade,
está preso em uma cela e assim ficará para sempre após a confissão.
O mesmo acontece com o sujeito criado a partir do espelhamento de seu cérebro,
condenado a viver na cozinha da estação ártica falsa, saindo e entrando em um looping ao
perceber que está dentro de uma bola de neve natalina que contém a sala e que contém a bola
de neve que contém a sala e assim sucedendo de maneira fractalmente infinita. Sua condenação
também tem seu aspecto midiático, não no sentido de ser condenado e julgado perante uma
mídia, mas porque esse eterno retorno de acontecimentos idênticos acumulados na experiência
de Joe-Versão-Cookie é regado à música I Wish It Could Be Christmas Every Day, da banda
Wizard. O cookie é impedido de morrer, com sua percepção temporal alterada para infinitos
anos. Não consegue desligar a música ao quebrar o rádio sem que entre em outra iteração, o
que impossibilita a fuga para qualquer fora, físico ou cognitivo, da música, que é para ele
irritante; sua existência, portanto, é regida por uma temporalidade que pode ser estendida ao
infinito, mas restrita a uma parca possibilidade de agência, preso no tédio e na repetição, “uma
imortalidade da qual não há escapatória” (ELLIS; GRATTON, 2015, p. 17), ou, nas palavras
de Quentin Meillassoux uma “imanência radical” tediosa: “somente aquele que pode suportar
a ideia de uma e única vida que é constantemente reencenada em seu prosaísmo, sem nenhuma
chance de escapatória pelo transcendente ou pelo nada, experencia uma imanência radical”
60

(MEILLASSOUX, 210, p. 444-78 apud BELL, 2015, p. 96. In: ELLIS; GRATTON, 2015, p.
96).22

Figuras 13, 14, 15, 16 e 17: o inferno fractal e impossibilidade do fora para o Joe-Cookie.

A escalada de condenações segue: Matt foi obrigado a interrogar o cookie de Jon para
escapar de uma pena parecida por ter cometido um crime de estelionato digital. É liberado, mas
ele é bloqueado fisicamente por todas as pessoas. Quando ele sai à rua, as pessoas, para ele,
tornam-se uma massa amorfa e inaudível para sua percepção e vice-versa. Sua condenação é a
não comunicabilidade oral absoluta com outros humanos pela linguagem, ainda que o
personagem pudesse se comunicar com os outros indivíduos pelo do toque, esbarrões com o
corpo etc., uma punição desproporcional, a sociedade das tentativas excessivas de

22. A esse respeito, ver MEILLASSOUX, Quentin. “The Immanence of the World Beyond”. In:
CUNNINGHAM, Connor; CANDLER, Peter (eds.). The Grandeur of Reason: Religion, Tradition and
Universalism. Londres: SCM Press, 2010.
61

esquadrinhamento dos acontecimentos e das punições rápidas é uma sociedade na qual impera
o julgamento (ou seria a punição?) midiático/a.
Assim como uma prisão tradicional o faz, ainda que de modo distinto, essa punição
atuou diretamente cerceando e minguando os encontros que o personagem poderia sofrer,
comprometendo a possibilidade de ele se comunicar, de alguém se apaixonar por seu rosto ou
por suas ideias e, consequentemente, inviabilizando a possibilidade de ele se relacionar
sexualmente com outros humanos ou de se compor com eles. Por outro lado, se a punição foi
inovadora e cruel, impossibilitando qualquer encontro, o julgamento foi tradicional, operando
em uma lógica que não considera nosso próprio objeto de pesquisa, os agenciamentos e
encontros que determinam os atos e as redes de causalidade. Em outras palavras, atuam no
campo moral, e não no ético. E os agenciamentos midiáticos têm um papel protagonista nessa
escolha. Novos agenciamentos exigem uma nova ética ou o retorno de uma velha ética tão
pouco aplicada.
62

2.1. Controle, desejo e julgamento

os chefes
os que matam pássaros por diversão
os que arrastam corpos pelas ruas
e os que salvam as vidas de outros homens em hospitais

todos
os homens merecem amor

André Dahmer

Red crosses on wooden doors


If you float, you burn
Loose talk around tables
Abandon all reason
Avoid all eye contact
Do not react
Shoot the messenger [...]
Burn the witch

Thom Yorke

Há em curso uma explosão arrebatadora de práticas expositivas nas redes digitais, que,
calcadas em conclusões precipitadas, não permitem sequer que as pessoas acusadas de crimes,
atos de maldade, abusos, etc., possam se defender. A queima das bruxas leva não somente ao
próprio ato de exposição, mas a suicídios e linchamentos. Na exposição individualizada em
nome de coletividades, tanto a esquerda quanto a direita macropolíticas se unem na mais
perversa micropolítica fascista.
Spinoza propõe uma distinção entre o julgamento moral e a avaliação ética. Podemos
considerar ambos a partir de um mesmo termo, o verbo poder. Enquanto alguém que faz um
julgamento moral pensa sempre em poder a partir daquilo que é permitido, daquilo que pode
ser feito sem ferir a lei ou determinado conjunto de regras morais, a avaliação ética está
relacionada ao poder como o de poder fazer, de potência de agir. Não há concepção identitária
em Spinoza, já que os indivíduos só podem ser entendidos a partir dos encontros que os
constituem em determinado momento, das camadas acontecimentais que constituem seus
corpos e subjetividades, que aumentam ou diminuem seus graus de potência de permanecer na
existência, e, como cada pessoa ou qualquer ente só age determinada por esses encontros e
agenciamentos, os atos de decomposição posteriormente entendido como crimes podem ser
entendidos, pode haver uma compreensão, ainda que ela exija um alto grau de entendimento,
dos motivos de sua realização, das redes de causalidade.
Como o autor não contempla a questão da identidade, outro elemento que não está
presente na filosofia de Spinoza é o sujeito transcendente e completamente individuado. Todos
63

estamos em constante processo de encontros, ou seja, chocamo-nos com outros corpos, e as


ideias que se encontram com outras ideias geram novas cadeias de significação. Logo, a
punição e a culpa despejada naqueles que cometeram os crimes são inúteis, não agem na causa
e, sim, para atingir uma finalidade. Spinoza23 propõe que passemos a buscar entre esses dois
modos de pensar e agir a avaliação ética, obviamente. Gilles Deleuze vê essa escolha como
uma busca por uma imanência absoluta, já que “a moral é o sistema do juízo, do duplo juízo:
você julga por si mesmo e é julgado [...]; julgar implica sempre uma instância superior ao Ser,
implica sempre algo superior a uma ontologia” (DELEUZE, 2014, p. 378).
A ontologia spinozista é imanente, constituída de singularidades, entidades únicas, que
não são independentes, em um mesmo plano de relação. Todos os entes são modos de uma
mesma substância, uma perfeição maior ou menor de um ser perfeito: Deus, ou a Natureza.
Logo, julgar implicaria um movimento de retirada de um ente para fora desse campo comum
de corpos, posição de um Deus transcendente que detém as regras sem que ele esteja dentro
delas. Entretanto, trata-se de um movimento impossível, todos habitamos um campo de
imanência e frequentemente temos ideias inadequadas a partir daquilo que percebemos em
determinada situação. A avaliação ética é difícil também, exige que atinjamos um grau de
entendimento para além das ideias inadequadas, compreender as redes de causalidades que
determinaram um acontecimento (e a eles, já vimos, não importa o quanto puxemos por um
lado ou por outro, sempre damos sentidos restringidos pela própria linguagem). Deleuze,
seguindo o raciocínio anterior, afirma: “na ética é totalmente diferente, já não se julga. De certa
maneira, isso significa: “‘qualquer coisa que se faça, só terá que merecê-lo’, alguém diz ou faz
algo; você não relaciona com os valores. Mas se pergunta: como isso é possível?” (Ibid., p.
379).
Qual a relação dessa distinção entre julgamento e avaliação com a mídia e o fato de
suas máquinas comunicacionais terem penetrado por todas as entranhas da vida moderna (ou

23. Ao falar sobre isso em Espinosa, Filosofia Prática, Gilles Deleuze cita a carta de Spinoza a Willem van
Blyenberg, escrita em 5 de janeiro de 1665. Spinoza explica que o pecado original de Adão ao comer a maçã que
continha a sabedoria do sexo não é uma imperfeição de uma criatura divina e, portanto, um elemento imperfeito
no interior da única substância que existe, o Ser, que é a Natureza e que é Deus. Ao contrário, trata-se de um
encontro determinado pela rede de causalidades divina da única substância, que pode ter sido um mau encontro,
mas injulgável dentro dessa mesma rede de causalidades. Em outras palavras, a Natureza não conhece bem ou
mal, mas processos em que suas singularidades se compõem ou se decompõem. A Palavra de Deus (dos homens),
ao falar sobre esse pecado, seria uma tradução para a linguagem e para os humanos de um regime de relações
entre corpos que é intraduzível: “a escritura usa constantemente de uma linguagem por inteiro antropomórfica,
conveniente ao vulgo ao qual se destina; esse vulgo é incapaz de perceber as verdades um pouco elevadas. Eis
por que, e disso estou persuadido, todas as regras de vida, cuja observação Deus revelou aos profetas por ser
necessária à salvação, tomaram a forma de leis e, pela mesma razão, os profetas forjaram parábolas”. (SPINOZA,
2014a, p. 108).
64

dos homens ditos modernos)? Em alguns momentos, a lógica acima descrita de julgamento
moral e das punições que dele decorrem está intrinsicamente penetrada em nossos
inconscientes (sob o mecanismo da culpa cristã etc.). A Lei assume tamanho estatuto
transcendente que temos medos de sermos punidos sem nem sabermos o motivo dela; é a
mesma lógica de O Processo, de Kafka. Nas sociedades disciplinares e de controle mais
extremos, os indivíduos chegam a ser punidos sem que saibam o crime de fato cometido por
alguém (e, ainda assim, seria um julgamento moral). Nesses casos, podemos traçar uma aliança
entre os usos das múltiplas mídias ao desejo de controle e ao regime sinóptico que descrevemos
anteriormente. Essa aliança faz com que os próprios indivíduos que estão nessa lógica de
vigilância busquem a punição de seus semelhantes. As punições devem ser espetacularizadas,
midiáticas, cinematográficas e extremas, verdadeiros acontecimentos midiáticos, que
impossibilitam qualquer tipo de escape ou de inversão prática delas. Tal subversão é o caso de
Masoch, um autor cujo personagem, Severin von Kusiemski, punia a si mesmo fisicamente
antes mesmo de tomar conhecimento de seus pecados para poder gozar à vontade depois
através de diversos tipos de encontros sexuais. O desejo de controle atual visa a controlar a
punição e a transmitir todo o processo.
A narrativa de White Bear é um item fundamental de nosso corpus por ilustrar, de
maneira hiperbólica, como as máquinas comunicacionais atuam produzindo e sendo
produzidas em relação direta a esses agenciamentos punitivos e de controle, que não deixam
de estar presentes nos outros episódios de Black Mirror de modo mais ou menos intensificado.
A história distópica é a saga de uma mulher que acorda com amnésia, amarrada em um galpão,
com uma fotografia de uma criança desconhecida. Ao escapar do cativeiro, ela se depara com
uma horda de homens famintos por imagens da punição. Subvertendo a lógica do zumbi da
cultura pop, que se alimenta do corpo e cérebro das pessoas, essa “versão 2.0” dos zumbis se
alimenta de imagens espetaculares. São munidos de smartphones, tablets e inúmeros
dispositivos com câmeras de vídeo. Perseguem e registram todos os movimentos da vítima,
como se realmente se alimentassem do excesso de imagens e vídeos. A protagonista é levada a
um palco onde dois torturadores ameaçam decapitá-la. No final, revela-se que a ameaça era
parte de um reality show ao qual eram submetidos aqueles que estavam sendo julgados por
crimes. Não só os indivíduos presentes podiam assistir aos ritos de punição, mas qualquer um
com um smartphone ou computador, provavelmente sob o pagamento de algum tipo de
assinatura. A acusada descobre que a imagem que guarda era de uma menina, por ela
assassinada. Na plateia, homens, zumbis-imagéticos que se alimentam de imagens
escatológicas, testemunham e gravam em fotos e vídeos a punição e, ao mesmo tempo, postam-
65

nos em suas redes sociais. Permanecem em um regime em que o desejo de estar no controle do
julgamento é mediado pelas lentes das câmeras dos smartphones.

Figuras 18 e 19: há algo que resta na memória de Victoria, que emerge como glitches.

Victoria inicia seu ciclo acordando com glitches do que aparentemente são suas
lembranças exibidas com algum problema de codificação no vídeo. Amarrada em uma cadeira,
consegue aos poucos se desprender, mas não se lembra de quem é ou do que faz. O que parece
lhe ativar alguma memória é uma fotografia de uma criança em um porta-retratos na mesa da
casa onde é mantida em cativeiro. Uma imagem, um ícone que parece uma peça do jogo
eletrônico Tetris está sendo exibida no aparelho de televisão, algo que parece lhe incomodar e
lhe dar dor de cabeça, um estímulo que não é bem-vindo. Ao desligar o aparelho com essa
imagem, outros se ligam automaticamente e parecem surgir ex nihilo. Dada a impossibilidade
de fuga desse signo onipresente, Victoria se veste e decide fugir, saindo da casa.

Figura 20: os frequentadores do parque de diversões querem registrar a imagem da julgada.


66

Ao sair e caminhar pelas ruas, ela percebe estar sendo filmada por pessoas com
smartphones nas janelas das casas, mas não consegue se comunicar verbalmente com elas, o
único barulho que consegue fazer que os outros emitam é o dos obturadores das câmeras
fotográficas. Um grupo de indivíduos, conhecidos como caçadores e vestidos com máscaras
de animais, persegue Victoria com armas. Ela pede ajuda, mas não recebe nenhum auxílio, e
toda a caçada é filmada. Encontra um casal que se comunica com ela e arma uma fuga, mas
um dos membros do casal é atingido e aparentemente morto. Ela foge com uma mulher na
caminhonete de um estranho, que as levam a uma floresta devastada, na qual os restos de
árvores servem como suportes para a crucificação de indivíduos. Ao encontrar um celular, a
outra mulher o tira das mãos de Victoria e o destrói, dizendo que o que faz com que as pessoas
permaneçam naquele estado letárgico de atenção dirigida somente a filmagens e fotografias
com seus dispositivos móveis é um processo hipnótico desencadeado pelo ícone que se espalha
pelas mídias, que lembra uma peça de Tetris. O homem, um caçador, questiona se as duas têm
algum histórico de doença mental, obtendo respostas positivas. Aparentemente a emissão da
imagem foi programada para que ela funcione e que ative áreas de inconscientes normais e
normatizados; portanto, pacientes esquizofrênicas, ao estabelecer outros tipos de relação com
a linguagem, deslizando entra o Simbólico e o Imaginário, estariam imunes. O código
distribuído pelos meios de comunicação não conseguiria estabelecer uma sobrecodificação no
inconsciente de uma psicótica. No entanto, explica ele, são “presas fáceis”. Em um gesto
teatralmente ensaiado de modo que pareça uma atuação, a outra capturada golpeia o caçador,
e elas fogem, em sua caminhonete, em direção à torre de comando de onde supostamente eram
irradiadas as transmissões hipnotizantes.
Victoria pergunta se o meio de bloquear o sinal que as hipnotizava é hackear o sistema
de transmissão, ou seja, fazer uma intervenção no código, em um aspecto incorporal da
comunicação que não é diretamente transmitido, mas que passa por uma interface amigável.
Recebe a resposta de que a intervenção seria “colocar fogo” no prédio. Bryant (2014), autor
estudioso de Deleuze, que segue o paralelismo entre corpo e mente, explica que as intervenções
apenas no campo simbólico ou apenas no campo corpóreo têm pouca eficiência, e obviamente
aqui descrevemos um cenário distinto do habitual, em que uma central controla toda um
sistema de comunicação, facilitando a derrubada do sistema através da derrubada física de seu
nodo principal. As redes ubíquas de comunicação atuam como sistemas distribuídos, têm maior
capacidade regenerativa, o que possibilita que continuem funcionando. É importante ressaltar
que isso pode ser utilizado tanto como uma forma de controle quase absoluto através da
vigilância onipresente, quanto como formas de movimentos subversivos manterem-se ativos
67

quando derrubados por governos ou por dispositivos totalitários e de censura. Ora, como
ressalta a citação acima, não se trata de adotar a solução ou uma linha de fuga que parta de um
novo ludismo, visando à destruição dos dispositivos técnicas, mas de adotar estratégias
sensíveis (semióticas, de afeto) e materiais pertinentes, de profaná-los, uma atuação tanto no
regime dos corpos quanto das mentes, desenvolver um processo de crítica imanente
(MASSUMI, 2015) das mídias e seus discursos.
Como esperado, a percepção de que esse conjunto de ações estivesse ocorrendo de uma
maneira que transparece sua construção narrativa, as atuações são desveladas quando a
protagonista chega à torre, tenta incendiá-la e atirar em um dos mascarados que lá estavam,
mas uma cortina se abre, e a protagonista está no centro de um palco, aplaudida por uma
audiência também munida de smartphones e que grava todo o percorrer da narrativa. O homem
que a havia ajudado a fugir é o apresentador do reality show e exibe, em um telão, reportagens
que narram e exibem cenas dela e de seu noivo sequestrando uma criança de seis anos (a mesma
de que lembrara) e depois assassinando-a. Segundo o animador de auditório, ela havia pedido
para usar o smartphone do noivo para filmar o infanticídio. Não é possível saber se esse é o
caso, mas tal gravação poderia ser utilizada como moeda de troca em grupos privados de
compartilhamento de imagens de assassinatos, corpos, pedofilia, ou mesmo para ser
disseminada por vias públicas. “Determinados delitos, particularmente o terrorismo,
necessitam da televisão e da internet para expandir sua mensagem, razão pela qual seria
necessário aproveitar tais tecnologias da comunicação para difundir seus castigos” (LUCENA;
SOLA, 2014, p. 95).
Além do exemplo subversivo do artista de The National Anthem, é comum imagens
amadoras de execuções públicas, ainda que praticadas por populações locais, terem vindo à
tona, sendo disseminadas à exaustão pelas emissoras de televisão ocidentais, como uma espécie
de justificativa aos ataques norte-americanos feitos no Iraque, Líbia, Síria etc. Tal é o caso do
vídeo do enforcamento de Saddam Hussein após ser capturado pelo exército norte-americano
e julgado por lideranças locais, e o linchamento público de Muammar Khadafi, ex-chefe de
Estado da Líbia, que foi transmitido através de uma série de vídeos que mostravam seu corpo,
ainda vivo, cada vez em um estágio maior de degradação, após ser chutado e espancado por
uma multidão, até ter seu corpo destroçado e fotografado em um morgatório. No Brasil,
tivemos os recentes casos dos julgamentos dos casos Eloá e Isabella Nardoni, espetacularizados
com migração de audiência entre plataformas (das redes digitais para a TV e vice-versa), e
ainda poderíamos nos estender às situações de revenge-porn, linchamento em perfis de redes
sociais etc. Em White Bear, a dezenas de milhares de quilômetros do Oriente Médio, em uma
68

sociedade britânica com suas particularidades, vemos o exercer de dispositivos que atuam
nesse regime de punição mediatizada. Como o companheiro da infanticida “se matou enforcado
e não teve justiça”, o público e o programa realizam sua punição todos os dias, no corpo dela.
A plateia, atiçada pelos incentivos do apresentador, filma a infanticida e grita “assassina!”.

Figura 21: a agonia de Khadaffi. Ainda vivo (CNN e Al Arabyia), seu corpo (BBC) e a disputa para fotografá-lo após o
linchamento.

Todos os dias, Victoria é colocada amarrada em uma cadeira no cenário do início da


narrativa e é submetida a um processo de gravação e apagamento em sua memória, que deixa
alguns rastros (os glitchs). Em Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, Reino Unido, 1971), o
líder da gangue de jovens em busca de “ultraviolência”, espanca e estupra mulheres e idosos,
é mantido em cativeiro, sendo submetido a sessões forçadas (com os olhos fisicamente travados
por alavancas) de vídeos subliminares e remédios não testados em busca de retirar de sua
subjetividade qualquer traço de violência, deixando-o inválido para a convivência social. Em
White Bear, a personagem também é dopada e forçada a assistir vídeos que mudariam seu
comportamento, o que podemos ver como uma agência de mão única midiática, já que não há
como escapar dela nessa posição de submissão física e biológica. Ela pede para ser morta, mas
não lhe dão essa possibilidade, e o sofrimento e a punição duram por todos os dias restantes de
69

sua vida. Em outras palavras, a morte como possibilidade de linha de fuga é novamente negada,
e, aqui, uma forma de escape impossível a uma situação de punição e sadismo eterno registrada
pelas mídias daqueles que pagam por um ingresso para participar do White Bear Justice Park.
O cenário é arrumado novamente, e são substituídos os espelhos quebrados atrás dos quais
existem câmeras que filmam tudo e transmitem a jornada de punição para assinantes do serviço
fora do parque.

Figura 22: Shut up and Dance. Exposto e punido duas vezes, mas sem a possibilidade de se matar.

A punição de Victoria é um exemplo extremado de uma determinada sociedade de


controle.24 Spinoza nos lembra que somos frutos de nossos encontros, em uma rede de
causalidades infinita. A possibilidade de redenção está atrelada a uma mudança de um modo
de existência. Victoria já não é mais Victoria, e para ela não há chances de outros tipos de
mudança, já que está presa ao círculo de repetições como atração do parque. Os choques
elétricos e as drogas injetadas em seu corpo apagam sua memória todos os dias, e esse ser que
não sabe nem quem é, nem o que fez também é punido repetidamente a cada 24 horas. A
analogia com K, personagem de O Processo, de Kafka, intensifica-se. E o processo é
alimentado pela produção de imagens dos visitantes e dos organizadores. Eles estão lá também

24. Obviamente, poderíamos levantar exemplos reais de punições e violência sistêmica extremados na sociedade
contemporânea, tais como os campos de concentração na Segunda Grande Guerra, os genocídios racistas, os
abusos e a tortura nas prisões de guerra norte-americanas, como Abu Ghraib ou Guantánamo (que ganharam apelo
midiático através das filmagens das torturas e processos de ridicularização desses indivíduos divulgados na
internet antes mesmo da existência e massificação dos smartphones e do Youtube), ou também os milhares de
assassinatos de animais inumanos criados em condições parcas de vida, como pouco espaço, temperatura
excessivamente alta ou baixa (holocausto animal).
70

para assegurar que tal punição seja cumprida todos os dias, como um braço, ou milhões de
braços do Estado.
O julgamento online, por sua vez, já é uma punição, pois satisfaz aquele que julga,
aponta e acusa. E também porque a máquina midiática necessita do aval de um julgamento
popular como preparação para o gozo da punição espetacularizada, fertiliza o território até o
momento do clímax. Caso contrário, a punição não passa de uma situação dada como grotesca.
É o mesmo mecanismo das prisões midiatizadas de grandes operações policiais. Os enunciados
envolvendo determinados personagens sujeitos a condenações em regime fechado circulam
exaustivamente muito antes das audiências que determinarão suas condenações ou não. Em
alguns casos, antes mesmo da existência de provas. O espetáculo da prisão é somente o clímax
dessa articulação. No caso de Victoria, há uma dobra curiosa em que esses dois níveis parecem
se equivaler: a punição ocorre ao mesmo tempo em que é julgada, visto que todo o teatro cruel
com a participação dos espectadores só acontece porque é ao mesmo tempo registrado e
compartilhado nas redes sociais. E parece ser o mesmo caso da lógica de exposição nas redes
sociais daqueles que supostamente não foram morais ou éticos: esse ato de apontar é a própria
punição, já que pode levar ao ostracismo, problemas emocionais, isolamento social, etc.
Os indivíduos que tomam para si a tarefa de vigilância panóptica do Estado,
rediagramando-a através do sinopticismo, também estão presentes no episódio Shup Up and
Dance (2016). Dois homens, um senhor de meia idade, casado, membro de uma típica família
heteronormativa monogâmica (papai, mamãe e filhinhos), e um tímido adolescente, Kenny, são
flagrados por um malware. O software malicioso, acidentalmente instalado em seus
computadores, filma, através de suas webcams, ininterruptamente. Do primeiro, uma
negociação com uma prostituta para agendar um encontro de sexo casual. O mais jovem foi
gravado masturbando-se ao observar fotos de crianças nuas na internet. Ambos são
chantageados por meio de mensagens no celular. Aceitam que seus celulares sejam rastreados
e passam a fazer parte de uma missão: entregar um bolo, que teria dentro uma arma e vestuário
para disfarce. Roubariam um banco, e o dinheiro seria usado para pagar o “resgate”: seus
vídeos, dos atos moralmente questionáveis, não seriam divulgados. Aquele que cometeu o que
os hackers “justiceiros” julgaram ser um “crime” mais brando foi liberado. Kenny, um pedófilo
em virtualidade, tinha mais uma tarefa: lutaria, em uma floresta, com outro condenado pelo
mesmo crime, até a morte. A luta seria transmitida por streaming, filmada por um drone
fornecido pela milícia que decidiu expô-los. Venceu a luta, matando o oponente, cometendo
seu primeiro crime. A promessa de “resgate” não foi cumprida. O vídeo vazou na internet, e
Kenny foi punido inúmeras vezes: teve que realizar a missão, assaltar, roubar, assassinar, foi
71

recebido em casa por inúmeras pessoas que queriam linchá-lo, pela polícia e por sua mãe,
gritando, decepcionada, depois de ter visto o vídeo da masturbação. Provavelmente, seria morto
ou estuprado na prisão, destino comum daqueles que são conhecidos como pedófilos.
Recorrente também na atmosfera pessimista que transpassa Black Mirror é a
impossibilidade de cometer suicídio. Esgotados, os personagens, como Bing, que não consegue
penetrar o caco de vidro na garganta, ou o androide marido condenado a viver eternamente em
um regime de escravidão no sótão, ou Victoria, sempre impedida de se matar pela direção do
parque. Kenny também o é: a arma dada a ele não tem balas. Sua punição deve ser a mais longa
possível: sentindo o seu corpo ser rasgado todos os dias na prisão, ele é empalado
vagarosamente, até morrer, perdendo todo o seu sangue. Para que seja efetivada, a punição
deve ser um acontecimento midiático, não no sentido que Deleuze dá ao acontecimento, mas
àquilo que mais se aproxima do que pode ser visto como contingente, espetacular, ainda que
essas imagens também sofram processos de exaustão e repetição, atingindo um estatuto
paradoxal. Perdem seu efeito inicial.
Punido pelo potencial de cometer um crime – nada indica, na narrativa, que ele tenha
de fato transado com alguma criança, a não ser consigo mesmo. Trata-se de um movimento
punitivo essencializante: ainda que tivesse cometido o crime, nada garante que os novos
encontros e agenciamentos que encontraria o fariam mudar de ideia e de comportamento. A
punição midiática trabalha com verbos de estado, em especialmente o ser. Kenny é pedófilo e
sempre será, mesmo sem nunca ter sido, e foi exposto e vigiado pelos seus pares, além do
Estado.

Figura 23: “This is not a performance”.25

25. Em Death Note (2006-2007), o estudante Light Yagami encontra um caderno que lhe dá acesso à companhia
de um deus do submundo. Ao escrever o nome das pessoas nesse caderno, elas automaticamente morrem. Não
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Em um universo em que as abelhas, extintas, foram substituídas por versões eletrônicas,


pequenos drones devem polinizar as flores para que toda a cadeia alimentar da Terra não
comece a se decompor em uma nova configuração que possa excluir os humanos (e boa parte
do ecossistema planetário vivente). Um grupo de hackers invade o sistema de gerenciamento
desses dispositivos e o conecta a um script que contabiliza e monitora tweets com uma
determinada hashtag: #deathto, seguida do nome de alguma pessoa. Todo dia, o jogo Verdade
ou Consequência termina com um eleito: aquele(a) que foi mais citado deveria ser morto.
Abelhas teleguiadas invadem o crânio desses indivíduos pelos ouvidos ou perfurando-os,
atingindo o centro de produção de dor, até enfartá-lo ou induzi-lo ao suicídio, tamanho
sofrimento.
Um grande enxame desses drones dotados de pequenas minicâmeras (que o governo
secretamente usava para espionar os cidadãos do Reino Unido) pode mesmo decompor um
corpo. Se o primeiro-ministro britânico teve que sofrer transando com uma porca e ejaculando
nela em rede nacional no primeiro episódio de Black Mirror, em Hated in The Nation, a punição
é a morte, ainda que, na trama, fique subentendido que o governante possa ter fugido para um
bunker subterrâneo. A população compartilha uma ideia equivocada de que pode fazer, em
termos coloquiais, “justiça com as próprias mãos” e inicia um massacre: um rapper que
maltrata uma criança que imita seu trabalho em um programa de entrevistas na televisão
britânica, uma jornalista que disse que era absurdo uma lei que beneficiasse deficientes físicos
que usam cadeira de rodas, uma jovem que postou uma foto urinando em um memorial do
holocausto – todos “suicidados”, como Van Gogh.

tardou para que esse aparato passasse a servir para que Yagami eliminasse, com as próprias mãos (ou as mãos dos
deuses), criminosos e corruptos. Até a emergência da figura midiática “L”. Conhecido apenas pela sua primeira
letra, o detetive da polícia secreta não podia ter seu plano de descobrir o motivo das mortes misteriosas, já que
ninguém conhecia seu nome, apenas a silhueta de seu corpo e a inicial de seu nome.
73

Figura 24: o teatro perverso.

E é contra essa imposição midiática do verbo estar, ou seja, da prática de essencializar


e expor os indivíduos de maneira individual, para caracterizar personagens com regras bem
definidas no universo social, que destacamos o esforço da filósofa Catherine Malabou em
pensar a mente e o nascimento de um novo indivíduo sem que haja a morte clínica, como
conhecida pelos enunciados médicos. Em outras palavras, como eu posso deixar de ser eu
mesmo, bruscamente, sem que seja preciso mudar de corpo, deixar para trás a subjetividade e
uma certa forma de acessar a memória, enterrar o meu antigo nome?
Em seu breve ensaio Ontologia do Acidente, Malabou coleciona e analisa casos em que
seres humanos se tornam outras pessoas, seja através de efeitos de traumas físicos quanto
devido a surtos psicológicos e psiquiátricos, acontecimentos desestabilizadores. Esse aspecto
contingente do cérebro, sua plasticidade, seria, entretanto, o seu potencial revolucionário, de
promoção de rupturas. Trabalhando em conjunto com Spinoza, ela lembra que, como o filósofo
holandês afirma, se o homem é o próprio desejo, passa constantemente por mudanças
ontológicas graduais ou abruptas. É o caso de Victoria. Afirma Malabou:

A concepção muito específica de entidade diferenciada entre o espírito e o corpo


desenvolvida por Spinoza permite pensar que ele compreendeu perfeitamente o papel
do cérebro, que é precisamente o de assegurar essa unidade, encarná-la, em sentido
próprio. A hipótese de uma transformalidade do conatus, que coincide com sua
variabilidade afetiva constante, com a mutabilidade de sua tensão, de sua intensidade,
de seu tom, prepara um pensamento sobre os danos causados pela lesão de pontos
cerebrais indutores das emoções. Quando a gama dos afetos própria ao
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desenvolvimento do conatus se encontra lesada, estragada, a identidade é


profundamente alterada, metamorfoseada, de fato. (MALABOU, 2014, p. 28).

Ainda ao se referir a Spinoza, ela cita Góngora, um poeta lido pelo filósofo holandês e
citado na Ética, que havia perdido sua memória. Antes mesmo de morrer, não se reconhecia
como autor das obras que escrevera. Ele as desconhecia completamente, assim como todos os
elementos sociais de sua vida, em “uma morte que não é a morte, mas aparece como uma
mudança radical de personalidade” (MALABOU, 2014, p. 32). A autora ainda cita outros
exemplos, como Gregor Samsa, personagem kafkiano que acorda transmutado em um inseto
baratesco, ou serial killers que passam por experiências traumáticas e que não se reconhecem
como aqueles que cometeram os crimes. Morreram, mas passam bem.
A possibilidade de se redimir não cometendo o mesmo crime, sendo outro indivíduo,
seja ligeira e gradualmente ou radicalmente modificado, é ceifada e interrompida pela lógica
punitiva da sociedade de controle midiática, que busca punir e julgar, seja por meio de
enunciados de ódio ou de incitação à violência, antes de prezar pelo entendimento daquilo que
levou ao acontecimento. Interrompida, Victoria sofrerá a punição eterna e alimentará com
imagens aqueles que consomem e sentem prazer com seu sofrimento, mesmo que a Victoria
que cometeu o crime não exista mais.
As questões que ficam e das quais discordamos são: por que Victoria foi punida e há
um mal que seja tão mal em si mesmo que tê-lo praticado justifica uma punição eterna e
repetitiva? Para isso, voltemos a Spinoza. Um ente não tem autonomia ontológica, todas as
ações são determinadas pela rede de causalidades que o moveram a fazer algo. Não sabemos
quais eram as motivações de Victoria, pois a narrativa não as mostra, ela foca apenas no
processo de sua punição e exposição ad infinitum. Entretanto, como Spinoza afirma que a
natureza é infinita e perfeita, tudo o que acontece dentro dela (e não há um fora da natureza e
de Deus) só poderia ter acontecido daquele mesmo jeito. São causas e ações necessárias e não
contingentes. Somos indivíduos dessa natureza, e, “do ponto de vista da natureza ou de Deus,
há sempre relações que se compõem, e não há nada senão relações que se compõem segundo
leis eternas” (DELEUZE, 2002, p. 43). Nesse sentido, não há nada que é mau em si mesmo,
pensar isso é uma ideia inadequada, que está no primeiro gênero do conhecimento da ontologia
de Spinoza:

[...] o primeiro gênero define-se antes por signos equívocos, signos indicativos que
envolvem o conhecimento inadequado das coisas, signos imperativos que envolvem
o conhecimento inadequado das coisas, signos imperativos que envolvem o
conhecimento inadequado das leis. Esse primeiro gênero exprime as condições
naturais de nossa existência enquanto não temos ideias adequadas. [...] o segundo
gênero define-se pelas noções comuns, o esforço da Razão no intuito de organizar os
75

encontros entre modos existentes sob relações que compõem, e ora o desdobramento,
ora a substituição dos afetos passivos por afetos ativos decorrentes das próprias
noções comuns. (DELEUZE, 2002, p. 64).

Tanto o primeiro quanto o segundo gênero já estão no campo da linguagem, daquilo


que comunicamos a partir das afecções que recebemos, e o segundo deles é o campo do
entendimento, das noções comuns compartilhadas que permitem a emergência de uma
sociabilidade minimamente ética. Atingir o terceiro gênero de conhecimento seria atingir a
própria ideia de Deus, a verdadeira ideia que representa todos os encontros. A representação
de Deus seria o próprio Deus, a substância ela mesma em todas as suas relações, as coisas em
si mesmas em suas essências singulares. Tal feito demandaria a entrada e percepção de um
novo regime de temporalidade. No terceiro gênero do conhecimento, “o tempo vivido é o do
movimento real e absoluto da produtividade da Natureza” (BOVE, 2014, p. 40), é o contato
com todo o emaranhado de causalidade possível de ser assimilado por nossos atributos de
pensamento e extensão, ainda que existam outros paralelamente infinitos a eles. Seria um
contato com a eternidade porque, “nesse sentido, o tempo já não é temporal, mas eterno, puro
movimento da substância que não muda” (Ibid., p. 45). É nessa instância que, conhecendo
todos os encontros e agenciamentos, a causa de alguém cometer um crime seria rastreada,
mesmo remetendo a outras infinitas causas concatenadas. Ainda assim, seria uma determinação
que não culpabilizaria o criminoso, que é apenas um nodo em uma malha de causas e efeitos.
Uma caminhada do primeiro ao terceiro gênero do conhecimento exigiria uma mudança
de perspectiva, por isso é quase impossível. No primeiro, conhecendo apenas os signos dos
acontecimentos deixados em nossos corpos, somos capazes de imaginar que eles ocorram por
contingência ou mesmo que são nossa responsabilidade como sujeitos criadores absolutos dos
pensamentos e ações. Em contrapartida, no entendimento, não há contingência, só a
compreensão da necessidade (Ibid., p. 45). Spinoza nos lembra que não é preciso nem possível
estar no terceiro gênero do conhecimento permanentemente. Por meio de noções comuns que
podem ser compartilhadas promovendo o bem de um corpo social, já é possível criticar e
refletir sobre os encontros que fazemos. E, na maioria das vezes, permanecemos no campo dos
afetos, da contingência, e não há problema algum nisso. Pelo contrário, trata-se de um campo
ignorado, mas importantíssimo, na semiose de Spinoza, e é prudente arriscarmo-nos na
contingência para poder estar em novos bons encontros.
Victoria, portanto, não era uma má pessoa, mas foi movida por uma cadeia de
causalidades a decompor outro ser, a criança que matou. Ela é fruto de seus encontros, não
sabemos quais. A sociedade de controle é marcada pelo julgamento, as causas não são
76

avaliadas, mas os efeitos, canalizados discursivamente nos discursos de ódio distribuídos nas
redes midiáticas. A assassina Victória é apenas um efeito de encontros, dos quais aqueles que
a julgaram só tiveram ideias inadequadas.
Há um importante detalhe nesse mecanismo. O julgamento é ineficiente, mas algo deve
ser feito com o indivíduo que acaba sendo responsabilizado por uma ferida no corpo social.
Spinoza ainda herda muito de uma analogia corrente na filosofia da época, que entende a
sociedade como um corpo ou uma máquina mecânica. Mas há uma questão de efetividade na
atitude que deve ser tomada em relação ao corpo decompositor, e na maioria dos casos, uma
solução é isolá-lo e afasta-lo, ou em última instância, eliminá-lo (pena de morte formal ou
linchamento), posicionando a máquina punitivista no indivíduo e não nas condições de
emergência que favoreceram o ato submetido ao julgamento. E na máquina midiática, a
velocidade em que isso tudo acontece é acelerada à enésima potência, atropelando qualquer
possibilidade de avaliação ética ou mesmo deixando passar eventuais e corriqueiras inverdades
(ou ideias inadequadas).
Brian Massumi (2016) afirma que outro termo para designar ideias inadequadas é
estupidez. A ascensão de uma estupidez midiática não deve desconstruída por meio de uma
demonização das plataformas de comunicação, mas de novas técnicas de alfabetização
midiático-comunicacional. Ao falar de estupidez, não se trata, entretanto, de um julgamento
moral a respeito dos blocos de sensações captados em nossos encontros com outros corpos e
ideias; a imaginação, ao contrário do que muitos spinozanos racionalistas afirmam, é
imprescindível. É aquilo que “Deleuze e Guattari chamam às vezes de ‘ilusões objetivas’, que
são verdadeiras e necessárias” (MASSUMI, 2016, p. 37). A estupidez, entretanto, acontece
quando alguém “se agarra obstinadamente às ilusões objetivas, fazendo com que as ações de
alguém, durante uma vida inteira, revolvam entorno delas” (Ibid., p. 37).
Deslocando-se dos encontros em direção aos seus resultados, partimos para um
julgamento moral. Como seria uma avaliação ética? Bastaria (e isso não é tarefa fácil) observar
as causas que levaram ao crime, entendê-las, buscar provas éticas. A punição eterna é um
encontro inadequado, não propõe nenhuma modificação em redes de causalidade que
provocaram aquilo, buscam decompor um indivíduo e espetacularizar todo esse processo,
entreter o público. Nesse caso, não o destruir totalmente, mas desgastá-lo aos poucos por meio
de encontros que lhe trazem tristeza e dor. Sendo assim, individualizando as causas, seja em
um determinado corpo, etnia ou grupo identitário, desloca-se um ponto da rede de causalidades,
e pontos que não possuem mobilidade podem ser facilmente substituídos. Em contrapartida,
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[...] a prova ética é o oposto do julgamento diferido: em vez de reestabelecer uma


ordem moral, ratifica desde logo a ordem imanente das essências e de seus estados.
Em vez de uma síntese que distribui recompensas e castigos, a prova ética contenta-
se em analisar nossa composição química (prova do ouro ou da argila). (DELEUZE,
2002, p. 48).

Enxergamos outros três eventuais apontamentos: a) a possibilidade de filmagem e da


não intervenção, a não ser da própria utilização das mídias a partir da audiência – como se
houvesse um “programa” de uma peça de teatro que devesse sofrer as mínimas interferências
para evitar qualquer tipo de imprevisto, ou seja, controle da situação; b) a impossibilidade de
escapar da punição do julgamento, que se torna acontecimento midiático a partir da própria
ideia de controle que se tem sobre Victoria e seus atos (sabe-se que alguns incidentes acontecem
que desestabilizam o controle das atrações do condomínio-parque, como ela pegar em armas
ou facas, o que possibilitaria uma quebra na narrativa. A não intervenção do público, como
orientada no vídeo de entrada do parque, seria uma forma de manter estável esse sistema não
influenciando nos agentes materiais utilizados na narrativa; c) um suposto aspecto sádico
proporcionado, um desejo neles construído de sadismo e aquilo que se entende como justiça.
78

2.1.1. Masoch, Severin e a subversão da Lei


Du blutest für mein Seelenheil
Ein kleiner Schnitt und du wirst geil
Der Körper – schon total entstellt
Egal, erlaubt ist, was gefällt

Ich tu’ dir weh.


Tut mir nicht Leid!
Das tut dir gut.
Hör wie es schreit!

Rammstein

É preciso antes destacar dos vocábulos sadismo e masoquismo alguns preconceitos,


enunciados que os definem com certa frequência como atos que ocorrem em setores doentes
de uma sociedade normatizada ou apenas entre quatro paredes. Também é preciso desmontar a
noção difundida entre sadismo e masoquismo (construída de modo que o sadomasoquismo
fosse uma prática constituída por opostos complementares). Em um primeiro momento, pode
parecer que estamos nos afastamos um pouco do tema central, mas retomaremos a importância
desse comentário logo mais. “[...] o sádico gosta tanto de ser chicoteado quanto de chicotear
[...] Severin, o herói de A Vênus, se declara curado, chicoteia e tortura as mulheres, se imagina
‘martelo’ ao invés de ser ‘bigorna’”. (DELEUZE, 1983, p. 42) “[...] em ambos os casos, o
reviramento se dá no fim da tentativa” (ibid.). O que vemos no julgamento midiático não é nem
sadismo, nem masoquismo, mas um desejo de punição infinita. O masoquismo, ao contrário,
seria um ato subversivo potente. É isso o que Deleuze (Ibid., p. 42) explica na análise da obra
de Sacher-Masoch: “[...] dir-se-ia que, de tanto expiar, e de satisfazer uma necessidade de
expiar, o herói masoquista permite a si mesmo, afinal, aquilo que as punições deviam impedir-
lhe. Colocados adiante, os sofrimentos e os castigos tornam possível o exercício do mal que
eles deviam proibir”.
Esse ato subversivo, vimos, acontece na inversão dessa lógica. Há um desejo que já é
embutido em nossa subjetividade, via enunciados e dispositivos proibitivos da lei. Todo um
conjunto de regras inseridas em nossa subjetividade (não da maneira passiva quanto possa
parecer). Elas modulam afetos ao gerar culpa naqueles que estão submetidos a ela. Para gozar,
a pessoa deve sofrer, pois está se punindo pela culpa que sequer sabe por que tem, visto que a
lei é a lei pela lei, ou pelo menos essa é a impressão que dela temos.
É o movimento feito por Justine, a personagem Ninfomaníaca de Lars von Trier.
Viciada em sexo, deitada em sua cama após o coito com um qualquer, seus olhos ficam
arregalados de uma maneira distinta e suas mãos não cessam de estimular o órgão sexual. “Não
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sinto nada”. O não sentir nada é não conseguir atingir orgasmos ou lubrificação vaginal. Sente-
se culpada, mas não sabe o motivo. A Lei age em sua forma mais pura, interdita o prazer e o
gozo do indivíduo. Para que ela possa voltar a gozar, começa a pagar para ir à casa de um
homem, que a espancava com chicotes e outros objetos de tortura. Indivíduo que agia como
uma peça nesse jogo de punição e gozo, ele não permitia que eles estabelecessem uma relação
sexual genital. Depois de muitas sessões, suficientemente punida, Justine volta a sentir
umidade entre as pernas e pode voltar a gozar; umidade que só havia sentido anteriormente
quando líquidos escorreram por suas pernas ao ver o pai morrendo de uma doença degenerativa,
que não o permitia mais defecar sem sujar a cama do hospital. Justine fazia sexo com muitas
pessoas e sentia desejo pelo pai, mas tinha todos elementos da lógica da culpa e incesto
internalizados em seu inconsciente. O mecanismo para sair dessa engrenagem foi movimentá-
la, como Severin. De acordo com Deleuze (1983, p. 77), “observa-se que o masoquista é como
todo mundo, que encontra o seu prazer ali, onde os outros encontram, mas que simplesmente
uma dor prévia, ou uma punição, uma humilhação servem para ele como condição
indispensável à obtenção do prazer”. O autor continua:

Ao mesmo tempo que a lei não pode mais se fundar sobre o Bem como um princípio
superior, ela não deve mais também ser sancionada pelo Melhor como boa vontade
do justo. Pois o mais claro, é que a LEI, definida pela sua pura forma, sem matéria e
sem objeto, sem especificação, é tal que não se sabe o que ela é, e que não se pode
saber. Ela age sem ser conhecida. Ela define um domínio de erro onde somos todos
desde já culpados, quer dizer, onde já transgredimos os limites antes de saber o que
ela é: como Édipo. E a culpabilidade e o castigo nem mesmo nos fazem conhecer o
que é a lei, mas deixam-na nessa indeterminação mesma, que corresponde como tal
a presença do castigo. Kafka soube como descrever esse mundo. [...] Efetivamente,
se a lei não se funda mais sobre um Bem prévio e superior, se ela vale pela sua própria
forma que deixa o conteúdo completamente indeterminado, torna-se impossível dizer
que o justo obedece a lei para o melhor. Ou antes: aquele que obedece a lei não é e
nem se sente mais justo por isso. Pelo contrário, sente-se culpado, ele é culpado de
antemão, e tanto mais culpado quanto mais estritamente ele obedece. (DELEUZE,
1983, p. 91-92).

O ato masoquista é, portanto, muito distinto da punição sofrida pela personagem, já


que, contra uma “indeterminação da lei”, o masoquista impõe a precisão de um castigo (Ibid.,
p. 93), pune-se com algo certo para poder gozar à vontade. Victoria não tem o poder de escolha,
não sabe por que foi punida, tem o acesso às suas memórias de certa maneira interditado, fator
que impossibilita que ela própria se lembre de como ocorrerá a punição todos os dias. Inclusive,
uma Victoria sem memória do crime que cometeu pode ser considerada o mesmo indivíduo
que cometeu o crime? A única alternativa que resta ao personagem é seu conatus, seu esforço
de permanecer na existência, mesmo todos os dias sendo chicoteada e inserida em um teatro
perverso. Um fio de vida. Para discutir isso, devemos entrar nas próprias concepções de desejo
80

de Spinoza, de modo que possamos dissertar sobre o papel dos artefatos midiáticos na
construção de determinadas cadeias de afetos, como os desejos de emulação e imitação.
81

2.2. Desejo faltante e desejo produtivo

Na obra o Anti-Édipo, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1976), seguindo o conceito


spinozista de desejo, buscam abordar esse conceito de maneira diferente da então contemplada
pela Psicanálise, principalmente no que esta diz respeito a suas múltiplas tentativas de
edipianização e estruturação do inconsciente como linguagem e representação,26 um teatro com
personagens estruturados e de marcações rígidas de atuação. Para os autores anteriores, a
questão que trazia mais incômodo é: por que o Desejo deve ser desejo de algo, estruturado
como falta? Em contrapartida a isso, buscava-se pensar como múltiplos encontros (inclusive
os midiáticos e incorporais) são capazes de gerar uma série de desejos nos indivíduos. O Anti-
Édipo, entretanto, não é antipsicanálise, como alguns afirmam e a respeito do que Luis Eduardo
Aragon dissertou (ARAGON, s/d).
Esse conceito de desejo e suas variações devem sua origem aos conceitos de desejo ou
conatus para Baruch Spinoza, que não contradizem, mas reafirmam a versão desenvolvida por
Deleuze e Guattari. Cremos que a associação entre esses autores é fortuita para nossa análise.
Como já afirmamos, Spinoza desenvolve uma ontologia monista, admite a existência de apenas
uma substância, que é a natureza. A natureza, por sua vez, é Deus (Deus sive natura). São
conceitos intercambiáveis. Se houvesse mais de uma substância, elas poderiam afetar umas às
outras e modificarem-se, estariam em distintos níveis de perfeição27 e pressuporiam assimetrias
ontológicas. Como o autor sustenta que Deus (ou a natureza) é perfeita, não é possível admitir
a existência de outra substância que já não esteja nela contida, visto que, além disso, ela
também é infinita e se manifesta por meio de infinitos atributos que também têm infinitos
modos.
Uma abordagem como essa entra em desacordo com uma visão de que cada um dos
seres humanos seja uma substância, seja um sujeito autônomo dotado de um poder de agência
intencional. Para Spinoza, somos modos, corpos formados por outros corpos de inúmeros
tamanhos em escala infinita. Do mesmo modo, nós nos compomos com outros corpos
infinitamente; somos graus de potência, são eles que nos definem. Os processos de composição,
de encontro, de agenciamento fazem com que aumentemos ou diminuamos esse grau de
potência. O intervalo dessa passagem, ou seja, “o tempo entre esses [dois] estágios de potência

26. A crítica de Deleuze e Guattari a respeito de um inconsciente estruturado como linguagem é a de retratá-lo
como representação: “aqui nada é representativo, mas tudo é vida e vivido: a emoção vivida pelos seios não se
parece com os seios, não os representa [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 36).
27. Spinoza descorre sobre isso nas proposições VI, VII e VII da Primeira parte da Ética: “Uma substância não
pode ser produzida por outra substância”; “Pertence à natureza de uma substância existir” e “Toda substância é
necessariamente infinita” (SPINOZA, 2014c, p. 91).
82

é o tempo do evento” (MASSUMI, 2015, p. 49). Esse grau configura a nossa essência, e ela
não é predeterminada, inerente ao indivíduo e identitária (ou seja, dotada de certa fixidez), é
produzida a partir dos encontros acima comentados que compõem ou decompõem os
indivíduos. A essência é aquilo que atribui uma definição a um ente. Só sabemos como
potencializar nossas essências ao experimentar a maior quantidade possível de encontros ou
recusando-os, desde que seguindo ideias adequadas a respeito dos objetos ou entes que podem
nos afetar.
Para Spinoza, como vimos nos itens anteriores, cada afeto Afeto é a variação na
potência a partir de um traço (afecção ou ideia afecção) em um corpo quando este encontra-se
com outro(s) corpo(s), um em uma ideia quando encontra outra(s) ideia(s). Uma modificação,
que pode ser boa ou ruim para a manutenção da existência de tal corpo; portanto, a variação de
potência anteriormente destacada. Não ser afetado é impossível, já que, diferentemente do
Estoicismo, para Spinoza, não há vácuo na natureza, e os corpos estão sempre em alguma
relação, ainda que mínima, uns com os outros, várias vezes, a todo momento. Ainda segundo
a visão desse filósofo, os afetos dizem mais sobre a potência atual de nosso corpo do que a
respeito do elemento exterior que os afetou, apesar de projetarmos uma essência e qualidades
fixas muitas vezes a eles: tal pessoa é boa ou ruim, o cachorro é mau porque morde o humano
etc. Permanecer um indivíduo pleno sem se decompor entre tantos encontros não é uma tarefa
fácil aos entes, mas o esforço é constante, pois é a própria essência do ser:

Cada coisa, enquanto é em si, se esforça para perseverar em seu ser. [...] nenhuma
coisa possui em si algo pelo qual possa ser destruída, quer dizer, que subtraia sua
existência. [...] Ao contrário, ela se opõe a tudo o que possa subtrair sua existência
[...]; assim, enquanto pode e é em si, ela se esforça para perseverar em seu ser.
(SPINOZA, 2014c, p. 205; Ética III, Proposição VI).

Essa tendência a continuar na existência buscando manter ou aumentar esse grau de


potência Spinoza denomina de conatus ou apetite (quando o conatus toma consciência de si,
ele tem o nome de desejo). Neste ponto, chegamos próximos ao conceito que Deleuze e
Guattari desenvolverão para contrapor algumas abordagens dadas à psicanálise lacaniana e que
não vêm ao caso, aqui, para evitar maiores desdobramentos conceituais. O conatus de Spinoza
não é uma propriedade ou atributo do corpo, tampouco o representa. É impossível ser
proprietário de um nível de conatus. Podemos considerá-lo como um elemento pré ou
transindividual. Esse esforço de permanecer na existência atravessa os corpos antes de passar
por um nível consciente ou inconsciente da mente. Por esse ponto, pode-se propor que o
conatus não representa nada, já que não está atrelado à consciência ou ao inconsciente, é um
vetor daquilo que posteriormente será chamado de “devir(es)”. Isso não significa que a
83

linguagem não possa produzir desejos por meio de suas interpelações à carne, é essa justamente
a questão e o propósito da máquina de propaganda: imputar a necessidade de obtenção de um
certo produto ou serviço para completar as experiências do dia a dia, providenciando uma
suposta plenitude. Vale lembrar que, nesses casos, as convocações são negociações que nada
se parecem com as teorias de manipulação das massas difundidas nas ciências sociais na
primeira metade do século anterior.
Para Gilles Deleuze e Félix Guattari, o desejo seria conexão,28 maquínico; está, assim
como em Spinoza, ligado tanto no corpo como na mente, em uma espécie de paralelismo,
atributos que não são de maneira alguma separados. Em outras palavras, a forma de atuação se
assemelharia à de uma fábrica que recebe matéria-prima, junta peças etc., cria novos objetos e
agenciamentos. O desejo busca novas composições, é diretamente inacessível pelas
construções linguísticas inferidas na Psicanálise, acusada de ter invertido sua ordem produtiva
ao relacioná-la à representação29 (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 375) e de dar um caráter
faltoso ao desejo. Aquilo que se deseja não é algo que falta ao ser para que ele atinja sua
plenitude, deseja-se algo que pode aumentar o grau de potência de um ente, ou seja, sua
capacidade de permanecer existindo, mas cuja ausência não implica um vazio ontológico nele.
Portanto, essa noção é um conceito semelhante (e inspirado) ao conatus de Spinoza,30 que, já
salientamos, é o esforço em permanecer na existência, o que pode ser interpretado como a
pulsão de continuar vivo como indivíduo.
Para que continuem a existir, os seres devem acoplar-se a outros, o que o desejo deseja
ou é trata-se da própria conexão, do agenciamento com outras unidades corporais, pois “o
desejo não tem como objetos pessoas ou coisas, mas meios inteiros que ele percorre, vibrações

28. Cabe ressaltar que o que pretendemos, aqui, não é fazer uma abordagem que estabeleça uma analogia entre
essa ideia de conexão e uma abordagem que vem sendo feita em certos círculos, nas últimas décadas, que glorifica
todas as formas de conexão digital como o suprassumo da potência revolucionária. Vale lembrar que o capitalismo
(principalmente em sua forma cognitiva ou semiológica), com seu viés aceleracionista, alimenta-se desse mesmo
potencial de conexão e velocidade e também da produção de desejos. Vale a menção a dois textos que visam a
outra abordagem de Deleuze e que fogem dessa leitura completamente equivocada, que gerou “os deleuzeanos da
fralda molhada” ou “os deleuzeanos do Google” ou Carl Sagan (BERRY; GALLOWAY, 2016). São eles: Dark
Deleuze, de Andrew Culp (2016) e Forget Deleuze, de Alex Galloway (2015), que buscam na filosofia de Gilles
Deleuze novos personagens conceituais por ora um tanto quanto esquecidos na academia.
29. “Mito, tragédia, sonho, fantasma – e o mito e a tragédia reinterpretados em função do sonho e o do fantasma
–, eis aí a série representativa que a psicanálise põe no lugar da linha de produção, produção social e desejante”.
(DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 386).
30. “[...] a ótica deleuziana, a vontade de potência é também como o desejo primário de persistir no próprio ser,
tal como definido por Spinoza: ambos os desejos são potencializados e acentuados por um ser que se deixa afetar
pelos fenômenos externos. Neste sentido, o desejo é fortalecido por essa capacidade de responder ao que é
inevitavelmente externo. Na verdade, Deleuze entende a vontade de potência como uma sensibilidade
desenvolvida ou uma paixão, o que faz com que, no Anti-Édipo, ele defina o desejo e o corpo em termos de forças
de ‘atração e reprodução de intensidades’ (Deleuze, 1976, p. 339). Spinoza, portanto, também oferece a Deleuze
uma forma de compreender nossa relação com o mundo, a partir da intensificação de um desejo que resiste à
demanda dialética de apropriação do mesmo através de uma lei identitária”. (PEIXOTO JÚNIOR, 2004, p. 124).
84

e fluxos de qualquer natureza que ele esposa, introduzindo cortes, capturas, desejo sempre
nômade e migrante cujo caráter primeiro é o ‘gigantismo’” (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p.
370). Os autores afirmam que “é sempre com mundos que fazemos amor” (Ibid., p. 372), nunca
deseja-se puramente o objeto de desejo, mas um agenciamento, uma passagem com muitos
elementos. Cada ente está inserido em múltiplos agenciamentos em uma busca por aumento de
sua potência ou em uma espiral que pode levar à sua desintegração, ou a variações de ambos
ao mesmo tempo, já que, obviamente, nem todos os agenciamentos são catalizadores desse
aumento de potência.
Um encontro – seja ele de corpos ou de ideias – da maneira como afirma Spinoza, pode
ser um bom encontro ou um mau encontro, o primeiro aumenta a potência do ente nesse
permanecer a existir, e o outro pode diminuí-la. Podemos analisar, por exemplo, o fato de que
a personagem julgada no parque de diversões, mesmo estando conectada a múltiplos entes, que
estão lá para filmá-la, ou à própria estrutura material e midiática que a cerca, faz com que ela
acabe em um regime de cerceamento que lhe diminui a potência. A ela só resta um fio de vida.
Mesmo todas as imprevisibilidades de seu comportamento vão sendo tolhidas a cada iteração,
com novas orientações para o público para que não a toque, com modificações materiais no
cenário, nas armas que passam a ser de plástico, como um caminhar por uma escada que insiste
todo dia em criar novos degraus. Também a cada dia se aproxima de um fechamento de suas
possibilidades de escapar daquele ambiente e situação, ainda que sem restringi-los totalmente.
O controle absoluto é impossível, mas pode ser astuciosamente desejável. Esses agenciamentos
são, portanto, investimentos tanto do desejo, de que nos conectemos a outros entes, e no desejo,
podendo aí ter o seu fluxo produtivo redirecionado para os mais distintos fins.
O desejo ser produção e não falta não implica que ele não seja investido. A produção
de necessidades é possível e constante, e é aqui que Deleuze e Guattari pontuam o
funcionamento escorregadio do capitalismo, suas tentativas de colocar o desejo dentro de
estruturas, codificações e identidades predeterminadas, buscando canalizar as energias do
desejo para o consumo e a produção de mais-valia, prendendo-o “no esquema teatral papai-
mamãe-filhinho”. A primeira restrição, inescapável à primeira vista, é a própria linguagem. As
consequências disso são desastrosas: em um retorno subjetivista, admitimos para nós mesmos
que temos vontades e que, portanto, não somos completos sem que estas sejam sanadas.
Quando, entretanto, só há desejos que buscam e são instrumentalizados para o capitalismo do
capital social de si mesmo, temos a impressão de estar no controle e não em um fluxo
automatista, como se tivéssemos as rédeas postas sobre aquilo que denominamos vontade.
85

O desejo torna-se um desejo de, e o complemento desse enunciado pode ser qualquer
outra coisa, desde o desejo desenfreado pelo consumo de objetos midiáticos com fortes
tendências à obsolescência até o desejo de uma situação subjetiva e particular, um controle
aparente que é em si próprio ambivalente, já que o ideal de controle só é pensável a partir de
um desejo de controlar algo imputado e agenciado, tanto maquinicamente (ou seja, no campo
dos corpos), quanto pelos enunciados incorporais (arena da linguagem). A maneira possível de
especular e inferir sobre a produção desse desejo é entender em que agenciamentos estão esses
indivíduos nos quais se mostra o desejo de controle, suas relações e causas, inclusive as
relações comunicacionais como as conhecemos (seja no campo material, seja no campo
enunciativo). Como toda especulação, ela também será falha e incompleta.
A crítica de Gilles Deleuze e Félix Guattari à ideia de desejo como falta é estabelecida
a partir do argumento de que há um desejo que atua como produção, em um sentido spinozista,
o conatus, ou seja, o desejo como esforço em permanecer na existência. O inconsciente, para
os autores, é produtivo, quer dizer, busca encadear objetos físicos ou enunciativos, mas não
produz representações linguísticas fieis. O desejo, portanto, é produtivo também porque atua
diretamente no Real, na realidade, já que ele é uma tendência de composição, no sentido
spinozista, ou de produção de novos agenciamentos corporais.31 Isso não implica que desejos
autopoiéticos surjam do sujeito para ele mesmo. Se o desejo se constrói em nós como falta, é
porque é fruto de agenciamentos, sejam eles discursivos ou materiais, instâncias de enunciação
ou afetos. Esses autores trabalham com o conceito de máquina, ao tratar sobre os corpos, e de
enunciação, quando dizem respeito àquilo que é incorporal e está no campo da linguagem.
Neste sentido, os enunciados indicam que o desejo é sempre de algo, e este algo
preenche uma incompletude. “Eu preciso de mais camadas de segurança para manter minha
integridade física”. Assim, submetemo-nos a vistorias excessivas, câmeras de segurança, raios
x, etc. Não basta, entretanto que sejamos controlados se o outro não se submeter aos mesmos
padrões, ou procedimentos mais rígidos, caso o vejamos como exótico. Cria-se um lugar
paradoxal em que aceito ser controlado e desejo controlar o outro, sua conduta, julgar alguém
que não se submeteu ao controle, extraindo prazer com os olhos de seus atos de submissão
involuntários.

31. Ou, como afirmam Deleuze e Guattari (1976, p. 43-44): “se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é
produtor, só pode ser na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os
objetos parciais, os fluxos, e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre dele, é o
resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente. Ao desejo não falta nada, a ele não
falta seu objeto. É antes o sujeito que falta ao desejo, ou ao desejo que falta um sujeito fixo; só há sujeito fixo pela
repressão”.
86

Podemos nos apropriar de uma bela descrição maquínica (de um campo abarrotado de
corpos distintos investindo sobre nossos sentidos) e crítica ao capitalismo feita pelo escritor e
ensaísta David Foster Wallace. Ele relatou minuciosamente – característica estilística de sua
prosa – a experiência de passar uma série de dias como jornalista credenciado a cobrir a Feira
Estadual de Illinois de 1993. Assim como o personagem da introdução que caminha através
das paredes infinitamente espelhadas e se sente desorientado pelo excesso, Foster Wallace narra
a experiência que é a própria confusão que se emergiu em sua mente ao ser afetado por tantos
estímulos dos tipos mais variados:

Num estado cuja origem e razão de ser são a comida, há um forte subtexto digestivo
percorrendo toda a Feira de 93. Em certo sentido, todos viemos aqui para sermos
engolidos. A bocarra do Portão Principal nos recebe, massas lerdas e compactas se
deslocam peristalticamente por sistemas complexos de dinheiro-e-energia nas
vilosidades que margeiam os acessos para no fim – ao mesmo tempo saciadas e
esvaziadas – serem expelidas por saídas projetadas para um fluxo pesado. E tem as
exposições de comida e de produção de comida, os quiosques inesgotáveis de comida
e o consumo peripatético de comida. Os banheiros públicos e os mictórios coletivos.
O calor úmido de temperatura corporal do Pátio da Feira. Os rebanhos que são
julgados e aplaudidos como futura comida enquanto os animais ficam ruminando
sobre o próprio esterco. (WALLACE, 2012, p. 93).

O relato de Wallace é uma descrição de encontros dos mais distintos tipos (visuais,
físicos, olfativos, de ideias, enunciados). Tantos encontros que, mais tarde, em seu texto,
demonstram que o sentimento de esgotamento os tomou. Spinoza afirma que, quando o corpo
é afetado por muitos elementos que não necessariamente compõem com um indivíduo, isso faz
com que sejam produzidas ideias inadequadas a respeito desses agenciamentos, que se tome
uma causa por outra em um emaranhado de afetos. Foster Wallace aprendeu a fundo a arte da
descrição dos acontecimentos. Através de torções na linguagem e analogias, buscou esgotar,
em sua escrita, os acontecimentos que o envolvem, no caso de suas obras jornalísticas e de seus
personagens nas narrativas enciclopédicas. Se seguirmos a interpretação de Deleuze, podemos
afirmar que Foster Wallace busca estrangular a realidade descritível das máquinas que se
conectam nos agenciamentos no qual ele está, cartografar ambientes e deduzir como elas agem
exteriormente na produção de desejos, de incitá-lo a fazer algo.
Tal ato, para Gilles Deleuze e Félix Guattari, não seria possivelmente decodificado ou
explanado unicamente pelas relações significantes. É necessário que se produza uma
cartografia, observar como é um desejo maquinado, ou seja, como Nick Land dissertou, fruto
de “máquinas desejantes32 [que] são caixas pretas, e portanto, não interpretáveis, de modo que

32. “As máquinas desejantes, ao contrário, não representam nada, não significam nada, não querem dizer nada,
e são exatamente o que se faz delas, o que se faz com elas, o que elas fazem de si mesmas”. (DELEUZE;
GUATTARI, 1976, p. 365; grifo nosso).
87

as questões esquizoanalíticas estão preocupadas somente com o uso” (LAND, 2013, Kindle
Loc. 4436) e se instalam no inconsciente, o que faz com que os sujeitos passem a caminhar por
linhas delimitadas e funcionais nas sociedades programáticas determinadas e determinantes
pelas redes de agência do Capitalismo Mundial Integrado, a instauração de uma lógica
condominial (DUNKER, 2015). Uma máquina desejante “territorializa os circuitos de controle
nomádico da deriva maquínica em linhas de comando sedentárias de representação
hierárquica” (LAND, 2013, Kindle loc. 4453).
Buscar e discutir aqui as diferenças entre as concepções e os tipos de desejos como
questionados por Lacan,33 Deleuze e Guattari seria inviável. Tentar, com o auxílio de outros
textos, esboçar um quadro comparativo entre o desejo como falta e o desejo produtivo de
Deleuze, Guattari e/ou Spinoza foi a tarefa aqui proposta. A lista, descrição, história ou
narrativa acima não é ilustrativa; a “abarrotação” de objetos e entes sensíveis, máquinas
corporais ou incorporais – podendo ou não fazer referência a acontecimentos representados em
outro conjunto de narrativas, cabe aqui a especulação deste texto – é uma fagulha para pensar
se há ou não a produção de um desejo de controle nos personagens retratados e como ela se dá.
Desejo de controlar a si mesmo, e ao outro, calcado em uma subjetividade antropo e
logocêntrica, que distancia cada vez mais o outro, continua uma trajetória de separação entre
sujeito/objeto; natureza/cultura, impulsionado pelos signos e discursos jorrados pelas e para as
mídias, gestos discursivos que visam à separação e à exclusividade e não à composição.
Se o conatus é aquilo que move os indivíduos rumo a composições que lhes aumentam
os graus de potência e o bem-viver, tudo aquilo que produz na mente ideias de que é preciso
adquirir algo ou fazer algo, criar uma tendência a algum tipo de ação que não necessariamente
resultará em uma composição, acontece por meio de um estímulo de fatores externos à essência
de um indivíduo, já que “o Desejo é a própria essência do homem enquanto concebida como

33. “Trata-se aqui do famoso sujeito dividido lacaniano, separado de sua unidade libidinal originária com o corpo
materno, num processo que supõe o recalque originário como o principal operador da individuação. Assim o
desejo é a expressão de um anseio de retorno à origem que, acaso recuperada, exigiria a dissolução do próprio
sujeito. Segundo Lacan, é justamente essa impossibilidade de recuperação das origens que faz do sujeito um limite
para a satisfação. Na medida em que emerge como uma contradição interna, fundando-se numa defesa necessária
contra a união libidinal primeira com a mãe, o sujeito é basicamente o produto de uma proibição. Seu desejo é
uma espécie de resíduo daquela união precoce, a memória afetiva daquele prazer anterior à individuação. Nestes
termos, o desejo é ao mesmo tempo um esforço para dissolver o sujeito que barra o caminho para o prazer, e a
evidência atual da impossível recuperação desse prazer” (PEIXOTO JÚNIOR, 2004, p. 111).
“Esse recalque primário também constitui o desejo como falta, ou seja, como uma resposta à separação originária,
que é menos a separação do nascimento do que o resultado da proibição da união incestuosa. É por isso que o
desejo é tido como um querer-ser ou uma falta-a-ser (Lacan, 1979, p. 33), perpetuamente frustrada por causa de
sua sujeição à Lei do Significante. Esse complexo raciocínio leva a pensar que, se o desejo se faz representar na
linguagem, ele só o faz sob a forma de uma presença oblíqua: sempre associado à sua proibição, ele assume a
forma de uma ambivalência necessária”. (PEIXOTO JÚNIOR, 2004, p. 113).
88

determinada a fazer qualquer coisa por uma dada afecção” (SPINOZA, 2014c, p. 252). O
desejo é a alavanca que nos impulsiona a fazer qualquer ato enunciar qualquer fala. As
máquinas comunicacionais e midiáticas, espelhos trincados distribuídos espacialmente no
entorno dos indivíduos, são elementos que têm uma grande responsabilidade na produção
desses desejos. Como afirma Spinoza, na Proposição LVI da terceira parte da Ética,

Há tantas espécies de alegria, de tristeza e desejo, e consequentemente de cada uma


das afecções de que estas são compostas, como a flutuação da mente ou que delas
derivam, como o amor, o ódio, a esperança e o medo, quantas as espécies de objetos
com os quais somos afetados. (SPINOZA, 2014c, p. 246).

Agora, por meio de mais uma análise de Black Mirror e outros textos, veremos que
mecanismos agem através de uma máquina comunicacional física e composta por múltiplos
elementos que, a todo momento, produzem afecções e estímulos das mais distintas maneiras.
Esses mecanismos podem produzir uma infinidade de variações de desejos que, entretanto,
podem levar a uma repetição das tendências ou das possibilidades em um indivíduo. Ou seja,
faremos uma análise midiática que leva em consideração elementos físicos (arquiteturas
panópticas que restringem os movimentos dos indivíduos em meio à presença de telas em todos
os ambientes), quanto discursivos – o discurso do controle ou da salvação midiática que é
irradiado. O que nos importa não é discutir mais extensivamente a ontologia do desejo, mas
detectar que tipo de afeto desejante vem emergindo em ecologias midiáticas que não são mais
contingentes ou cenários de futuros distópicos, mas atualizadas.
Inicialmente há dois momentos ou organizações de estados de coisas: uma escassez de
elementos cênicos, narrativos e a própria degradação do corpo humano dentro do quarto onde
estão confinados os personagens de Endgame, de Samuel Beckett, que têm possibilidades
limitadíssimas de agência (não conseguem se mover com propriedade), e um excesso de
elementos midiáticos que estimulam a todo momento Bing, protagonista de Fifteen Million
Merits, agenciado a fazer muitas coisas (movimentos físicos, performances audiovisuais) que
quase sempre se repetem e que produzem muitas vezes em favor do funcionamento de um
miniecossistema extremamente capitalista. O cenário desse episódio: um ambiente fechado,
não definido, em um futuro distópico cerceado por telas, com pouca possibilidade de
movimentação, estratificação social, consumo de conteúdos midiáticos 24 horas por dia.
Posteriormente analisaremos outra manifestação de agenciamentos midiáticos físicos,
dos hoje chamados “objetos inteligentes” ou protossubjetividades maquínicas, em uma trama
na qual uma viúva contrata um serviço de venda de androides que criam uma cópia quase
idêntica do falecido, utilizando os enunciados e as imagens por ele compartilhados nas redes
89

sociais e aplicativos de mensagens instantâneas. Novas temáticas se aliam à repetição de


questões aqui já tratadas: o controle que possibilita e é possibilitado por esses dispositivos, os
afetos em nós traçados pelas suas presenças e as tentativas quase sempre frustradas de
escapatória das constrições impostas pelos regimes de controle.
90

PARTE II - COMUNICAÇÃO COMO AGENCIAMENTO


Nós não vamos forçar nada nas pessoas EUA dentro de seus lares
quentinhos a elas. Nós vamos só tornar disponível. Entretenimento.
Vai haver então algumas escolhas, de entrar na dança ou escolher
não
[...] E qual é a diferença, por favor, se você cria um prazer gravado
tão divertido e interessante que é letal para as pessoas, você acha
uma cópia copiável, copia o Entretenimento e dissemina para nós
escolhermos ver ou desligar, e se nós não conseguimos escolher
viver?

David Foster Wallace

Um jogo de agências midiáticas que, em agenciamentos claustrofóbicos, modulam


afetos repetitivos e corpos obedientes é o tema do episódio Fifteen Million Merits. São tantos
os investimentos no campo dos desejos pelos estímulos corporais e de enunciação (ambos
midiáticos), que os personagens não parecem ter (e de fato não têm) para onde fugir e têm
reduzidas as possibilidades de qualquer tipo de ato. Tudo isso aliado a um sistema
excessivamente repressivo e meritocrático. Aquilo que, por vezes, escapa dessa lógica são
somente ações em potencial já refratadas ou refletidas pelos múltiplos espelhos negros que,
mesmo produzindo imagens distintas daquelas que por convenção chamamos de “reais”,
continuam a se refletir, e é com essas reflexões que os personagens conversam, a elas eles se
reportam, avatares de si mesmos e dos outros e sistemas de avaliação/pontuação.
No caso, o personagem principal é preso em um experimento, mundo ou quarto como
único lugar de vivência. Passa os dias olhando para avatares, propagandas, gravações de áudio,
vídeos etc. transmitidos pelas telas que circundam todas as partes de seu corpo e de seu olhar.
Esse homem, quando caminha pela fábrica de produção de energia, lugar onde é escravizado,
encontra outros indivíduos (em carne e osso) e não mostra sentir nenhuma vontade de interagir
com eles. As conversas e a comunicação são todas sistemáticas, burocráticas e funcionais,
dizem respeito ao próprio funcionamento do sistema de arrecadação de dinheiro eletrônico, que
será novamente convertido em imagens que possam aliviar, de alguma maneira, a dor de existir
naquele mundo. Os diálogos que esboça, ou os olhares que fogem desse funcionalismo, o
desejo que ele mostra ter acontecem por imagens que continuam a ser transmitidas em telas,
mesmo fora de seu quarto: propagandas que prometem um corpo melhor, malhado, sarado,
imagens das garotas lésbicas dos anúncios dos filmes pornográficos oferecidos on demand.
Toda uma vitrine de produtos para que ele os consuma dentro de seu próprio quarto. Há
diálogos, mas são extremamente mediados por várias camadas sígnicas e midiáticas, o que de
91

fato não seria um problema, se não fosse um condicionante impositivo. Ele, ao olhar para a
tela, utilizando as mídias controladas pelo toque e reconhecimento de movimentos, estabelece
conversas com os outros avatares, correspondentes a outros prisioneiros daquele ambiente,
consegue enviar estímulos incorporais a essas imagens (emojis, frases, fotografias etc.),
reporta-se a eles, consegue “cutucá-las”. Tudo acontece como se essas imagens passassem a
ser a própria subjetividade dos outros indivíduos, a partir dos quais podem ser estabelecidos os
únicos vínculos comunicacionais.
Vimos que esse hábito e esses desejos são construções maquínicas, não inerentes a um
sujeito de conhecimento que tem uma vontade própria e absoluta. Veremos que essas
construções investem nas subjetividades, agenciam tanto de maneira corporal quanto
incorporal, e que conseguem modular os mais distintos tipos de desejos. Continuaremos
seguindo a partir de Spinoza, mas ora ou outra tomaremos um pequeno desvio, refrações que,
de alguma maneira, escaparam do nosso jogo de espelhos.
92

CAPÍTULO 3. A (im)possibilidade do fora


There is no escape from the hours and the days. Neither from
tomorrow nor from yesterday. There is no escape from yesterday
because yesterday has deformed us, or been deformed by us. The
mood is of no importance. Deformation has taken place.

Samuel Beckett

Um quarto-cela fechado e cerceado por paredes-tela que incessantemente causam


afecções naquele que está preso. Bing, o personagem principal, é acordado por alarmes,
sonoros e imagéticos, como um galo, que canta e pula e corre de uma tela para outra e que ele
espanta com as mãos. Também com as mãos, ele abaixa as cortinas, digitais, ou melhor, telas
que transmitem imagens digitalizadas das cortinas. Um cubículo claustrofóbico coberto por
ecrãs.
Nosso personagem levanta da cama e dirige-se a um banheiro, igualmente minúsculo.
O espelho da pia, também tela interativa, lembra o protagonista que tudo é tela, mas tudo é
mediado por transferências de uma espécie de dinheiro digital, os M$, ou a unidade monetária
mérito. Um avatar mostra uma animação em computação gráfica de seu corpo e a quantidade
de méritos34: M$ 15.002.944,00. Além da moeda e dos avisos que indicam o saldo de sua conta
bancária, a publicidade é onipresente. Para não ter que aturar os anúncios na tela-espelho do
banheiro, ele faz um gesto com a mão e diminui seus créditos – algo que lembra a compra de
versões completas de software que eliminam a publicidade de suas versões de demonstração.
Passar pasta de dente em sua escova também implica uma retirada de uma quantidade de seu
saldo. Tudo é monetizado às últimas consequências. No espelho, ainda, um anúncio de um
canal de vídeos eróticos é mostrado, exibindo a possibilidade de que os filmes pornográficos
sejam comprados para serem consumidos, em seu quarto, on demand.

34. Não é de se estranhar que o nome da moeda utilizada nesse ambiente seja mérito, todo o dispositivo quase
prisional que se instala aí tem aparatos de controle capitalizados que têm a função de aferir produtividade e de
aperfeiçoar as rotinas para produzir acontecimentos repetitivos gerenciados para o maior custo-benefício desse
sistema retroalimentador. O discurso da “meritocracia” é aquele que considera que “todos podem ter boas chances
de acordo com os seus méritos individuais” (SCULLY, 1997 e YOUNG, 1994 apud POWELL, 2016, s.p.). Um
sistema meritocrático, como esse instaurado em Fifteen Million Merits, “inclui rotinas formais, procedimentos,
testes e critérios para avaliação de mérito. O sistema deve ser transparente e baseado em quantidades mesuráveis,
para que os vieses e preconceitos sejam prevenidos. Baseada na ideia da meritocracia está a ideia de que o mérito
pode ser medido objetivamente” (POWELL, 2016, p. 30). Assumir que todos têm as mesmas chances e
possibilidades é uma proposição a-histórica, que pouco considera toda a cadeia de acontecimentos que levou um
indivíduo a chegar a determinada situação e, portanto, ignora as exclusões sociais ou benefícios e privilégios
previamente acumulados. A meritocracia, vemos, apresenta grande similaridade com o dispositivo de julgamento
de Victoria, ignora partes de seu passado e apaga sua memória, atenta para resultados parciais que visam ao lucro
por meio da cooptação dos corpos para a produção, seja ela de imagens ou de energia.
93

O teórico da imagem Asbjørn Grønstad argumenta que o ponto problemático que deve
ser questionado não é o excessivo número de telas que agenciam e estimulam nossa percepção
a todo instante, ou pelo menos esse não é o único ponto-chave. Para o autor, é necessário que
paremos de pensar em imagens da ecologia para que pensemos em uma ecologia das imagens.
A segunda seria uma ecologia que permitisse que as imagens mostrassem pontos de vista
distintos, para além do olhar masculinista ocidental e que visa à monetização das imagens
contemporâneas. Uma ecologia multiplicitária das imagens é algo que contrapõe o que o
mesmo autor define como a intelequia escópica, tomando emprestado o termo de Kenneth
Burke. A intelequia designa “um processo de idealização através do qual a manifestação da
classe dominante é enquadrada como a instância normativa e gerativa de todas as outras
manifestações” (GRØNSTAD, 2016, p. 93). Ela é pensada em distintos campos: por exemplo,
a “arte ocidental se torna A Arte, o modelo de beleza da moda se torna O Corpo, e a pornografia
se torna A sexualidade” (Ibid., p. 93). Com repetição, mas sem diferença, há pouca inovação,
e o ambiente discursivo e imagético que propagandeia as instruções normativas do viver
naquele dispositivo prisional não aponta para qualquer possibilidade remota de fuga. A esse
tipo corrente de agenciamento Grønstad denomina biotelas.
15 million merits mostra as rotinas dos indivíduos em uma versão paralela de nosso
presente. Os humanos estão fadados a viver em cubículos cobertos por telas interativas
conectadas aos seus corpos (similares ao acessório de captura de movimentos Kinect, do
videogame Xbox). São obrigados a assistir a propagandas e fazer exercícios em bicicletas
ergométricas. Os esforços geram pontos que compram “saídas” da prisão.35 Porém, o ambiente
externo também é coberto por telas interativas em dimensões verticais e horizontais. Isso
porque é o cenário de um reality show que se assemelha ao programa de televisão britânico X
Factor (concurso de calouros); é outro ambiente abarrotado de estímulos sensoriais e
semiológicos e que, aparentemente externo ao quarto, também não tem saídas. Não há sinal de
qualquer fonte de luz externa, sequer de qualquer paisagem material exterior.
É como se tudo o que restasse ou tudo o que sequer já tenha existido para aqueles
indivíduos sejam aquelas salas. Não há escapatória, fora, tudo se trata de um excesso de luz,
de luminosidade, de estímulos. O sono, última fronteira a ser capturada, acontece em uma cama
negra, escura, contraponto ao papel de parede interativo e midiático, interface de todas as

35. A efeito de curiosidade, em 2012, um ano após a exibição de 15 Million Merits, foi publicada uma notícia
sobre um presídio brasileiro onde os presos pedalavam para gerar energia para postes e, assim, podiam diminuir
o tempo de pena. A esse respeito, ver “Presos pedalam e geram energia para postes em MG”, disponível em:
<http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/presos-pedalam-e-geram-energia-para-postes-em-
mg,dfc2dc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 25 fev. 2016.
94

transferências monetárias dos habitantes desses quartos. Luz e sombra: a luz ou a imposição
da luminosidade sobre aquilo que ainda não foi capturado, a escuridão do onírico. E aqui
falamos de uma luminosidade excessiva, em contrapartida ao reduto onde ela não consegue
penetrar totalmente.

Figura 25: Tudo-tela versus o son(h)o até então inatingível.

Esse ambiente fechado e quadrado no qual Bing, o personagem principal, acorda, bem
como todas as salas pelas quais ela passa, aparentemente sem qualquer saída para um mundo
exterior. Trata-se de uma narrativa que leva a pensar que essa impossibilidade de fuga não
persiste só para os personagens, mas para todos os indivíduos que supostamente existem e
sobre os quais é possível fabular nesse mundo ficcional. Bem como pode-se especular a
respeito de todas as exigências impostas pelo ambiente midiático sobre as condutas de seus
habitantes e as limitadas (porém até mesmo excessivas, no que concerne aos estímulos
sensíveis das mídias), possibilidades de agenciamento que nos permitem estabelecer uma
relação com uma outra obra que nos faz pensar de uma maneira niilista ou pessimista sobre
quase impossíveis linhas de fuga perante um conjunto de agenciamentos maquínicos de uma
arquitetura prisional.
Endgame (Fim de Partida), peça escrita por Samuel Beckett em 1957, trata das
interações entre quatro personagens presos a um espaço e a conjuntos de possibilidades de
95

agência limitadíssimos36 tanto pelas restrições biológicas quanto pelas materialidades espaciais
da construção: Hamm não pode se sentar e é cega. Clov é o servo de Hamm e não pode também
se sentar, por causa de problemas na coluna. Nagg, a mãe de Hamm, não tem pernas e vive em
uma lata de lixo, sem poder se movimentar e somente enxergando e podendo conversar com
os colegas quando alguém abre a tampa de sua lata. Nell, o pai de Hamm, também não tem
pernas, mora na lata ao lado de Nagg e está sujeito às mesmas condições. Esses personagens
estão em uma espécie enclausuramento que os prende perante a um fora quase transcendental,
inacessível, de uma tragédia maior em curso, como afirma Ronán McDonald, no prólogo da
mesma peça e em sua análise:

A “qualidade inumana” deriva das terríveis estruturas de Endgame, espaciais e


temporais. As deficiências físicas e as mutilações dos personagens significam que
eles não podem se mover com liberdade, mas o “algo que” está tomando o seu curso
sugere que eles estão presos em um sistema determinista ou mecânico.
(McDDONALD apud BECKETT, 2009, p. viii; tradução nossa; grifo nosso).37

Se adotarmos o “dentro” como sendo esse espaço totalmente agenciado e cerceado por
esses objetos midiáticos e suas comunicações sensíveis e semióticas (significantes ou não,
podendo ser apenas estimulantes da percepção), podemos observar, juntamente com Deleuze,
Baudrillard e Lacan, obviamente cada um falando de um ponto de vista conceitual distinto, que
o único fora possível talvez seja a morte, ainda que ela mesma seja recapturada pelo sistema
de agência midiático, como veremos à frente. Ou, nas palavras de Quentin Meillassoux, (2008,
p. 59 apud GRATTON, 2014, p. 54), “o pensamento humano tem o mais notável poder – sua
capacidade de acesso à possibilidade de seu próprio não Ser, e portanto, de ele mesmo ser
mortal”. Isso é o “que dá o título de After Finitude: Meillassoux toma o pensamento da finitude
– uma “incapacidade do pensamento” e faz desse “poder” uma habilidade de “construir nosso
caminho ao absoluto” (GRATTON, 2014, p. 54).
Se o que há mais próximo de acesso ao Real (e, no caso de Lacan, algo que escapa à
linguagem, o contato ou a maior proximidade com o Real é a morte), o mesmo vale para Clov,

36. Beckett faz emergir do minimalismo linguístico uma complexidade dramatúrgica. O autor irlandês, durante
toda a sua carreira, principalmente em seus últimos trabalhos, sente que a linguagem não dá conta da expressão
dos afetos da existência humana, tampouco da descrição de um mundo com exatidão, tal qual a frase de seu
personagem Molloy, “parece a mim que toda linguagem já é um excesso de linguagem” (BECKETT apud
WHITE, 2009, p. 119). A esse respeito, ver as excelentes discussões sobre Beckett e a estética/linguagem do
decaimento dos ambientes e da existência e da linguagem humana em White, 2009, Beckett and Decay, com
atenção especial para os capítulos 09, “Minimalism and Reductionism: Advancing Towards Lessness”, e 10,
“Dramaticules”.
37. “This ‘inhuman quality’ derives from the terrible strictures of Endgame, spatial and temporal. The physical
disabilities and mutilations of the characters mean that they cannot move freely, but the ‘something’ that is taking
its course suggests they are trapped in a deterministic or mechanical system. (McDONALD apud BECKETT,
2009, p. viii).
96

em “Fim de partida”. Na peça beckettiana, tudo o que há dentro daquela sala são os poucos
horizontes de possibilidades. Existem duas janelas, mas aparentemente o fora “acessível” não
mostra nada. Clov observa com um telescópio que não há mais marinheiros nem ondas no mar,
ou alguma movimentação qualquer, “não há mais [...]” (there is no more [...]), seguido dos
mais distintos complementos, é uma frase repetida nas observações feitas pelo personagem de
Endgame. Hamm, por sua vez, ressalta que “tudo o que está fora daqui é a morte” (outside of
here it’s death) (BECKETT, 2009, p. 42). O único com uma certa mobilidade nas pernas, Clov
tenta escapar daquele círculo de agência de poucas opções e, no final da peça, ensaia uma saída
para o fora. Beckett não deixa claro se ele sai para a morte, mas, nas últimas cenas, os outros
personagens o coagem a ficar naquele ambiente fechado. Veremos mais adiante que a linha de
fuga através da morte em Fifteen Million Merits também é recapturada quando o personagem
decide vender sua imagem de suicida para o sistema de arrecadação de méritos.

Figura 26: Montagem de Endgame pela Sydney Theatre’s Company, em 2015. Fotografia de Lisa Tomasetti (The Guardian).
Aos personagens é impossível enxergar ou pensar um fora (não há qualquer movimento no horizonte da janela); são pouquíssimos
os objetos com os quais podem interagir.

Voltando à claustrofobia de Black Mirror, elevadores levam os personagens até o


ambiente onde eles “trabalham”. A palavra de ordem é produção de energia. Trata-se de um
corredor cercado de duas fileiras de bicicletas ergométricas nas quais os indivíduos pedalam
em troca de méritos. Defronte às bicicletas, telas cujas interfaces podem ser controladas por
quem está fazendo o trabalho repetitivo exibem seus avatares também pedalando por terrenos
97

construídos em animações de computação gráfica. Outras pessoas preferem assistir a vídeos


pornográficos ou a reality shows dos mais distintos tipos, que custam alguns méritos que eles
lá mesmo ganham. Um programa em específico chama a atenção de Bing. Um show de
calouros com uma estrutura semelhante ao Britains Got Talent, em que o participante pode
exercer algum tipo de habilidade em público, seja cantar, fazer acrobacias, mágica etc. Três
jurados julgam se o candidato está apto a vencer o programa e seguir em frente para as próximas
rodadas. No episódio, os participantes e apresentadores seguem algumas características
subjetivas e estereotipadas comuns a programas desse tipo: a mulher “de sucesso”, delicada,
que sempre dá segundas chances e é gentil com os participantes, o glutão que odeia todas as
apresentações e é grosso com os calouros e o “cafajeste”, que faz caras e bocas e verbaliza
enunciados de assédio às participantes do sexo feminino.
Em um dia de rotina de trabalho nas bicicletas, Bing conhece Abi, uma jovem cantora
que sonha em participar do programa, The Hotshot (O Popular), mas não tem os méritos
necessários para isso. Ele se apaixona por ela desde um momento anterior, quando, no mictório,
olhando para uma tela de propaganda, escuta ao fundo ela ensaiar para uma participação no
programa, mas fica frustrado com a situação. Voltando ao seu quarto, o personagem joga, com
as mãos nas telas do espaço fechado, um jogo de tiro em primeira pessoa similar a Doom (iD
Software, EUA, 1996). Mais um lote de propagandas surge nas telas de seu cubículo, mas, para
não as ver e poder pulá-las, debita uma quantidade de seus méritos. Mais propagandas surgem,
e ele as pausa, mas um som perturbador e uma imagem piscante exibe o enunciado “resume
viewing” (resumir a programação). Bing muda de canal com as mãos, entra em um serviço de
vídeo on demand similar ao Netflix e assiste ao vídeo pornô lésbico para aluguel que havia sido
sugerido a ele nas bicicletas. Olha para o espelho, que não reflete a si mesmo, mas avatares
que conversam com ele, chamam-no, constituem desejos em sua subjetividade, de estar ou
participar do programa, incitando-os a produzir mais méritos através da transformação de
pedaladas, potência orgânica transformada em energia elétrica em troca de um salário de
méritos, que será gasto dentro do próprio sistema do local, resumindo todo esse ciclo de
produtividade.
Essa rotina pode ser entendida como um sistema de retroalimentação, já que, além da
força biológica convertida em energia38 que retornará através das produções audiovisuais para

38. Esse regime claustrofóbico, de aprisionamento e disciplina rígida do ambiente onde vivem esses indivíduos,
não visa ao total esgotamento desses indivíduos, mas busca que se tornem fortes e aptas máquinas produtivas,
corpos saudáveis que gerarão mais energia. Como afirma Lazzarato (2006, p. 69), “as instituições disciplinares
são certamente produtivas, não se limitam a reprimir: constituem os corpos, os enunciados, os sexos”.
98

as telas (e, portanto, gerará mais renda com as compras de serviços on-demand), é durante o
próprio ato de pedalar, enquanto os personagens estão envoltos pelo trabalho e consumindo
material nas telas, e é através das próprias telas que vão gastando o que ganham no momento,
comprando novos programas e jogos: quase não há interação discursiva ou física entre os
indivíduos nas bicicletas que estão lado a lado, eles parecem estar totalmente capturados, e o
próprio tempo é convertido em tempo útil em função do sistema financeiro e midiático.
Na linguagem dos frequentadores de cassinos, eles estão na zona. Esse termo é descrito
para identificar quando um indivíduo, defronte a uma máquina de caça-níquel, está totalmente
envolto pelo jogo, em um “processo solitário e ininterrupto de jogo na máquina que, por
contraste, tende a produzir um estado similar ao transe, estável, que distrai [o jogador] de
questões internas ou externas, como ansiedade, depressão e tédio” (SCHÜLL, 2014, p. 216).
Entrar nesse estado é, muitas vezes, o objeto de desejo dos apostadores e não o dinheiro em si,
já que a zona é um “ponto elusivo de absorção, além da contingência, que os apostadores de
máquinas perpetuamente buscam” (Ibid., p. 249).
Schüll (2014) também lembra que essa é uma estratégia utilizada nas máquinas de
apostas – com a possibilidade de utilização de parte dos créditos das fichas inseridas em novos
jogos, que, na maioria das vezes não trazem ganho ao jogador, ele tem a impressão de estar
aproveitando o seu dinheiro duas vezes, e não o perdendo. Nos cassinos, quem vence é sempre
a casa, e o mesmo princípio vale para o desfecho da maioria das tramas de nosso objeto de
análise: o sistema invariavelmente vence, duplamente, capturando a energia física dos
indivíduos através das pedaladas e recapturando os valores dos méritos. Entretanto, nesse caso,
já dissemos, o ambiente midiático fechado parece ser contingente, inescapável, já dado e sem
possibilidade de fora (ainda que sair dos vícios em jogos e apostas possa, para dependentes, ser
tarefa que beira igualmente o impossível).
Durante esse processo, os programas e peças publicitárias criam novos desejos naquele
que pedala a bicicleta, fazendo-o gastar todos os méritos que havia ganhado, muitas vezes
comprando novos jogos. Obviamente o indivíduo não é uma superfície esponjosa que absorve
discursos de maneira passiva, como afirmavam algumas das teorias comunicacionais
funcionalistas. Isso contradiria a própria dinâmica dos afetos de Spinoza. Ser afetado é uma
potência. Devemos nos atentar para o fato de que, por uma contingência material, arquitetura
e discursiva, é difícil encontrar buracos nesse sistema. “There is no more” – em Fifteen Million
Merits, não há nada fora da mídia e do capitalismo.
Tão eficiente é esse sistema de construção de desejos através das mídias onipresentes
para ganhar mais méritos a serem gastos que, em determinado momento, um outro personagem
99

diz a Bing que adquiriu uma daquelas “coisas de programação cognitiva”, um sistema que fica
suspirando nos ouvidos daquele que dorme através das caixas de som das telas dos quartos para
que eles comam comida saudável, que faz com que ele, de acordo com o que é vendido por
esse serviço, reprograme neurolinguisticamente o desejo de comer nos indivíduos, visto que,
“quando de come bobagem, tem que se pedalar mais”.
O sono, como nos alerta Jonathan Crary (2014), é a última instância a ser capturada
pelo capitalismo, visto que se trata de um momento de menor ou nula produtividade e de poder
de compra e de consumo também restritos. O homo-œconomicus é induzido a investir em sua
saúde não para bem próprio, mas para que esteja apto a produzir. Jonathan Crary ainda
menciona um ideal de soldado que não dorme, afirmando que existem testes de medicamentos
nos soldados americanos que participam de guerras no Oriente Médio que têm a intenção de
fazer com que eles não precisem mais dormir e estejam sempre alertas nos combates. No
entanto, longe dos exercícios de futurologia, podemos afirmar que os artefatos midiáticos hoje
é que desempenham esse papel de excitar, de estimular e de produzir afetos de maneira
desregulada. O chefe de Estado que acorda na madrugada com a notícia de que terá de transar
com uma porca não é o único incomodado em seu sono. O trabalho invadiu todas as esferas da
vida cotidiana. Ou, de acordo com Mark Fisher (2014, p. 14-15), “a combinação de trabalho
precário e comunicações digitais nos levou a um assédio (besieging) completo da atenção”, em
um “estado insone e inundado”.
Ainda assim, essa visão do sono como última instância a ser penetrada pelas máquinas
capitalistas é mal vista pela teoria crítica. Mesmo concordando com boa parte dos argumentos
de Crary, os autores Hassoun e Gilmore (2017), em um estudo desenvolvido justamente a
respeito dos estímulos das telas, que, alegadamente, “roubam” tempo de sono e repouso,
dissertam, afirmando que o uso de uma diferenciação muito rígida entre os estágios de vigília
e de sono não faz sentido, já que ambos estão produzindo no outro mútuas preensões. “A
sonolência está sempre sendo puxada entre o passado e o futuro, cristalizando-se tanto em
momentos previsíveis ou imprevisíveis (e, muitas vezes, indesejáveis)” (HASSOUN;
GILMORE, 2017, p. 08).
Sendo assim, em vez de falar de interrupções ou de captura do son(h)o pelos múltiplos
aparatos e telas midiáticas, aos autores, presume-se, seria mais sensato falar de modulações da
sonolência, que percorre vários estágios do dia a dia. Em vez de sono, seria mais adequado
utilizar o termo sonolência – ainda que não haja uma tradução perfeita para drowsing, o termo
trabalhado no artigo citado e que por eles é diferenciado de sonolência (sleepness). Os estudos
de crítica de mídia, segundo eles, devem escapar da dualidade de causa e efeito simples e partir
100

para um “entendimento mais variado de como [as mídias] se misturam nos processos do dia a
dia, inclusive na sonolência (drowsiness) (HASSOUN; GILMORE, 2017, p. 13). Por exemplo,
é necessário admitir a “contradição aparente de que as telas também ajudam a liberar as pessoas
dos estresses diários, ainda que possam ser condições que possibilitem a predisposição para
um dado futuro” (Ibid., p. 13), como os problemas que, especula-se, a luz azul das telas possa
causar em longas exposições – não nos cabe discutir tal ponto aqui. Entretanto, se pensamos a
comunicação como agenciamento, assumindo que tais aparatos e discursos modulam a
sonolência de maneira relacional, isso gera um desafio à tão difundida noção da “estética de
hiper-atenção de cada uma das mídias” (Ibid., p. 13).
Tal modo de lidar com os estágios de vigília e sono como durações que permeiam todo
o dia dos indivíduos também nos ajuda a combater um certo modelo de teoria da comunicação
ainda muito calcado em estímulos que geram respostas exatas e previsíveis e que tende a
considerar a ubiquidade midiática apenas como gatilhos que ativam determinadas emoções. O
uso das mídias não é, em si, neoliberal ou a serviço do capitalismo, mas sofre tensionamentos
que, muitas vezes, modulam nesse sentido, já que estamos a todo tempo regulados por tais
redes, mas as elas permitem a emergência de linhas de fuga. Os “regimes neoliberais de
trabalho e de autoprodutividade podem (parcialmente) guiar a decisão de Theodore
[personagem utilizado pelos autores no texto] de utilizar seu tablet em certos momentos, mas
eles [os regimes] dificilmente predeterminam seus estados afetivos enquanto isso acontece (não
há algo como uma “sonolência neoliberal”, mesmo que a sonolência ocorra em um ambiente
de neoliberalismo” (Ibid., p. 12).
Como vimos, o conhecimento de senso comum de causa e efeito, para Spinoza, ainda
diz respeito a ideias inadequadas, que não são suficientes para a complexidade dos
agenciamentos e suas redes de mútua causalidade, e os acontecimentos que não conseguem ser
explicados, ou ao menos entendidos, tendem a ser vistos por nós como contingentes. Até então,
a tentativa de Bing de suicídio pode ser vista como uma contingência, pois não se encaixa no
padrão de estímulo e resposta esperado naquele ambiente de prisão. Entretanto, é aí, no que
podemos ver como contingente, ainda que saibamos que, efetivamente, é determinado por uma
extensa rede de causas, que vemos o potencial do gesto disruptor que produz fendas no sistema
de vigilância neoliberal; ainda que possa e, no caso, tenha sido, recapturado.
Agenciamento do sono e decisões futuras por meio de uma mídia suspirante
onipresente, já que o quarto é o que resta para Bing, e a cama era até então o refúgio além
desses anúncios e da programação em vídeo, até que alguém instalasse um desses softwares
que buscam a instalação de ideias no inconsciente durante o sono. Não há descanso sem pagar
101

para deixar de receber as propagandas, diminuem-se as possibilidades de qualquer serenidade


para além desses estímulos (programação neurolinguística, propaganda, avatares tentando
fazer contato com o seu perfil nas telas etc.).
Em um encontro com Abi, Bing decide comunicar-lhe que doaria os 15 milhões de
méritos que havia herdado. Através da interface em uma tela na parede, ele compra a entrada
(o ticket dourado, como no filme A Fantástica Fábrica de Chocolate) para a participação dela
no programa de calouros. Seu saldo é debitado, e pouco dinheiro lhe resta, ele tornou-se um pé
rapado de méritos. A tela mostra seu avatar entregando esse ingresso de presente ao avatar
dela, e ambos sorriem, um encontro mediado por esses personagens de si mesmo e do outro.

ABI - Por que você não gasta o dinheiro em você então?


BING – E comprar o quê? Novos sapatos para meu outro dopple usar?
ABI – Eu não sei, fazer um upgrade no sistema operacional de seu quarto...
BING – Comprar uma temporada na Fattax...
ABI – Comprar um desses amigos de tela; esses novos que resolvem seus problemas
depois que você dorme. Eles guiam seus sonhos, como gurus. É incrível o que eles
(podem fazer nesses dias)
BING – Um plugin de espelho que me mostra como eu me pareceria se fosse um
lobisomem? Qual é o sentido disso?
ABI – Bem, ele (pode ser bem divertido)
BING – Mas tudo o que há são só coisas. São só coisas. É só confete. Você tem algo
de real. No que melhor que isso eu posso gastar?
ABI – Você me ouviu cantando no banheiro e aquilo é real?
BING – Mais real do que tudo o que aconteceu no último ano. (BROOKER; HUQ,
2011, p. 19; tradução livre nossa; grifo e negrito nossos).39

Em uma antessala, Abi é recebida, em um local fechado, onde espera, junto a outros
muitos candidatos, por uma chance de participar do programa. O ticket não implica a
participação automática, mas a possibilidade de poder mostrar seus talentos. Havia indivíduos
por meses ou anos esperando por uma chance dessas, mas ela é escolhida com rapidez, era uma
garota bonita e dentro dos padrões de beleza difundidos como verdadeiros naquele
microcosmos da sociedade moderna ocidental. No corredor anterior ao palco, ela é forçada a
tomar um frasco de líquido, uma espécie de calmante que controla a atividade pulsional do
indivíduo e quebra a possibilidade de qualquer surto, comportamento violento ou fora do

39. ABI – Why aren’t you spending it on you then?


BING –And buy what? Some new shoes for my dopple to wear?
ABI – I don’t know; upgrade your room OS...
BING – Get a Fattax season pass...
ABI – Buy one of those wall buddies; the new ones talk to you after shut-in and solve your problems. They guide
your dreams, like gurus. It’s amazing what they (can do these days).
BING – A mirror plugin that shows me how I’d look as a werewolf? What’s the point.
ABI – Well it (can be quite funny).
BING – But that’s all just stuff. It’s stuff. It’s confetti. You’ve got something real. What better to spend it on?
ABI – You heard me singing in a toilet and that’s real?
BING – More than anything that’s happened all year. (BROOKER; HUQ, 2011, p. 19).
102

padrão, uma medicalização preventiva para que o programa não fuja do roteiro do controle. É
recebida por uma plateia repleta de avatares de indivíduos que estão em seus quartos, mas
transmitindo suas expressões faciais, gestos e vozes através dos sistemas de câmeras
onipresentes. Abi canta a música que havia ensaiado e é interrompida por um dos jurados. Ele
afirma que é “a melhor coisa que viu no programa”, mas que seu modelo de cantora pop já é
muito batido. Entretanto, teria chance no canal erótico do mesmo jurado, devido à sua aparência
dotada de uma “inocência interessante”. Duas possibilidades são dadas à Abi: como atriz
pornô, “não precisaria nunca mais pedalar”. “Isso ou a bicicleta”. Afirmam que os exercícios
na bicicleta produzem a energia que move as luzes e o sistema do programa, e que basicamente
os indivíduos presos nesse sistema único e fechado não têm acesso ao “mundo real”, de modo
semelhante aos personagens de The Matrix (EUA, 1999), em que os humanos vivem em um
mundo ilusório semelhante às sociedades modernas do fim do século XX e que, na verdade,
estão dormentes em líquidos (amnióticos?), fornecendo energia vital: os humanos são
cultivados e não têm acesso ao Real, a não ser Neo, o escolhido que acede para um outro plano
(ŽIŽEK, 2003), o deserto do Real.
A lógica de pagar pelo ad-free chega ao quarto de nosso personagem. Bing, sem
méritos, não pode mais pausar os vídeos em sua tela e é obrigado a assistir um filme
pornográfico estrelado por Abi, imagem que não pode nem livrar da passagem de sua retina.
Quando ele muda de lado na cama e no quarto, as imagens transitam de tela para tela,
perseguindo-o. Um sistema detecta quando ele fecha os olhos e o obrigada a resumir a
visualização do vídeo pornográfico. Busca escapar desse estímulo obrigatório e do seu cubículo
quebrando as telas, e com um caco de vidro delas pensa que a única saída é a morte, através do
suicídio. Guarda o caco de vidro no bolso. Pedala freneticamente por meses até conseguir
arrecadar mais 15 milhões de méritos e compra o ticket dourado para participar do programa,
levando consigo o caco de vidro. No corredor afirma já ter bebido o calmante que controlaria
possíveis condutas fora do programado no reality show. Pensa no frasco vazio de sua amada,
que havia guardado, como um auxiliar em sua fuga. Com a faca de vidro oriunda das telas que
quebrara, ele faz algumas declarações relatando o fato de todos os indivíduos terem “vidas
entorpecidas”, sempre correndo atrás de “apps que não podem ser comprados” e acusando a
falta de um Real naquele mundo. Prestes a se matar, enfiando o vidro em uma artéria do
pescoço, é interrompido. A possibilidade de sua morte como linha de fuga daquele sistema é
recapturada quando Bing aceita o pedido do jurado de também participar de um programa seu,
de meia hora, duas vezes por semana. O Bing pós-reality show é um garoto propaganda,
anuncia objetos e aplicativos sempre com a faca apontada para seu pescoço, vendendo “15 000
103

opções de guarda-roupa” e alegando, nos comerciais, a possibilidade de “muitos modos de se


matar”, visto que dariam um jeito de ressuscitá-los. A faca de vidro, o caco, torna-se um desses
objetos vendidos nas telas e em outras mídias pelo garoto propaganda suicida. A morte como
última saída para os agenciamentos e estímulos midiáticos constantes e ubíquos dos mais
distintos dispositivos é recapturada, e ela mesmo torna-se discurso e imagem nessas mídias.
Nesse caso, a impossibilidade da morte torna-se ela mesma a impossibilidade do fora de um
ambiente de mídia ubíqua.
Clov, na peça de Beckett, aparentemente também é recapturado, no momento em que
saía para o fora constituído de “morte” e inanimação, mas hesita ao ouvir os enunciados de
seus colegas, mesmo que, nesse caso, a possibilidade continue aberta, dada a indefinição da
saída ou não nas últimas linhas de Endgame, ainda que Beckett busque, na precariedade de
seus personagens, novas possibilidades de resistência. É nessa precariedade que qualquer gesto
possível pode surgir como linha de fuga, já que os personagens não aparecem como cansados,
mas como esgotados, e é em estado de esgotamento que pode emergir a força de novos
possíveis. “O esgotado é muito mais que o cansado. Não é um simples cansaço, não estou
simplesmente cansado, apesar da subida” (DELEUZE, 2010, p. 67). Essa afirmação não busca
chancelar que não há escapatória que possa ser descoberta e caminhada. A possibilidade
“permanece, porque nunca se realiza todo o possível; ele é até mesmo criado à medida que é
realizado. O cansado apenas esgotou a realização, enquanto o esgotado esgota todo o possível.
O cansado não dispõe mais de qualquer possibilidade (subjetiva) – não pode, portanto, realizar
a mínima possibilidade (objetiva)” (Ibid., 2010, p. 67). Pelo contrário, em um cenário de
estímulos e de aceleração total da vida, a resistência pode surgir da recusa a se produzir, da
inoperância, pois ela é menor em meio ao regime majoritário dos estímulos excessivos – eles
modulam, até o esgotamento, permitindo que fendas, vistas como contingentes, emerjam
através dos gestos menores.
104

Figura 27: de suicida a garoto propaganda de um suvenir usado na sua própria tentativa/encenação da morte.
105

3.1. Agenciar a repetição, gerenciar o tempo, amar e fugir

Vimos duas obras que tratam do esgotamento e de parcas possibilidades de agência em


espaços físicos muito restritos, cubículos, e podemos afirmar que elas são diametralmente
opostas. Em Endgame, Beckett se vale de uma estética da precariedade, são poucos os
estímulos que parecem incitar os indivíduos a fazer algo, seus corpos estão gastos, fisicamente
condenados, hesitam em falar e, quando o fazem, repetem o mesmo: não há mais nada, não há
mais nada, ou fora daqui só há a morte. Nesse ponto, o universo em que vivem é similar ao de
Bing, parece não haver mais fora para Clov, Hamm, e os outros homens que vivem nas latas
de lixo, o mar visto pela janela está estanque, sem barcos, movimentação, sem vida. Se, nesse
caso, pode-se dizer que há uma escassez de encontros (deve-se lembrar que, para Spinoza, não
há nada fora dos encontros ou relações; mesmo em estado quase vegetativo, os personagens
têm encontros com ideias, lembranças, com o metal e a sujeira das latas de lixo, uns com os
outros etc.), Bing também é condenado a fazer sempre o mesmo. Entretanto, ele está preso em
uma máquina que assedia seus sentidos a todo momento. Vimos que ele não pode fechar os
olhos; caso o faça, o som de um apito entra por seus ouvidos. Para dormir e se livrar da
propaganda, é preciso pagar. As imagens que passam pelas telas que cobrem sua cama e seu
corpo piscam a todo momento, é a máquina dos sonhos da publicidade. Nesse sentido, podemos
afirmar que ele tem vários encontros, mas está condenado a sempre fazer o mesmo: produzir
para consumir. Ter mais encontros, participar de vários agenciamentos, não implicaria,
necessariamente, de maneira estatística, mais possibilidades de composição? Voltemos a
Spinoza e sua Ética, na proposição XXXVII da terceira parte do livro:

Aquilo que dispõe o corpo humano de tal modo que ele possa ser afetado de muitas
maneiras ou torná-lo apto a afetar os corpos externos de um número maior de
maneiras é útil ao homem; e tanto mais útil o corpo por isso se torna mais apto a ser
afetado e afetar outros corpos de muitos modos; e, ao contrário, é danoso aquilo que
diminui essa aptidão do corpo. (SPINOZA, 2014b, p. 308).

Quando Spinoza menciona algo que é útil ao corpo humano, refere-se a algo que pode
se compor com determinados indivíduos, que faz com que eles ampliem sua potência,
produzam variações em sua existência na direção do esforço de manter-se nela, manter-se no
fluxo do conatus. O que pode o corpo de Bing dentro dos agenciamentos no cubículo? E o que
podem os corpos de Clov e Hamm, que, ajudando uns aos outros, conectando órgãos
disfuncionais e seus graus de operacionalidade, conseguem ensaiar uma saída ao fora?
Entretanto, pressupõe-se implicitamente na história que, segundo seu niilismo, a certeza de que
não há mais nada a ser vivido em fora quase improvável ou inatingível. “Muitos protagonistas
106

de Beckett se encontram impossibilitados de acessar qualquer conhecimento de como se


orientar no espaço, como coordenar os seus corpos em relação aos objetos, ou como se
conduzirem em direção a outras pessoas” (DOWD, 2016, p. 160).
Se Beckett peca pela precariedade, seja do espaço físico ou da própria linguagem que
se desgasta com o passar dos anos em sua obra, o contrário pode ser dito do universo das telas
de Black Mirror, é o mundo do excesso. Excesso de enunciados, que buscam os mais distintos
caminhos para modular as mentes dos confinados, com a intenção de sempre afetá-los de
maneiras similares, vendendo imagens e outros produtos imateriais vistos como a única
maneira de escapar, ainda que em pensamento, daquela prisão. Seja através dos filmes
pornográficos ou dos avatares, que podem caminhar nos jardins pixelados que são renderizados
nas telas que lhes invadem os olhos. Para isso, exigem mais méritos, que só podem ser
conseguidos de maneira que seus corpos atuem sempre do mesmo modo, pedalando, gerando
energia, ganhando dinheiro para ser consumido ali mesmo. Afetar outros corpos que sejam
humanos parece ser uma tarefa comunicacional quase impossível.
No império da comunicação concentrado nessas caixas com camas e telas, pouco se
conversa com aquele que está ao lado, já que ele está ao lado, concentrado em pedalar cada vez
mais para poder consumir. Não se trata de uma visão já esgotada e clichê de que a mídia afasta
as pessoas, fazendo com que elas conversem só através de suas telas e aplicativos, um encontro
ou agenciamento com um conjunto de ideias ou enunciados não deixa de ser um encontro que
pode compor conosco, o problema é a sua repetição, tanto no corpo quanto na mente (e que são
ontologicamente inseparáveis um do outro). O que deve ser feito é uma crítica a esse
automatismo. E ela emerge, com a possibilidade de uma fuga, justamente a partir de duas
afecções singulares que surgiram, uma capturada na percepção da própria contingência daquela
máquina gigante de comunicação, e outra, o mais sublime dos afetos.
Ao conhecer Abi, Bing se apaixona por ela, sente amor, quer participar de múltiplos
encontros com ela. Vale lembrar que, para Spinoza, a definição de amor não é a mesma do
Romantismo e tampouco se refere a um elemento antropomórfico:

O amor, digo, não é outra coisa senão uma alegria que acompanha a ideia de uma
causa exterior. [...] Vemos, além disso, que aquele que ama se esforça
necessariamente para ter presente e conservar a coisa que ama. (SPINOZA, 2014c, p.
210; Ética 3, proposição XIII, escólio).

Não temos acesso ao fluxo de consciência de Bing, mas podemos supor que a atitude
de doar todo o seu dinheiro para a pessoa amada possa ter sido um ato que corrobore a Ética
spinozista, já que parece ter feito esse ato para que Abi pudesse ter bons encontros, aumentasse
107

sua potência e pudesse receber uma afecção de alegria. Isso porque, segundo Spinoza (2014c,
Ética 3, proposição XXI), “[...] quem imagina o que ama afetado por alegria ou por tristeza
será igualmente afetado por alegria ou por tristeza, e uma ou outra afeições serão maiores ou
menores no amante conforme o sejam na pessoa amada”.
Entretanto, o encadeamento causal gerado parcialmente por essa ação trouxe maus
encontros a Bing. Quando o jurado do reality show convoca Abi para ser atriz pornô e Bing
passa a ver a imagem dela em movimento, em todas as suas telas, sem a possibilidade de pausar
os vídeos, já que ele mesmo não tinha mais dinheiro para comprar o passe que permitiria que
ele não visse mais as propagandas que passavam no seu quarto, ele surta. Em uma leitura
simplista, poderíamos afirmar que ele deveria sentir uma afecção de alegria ao ver sua amada
compondo sua existência ao fazer sexo com vários outros corpos; entretanto, não se trata de
um desejo da essência de Abi, de seu conatus, mas algo determinado por uma causa exterior,
no caso, todo o sistema capitalista e comunicacional que determinava que a única forma de
conseguir manter-se dentro daquela máquina era ganhando dinheiro por meio da atuação em
filmes eróticos. Supondo que Bing amasse de verdade Abi (não o amor romântico), o
desenrolar dessa situação o deixaria triste, já que “a alegria que se origina ao imaginarmos que
uma coisa que odiamos foi destruída, ou afetada por outro mal, não nasce sem alguma tristeza
na alma” (SPINOZA, 2014c, p. 237; Ética 3, proposição XLVIII).
As imagens que Bing gostaria de ver eram outras: Abi fazendo sucesso como cantora,
depois de uma passagem bem-sucedida pelo programa de calouros, pois “as imagens das coisas
que põem a existência da coisa amada auxiliam o esforço da mente pelo qual ela tenta imaginá-
la, quer dizer, afetam a mente com alegria” (SPINOZA, 2014c, p. 216; Ética 3, proposição
XIX). Seu modo novo de vida era em uma casa maior do que o cubículo, mas, ainda assim, não
se sentiu satisfeito. Mesmo em um espaço maior, com mais elementos, objetos, móveis e
espaço, permaneceu obcecado pela impossibilidade de sair, de um fora daquele sistema
midiático. Tratamos de encontros e agenciamentos com imagens, avatares, e da
impossibilidade do encontro com corpos ditos “reais”. Como pensar, epistemologicamente, o
encontro com um corpo/indivíduo que não faz mais parte da existência, morto; entretanto, com
o qual compúnhamos um bom agenciamento?
Vale lembrar que nossa crítica se faz em respeito à ética desses agenciamentos, tanto os
materiais – dispositivo de estrutura prisional –, quanto os sígnicos: enunciados normativos e
que visam ao julgamento e não à avaliação ética, bem como as imagens das telas. Em relação
ao terceiro ponto, obviamente, interesses escusos pretendem que esses indivíduos estejam
aprisionados na mesmice repetitiva dos estímulos sensoriais que os envolvem. Um único ponto
108

de vista, identidade visual, paleta de cores. Contra isso, Grønstad (2016, p. 93) argumenta que
seria necessário “o uso de uma imaginação ética que desafiasse [as práticas repetitivas] da
intelequia escópica”. O autor argumenta que “o foco em práticas visuais minoritárias, do filme
experimental ao cinema de arte, às produções subculturais e amadoras de produção de
imagens”; mas também à representação de “corpos desviantes, não normatizados e formas
ofensivas e socialmente controversas de visualidade” (Ibid., p. 93).
109

CAPÍTULO 4. A materialidade dos agenciamentos midiáticos


110

4.1. Morte e mídia: encontros com protossubjetividades maquínicas


Los marineros de su barco habían hecho una mujer de gome para
pasar el rato y satisfacer los deseos que sentian durante los seis o
siete meses que permanecían en el mar. La mujer había sido
estupendamente hecha a conciencia, y les producían una ilusión
perfecta. [...] Los marineros la encontraban incansable y diferente;
en verdad, una maravillosa compañera. No había celos, no se
peleaban entre ellos, no existía la posesión. La mujer de goma fue
muy amada, pero pese a sua inocencia, su naturaleza flexible y
buena, su generosidad y su silencio, pese a su fidelidad hacia los
marineros, les contagió a todos de sífilis.

Anaïs Nin

O desejo de superar a mortalidade do corpo biológico e sua própria degradação, somado


às tentativas de controle da cruzada antropotécnica, manifesta-se também nas ideias muito já
exploradas, tanto pelo cinema quanto pela literatura, que tratam da inteligência artificial de
maneira repetitiva. Não é o caso de entrar nessas bibliografias e referências, esse tema por si
só demandaria a escritura de uma outra tese, como já vem sendo feito. Aqui trataremos de um
problema ético que decorre ao mesmo tempo como causa e consequência de uma rede de
dispositivos midiáticos e informacionais de captura na sociedade de controle, que organizam
enunciados, padrões cognitivos e afetivos, relações textuais e linguísticas, movimentos e
capturas do corpo etc.
Pensando todo esse processo de captura da linguagem e de atributos corporais nas suas
mais variadas formas, uma especulação extrema, porém possível, seria a produção de um ser
corpóreo dotado de aquilo que Gilles Deleuze e, especialmente, Félix Guattari denominaram
uma protossubjetividade, que neste caso é maquínica (corporal), emulando através de um
software instalado nesse objeto, os movimentos gestuais, voz, tato, padrões de movimentação
sexual, cheiro etc. de um indivíduo que já faleceu. A utopia de manter vivo um ente querido, a
construção de um androide antropomórfico que fosse uma reprodução quase perfeita dele, de
ter o controle sobre a morte daquele com o qual tem-se a ideia de que se produziam relações
de composição, tudo isso não se trata de uma futurologia longínqua, mas, sim, de uma ficção
especulativa. No campo da comunicação, já é possível pensar a respeito desses
comportamentos, discutindo os modos como as pessoas insistem em dialogar com páginas ou
perfis de outras pessoas mortas nas redes sociais. Guattari pensa esses entes segundo uma
ecologia ontológica que os posiciona como instâncias que participam ativamente, como nodos
nas redes de sociabilidade, ainda mais levando em consideração as bibliografias que emergiam
no início dos anos 1990 a respeito das redes digitais:
111

A autopoiese maquínica se afirma como um para-si não humano através de focos de


protossubjetivação parcial e desdobra um para-outrem sob a dupla modalidade de
uma alteridade ecossistêmica “horizontal” (os sistemas maquínicos se posicionando
como rizoma de dependência recíproca) e de uma alteridade filogenética (situando
cada estase maquínica atual de encontro a uma filiação passadificada e de um Phylum
de mutações por vir). Todos os sistemas de valor – religiosos, estéticos, científicos,
ecológicos... – se instauram nessa interface maquínica entre o atual necessário e o
virtual possibilista. (GUATTARI, 1992, p. 68).

Entretanto, aqui abordaremos um caso em que indivíduos ou traços deles retornam não
só como padrões linguísticos que respondem a certos inputs (como os chatbots) e através da
permanência de sua efígie nas redes. É um esquema distinto à narrativa do filme Her (Spike
Jonze, EUA, 2013), por exemplo, no qual há uma protossubjetividade sem corpo físico – pelo
menos não aparente, mas deslocado para os prédios que abrigam servidores de bancos de dados
–, etérea, que se manifesta e seduz, agencia desejos a partir da voz e de como ela massageia os
ouvidos e o inconsciente daquele que é cliente e usuário desse sistema operacional,40 e que tem
uma função aparentemente, no início, apenas de servidão. Em nosso caso, também há um corpo
físico. E que corpo é este? Trata-se de um corpo que é, ao mesmo tempo, quase relegado à
classe dos utensílios domésticos, aos múltiplos objetos midiáticos que compõem a paisagem
de nossas casas? Em um primeiro momento, nosso personagem retorna como um objeto, não
somente um objeto do desejo da mulher que o contratou e o comprou, um objeto como o que
pensamos no senso comum.
Adotando uma perspectiva ecológica, assumimos que “os objetos se acumulam sem
nós. Mas eles também se acumulam mais com nossa presença, porque nos lembramos deles.
Nós os coletamos, escrevemos histórias sobre eles, recusamo-nos a esquecê-los e até mesmo
os redescobrimos (Arqueologia)” (GARCIA, 2014, p. 94). O que nos interessa é ver como esses
objetos, ou protossubjetividades, dotadas de voz e carregadas de enunciados recuperados em
escavações, através de uma espécie de arqueologia algorítmica dos bancos de dados das
grandes empresas de mídia, em nosso caso, acoplam-se nas nossas subjetividades, interferindo

40. A toda essa rede de dispositivos de inteligência artificial, como bots, assistentes pessoais em smartphones
(Siri e Cortana, da Apple e Microsoft, respectivamente), bem como a indústria de pesquisas de publicidade ou
governamentais buscando o controle e a identificação de emoções e afetos através de sistemas computacionais
Marie-Luise Angerer (2016, 2017) denomina “computação afetiva”. Vale a pena consultar a extensa obra da
autora sobre o tema. Longe de demonizar ou idolatrar tais dispositivos, é inevitável que eles façam parte cada vez
mais do ecossistema ou agenciamento de produção de afetos contemporâneos, inclusive (e principalmente) no
campo da sexualidade: “Today, the figure of the little sister has long since taken its place in everyday reality and
in media fictions: be it Siri on the iPhone or the operating system Samantha in Spike Jonze’s lm HER (ANGERER,
2015). Both ‘girls’ are examples of the affect-generating side of this field, as clairvoyantly anticipated by the
numerous little and not so little sisters in the sci-fi literature of the 1990s. But whereas Siri stands firmly in the
tradition of the subservient female spirit, with Samantha Jonze created a figure who quits her job in spite of her
programming. In the phantasm of technological singularity, at least, the millennia-old gender matrix is broken
down – in stark contrast to the gender role clichés that are still commonplace in the IT sector, in particular, as
shown by recent debates on sexism and feminism in computer games. (ANGERER, 2016, p. 48).
112

na causalidade dos afetos e desejos. Já que não estamos isolados como subjetividades, a própria
teoria-ator-rede que aqui discutimos em outro ponto faz com que não pensemos em dentros e
foras, mas em zonas de atração e composição de agenciamentos.
Ressaltamos anteriormente o arrebatamento das subjetividades contemporâneas por um
número cada vez maior daquilo que concebemos como objetos, levando em consideração que
boa parte deles esteja conectada e tenha como funções pressupostas a utilização deles como
mídia – deixando claro que o que entendemos por mídia vai além disso, corpo, o tato, o olfato
e os próprios agenciamentos daquilo discursivamente condicionado como “coisas” são partes
dos processos comunicacionais (LEMOS, 2013).
Be Right Back pode acionar em nós um diálogo com o argumento de Steven Shaviro
(2014, p. 51), quando o autor afirma que os objetos e mídias por nós criados fogem ao nosso
controle e nos colocam em novas relações, ou seja, agenciam-nos (ainda que a criação primeira
dessas coisas por nós também não seja um ato de liberdade ou de uma consciência livre, mas
também fruto de outros agenciamentos, sejam econômicos, libidinais etc.). Não temos controle
sobre nossos desejos. Quando estamos em um estado meta-estável, determinado por infinitos
agenciamentos e composições, há um determinismo e um automatismo do funcionamento das
mentes.
O que veremos especificamente é como é possível desenvolver uma trama que envolve
a-) os agenciamentos midiáticos que levaram a uma tomada de decisão; b-) a possibilidade de
construção de uma protossubjetividade maquínica a partir das informações carregadas pelas
mídias e seus artefatos que possibilitam o controle sobre a circulação de dados, um objeto ou
ente; c-) as consequências para o desejo e a ideia de controle do próprio luto e de sua falta que
surge na personagem a partir do novo agenciamento mulher-ente-protossubjetivo (até então,
não conseguimos substituir o termo “protossubjetivo”, que parece trazer consigo uma ideia de
preconceito ou de hierarquização ontológica entre algo que é proto a um determinado conceito
ou ideia daquilo que é possuidor de subjetividade muito atrelado ao Humanismo).
Voltando à narrativa, em Be Right Back, o personagem apresentado é Ash, homem,
loiro, membro da classe média britânica. A atenção desse indivíduo é dividida com a boa parte
de suas atividades cognitivas, olhares e toques dirigidos à tela do smartphone, uma
subjetividade capturada pelo Facebook, um homem que não consegue conversar com sua
esposa ao chegar em casa, pois permanece no sofá com os olhos vidrados no telefone celular.
A mesma divisão de atenção acontece quando, após fazer sexo com a esposa, Ash não consegue
relaxar e continua compenetrado em vários atos de compartilhamento de fotos e status em redes
sociais. Esses atos indicam que o indivíduo buscava manter ou desenvolver uma certa imagem
113

de si para fora nessas plataformas, atualizando-as constantemente. Ash é um produtor


incessante de enunciados, um funcionário da rede social, alimenta-a a todo momento.
É importante ressaltar que uma das características de um conjunto de indivíduos
submetidos a um regime de controle (DELEUZE, 1992) não é somente a vigilância e o controle
verticalizados (por exemplo, do Estado ou grandes corporações para baixo), mas também o
desejo de vigiar e de controlar os semelhantes internalizados no inconsciente e em seus gestos.
Hoje poderíamos especular que parte desses dispositivos retorna conteúdos a partir da
remixagem de dados que ele mesmo forneceu para servidores nas “nuvens”. O armazenamento
em arquivos físicos e digitais de conjuntos de enunciados, fotografias, gravações de vídeos,
padrões cognitivos e semânticos dedutíveis a partir dos anteriores, rotinas de consumo (a
literatura sobre a sugestão de produtos do sistema on-line de vendas da Amazon já é extensa há
alguns anos, e talvez falar nele como referência seja uma escolha obsoleta, no intervalo entre
a escrita inicial deste parágrafo e a conclusão da tese).
Há outro elemento que surge na trama de Be Right Back e que pode nos dar pistas a
respeito de seu comportamento. O casal tinha um filho, falecido em circunstâncias não
explicitadas, e a memória da fotografia do filho criança morto permanece em sua mente quando
atiçada pelas inúmeras reproduções distribuídas na mobília da casa e nos papeis de parede das
interfaces que Ash utiliza (porta-retratos digital, telas dos mais distintos dispositivos, e o
compartilhamento delas nas redes). Sem conseguir parar de pensar na criança, o personagem
sai de carro, dirigindo por uma estrada tortuosa que liga a casa no campo à cidade. Ele demora
a voltar, e Martha, a esposa, recebe uma visita da polícia para informar que Ash havia morrido
em um acidente.
Ainda no período de luto, uma amiga inscreve a viúva em um serviço que promete
ajudá-la a superar a dor da perda da pessoa amada, algo que a faria entrar de novo em contato
com o marido e que não era “uma daquelas coisas espirituais estranhas”. A ela é oferecido um
sistema em fase de testes que, a partir das postagens, conversas e mensagens nas redes sociais
do marido morto, reconhece padrões semânticos e estilísticos de sua escrita e cria um “novo”
perfil do falecido, primeiramente utilizando todos os rastros “públicos”. Esse avatar passa a
conversar com ela por um bate-papo.41 Posteriormente foram coletadas mensagens de voz e
padrões gestuais do ex-marido, via vídeos gravados no Skype, que permitiram que a voz dele e

41. Meses após a exibição da série, o serviço LivesOn entrou ao ar na web. Esse serviço permite que, “baseado
nos gostos, na sintaxe e curtidas” nas redes sociais, crie-se um perfil na rede que continue a tweetar após a morte
de alguém. A esse respeito, consultar o site <http://liveson.org/>.
114

a comunicação por áudio se tornassem onipresentes, e ela passa a ter o hábito de sair com ele
para todos os lugares, caminha e conversa apenas com a simulação do marido.
Paralelamente, em Her (EUA, 2013), um homem solitário, prestes a se divorciar,
compra um novo sistema operacional, o OS1. Trata-se de uma voz feminina capaz de controlar
todos os equipamentos eletrônicos da casa e que anda com ele, também conectada aos seus
ouvidos – algo que corresponderia hoje a produtos como o Google Home e o Amazon Echo.
Entretanto, esse serviço não se refere a ninguém em específico que já esteve vivo, e, como
anteriormente discutido, não tinha uma corporeidade física antropomorfizada. Theodore, o
personagem principal da película de Spike Jonze, apaixona-se pelo sistema operacional, que,
entretanto, decide, junto aos outros sistemas operacionais similares, passar a existir em um
plano ontológico distante e inacessível aos humanos e desaparece.
Esse tipo de interação comunicacional é um tema frequente na ficção, e até então
tratamos de objetos que se comunicam textualmente ou por meio de áudio, sem entrarmos nas
ferramentas, das mais rústicas às mais elaboradas, para a prática de sexo on-line, como
máquinas masturbatórias controladas pelo parceiro a distância. Levianamente, poderíamos
afirmar que se comunicava através de signos imateriais, que, entretanto, necessitam de um
suporte material para serem transmitidos e que o ouvir seja considerado um modo de
comunicação mecânica, dadas as perturbações das ondas sonoras na superfície dos ouvidos.
Martha se dispõe a passar a experienciar outro nível de comunicação quando recebe um pacote
de uma empresa de entrega de encomendas. O agenciamento de seus desejos “a distância”
passa a acontecer agora por um contato corpóreo direto.

Figuras 28 e 29: Interface da primeira fase do contato com o “novo” Ash.

À casa de Martha, viúva de Ash, é enviado um protótipo de androide semelhante ao seu


marido, dotado de uma protossubjetividade maquínica com voz, linguagem e gestos similares
ao “original”, um ser híbrido, “quase-objeto” (SERRES, 1999), “quase-humano”. Ela passa a
se relacionar afetivamente com ele; tentando impor à sua vida a possibilidade de controlar o
115

desejo faltante do ente querido, de se saciar, de continuar o casamento, mesmo vendo a situação
com um pouco de estranheza. Objetos híbridos e senscientes como esses,

pela própria natureza de seus laços com os humanos, logo deixam de ser mediadores
para se transformarem em intermediários, assumindo importância ou não,
independentemente de quão complicados possam ser por dentro. Eis por que alguns
truques precisam ser inventados para forçá-los a falar, ou seja, apresentar descrições
de si mesmos, produzir roteiros daquilo que induzem outros – humanos ou não
humanos – a fazer. (LATOUR, 2012, p. 118-119).

Novamente, as referências a esses modelos de protossubjetividade maquínica fazem


parte de um conjunto de textos (sejam eles escritos ou audiovisuais). Em Äkta Människor (SVT,
Suécia, 2012-2014; versão britânica Humans, Channel 4, 2014-), em um futuro próximo, os
habitantes dos países nórdicos passam a conviver com robôs humanoides criados para servir
aos mais distintos tipos de trabalho criados para executar os mais distintos tipos de trabalho
aos quais os humanos não precisariam mais se submeter.; trabalhos atualmente denegados a
refugiados e imigrantes que alçam uma vida com mais qualidade sob o estado de bem-estar
social. Partidos e organizações de extrema direita se organizam para tirar esses androides da
sociedade, utilizando um discurso eugênico para afirmar que esses indivíduos não são humanos
e devem ser expurgados da vida pública e particular. Através da instalação de um novo e
alterado firmware, ou seja, do sistema operacional que controla esses robôs, eles são
“liberados”, ou seja, têm suas consciências de alguma maneira independente de seus donos
para pensar e agir supostamente com a possibilidade de um livre arbítrio. Este também é o mote
da trama de Westworld (HBO, EUA, 2016-).
Entre afetos, relações sexuais e paixões entre robôs e “humanos reais” (tradução do
título da série e do nome do partido fascista que busca um genocídio dos não humanos), surgem
grupos de guerrilha de androides que buscam, por sua vez, a escravização e extermínio dos
humanos, e outros, que só querem a possibilidade de serem considerados humanos legalmente,
o que provoca uma movimentação entre advogados pró e contra os robôs, assim como o
posicionamento midiático. A trama começa a se assemelhar ao episódio de Black Mirror
quando começam a ser produzidos androides com as características físicas e psicológicas de
entes queridos mortos, mais uma face do controle do luto que também se manifesta a partir de
sua extensão indefinida. Nos episódios Dark Water e Death in Heaven, do seriado britânico
Doctor Who (BBC, Reino Unido, 1963-1989; 2005-), as mentes dos mortos também são
capturadas por uma empresa de serviços pós-vida e implantadas em androides.
116

Figura 30: Äkta Människor. Fascista do movimento antiandroide se apaixona pela humanoide.

Sem adentrar mais inúmeros possíveis exemplos, voltemos a tratar das propriedades do
controle midiático distribuído que possibilitou a organização cognitiva da réplica do marido de
Martha: a versão de Ash enviada à sua casa convenientemente “se parece com ele em um bom
dia”. Ash retruca que o sistema de captura é programado para utilizar as imagens das redes
sociais do falecido e que usualmente “as fotos mantidas são as boas”, pois os indivíduos gostam
de transparecer um certo bem-estar e satisfação nas redes. Esse bom humor 24 horas por dia
faz com que a viúva sinta que o contraste em relação à memória vivida que tinha do marido só
se intensificava. O que ele postava nas redes nunca atingia sua essência instável. Além disso,
a versão esterilizada de Ash, o qual era discursiva e materialmente capaz de atos de violência,
era submissa, não falava palavrões no dia a dia. Para programar o que a nova versão falaria,
houve uma captura total das conversas de áudio e vídeo pelo Skype entre os cônjuges, mas,
aparentemente, todos esses enunciados, gestos e imagens passaram por um dispositivo de
censura prévia e normatização, que tolheu parte de sua contingencialidade e antinormatividade
antes de elas serem reorganizadas no sistema comunicacional do novo Ash.
117

Figura 31: Os gestos programados do novo Ash, baseados nos filmes pornográficos a que costumava assistir.

A rotina sexual do novo casal é mantida também a partir dos rastros involuntários de
Ash pelas redes sociais e nos sistemas telemáticos. Aparentemente, Ash não tinha gravações
de relações sexuais com a parceira, mas sua nova versão foi programada para fazer sexo a partir
de uma combinação de características [de movimento, força, posições] a partir dos vídeos
pornográficos que ele Martha acessava como estímulo para a masturbação e cujos registros
haviam ficado nos servidores desses serviços. Ela contesta, entretanto, a submissão, pedindo
para que o androide bata nela, e ele se recusa. Em um sistema totalmente programado por
aquilo que é discursivamente considerado moralmente correto, não há espaço para a violência,
mesmo que seja o desejo daquela que quer sofrer.
Severin, de Masoch, se vivesse nesses dias, não se satisfaria com um androide
moralista. O problema não mora no aparato em si (caso contrário, correríamos os riscos de
assumir a mesma posição do ficcional partido fascista sueco de Real Humans), mas no
programa que gerencia os enunciados e as práticas nele embutidas. Tal programa visa a minar
a contingência de seus atos e gestos, o que possibilitaria encontros mais diversos, incluindo
aqueles que trazem riscos.
Considerando isso, podemos refletir por que a relação entre o novo Ash e a esposa
passou a um completo estranhamento. Aqui é importante valer-se novamente do pensamento
de Baruch Spinoza, e podemos entender essa recusa/corte do desejo de continuar a manter esse
objeto a partir de alguns elementos pontuais da narrativa que parecem ter causado uma inversão
– de desejo a repulsa – de sentimentos em Martha: I), a recusa do personagem em bater nela
durante o sexo; II) o fato de o androide enviado à casa dela não conseguir ou precisar ingerir
118

líquidos (ao ser perguntado por ela se ele fazia isso, ele disse que poderia fingir) e tampouco
expeli-los: trata-se de um corpo que não precisa ir ao banheiro para urinar ou defecar, ele não
ejacula, e a personagem fica visivelmente incomodada com isso durante o sexo; III) essa
censura de enunciados feita previamente faz com que, além da perda de similaridade entre Ash
e o novo Ash no que concerne seus corpos, o mesmo se aplica à sua mente, agora esterilizada.
Afirma Spinoza, na proposição XXVII da terceira parte da Ética (2014c, p. 220): “se
imaginarmos que uma coisa semelhante a nós, e a respeito da qual não experimentamos
qualquer afeição, prova algum afeto, então, por isso mesmo, experimentamos uma afecção
similar”. Na demonstração da mesma proposição, o autor completa:

Se, portanto, a natureza de um corpo exterior é semelhante à do nosso corpo, a ideia


do corpo exterior que imaginamos envolverá uma afecção de nosso corpo semelhante
à daquela do corpo exterior. E, consequentemente, se imaginamos alguém semelhante
a nós sensibilizado por alguma afeição, essa imaginação envolverá uma afeição
similar de nosso corpo. Por isso mesmo é que imaginamos que se uma coisa a nós
semelhante experimenta alguma afeição, experimentamos uma afeição semelhante à
sua. (SPINOZA, 2014c, p. 221).

Martha leva a réplica do marido para um lugar que costumavam frequentar, e, em um


penhasco, pede para que ele salte para a morte, sua decomposição como aquele indivíduo. A
narrativa anteriormente nos mostra que ela não conseguia mais viver sua rotina sem ser ao
tempo todo sendo agenciada pelo fantasma das cinzas de Ash. O motivo para induzi-lo ao
suicídio é por ela enunciado: “você não é nada mais do que traços. Não há história em você”,
alegando a ausência de uma essência do marido nele, como se só existissem as características
ou qualidades recolhidas e compiladas a partir dos rastros do morto, com as quais ela passara
a se comunicar.
Se toda comunicação é agenciamento, todos os agenciamentos são sensíveis, ainda que
achemos mais adequado para a disciplina adotar a visão spinozista que preza pelo primado dos
encontros e não das essências estáveis, o que nos permite dizer que o que restou de Ash foi um
conjunto de signos imateriais midiáticos (padrões) armazenados e capturados, ou melhor,
traduzidos, para dispositivos de controle, e reprogramados em sua nova versão. É com esses
signos, que se manifestam agora, na materialidade do corpo-quase-carne do androide, que
Martha passa a se comunicar e é a partir dela que seus desejos são agenciados e estabelecem
relações com sua memória e estrutura inconsciente. Em uma possível análise spinozista,
poderíamos afirmar que o antigo Ash, com o qual Martha era casada, era um indivíduo que
compunha com Martha, ele aumentava a potência dela de existir, sua alegria, tanto como corpo
quanto como mente, ao mesmo tempo. Com a morte inesperada de seu marido, esse processo
de decomposição foi interrompido, Martha perdeu parte de sua potência.
119

Spinoza nos lembra que toda ação no corpo tem um paralelo na mente, são os dois
modos que os humanos poderiam captar da substância absolutamente infinita que é Deus ou a
Natureza. Spinoza também nos afirma que tudo aquilo que tem similaridade aparente com algo
que compõe conosco também gera uma ideia inadequada em nós de que também comporá. Para
Martha, não bastou a primeira fase do projeto, a composição com as ideias e os padrões
cognitivos de seu marido através da tela do computador, pois isso não lhe traria o mesmo grau
de potência que Ash trazia anteriormente; ela deu seguimento a essa ideia inadequada e pediu
que lhe enviassem o corpo, assim ela poderia não somente conversar, mas também abraçar,
transar, levá-lo a passeios, enfim, realizar todos os mesmos processos de composição corpóreos
e incorpóreos.
O que irrita Martha, entretanto, é o próprio excesso de controle aparente sobre o “novo
Ash”: ele não desobedece nenhuma de suas ordens, pois não foi programado para isso. Ao
mesmo tempo, a falta de controle, ou melhor, a falta de uma sugestionabilidade, aparece como
um fator de decomposição. O sexo não gera alegria, não faz com que ela goze; a personagem
pede que ele bata nela enquanto eles transam, mas Ash não é programado para causar algo que,
do ponto de vista de sua programação, de sua própria ontologia, seria algo que decompusesse
um humano. São as regras de Asimov. Entretanto, do ponto de vista de Martha, isso seria um
afeto que lhe geraria alegria, gozo, pelas questões já mencionadas do masoquismo e do
sadismo. Ainda podemos afirmar que outro fator que faz com que a moça perca o desejo de
continuar com aquele conjunto de enunciados e padrões imagéticos midiáticos corporificados
foi o fato de ele não conseguir emular a interação com os fluidos. Ela se queixa quando vê que
ele não come os alimentos, apenas finge comê-los; ela se desaponta quando ele não elimina
líquidos durante o coito aparentemente. Martha não queria um homem sem líquidos e sem
ejaculação. Isso não tem nada a ver com a possibilidade de obter prazer a partir de objetos que
estimulem as zonas erógenas, vemos o problema como uma questão novamente puramente
spinozista: o novo Ash não era mais semelhante ao Ash que causava alegria em Martha, que
aumentava sua potência; aquilo que não é mais semelhante àquilo que nos causava alegria cria
uma ideia que não nos causará mais alegria. Logo, o desejo por Ash se transforma em repulsa,
e Martha pensa em tirá-lo da existência. Vale lembrar que o que provoca essa repulsa não é
necessariamente a composição molecular ou estrutura fisiológica desse corpo que entra em sua
casa, mas o tolhimento da contingência e dos encontros inesperados ao chocar-se com ele.
Buscando a repetição do mesmo, ela se frustra.
120

Figura 32: robôs não são programados para autodestruição, a não ser quando possam decompor corpos humanos.

A tentativa de escapatória ou linha de fuga pela morte, da morte da máquina, novamente


é recapturada quando ela perde a coragem de insistir no suicídio do androide, ou melhor, em
seu assassinato. Spinoza alegaria que não há suicídio, já que nenhum indivíduo buscaria a
extinção de sua própria existência, seu conatus visa sempre à composição com outros corpos e
a manutenção e permanência na existência: “nada pode ser destruído senão por causa exterior”
(SPINOZA, 2014c, p. 205; Ética 3, proposição 4) e “uma ideia que exclua a existência de nosso
corpo não pode se dar em nossa mente, mas é-lhe contrária” (SPINOZA, 2014c, p. 207; Ética
3, proposição 10).
Logo, todo suicídio é determinado por forças externas, é resultado de um mau encontro,
de um conjunto de afecções que determinaram essa ação em direção à exclusão de algum
indivíduo da existência do modo como ela estava configurado. Em um futuro não distante na
diegese, Martha tem a filha de Ash, e a sua réplica fica guardada no sótão, escondida do acesso
ao mundo fora da casa, maior índice de sua repulsa. Fora de Black Mirror, essa possibilidade
de “colocar de lado” o que resta, tanto no inconsciente quanto nas próprias mídias, parece cada
vez mais remota, o fora dos discursos midiáticos se distancia, e a fase de luto parece
interminável. “Na sua tentativa desesperada de usar a tecnologia para negar a morte, Martha
traz à existência uma entidade que não é tão viva, e já que não consegue chorar completamente
sua perda, fica ela mesma presa a um estado de quase morte” (KNAFO; LO BOSCO, 2017, p.
241).
121

4.2. Máquinas comunicacionais

Continuamos nosso jogo de espelhos lembrando que os processos comunicacionais


acontecem entre corpos e discursos, movidos por um desejo imanente à rede de causalidades,
e não volitivo, por sujeitos que agenciam ou “empurram” as ações. Alguns conceitos que
usamos para delimitar essa especificidade apresentam alguma semelhança e, ainda que tenham
genealogias distintas e diferenças operacionais, caminham por linhas similares. São eles:
encontro (Spinoza) e acontecimento (Deleuze e o Estoicismo), agenciamento (Deleuze),
composição (Spinoza). Ainda poderíamos afirmar que a comunicação é produção de vínculos
(Giordano Bruno). O que se encontra, compõe-se, forma composições com aumento ou
redução da potência ou a restringe, como o quarto claustrofóbico permeado de paredes-tela e
Bing, que fisicamente o trava, impossibilitando-o de realizar múltiplos agenciamentos. São
composições de corpos, corpos que se encontram e se comunicam, agenciamentos maquínicos,
de máquinas que buscam composição e acoplamento, no sentido que Deleuze e Guattari (1976)
dão.
Em nossos exemplos, essa impossibilidade de escapatória (e por que não as brechas que
buscamos provocar no sistemas de normatização) se dá, sim, por máquinas, mas não somente
as máquinas e dispositivos tradicionais da sociedade disciplinar; trata-se das máquinas
comunicacionais da sociedade de controle. O psicanalista lacaniano Levi R. Bryant, em seu
livro Onto-Cartography: An Ontology of Machines and Media, desenvolve, a partir dessas
linhas teóricas supracitadas, um conceito de máquina pensando em grande parte nas máquinas
midiáticas que estão no cerne do capitalismo mundial integrado. Não concordamos totalmente
com sua abordagem em alguns pontos e ressaltaremos quais são eles, principalmente aqueles
relacionados à suposta possibilidade de autonomia das máquinas e dos corpos fora das relações,
como objetos discretos.
Para Bryant, assim como em Deleuze e Guattari (1976), também só há máquinas, que
se acoplam estruturalmente umas às outras, umas cortando os fluxos das outras. As máquinas
são perfeitas em si, ainda que cada uma delas só tenha acesso a determinados modos da
substância infinita. O ser humano é uma máquina que tem acesso à extensão, à corporeidade
dos elementos e, ao mesmo tempo, a elementos incorporais, já que ele recebe e produz
enunciados, performativos.
Partindo disso e sabendo que o autor parte de um círculo de autores conhecido como
Realismo Especulativo, criticado exasperadamente, a proposta filosófica de uma Ontologia
Orientada às Máquinas do autor é conduzir uma onto-cartografia que permita com que
122

especulemos sobre as máquinas e mídias, seus cortes e também sobre as possíveis modificações
em seus inputs e outputs, sempre trabalhando em duas vias: a das máquinas corporais e a das
máquinas incorporais. Em outras palavras, “uma máquina é um sistema de operações que
performa transformações em inputs produzindo outputs” (BRYANT, 2014, p. 38). Entretanto,
Andrew Murphie (2016, p. 03), alerta-nos que tal interpretação da comunicação ainda está
refém desses termos e baseada neles (input e output), podendo ressoar como um resquício das
teorias funcionalistas da comunicação de Shanon e Weever, que não levam em consideração a
complexidade do ato comunicação e da produção de afetos que ocorre independente daquilo
que definem como a transmissão de informação de um ponto a outro.
Podemos pensar na máquina de cinema ou na tela que produz afetos nos indivíduos que
a assistem ao reconhecerem uma imagem de uma entidade semelhante a si mesmos, como já
analisado por Raymond Bellour, lembrando que, tanto na teoria maquínica de Deleuze e
Guattari quanto na agora explanada, as máquinas podem se conectar infinitamente, criando
séries e arranjos topológicos. Assumir que a máquina do cinema ou a publicitária produz afetos
de maneira somente ativa nos indivíduos e na massa seria concordar com teorias
comunicacionais, como a teoria da agulha hipodérmica, que coloca o espectador ou consumidor
como uma entidade passiva que será influenciada pelos meios de comunicação. Sempre há
contra-afetos porque os indivíduos estão conectados a outros corpos, físicos ou da linguagem,
não estão em uma ligação matrimonial binária com o meio de comunicação (ou, por aquilo que
propõem, mais uma relação matrimonial assimétrica de submissão).
Desse modo, pensando que só há máquinas no mundo, assume-se que não temos o
acesso total ao mundo dos corpos que, quando se encontram, determinam os futuros
agenciamentos e as redes de causalidade, já que, para isso, deveríamos atingir um estágio
similar ao terceiro grau do conhecimento de Spinoza. De certa maneira, podemos ver que
Bryant pensa a especulação como uma alternativa ao entendimento, e que sua visão de
especulação não está distante de uma possibilidade de cartografar as redes de relações que se
desenvolvem entre os corpos, ou da cartografia proposta pela Teoria Ator-Rede, de Bruno
Latour. O interessante é notar que o autor propõe, para isso, uma saída em duas vias, uma
tentativa que pode se tornar eficaz, mas que, em algumas instâncias, pode ser iniciada em um
estágio já vencido.
Para escapar de um múltiplo jogo de agenciamentos e acoplamentos midiáticos em
sistemas de controle, dar um tilt nele, seria preciso atuar nessas duas frentes, lembrando que
ambas são inacessíveis em sua realidade desvelada. O Real é inatingível pela especulação e
pela linguagem, mas pode ser especulado, é possível falar a respeito dele com alguma
123

fidelidade. Resumidamente, “uma máquina funciona como um meio para outra máquina não
somente quando amplifica ou estende um órgão de sentido, mas também quando modifica a
atividade ou o devir de outra máquina” (BRYANT, 2014, p. 33; grifo do autor).
A pletora de dispositivos, telas e mídias, e outras formas materiais de aprisionamento
que cercam os personagens de Fifteen Million Merits, ao mesmo tempo em que limitam
fisicamente um escape através da ação das máquinas corporais que estimulam o corpo, também
investem a todo momento em seus inconscientes pela propaganda, codificada e transmitida de
maneira imagética audiovisual, como máquinas incorporais que alteram o funcionamento do
desejo, modulando a necessidade de mais produção de energia e das moedas digitais para
consumo, que só pode acontecer dentro dos limites do próprio estabelecimento – e não haveria
nem como ser fisicamente fora dele: assim como na peça de Beckett, Endgame, o espaço
possível de existência se tornou apenas os mostrados na narrativa, não há nada além de suas
fronteiras. Esse jogo que não é de influência direta deve ser tracejado, e é essa sua proposta.

Em sua formulação inicial, a onto-cartografia é a investigação dos acoplamentos entre


as máquinas e como elas modificam seus devires, atividades, movimentos, e os
modos como as máquinas acopladas se relacionam com o mundo em torno delas. É
um mapeamento (cartografia) desses acoplamentos entre máquinas (onta) e seus
vetores de devir, movimento e atividade. (BRYANT, 2014, p. 35; tradução nossa).42

Uma onto-cartografia das máquinas que constituem os desejos de Bing dentro do


cubículo das telas no qual vive, portanto, não deve levar em consideração apenas as
materialidades (e especular sobre suas ontologias, o que essas máquinas, como corpos,
podem?) já demonstradas, toda a arquitetura claustrofóbica e que permite que sua vida siga um
caminho de repetições, mas também as manifestações incorporais (enunciados publicitários,
sejam eles textuais ou imagéticos, que lhe estimulam a todo momento). As máquinas
comunicacionais são, como quaisquer máquinas, parcialmente inacessíveis umas às outras ou
à descrição linguística. Se em Spinoza há apenas uma substância, a Natureza, ou Deus, e o
homem só tem acesso a elas através dos modos do pensamento e da extensão, dentre infinitos
modos da também infinita extensão, para Bryant, determinadas máquinas só têm acesso aos
fluxos que elas recebem e cortam, transformam, como afecções que não dão conta de toda a
rede de causas ou muito menos da essência daquilo que lhes afeta, mas algo da própria máquina
ela mesmo, um fluxo parcial. A cartografia só pode acontecer imanentemente, from-the-middle,

42. “In its initial formulation, onto-cartography is the investigation of structural couplings between machines and
how they modify the becomings, activities, movements, and ways in which the coupled machines relate to the
world about them. It is a mapping (cartography) of these couplings between machine (onta) and their vectors of
becoming, movement and activity”. (BRYANT, 2014, p. 35).
124

e a proposta de crítica imanente de Massumi e Manning, guardadas as imensas divergências


em relação ao autor neste item discutindo, também assume esse parâmetro.

Todavia, nós não percebemos o mundo por causa do que nós experenciamos – e pelo
qual todos os entes sencientes experienciam –, esses fluxos são transformados por
meio de operações. Do ponto de vista do sujeito, sua experiência vivida do mundo é
indistinguível do mundo ele mesmo. Isso acontece porque cada máquina somente tem
acesso aos fluxos operacionalmente transformados que ela encontra em seu mundo
interno. (BRYANT, 2014, p. 60; tradução nossa; grifo do autor).43

Tal ideia pode parecer um tanto quanto pessimista e nos levar a pensar que a
impossibilidade de explicação das redes de agência midiáticas nos torna totalmente
inoperantes. A atual predominância das análises de redes sociais é o objetivo de qualquer
empresa que trabalha com comunicação ou publicidade no Capitalismo Mundial Integrado, e
o ele vê a predominância das máquinas comunicacionais em todos os seus campos, ainda assim,
por mais que a análise siga os traços e enunciados que se enredam, no sentido que dá Bruno
Latour em sua “cartografia das controvérsias”, algo escaparia à natureza ou essência dos
sistemas de métrica, um determinado campo de afetos; toda experiência maquínica é, ao
mesmo tempo, parcial (a partir das afecções causadas por outros fluxos) e completa e necessária
(tudo é necessário porque esse regime de causalidade entre as máquinas é imanente, não é uma
perda, e só poderia existir do jeito que é, é determinado por seus agenciamentos e encontros).
Qual é a possibilidade de ação se somos tão determinados por uma estirpe de máquinas,
dentre elas a midiática, que ganha cada vez mais espaço e potência de agenciar? Não se trata
de uma visão apocalíptica, mas de visar a uma especulação a respeito do funcionamento desses
sistemas midiáticos. Segundo o autor, a especulação é mais ética do que o Humanismo e aqui
se aproximaria de uma avaliação ética como Spinoza propõe: observar as redes de causalidade
buscando escapar de uma separação entre homem e mídia, homem e tecnologia, como o
primeiro sendo afetado pelos segundos. Ao invés disso, dissertar sobre o todo e as partes
infinitas, Bing e o seu quarto-tela são uma coisa só, não estão em distintos patamares
ontológicos. Temos similaridades com o personagem, portanto podemos nos identificar com
ele, ou melhor, podemos nos sentir afetados pelas experiências sensoriais agenciadas pela
história, mas, ainda assim, não teríamos acesso aos seus afetos reais e ideias. Quanto aos outros
elementos midiáticos, que não estão de maneira alguma separados dele, também são

43. “Nonetheless we do not perceive the world because what we experience – and what all sentient beings
experience – are these flows transformed through operations. From the standpoint of the subject, its lived
experience of the world is indistinguishable from the world itself. This is because each machine only has access
to operationally transformed flows it encounters in its internal world”. (BRYANT, 2014, p. 60).
125

inaces,síveis mas passíveis de especulação, “nós somente podemos encontrar o mundo-sem-


nós obliquamente, através do paradoxo movimento da especulação” (SHAVIRO, 2014, p. 67):

Apesar de nossas fenomenologias alienígenas serem falíveis e certamente não nos


entregarem uma experiência em primeira pessoa do mundo como é para uma
determinada máquina, nós, no entanto, somos capazes de fazer um número de
inferências sobre com quais fluxos outras máquinas podem interagir causalmente e
de modo significativo, bem como quais tipos de operações elas produzem em resposta
a esses fluxos. Nossa fenomenologia alien sempre será imperfeita, mas, como vimos,
mesmo sendo imperfeitas como são, são, no entanto, preferíveis ao fechamento
epistêmico de um humanismo que aborda todo o ser do modo como é para nós.
(BRYANT, 2014, p. 64, tradução nossa, grifo nosso).44

Bryant comenta a obra de Ian Bogost (2012), autor do movimento filosófico


supracitado conhecido como Realismo Especulativo e em relação ao qual temos inúmeras
reservas, mas o que nos interessa nisso tudo é a possibilidade de mostrar-nos “um campo de
possibilidades para pensar os agenciamentos comunicacionais para além da comunicação
humana”; uma possibilidade de modo especulativo de estudar a comunicação, atentando para
suas materialidades (máquinas midiáticas pelas quais enunciados são difundidos e produzidos);
mas também é, portanto, um deslocamento ontológico, uma tentativa de posicionar-se a partir
de uma perspectiva que não é a do “humano”; uma perspectiva que admita a existência de um
mundo inter-relacional de afetos e agenciamentos para além do salto alto dos Humanismo;
apesar de a superação deste ser uma tarefa difícil e trabalhosa de ser realizada.”45
Enfrentar as coerções de um ecossistema maquínico, portanto, implica ações tanto no
campo das materialidades quanto das discursividades. Em relação às primeiras, a forma de ação
é via uma política termodinâmica (BRYANT, 2014), que consiste em afetar os meios de
produção em sua economia física e energética, seja através de quebra-quebra, a decomposição
desses meios, ou de boicote, o corte de fluxos. Ou usá-los de outra maneira. Cortes no sistema
maquínico dos corpos que estão aprisionados foram possíveis quando Bing percebeu a própria
fragilidade de seu funcionamento, observando como é possível roubar um refrigerante de uma
máquina de venda de alimentos que travou ao dispensar os alimentos comprados, ou quando
valeu-se do caco de vidro para encenar sua ameaça de suicídio perante os jurados do reality
show musical.

44. “While our alien phenomenologies are fallible and certainly do not deliver a first-person experience of what
the world is like for a particular machine, we are nonetheless able to make a number of inferences about what
flows other machines are able to causally and meaningfully interact with, as well as the sorts of operations they
carry out in response to these flows. Our alien phenomenology will always be imperfect, but as we well see, as
imperfect as they are, are the nonetheless preferable to the epistemic closure of humanism that approaches all of
being in terms of what is for us.” (BRYANT, 2014, p. 64).
45. O parágrafo em aspas é trecho de artigo por nós já desenvolvido. A esse respeito, ver TRENTO;
VENANZONI, 2014.
126

Ao mesmo tempo, um outro tipo de ação é necessário, uma tomada de ação por meio
de uma política semiótica, da linguagem, que não está de modo algum apartada do regime dos
corpos, apesar de não os representar. Uma política afetiva de ontopoder só pode ser combatida
com uma nova política de organização das cartografias afetivas (MASSUMI, 2015). As
máquinas comunicacionais dos cubículos produzem efeitos físicos (aprisionamento e atrofia)
e inconscientes (indução ao consumo, produção de desejo). Portanto, ambos os fluxos deveriam
ser interrompidos, visando a uma “pane no sistema”. Vemos que Bing não foi bem-sucedido
nisso, já que a grande e tentacular máquina comunicacional devorou seu ato de protesto e o
recolocou na máquina de propaganda.
O que Bing poderia ter feito, mesmo sujeito à contingência daquele sistema, era buscar
uma avaliação ética dos agenciamentos físicos e semióticos, tentando especular e
especulativamente se colocar no lugar dos próprios objetos das máquinas comunicacionais que
o estavam enredando, visto que ele, como sujeito, “não fala a mesma língua” da instituição que
buscava afetar. Para combater a instituição que recebe fluxos que falam sobre gerar lucros,
normas, normatizações etc., temos que nos “colocar no lugar dela” e pensar nos tipos de fluxos
e entes com as quais ela estabelece boas relações (ver Spinoza também, sobre bons encontros).
Nesse ponto, a Ontologia Orientada às Máquinas, de Levi R. Bryant, aproxima-se e é devedora
das máquinas desejantes de Gilles Deleuze e Félix Guattari: cada máquina é uma singularidade,
compreender uma máquina é buscar especular a respeito do tipo de fluxo ou rede de
agenciamento com os quais ela se relaciona, sua rede de causalidades imanentes:

Sem dúvida, cada máquina-órgão interpreta o mundo inteiro segundo seu próprio
fluxo, segundo a energia que flui dela: o olho interpreta tudo em termos de ver – o
falar, o ouvir, o cagar, o foder... Mas sempre uma conexão se estabelece com outra
máquina, numa transversal em que a primeira corta o fluxo da outra ou “vê” seu fluxo
cortado pela outra. (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 20).

Bing não atentou como deveria ao discurso, sua ação foi calcada principalmente na
ação física contra a integridade de seu próprio corpo, algo que Spinoza consideraria resultado
de ação externa, já que nós lutamos para perseverar na existência, buscando a produção de um
choque midiático na plateia, a construção de um acontecimento, mas a publicidade daquele
microambiente capitalista fez de sua imagem suicida um novo produto, as máquinas
incorporais da comunicação foram mais rápidas. “Vários sistemas midiáticos como a televisão,
rádio e os jornais formam mentes e afetos, indicando com o que as pessoas deveriam estar
preocupadas, como elas deveriam se vestir, que normas deveriam obedecer etc.” (BRYANT,
2014, p. 99).
127

Entretanto, não estaríamos penetrando em uma nova dualidade entre matéria e


linguagem, corpo e espírito, res extensa e res cogitans? Para Bryant, esse não é um problema,
já que tanto os elementos semióticos, incorporais, quanto os próprios corpos, ou seja, as
materialidades da mídia, estão em um mesmo plano ontológico. O que os distingue é o ponto
de vista de cada máquina, ou seja, os fluxos que cada uma pode receber ou cortar. Máquinas
comunicacionais recebem e produzem fluxos semióticos, sejam eles imagéticos, textuais ou de
quaisquer de nossos sentidos, é um de seus modos de agenciar os sujeitos que estão no processo
comunicativo. Uma ontologia plana, portanto, é anárquica, não supõe a transcendência de um
uno (cogito, homem, Deus etc.) sobre outros. Ela não obedece a hierarquizações. O mundo
Real (de Lacan) é inacessível, atravessado e percebido pelos múltiplos modos de input de flow
das múltiplas máquinas (corporais ou não).

Por essa razão, os mundos não são geometricamente planos, mas ontologicamente
planos. Eles são ontologicamente planos no sentido de que não há nenhuma dimensão
suplementar acima e sobre todas as máquinas que totaliza todas essas máquinas.
Tampouco há algum soberano como Deus, poder, a força, formas platônicas, o Bem,
cogito, uma subjetividade transcendente, linguagem, signos, e assim por diante, que
funcionem como hierarquias do ser, determinando todos os outros seres. (BRYANT,
2014, p. 115; tradução nossa; grifo do autor).46

Ao mesmo tempo, essas máquinas não buscam produzir um objeto final, mas novos
fluxos que serão cortados infinitamente em uma cadeia de causalidades, e a linguagem ou a
semiótica da comunicação aí atuariam no fazer fazer, ou seja, agenciar os indivíduos, para
normatizá-los ou para produzir pontos de resistência, de modo que as “transformações
incorporais não transformem a coisa ela mesma, mas como as outras máquinas se relacionam
com outra máquina ou coisa” (BRYANT, 2014, p. 129). Em outras palavras, a economia
semiótica e a energética ou material fazem parte da mesma ecologia midiática.

Uma ontologia achatada é, desse modo, uma ontologia anárquica. Não há um “ponto
máximo de chegada” em um mundo de máquinas. Há somente planos imanentes de
máquinas afetando e sendo afetadas por outras sem uma dimensão suplementar que
estruture todas as suas interações. Uma ecologia é uma rede de máquinas sem um
princípio governante. Consequentemente, todas as ecologias são anárquicas.
(BRYANT, 2014, p. 116; tradução nossa; grifo do autor).47

46. “For this reason, worlds are not geometrically flat, but ontologically flat. They are ontologically flat in the
sense that there is no supplementary dimension over and above the machines themselves that totalizes machines.
Nor are there any sovereign beings like God, power, force, Platonic forms, the Good, cogito, transcendental
subjectivity, language, signs, life, and so on, that function as hierarchies of being, determining all other beings”.
(BRYANT, 2014, p. 115).
47. “A flat ontology is thus an anarchic ontology. There is no ultimate ground within a world for machines. There
are only immanent planes of machines affecting and being affected by one another without a supplementary
dimension that structures all their interactions. An ecology is a network of machines without a single governing
principle. Hence all ecologies are anarchic”. (BRYANT, 2014, p. 116).
128

Uma ecologia atua em um espaço topológico, que é distinto do espaço newtoniano


tradicional. O primeiro precede os objetos, enquanto, no segundo, o espaço é fruto dos objetos,
emerge deles e com eles em uma lógica de inclusão mútua. É, portanto, relacional. Esse espaço
é determinado pelo campo gravitacional de cada objeto. O autor usa o termo gravidade para
definir um campo de ação de um objeto que pode atrair ou agenciar, fazer com que outro objeto
tenda a fazer algo. Em outras palavras, trata-se da capacidade de afetar de cada um deles. Desse
modo, as distâncias no espaço newtoniano existem conforme a métrica que é dada previamente,
enquanto, no topológico, referem aos caminhos e aos tipos de rede pelos quais deve-se passar
de um objeto a outro (BRYANT, 2014, p. 144-145). O mesmo argumento vale para o tempo:
“A onto-cartografia rejeita a noção de que haja um espaço-tempo que contém todas as
entidades. Em vez disso, argumenta que há uma variedade de espaços-tempo emergindo a partir
da gravidade exercida pelas entidades em um milleu ou situação” (Ibid., p. 15).

Em uma concepção topológica de espaço, os assuntos são um pouco diferentes. Onde


uma concepção newtoniana de espaço concebe o espaço como um compartimento
pré-existente no qual as máquinas são abrigadas, uma concepção topológica do
espaço trata-o como decorrente das máquinas. Em uma concepção topológica, o
espaço é concebido como uma rede de caminhos entre máquinas ou nós produzidos
por máquinas. O primeiro ponto é notar aqui que, sob o guarda-chuva de uma
concepção topológica de espaço, não há um único espaço que tudo abarque contendo
todas as máquinas. Na medida em que o espaço é composto de caminhos, haverá
distintos espaços dependendo da estrutura de caminhos entre as máquinas. Em
segundo lugar, as noções de proximidade e distância são distintas em uma concepção
topológica de espaço. (BRYANT, 2014, p. 144; tradução nossa, grifo do autor).48

É nesse sentido, como ponto de atração, como aquilo que gera um fazer fazer, que
estabeleceremos o conceito de mídia como qualquer dispositivo de mediação, que não pode ser
restrita à ação em um ou outro sentido do corpo, mas como toda uma ambiência de produzir
desejos e ações. É o caso do espaço midiático total e sem saída do universo dos méritos de
Black Mirror, a situação contraditória de produção de muitas afecções de modo a produzir
sempre agenciamentos similares, em outras palavras, a mídia também age sobre os movimentos
e devires; tudo o que media uma relação entre múltiplas máquinas é uma mídia (Ibid., p. 192-
193).

48. “In a topological conception of space, matters are very different. Where a Newtonian concept of space
conceives space as a pre-existent container in which machines are housed, a topological conception of space treats
space as arising from machines. In a topological conception, space is conceived of as a network of paths between
machines or nodes produced by machines. The first point is to note here is that under a topological conception of
space, there will not be a single, all-embracing space containing all machines. Insofar as space is composed of
paths there will be different spaces depending on the structure of paths between machines. Second, notions of
proximity and distance become different under a topological conception of space”. (BRYANT, 2014, p. 144).
129

Já que as ações acontecem de acordo com os graus de potência e o encontro desses


objetos, elas acontecem em um campo em que todos têm o mesmo estatuto ontológico. Trata-
se de um plano de imanência, não há transcendência ou sobredeterminação absoluta. Nesse
sentido, é possível afirmar que o ser humano é, sim, excepcional, assim como qualquer corpo.
No entanto, trata-se de um julgamento que já está dentro do campo da linguagem ou é um
julgamento que pode ser feito a partir dos modos de acesso dos humanos. Ao fazer um exercício
especulativo sobre a essência do homem, entretanto, chegaríamos à mesma conclusão de
Spinoza: tudo são corpos, que estão se encontrando, produzem afetos e induzem a novas
composições. Para a Natureza (ou Deus), não há diferença entre humano ou não humano, só
há indivíduos necessários que estão se agenciando dentro de um mesmo plano de imanência, a
rede da própria Natureza. Trata-se de mais uma teoria que, assim como Spinoza, Deleuze,
Latour etc., trabalha com entidades relativamente estáveis que se compõem ou decompõem-se,
maquinam, interagem, agenciam etc. Dentro desse tipo de discussão, não é necessário pensar
o humano de maneira separada e transcendente.

Em vez de bifurcar o ser em dois domínios – o domínio dos objetos e o domínio dos
sujeitos, o domínio da natureza e o domínio da cultura – nós devemos conceber o ser
como um único e planificado plano, uma única natureza, na qual os humanos são
seres juntamente a outros seres. Enquanto os humanos são certamente excepcionais,
para nós, eles não são ontologicamente excepcionais. Para ter certeza, eles diferem
em seus poderes e capacidades de outros seres, mas eles não são os senhores das
hierarquias acima de todos os outros entes. Eles são seres que vivem e habitam
conjuntamente com outros seres que atuam sobre eles e que são agidos por eles.
(BRYANT, 2014, p. 215; tradução nossa; grifo do autor).49

Ainda assim, Bryant defende que os entes ora são sujeitos, ora são objetos. Em outras
palavras, em determinadas situações ou posições nas redes de causalidade, estão em situações
de atividade ou de passividade – para Spinoza, somos ativos quando somos a causa adequada
de um acontecimento; passivos, quando inadequada. Trazendo para as discussões que podemos
desenvolver, mais para contestá-la do que afirmá-la:

Nossa tendência é de tratar os sujeitos como um tipo de ente. Os entes humanos ou


agentes racionais – um tipo de ente – são sujeitos, e todo o resto é um objeto. Essa é
uma confusão da mais alta ordem. O Sujeito não é um atributo fixo de um tipo
particular de ser, mas é, na verdade, um papel transitório definido funcionalmente em
situações particulares. Um [ente] pode entrar e sair do papel de sujeito, às vezes sendo
um sujeito, outras vezes sendo um objeto. Além disso, sujeitos não precisam ser
necessariamente humanos. Funcionalmente, animais, tecnologias, micróbios, pedras

49. “Rather than bifurcating being into two domains – the domain of objects and the domains of the subjects, the
domain of the nature and the domain of culture – we must instead conceive of being as a single flat plane, a single
nature, on which humans are beings among other beings. While humans are certainly exceptional, for us they are
not ontologically exceptional. To be sure, they differ in their powers and capacities from other beings, but they
are not lords or hierarchies over all other beings. They are beings that dwell among other beings, that act on them
and that are acted upon by then.” (BRYANT, 2014, p. 215).
130

e bolas podem ser sujeitos em algumas circunstâncias. (BRYANT, 2014, p. 218;


tradução nossa).50

Bryant retoma a possibilidade de criação de diagramas que representem os


agenciamentos homem-máquina por meio de sua onto-cartografia; sendo onto derivado da
palavra ôntico, ou seja, aquilo que “denota as entidades materialmente existentes, substâncias
e objetos” (BRYANT, 2013, p. 14). Por sua vez, a cartografia refere-se à prática de “construção
de mapas ou diagramas de coisas e signos – que existem em um campo, situação ou mundo”
(ibid.). Podemos, assim, relacionar essa proposição aos mapas e diagramas construídos a partir
dos rastros e das controvérsias dos objetos detectados via análises da Teoria Ator-Rede;
ressaltando que a percepção dessas entidades materiais “externas” são detectadas a partir do
campo afetivo de cada ser. Morton (2013, p. 157), em sua análise do curta-metragem Das Rad,
faz uma especulação sobre percepção do tempo a partir do ponto de vista ontológico de rochas
que observam os movimentos de estratificação e dissolução das sociedades humanas de um
ponto de vista em que tudo parece rápido; uma tentativa especulativa de observar (a não ser
para xamãs da floresta que navegam entre mundos) e de se colocar no lugar ontológico de outra
criatura, ser ou objeto.

A Onto-Cartografia é tanto uma teoria do espaço-tempo dos objetos [formado]


quando eles interagem, quanto um método de mapeamento dessas interações. Para
ter certeza, “gravidade”, o termo que uso aqui como uma metáfora [...], foi escolhido
para chamar a atenção para como as coisas e os signos estruturam as relações espaço-
temporais ou os caminhos pelas quais as entidades se movem ou devêm. (BRYANT,
2013, p. 13; tradução nossa).51

O autor propõe não um abandono do conceito de poder nas ciências humanas, apenas
atenta para um possível desgaste, visto que ele, “no mundo da filosofia e da teoria, tem se
tornado demasiadamente antropocêntrico, atentando para exercícios de soberania, poder de
classe, simbólico, micropoder ou biopoder” (Ibid.). Entretanto, não propomos o abandono da
existência do paradigma biopolítico no seio do controle dos indivíduos e da sociedade
contemporânea; mas buscamos um deslocamento que possibilite enxergar e mapear as ações
das entidades não humanas de maneira simétrica, evitando que as coisas sejam reduzidas

50. “Our tendency is to treat subjects as a type of being. Human beings or rational agents – a type of being – are
subjects and everything else is an object. This is a confusion of the highest order. Subject is not a fixed attribute
of a particular type of being, but rather is a transitory role defined functionally in particular situations. One can
pass in and out of being a subject, sometimes being a subject, at other times being an object. Moreover, subjects
need not be human at all. Functionally, animals, technologies, microbes, rocks, and balls can be all subjects under
certain circumstances.” (BRYANT, 2014, p. 218).
51. “Onto-cartography is both a theory of the space-time of objects as they interact and a method for mapping
these interactions. To be sure, ‘gravity’, as I am using the term here as a metaphor [...] – chosen to draw attention
to how things and signs structure spatio-temporal relations or the paths along which entities move and become”.
(BRYANT, 2013, p. 13).
131

“apenas a veículos do poder humano e de sua linguagem, sem dar nenhuma atenção à
contribuição das [entidades] não humanas nas assemblages sociais” (ibidem).
O sujeito é, portanto, inconstante, um grau de individuação e composição de indivíduos
que é frágil, em algum momento sucumbirá e encontrará algo mais potente que si mesmo. A
subjetividade é constituída nas relações semióticas, biológicas, discursivas etc. com distintos
objetos e sistemas que lhe afetam; sendo ele um nó em uma rede de agenciamentos de toda
estirpe. Há uma impossibilidade de se pensar a vida a partir de um espaço euclidiano, visto que
“não podemos pensar a matéria viva como resultado de determinadas condições energéticas ou
estruturais puras. É preciso que certas condições topológicas52 sejam pensadas a fim de que
possamos dar conta dos processos vitais” (COSTA, 1988, p. 87):

Se tomamos como exemplo o intestino, verificamos que, segundo os processos de


distribuição topológicos, o interior do intestino é, de fato, exterior ao organismo.
Trata-se de um espaço exterior anexado, fruto de um longo processo de invaginação,
de dobras do organismo. Mas, de um outro modo, as cavidades digestivas são
exteriores ao sangue, que por sua vez é exterior às glândulas que nele fazem jorrar
suas secreções. O que temos, então, é essa atividade transdutiva que faz propagar
níveis relativos de interior e exterior. (COSTA, 1988, p. 88).

Ao descrever sua onto-cartografia, Bryant (2014, p. 238) propõe uma divisão prática
dos sistemas ontológicos da imanência e da transcendência. Retomando, uma ontologia da
transcendência é vertical, na qual “uma máquina particularmente sobrecodifica as outras,
unilateralmente condicionando-as” (Ibid., p. 238). Podemos considerar o caso de grande parte
das religiões ocidentais, em que o ser “Deus”,53 ainda que distribuído através de um dispositivo

52. A respeito de uma topologia que seja definida a partir das relações pelos objetos, em contraste com os sistemas
lineares, que buscam eficiência e produtividade na representação, ver Ingold (2007, Kindle Loc. 1585). Em seu
trabalho sobre a genealogia das linhas, ele mostra como um tipo de linha (reta, direta e artificial) se sobrepôs às
linhas errantes e curvas na cultura ocidental: “Another kind of line, however, is in a hurry. It wants to get from
one location to another, and then to another, but has little time to do so. The appearance of this line, says Klee, is
‘more like a series of appointments than a walk’. It goes from point to point, in sequence, as quickly as possible,
and in principle in no time at all, for every successive destination is already fixed prior to setting out, and each
segment of the line is pre-determined by the points it connects. Whereas the active line on a walk is dynamic, the
line that connects adjacent points in series is, according to Klee, ‘the quintessence of the static’ (ibid., p. 109). If
the former takes us on a journey that has no obvious beginning or end, the latter presents us with an array of
interconnected destinations that can, as on a route-map, be viewed all at once” (INGOLD, 2007, Kindle Loc.
1585).
53. Cabe destacar que as religiões ou uma religiosidade, por si só, não constituem um regime de transcendência.
Como Latour já nos lembrou em Jamais fomos Modernos (1994), algumas sociedades consideradas primitivas
por nós, modernos, têm e tinham deuses imanentes, não transcendentes, deuses que eram eles mesmos coisas,
seres vivos, e que tinham poder de agência que se alterava conforme essas sociedades ditas anárquicas. Pierre
Clastres e Eduardo Viveiros de Castro também trazem exemplos desse tipo. Além disso, religiões orientais, ou
filosofias orientais, como algumas correntes do Budismo (e correntes da filosofia budista), podem apresentar
sistemas de imanência. Para Bryant, um filósofo ocidental que tratou de uma ontologia imanente é Spinoza, pois,
em sua filosofia, suas noções de Deus e de Natureza eram coincidentes. A esse respeito, ver Bryant (2014, p. 239):
“Spinoza’s ontology, for example, would be an ontology of immanence because God and nature are conceived as
one and the same thing. Here God is not a sovereign that organizes and legislates over all other beings, but it is
132

de oikonomia (AGAMBEN, 2009), é interpretado como agente soberano que pré-determina


todas as outras coisas, criando-as e tendo poder total de agência sobre elas. Em outras palavras,
uma ontologia da transcendência é calcada na ideia de “soberania”. Dentre os exemplos dado
por Levy R. Bryant estão “O Deus da ontoteologia, o idealismo transcendental, o Humanismo,
as formas platônicas, e o idealismo linguístico”. Por sua vez, uma ontologia da imanência é
uma ontologia plana (DE LANDA, 2013) –, que tem “sobredeterminação bilateral
condicionante entre as máquinas, [os actantes] atuam no campo da mediação]” (BRYANT,
2014, p. 238) e sua configuração é a Anarquia. Dentre os exemplos, e aqui excederemos os
exemplos dados pelo autor para considerar os agenciamentos descritos na prosa da primeira
parte deste texto (em específico em relação àquilo que consideramos como “objetos
midiáticos”), estão “os modos como os organismos e o ambiente interagem, um desenvolvendo
ao outro, o modo como a escrita modifica o conteúdo e como o conteúdo modifica a escrita, e
o modo como uma ferramenta modifica um usuário e como um usuário modifica uma
ferramenta” (Ibid., p. 238).
Esse último enunciado – sem ter que recorrer a determinismos tecnológicos e tampouco
ignorar o contexto histórico do uso das tecnologias midiáticas – é aquele que mostra a
sobreposição do uso da affordance de uma mídia, modificações em seu uso que podem ser
profanatórias ou não, e a mudança de subjetividade envolvida com a introdução de um novo
aparato em um ambiente e em seus sujeitos. Nota-se que esse caminho é de mão dupla, os
indivíduos que participaram do ritual de julgamento e punição da jovem acusada de matar a
criança não o fazem apenas porque dispõem de smartphones e câmeras para poder registrar
isso, e tampouco pode-se atribuir um componente único de mudança de subjetividade a essas
tecnologias midiáticas – há uma dupla codificação entre o comportamento deles; uma
subjetividade transformada por um sentimento de culpa que não é novo, mas data da instalação
de sociedades punitivas do racionalismo positivista e, mais que isso, de uma certa abordagem
da própria Igreja Católica, dentre outros dispositivos que instauraram um regime de vigilância
e punição de si mesmos e dos outros – e também de como a configuração de distribuição de
actantes (que trazem a possibilidade de gravar, ver e rever as punições, açoitamentos à jovem)
que também produzem um certo desejo de estar no controle dessa situação; e se relacionam
com os desejos antes citados de produção de punição de si e dos outros. Se Deus é
misericordioso, ele também pune (contradição da sociedade moderna ocidental).

synonymous with those beings. By contrast, Descartes’ and Leibniz’s ontologies would be vertical ontologies
because God stands above being, organizing it, creating it, legislating it”.
133

Como Deleuze escreve, a “absoluta imanência está nela mesma: se não é nada,
também não pode ser atribuída a algo; não depende do pertencimento a um sujeito ou
objeto. (Deleuze, 2006, p. 385). Aqui a imanência não se refere a coisas que são
necessariamente ou não da Terra. Uma ontologia é uma ontologia da imanência
apenas se está compromissada somente com a existência de mundos terrenos,
rejeitando quaisquer seres transcendentes. Essências transcendentes, sujeitos
transcendentes, e assim por diante. Em cada um desses casos, nós temos uma
verticalidade que condiciona todos os outros antes sem que ela seja condicionada por
eles. Uma máquina é tratada como transcendente quando organiza todas as outras
máquinas sem que ela seja afetada por elas. (BRYANT, 2014, p. 237; tradução
nossa).54

Em resumo, a proposta teórica da onto-cartografia trata de encontros. Isso porque,


para o autor, aquilo que determina a potência de um objeto ou ente, sua essência, que não pode
ser acessada em sua completude, é determinado por um elemento que não está no próprio ente,
é exterior a ele. Em outras palavras, a potência de um corpo é maior ou menor de acordo com
a quantidade e o tipo de encontros pelos quais esse corpo passa, que lhes geram alegria
(aumento da potência) ou tristeza (diminuição dela).

Nós não sabemos o que um corpo pode porque cada objeto abriga profundezas
misteriosas que podem ser atualizadas de distintos modos como resultado de suas
interações ambientais ou encontros com outras entidades. Objetos estão divididos
entre essas misteriosas profundezas de poderes ou capacidades e quaisquer
qualidades as quais eles possam atualizar em um determinado ponto no tempo. Ao
conceber objetos como corpos negros, porosos ou transcorporais, que absorvem seus
ambientes e abrigam misteriosas possibilidades de comportamento em contextos em
mudança, nossa atenção à surpreendente natureza do mundo é realçada, levando-nos
a sermos mais cautelosos a respeito do que introduzimos no meio ambiente.
(BRYANT, 2013a, p. 304; tradução nossa, grifo do autor).55

Em nossas análises, a máquina que sobrecodifica todas as outras é o que podemos


chamar de máquina comunicacional, uma classe de entidades que determina o funcionamento
de todas as outras em alguma instância. Quase todas as ações possíveis a Bing em sua prisão
ou em seu trabalho são determinadas por uma máquina comunicacional ou, doravante,
capturadas. Para poder dormir, por exemplo, tem que utilizar parte de suas economias, de modo

54. “As Deleuze writes, ‘[a]bsolute immanence is in itself: it is not in anything, nor can it be attributed to
something; it does not depend on an object or belong to a subject (Deleuze, 2006, p. 385). Here immanence does
not refer to whether or not it issues from the earth. An ontology is an ontology of immanence if it is committed
solely to the existence of earthly worlds, rejecting any transcendent beings. Transcendental essences, the
transcendental subject, and so on. In each of these cases, we get a verticality that conditions all other beings
without itself being conditioned by them. A machine is treated as transcendent when it organizes all other
machines without itself being affected by them”. (BRYANT, 2014, p. 237).
55. “We do not know what a body can do because every object harbors mysterious depths that can be actualized
in different ways as a result of their environmental interactions or encounters with other entities. Objects are split
between these mysterious depths composed of powers or capacities and whatever qualities they happen to
actualize at a particular point in time. In conceiving objects as black bodies that, as porous or transcorporeal, both
absorb their environments and harbor mysterious possibilities of behavior in changing contexts, our attentiveness
to the surprising nature of the world is enhanced, leading us to be more cautious about what we introduce into the
environment”. (BRYANT, 2013a, p. 304).
134

a interromper as propagandas. A máquina comunicacional funciona produzindo


representações, enunciados que buscam a certeza da representação ideal de um evento e o
controle absoluto dos eventos futuros. Por meio dos encontros com essas ideias e com o próprio
ecossistema midiático, novos desejos são criados, e os próximos encontros são programados.
Também é uma máquina de produzir afetos.
Não se trata de uma passividade absoluta dos indivíduos perante esse sistema; pontos
de resistência e fraturas são encontrados, é o próprio caso de Bing, quando observa a falha
oportuna da máquina de refrigerantes ou a possibilidade de novos encontros com a coisa e
mulher amada. Essas possibilidades de escapatória foram rapidamente recapturadas em novos
agenciamentos comunicacionais e capitalistas. Pensar novas saídas a isso é repensar a ontologia
da própria máquina comunicacional, a própria ideia de comunicação. Não se trata de anulá-la,
mas produzir um deslocamento epistemológico, da comunicação como a representação de um
evento ou encontro, para a comunicação como o próprio agenciamento, produtora de afetos.
Ao falar sobre o evento, já se está no campo da linguagem. Em outras palavras, o próprio
campo da comunicação deve considerar que todo ato comunicacional é falho. Nas palavras de
Jaqcues Lacan, all communication is miscommunication (BRYANT, 2014, p. 59).
A geofilosofia proposta por Bryant (Ibid., p. 279) leva em consideração três fases (que
podem ser concomitantes) para produzir uma mudança nos modos de existência que causaram
a emergência do Antropoceno. Destaca-se que a proposta do autor sugere um conjunto de
mudanças estruturais tanto no campo das relações materiais quanto imateriais. Ou seja, uma
revolução anarquista teria de passar por uma mudança no modo de uso ou de profanação dos
dispositivos midiáticos que transportam os enunciados imateriais (o que não significa que eles
não tenham uma materialidade, já que as entidades incorporais tomam corpo no ato de
comunicação). A primeira etapa é cartografar como as relações entre determinados modos de
vida se sobrecodificam, um mapeamento dessas relações “gravitacionais” (Ibid., p. 279). O
produto dessa fase seriam mapas “modais, genéticos e vetoriais” dessas sobreposições de
modos de existência56. A segunda etapa é a desconstrução, ou seja, subtrair e cortar relações;
“derrubando a gravidade em prol do movimento livre, os devires e as manifestações locais;
criação de linhas de fuga” (Ibid., p. 279).
Não é possível criar uma Teoria Geral da Comunicação, mas observar como os
agenciamentos e os afetos (que aqui concebemos como comunicação) são considerados
comunicativos. Para Bryant, somente esse mapeamento poderá fazer com que possamos

56
(LATOUR, 2013 para um esforço em categorizar as ontologias dos modernos, e os entrecruzamentos entre
elas).
135

“destruir as máquinas no nível de expressão e conteúdo (minando as ecologias existentes)”.


Não se trata de uma destruição ludita dos meios de comunicação; mas de uma retomada desses
em um nível horizontalizado, profaná-los e ressignificá-los. A próxima etapa é a
“Terraformação”, a construção de novas relações por adição [ou novas composições]. Devemos
“Construir novas montagens que são mais satisfatórias, justas e sustentáveis, criar novos
campos de vida, materialidade e afetividade” (BRYANT, 2014, p. 279). Assim será possível a
“construção de máquinas e montagens tanto no nível da expressão quanto do conteúdo
(construir novas ecologias)” (Ibid., p. 279).
Para construir novas relações com os meios de comunicação, não basta acelerá-los até
o esgotamento do sistema capitalista; sabe-se que seu funcionamento rizomático é capaz de
capturar quaisquer modificações dentro dele. Se ainda há fora, é preciso observá-lo. Olhar para
trás, em uma visão dos modernos, olhar para as sociedades ditas primitivas, não é um passo
para o passado, mas para um futuro possível. Como já alertaram Viveiros de Castro e
Danowsky (2014) para nos lembrar de como aqueles que já passaram por vários “fins de
mundo” possuem ontologias e modos de afetar e ser afetados (comunicação) que não estão
abaixo dos nossos pressupostos e pretensiosos elementos epistemológicos; mas que apresentam
uma visão ecológica dos agenciamentos entre humanos, não humanos ou quaisquer entes.
“Uma máquina revolucionária não é nada se não adquire ao menos tanta potência de corte e de
fluxo quanto essas máquinas coercitivas” (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 371).
136

PARTE III – DOIS MODOS DE CRÍTICA

Diversos teóricos pesquisaram os modos como a atual onipresença das mídias e das
telas se relacionam com os modos de existir dos indivíduos na contemporaneidade. Manning
(s/d, p. 5) desenvolve o conceito de “imediação” (immediation) para designar um ambiente tão
penetrado pelas mídias que faz com que só passemos a notá-las quando elas falham, tornam-se
invisíveis e emergem como ferramentas à percepção quando as redes sociotécnicas das quais
elas fazem parte apresentam algum defeito. É nesse contexto em que a mídia está tão
impregnada na vida cotidiana que uma crítica de mídia deve acontecer também em ato,
(MASSUMI, 2015) por meio do desenvolvimento de uma ética relacional de uso das mídias.
Nesse contexto, Black Mirror pode ser uma metacrítica da mídia, experiência que já vem sendo
feita pelo criador e roteirista do seriado, Charlie Brooker, em seus programas, como o Charlie
Brooker’s Weekly Wipe (2009-), uma miscelânea de esquetes que, de maneira cômica, zomba
dos acontecimentos midiáticos da semana, no sentido de criticar a forma como são noticiados
e, de certa maneira, o fetiche pela representação dos fatos no jornalismo britânico, com o
próprio apresentador e jornalista do The Guardian sentado na bancada, fazendo comentários.
No Brasil, os programas TV Pirata (Rede Globo, 1988-1992), Tá no Ar (Rede Globo, 2014-) e
Greg News (HBO Brasil, 2017-) seguiram a linha da metacrítica de mídia ligada ao humorismo.
João Freire Filho (2004), ao discutir outras modalidades de crítica midiática, faz um
abrangente levantamento histórico da crítica televisiva nacional, da crítica que circulava fora
da TV, em revistas especializadas, semanários, jornais etc., mídias que hoje dividem esse
espaço com os comentários nos portais da internet, o microblog Twitter, o Facebook, vlogs no
Youtube etc.
Em The Waldo Moment, o personagem Jamie recebe a notícia de que controlará um
holograma tridimensional antropomorfizado com o nome de Waldo. Em um programa de
debates, Waldo tem um quadro, no qual entrevista políticos e celebridades britânicas. Em uma
conversa com o candidato do partido conservador, Mr. Monroe, ele, já manipulando o boleco,
humilha. Passa a persegui-lo fisicamente, transmitindo sua face e a voz que dubla via microfone
de dentro de um caminhão, invadindo a campanha do candidato conservador para zombar dele
dizendo que é melhor votar nele do que na opção da direita, ainda que no encontro o candidato
oficial diga “não há você”, refutando a existência de Waldo para além de sua imagem,
personagem, e suas comunicações sensíveis. Assim é lançada a campanha “Vote Waldo”.
Em uma festa, o homem que produz os movimentos de Waldo se encontra com a
candidata trabalhista e termina a noite fazendo sexo com ela. Trocam números de telefone, e,
137

apaixonado, Jamie começa a utilizar seu candidato para persegui-lo, usando sua imagem
incorpórea e os enunciados divulgados pelo urso fictício para atingir o candidato republicano,
seguindo-o na rua com o caminhão e o telão. Portanto, busca fazer com que seu objeto de
desejo amoroso vença a eleição, busca aumentar a potência daquele ente que produz uma
composição corpórea com ele. Ela, entretanto, é instigada a não ser mais vista com quem
controla aquela imagem, justamente por sua imagem poder ser relacionada a ele. Eles se
encontram, e ela afirma não poder mais se relacionar com ele. Em um debate televisionado,
Waldo ataca ambos os candidatos, dominado pelo ódio, após ser ignorado em um debate por
Gwendolyn Harris, a candidata do partido trabalhista. Afirma que ela é membro de um grupo
de teatro pequeno, uma “velha atitude com cabelo novo”, que só buscou a eleição para obter
experiência na televisão e ampliar sua influência midiática no futuro como atriz. Ao contrário
do que esperava, isso só alça Waldo à fama novamente. Ele é entrevistado em um talk-show de
grande audiência, e o produtor pede para que ele leve a sério a ideia de ser candidato. “Waldo
não é real, mas é mais real que os outros”. O manipulador decide parar de animar o personagem,
mas seu produtor nega essa possibilidade, visto que Jamie não é o dono da propriedade
intelectual do personagem.
A apropriação de Waldo pela máquina midiática de produção de afetos, motor do
Capitalismo Mundial Integrado, acontece quando Jamie e seu produtor recebem uma visita de
um funcionário do alto escalão do governo norte-americano. A proposta é simples: comprar os
direitos de Waldo e construir uma franquia a partir de sua imagem. O executivo dos EUA
ressalta que, para ele, como “Waldo não é real, ele não tem falhas”, explicitando que conclui
que o aspecto incorporal ou sensível de Waldo (sua imagem) não é visto como real, por não
perceberem sua materialidade. Assim, essa imagem transmitida por inúmeros suportes (é
mencionada a possibilidade de construção de um app-Waldo para múltiplas plataformas) seria
transmitida com enunciados com os mais distintos fins, como para derrubar ou erguer ditaduras
em países considerados mais pobres. Um Waldo ubíquo nas mídias obviamente teria de ser
adaptado para os contextos das sociedades nas quais seria utilizado. Jamie o compara à franquia
das batatas Pringles, que vende sua marca e é consumida em variações regionais, com temperos
distintos. A Waldo havia sido conferida uma existência para além de seu manipulador. Quando
ele diz “não votem em mim”, em um caminhão, através do avatar, as pessoas na rua não
acreditam no pedido, da mesma maneira que uma notícia falsa torna-se mais real que o real e
não pode mais ser contestada. Jamie chuta o telão e é agredido pelos transeuntes, enquanto o
produtor assume a máquina de manipulação. É como se Waldo tivesse se tornado um
protossujeito incorporal metaestável, independente da entidade material que o controlaria,
138

destilando enunciados incorporais com as mais distintas funções, de acordo com o dinheiro que
entraria por seus investidores.
Waldo fica em terceiro lugar nas eleições, o que faz com que a candidata trabalhista
perca para o conservador. A trama se encerra em um cenário distópico, especulativamente
inspirado em uma das primeiras cenas do filme Laranja Mecânica (EUA, 1971), de Stanley
Kubrick, quando um irlandês idoso é espancado pela gangue de Alex DeLarge. Jamie é um
mendigo dormindo em um viaduto, é chutado e espancado por policiais com óculos de
reconhecimento facial. Levanta, e as paredes do viaduto estão cercadas por telas que exibem
vídeos e animações de Waldo em múltiplas línguas e arranjamentos estéticos. Ele muda de
canal com o gesto do toque à distância (novamente) e vemos que Waldo havia se tornado uma
entidade global pela qual enunciava palavras de ordem e mensagens de autoajuda, como “mude
o futuro!”
Nossa intenção é, além da própria narrativa ficcional do seriado das inúmeras e
interessantes iniciativas de metacrítica midiática contemporânea, pensar em um dos modos de
estabelecer uma crítica por meio de processos de criação e aprendizado que não separam a
teoria desenvolvida nas universidades das práticas artísticas, segundo o conceito de research-
creation, desenvolvido por Manning e Massumi (2014).
139

CAPÍTULO 5. O amor e a crítica imanente

There is no more. Nada mais spinozano do que a fala na peça de Samuel Beckett. Tudo
o que resta para os personagens são poucos movimentos, mas é da mínima possibilidade de
ação que surgem pontos de resistência e inovação, pequenos gestos que desconcertam sistemas,
no sentido de produção de novos agenciamentos e rearranjos dos corpos e enunciados. Não há
mais nada porque, segundo sua cosmologia, todos os corpos fazem parte ontologicamente de
uma única substância, infinita; caso houvesse algo para além de sua infinitude, contradiria a
ideia de Deus de Spinoza. Em quase todas as situações analisadas em Black Mirror, restam
poucas possibilidades de gestos que não sejam muito restritos. Entretanto, se pensarmos que
há infinitude em direção à grandeza dessa substância (suas redes infinitas de relação), o mesmo
raciocínio vale para sua composição infinita de pequenos corpos. Jamie abdica de um bom
encontro com a pessoa amada devido a uma contingência macropolítica.
A nossa versão da história pode ser vista como uma experiência que visa somente ao
hedonismo, ou como apolítica, a-histórica, individualista, frear a narrativa no momento de
encontro entre os corpos, o instante de maior comunicação. Para Spinoza, há amor quando
encontramos outro objeto que aumenta a nossa potência de existir. É em momentos de crise
que os corpos buscam novas formas de se rearranjar, seja por meios coletivos, novas formas
de manifestações políticas etc. Vale a pena lembrar que não é uma questão de colocar-se
necessariamente do lugar do outro para ajudá-lo,57 um bom encontro é apenas algo que
potencializa um corpo ou mais deles, não é um sentimento dirigido a um sujeito ou classe
específica, mas ao próprio socius. O gesto de amor é -no-acontecimento e não -ao-sujeito.
Antes de prosseguirmos, é preciso deixar claro que tentamos escapar de algumas
armadilhas que essa construção lógica pode desencadear. Como nos atenta Vila-Chã (2006, p.
1022),58 Spinoza “rejeita a ideia de que exista uma forma de união que não seja acompanhada
de alegria [...], já que é sempre seguida por uma percepção de maior perfeição”. União, no
caso, pode ser traduzido como composição. Isso, ao contrário do que coloquialmente é dito,
não expressa que tais corpos antes eram imperfeitos, mas que, por meio de bons encontros,
alçaram melhores condições de permanecer na existência. A primeira armadilha é uma possível

57. Para uma diferenciação entre os conceitos de empatia e simpatia e a potência pré-individual do segundo, ver
Massumi (2016a). E, para uma crítica forte às políticas identitárias que se atrelam ao primeiro conceito, ver
Massumi (2014; 2017, no prelo).
58. A esse respeito, ver a tese de doutorado de Vila-Chã (2006), que faz um longo trabalho arqueológico nos
predecessores e nas possíveis influências de Spinoza, em especial em seu conceito de amor, que teria sido, segundo
o autor, fortemente influenciado tanto por Giordano Bruno e pensadores mouros, quanto por filósofos judaicos,
como Judah Abravanel.
140

escorregadela para as tão capturadas noções de almas-gêmeas que completam seres


imperfeitos, as metades da laranja. Igualmente capturados pelo neoliberalismo progressista
empreendedor que foca no sujeito individual como agente de empoderação e empoderamento
[de si mesmo] são enunciados como “você se basta”, porque não visam qualquer aumento de
potência e conexão com diferentes corpos.
Que artifício podemos usar para escapar dessa arapuca e buscar uma crítica que talvez
produza fendas nesses sistemas de controle e produção de desejo? O caminho teórico que agora
fazemos é pelas trilhas da micropolítica, e seus expoentes são os gestos menores e o amor,
potenciais antídotos contra o desejo de controle e julgamento moral apresentados nos primeiros
capítulos.
A interpretação de Spinoza feita por Brian Massumi ajuda a compreender por qual
motivo tal ação não é somente extremamente política, como a própria gênese do processo
comunicacional. Para Massumi (2015), o afeto, esse traço deixado nos corpos no momento do
encontro, pode se equivaler ao conceito de esperança. Em suas palavras, é o que pode ser feito
em determinada situação, é a capacidade de afetar ou de ser afetado (MASSUMI, 2015, p.
03). “Nosso grau de liberdade em determinado momento corresponde ao grau de profundidade
de experiência que podemos ter no próximo passo, o quão intensamente nos movemos e
vivemos” (Ibid., p. 06).
De acordo com o conceito de imediação, o fazer-em-ato busca valorizar ao máximo a
experiência, ou seja, o encontro, e não as cadeias significantes que devem ser deixadas e
gravadas dele, os sentidos dados aos acontecimentos. Tal mudança nos modos de existência
não seria, entretanto, um abandono da racionalidade. Isso contradiria a máxima spinozana de
que corpo e mente não são entidades separadas, mas paralelas. Usar essas estratégias seria
buscar uma aproximação do terceiro gênero do conhecimento de Spinoza, tanto em corpo
quanto espírito, uma nova forma de pensar, a qual Massumi denomina thinking-feeling (pensar-
sentir).
Nagg, personagem de Beckett em Endgame, vive na lata de lixo e não mexe as pernas,
mas, se ela tiver noção das suas possibilidades de agenciamento lá, viverá na lata de lixo mais
intensamente, fugindo da servidão. Para Spinoza, liberdade de ação não é negar a determinação
das causalidades, mas conhecê-las. Temos essa impressão porque relacionamos o ato de estar
livre à construção, que é a do sujeito individualizado. Entretanto, ela está relacionada “às
possibilidades de ação em um campo de relações” (Ibid., p. 161), a inventar possibilidades a
partir da contingência de uma situação (Ibid.). A liberdade, por esses motivos, é “a autonomia
141

transindividual do processo afetivo para gerar surpresas” (Ibid., p. 215). Em outras palavras,
produzir acontecimentos singulares e com um certo grau de meta-contingência.
O que quisemos acima afirmar com conceito de imediação é ressaltar que a
contemporaneidade, do macro ao infinitesimal das relações cotidianas, é notadamente
envelopada, trespassada, por um sem número de máquinas e dispositivos de comunicação.
“Todas as mídias encenam e distribuem eventos reais e incorporados, e essa capacidade de
influenciar na imediaticidade da vida cotidiana é parte da definição de mídia” (MANNING,
s.d.). Diante da irreversibilidade do avanço da ubiquidade mediática e seus efeitos e devires
vários, como conceber uma leitura crítica de tal fenômeno?
O desafio implicado é pensar um experimento de crítica de mídia baseado em uma
crítica imanente, como conceituado por Massumi e Manning, isto é, criar um evento cuja
própria dinâmica (processual, aberta, antropofágica e ontologicamente anárquica, almejando
aprender algo com os sistemas cosmológicos estudados por Eduardo Viveiros de Castro)
suscite as técnicas necessárias para a concretização de um trabalho analítico coletivo,
compartilhado, e sem a determinação a priori de qualquer caminho norteador. Nesse sentido, a
proposta é precipitar as condições de possibilidade, constituir o campo relacional, de um
acontecimento de pesquisa-criação que seja uma experiência viva de crítica imanente e, ao
mesmo tempo, a atualização de e em uma crítica de mídia. Isso implica a elaboração de um
exercício de prática teórica e de teoria prática que nos permita efetivar um acontecimento que
una ética-estética-política: pensamento em ato. A crítica desloca-se de “crítica-sobre” para
“crítica-no-acontecimento”, para depois ser “crítica=acontecimento”. A crítica, esclarece
Massumi,

[...] se tem de ser acontecimental, deve ser uma crítica “imanente”. Um dos
significados disso é que tudo o que entra em inteiração deve ser feito ativamente, não
através de uma proxy, representado, simplesmente falado, ou até mesmo transmitido
(pelo menos não como um conteúdo previamente constituído). A crítica deve se
tornar igual ao evento vindouro, performando-o ela mesma em e para uma montagem,
de modo a ativamente participar da constituição do acontecimento como um fator co-
criativo. Sua crítica, portanto, não é composta de opiniões ou julgamentos aos quais
estamos habituados. Ela acontece em um plano completamente diferente. A crítica
não é uma opinião ou julgamento, mas uma “avaliação” dinâmica que é vivida na
situação. Diz respeitos às tendências que a introdução de determinado fator traz à
situação. São as consequências atuais e acontecimentais de como esse fator se
desenrola, relacionado a um número de fatores que também ativamente criam
tendências, de um modo completamente singular, específico dessas co-expressões.
(MASSUMI, 2010, p. 338; tradução nossa.)59

59. “[…] critique, if it is to be eventful, must be an ‘immanent’ critique. One of things this means is that everything
that enters the interaction must do so actively, not by proxy, as represented, simply spoken for, or even transmitted
(in short, not as an already constituted content). It must become equal to the coming event by performing itself in
and for that particular assembly, so it enters actively into the constitution of what happens as a co-creative factor.
Its ‘critique’ is then not the opinions or judgments we have of it. It takes place on an entirely different plane. The
142

Nas narrativas de Black Mirror, pouco resta aos personagens fazerem sem que sejam
recapturados pelos sistemas de controle, mas elas nunca são absolutas, o controle absoluto de
tudo pressuporia atingir a ideia de todas as situações, suas cadeias de causalidade, a ideia de
Deus. A tática a ser buscada são “pequenas estratégias e ações para expandir nossos registros
emocionais ou aquecer nossos pensamentos” (MASSUMI, 2015, p. 05), aumentando a potência
de nossas ideias. Pequenos gestos críticos para [potencialmente] intensas disrupções. Para
tanto, o autor, por meio do conceito de imediação, busca valorizar ao máximo a experiência,
ou seja, o encontro, e não as cadeias significantes que devem ser deixadas e gravadas dele, os
sentidos dados aos acontecimentos. Ou, ao retornar aos traços deixados pelos acontecimentos,
reacontecimentalizá-los, por meio do uso de técnicas de fabulação.60
Tal mudança nos modos de existência não seria, entretanto, um abandono da
racionalidade visando a uma entrega às relações corpóreas e ao esquecimento da importância
da linguagem, pois isso contradiria a máxima spinozana de que corpo e mente não são entidades
separadas. Os espelhos quebrados de Black Mirror são os espelhos que nos separavam das telas
e dos aparatos midiáticos, são os muros conceituais que separam os corpos dos artefatos
midiáticos. Em uma perspectiva ética e ecológica, tal divisão não faz mais sentido, e os
espelhos devem ser quebrados até que se tornem poeira de vidro imperceptível aos sentidos
humanos ou não. No entanto, seus traços permanecem distintos sob uma lógica de inclusão
mútua – em um acontecimento, os corpos que se encontram estão em um estado fusionado,
mas sem se fundir, ainda produzindo diferenciações (MASSUMI, 2014).
Tal mudança ética não pode ser restrita ao terreno do que é convencionalmente
chamado de comunicação (internet, televisão etc.). A ética de Spinoza não pressupõe que haja
uma divisão entre campos da vida e atuação em sociedade, a crítica imanente não diz respeito
ao uso correto ou subversivo das mídias, tampouco pensá-las como suplementos aos corpos,
como a ótima literatura cyberpunk descreve, pois esses aditivos não devem ser considerados
como mediações, mas como composições, ou incorporações, ou ainda que devamos usar esse
termo e conceito com muito cuidado, novas máquinas que convivem em regimes de imediação
e completo contato. Ainda somos assombrados pelas teorias da Comunicação de Shanon e
Weever, ainda que de maneira espectral. Nas palavras de Andrew Murphie, The World as a

critique is not an opinion or a judgment but a dynamic ‘evaluation’ that is lived out in situation. It concerns the
tendencies that the introduction of that factor actively brings into the situation. It is the actual, eventful
consequences of how that factor plays out, relationally with any number of other factors that also activate
tendentially, and in a way that is utterly singular, specific to those situated co-expressions”. (MASSUMI, 2010,
p. 338).
60. Sobre a potência do falso, ver Deleuze (2007).
143

Medium. Sem estabelecer uma divisão “entre estados e processamentos (sejam eles em
computadores e mentes) [...] entre inputs e outputs, entre mensagens e meios, mediações e
mediados, entre comunicação e aquilo que comunica, ou entre técnicas de atuação no mundo e
o mundo atuado” (MURPHIE, 2016, p. 04).
Nagg vive na lata de lixo e não mexe as pernas, mas se ela tiver noção das suas
possibilidades de agenciamento lá, viverá na lata de lixo mais intensamente, fugindo da
servidão. Para Spinoza, liberdade de ação não é negar a determinação das causalidades, mas
conhecê-las. Temos essa impressão porque relacionamos o ato de estar livre à construção que
é a do sujeito individualizado. Entretanto, ela está relacionada “às possibilidades de ação em
um campo de relações” (MASSUMI, 2015, p. 161), a inventar possibilidades a partir da
contingência de uma situação (Ibid.). A liberdade, por esses motivos, é “a autonomia
transindividual do processo afetivo para gerar surpresas” (Ibid., p. 215).
Pensar a liberdade de acordo com Spinoza, portanto, além de visar à composição entre
corpos e mentes, é admitir que os resultados dessas composições são transindividuais. A
produção de afeto, dos traços deixados e, no caso de nós, humanos, da linguagem, é social. É
por esse motivo que é impossível esgotar um acontecimento, dados os inúmeros e incontáveis
pontos-de-vista. O “afeto é eticamente neutro” (Ibid.) e compartilhado, mas não da mesma
maneira. Ele é “diferentemente absorvido, chega-se a ele assimetricamente, de diferentes
ângulos, de diferentes complexos de afetar e ser afetado” (Ibid., p. 95). O encontro de amor
não é apolítico ou a-histórico, mas é a própria metaestabilização dos elementos históricos. Os
corpos são frutos dos agenciamentos e só são afetados e compostos de boas ou más maneiras
porque há uma memória afetiva, corporal, biológica e genética. Não é apolítico porque a
“resistência não pode ser comunicada ou calculada. Só pode ser gestualizada” (Ibid., p. 105).
Nesse sentido, no campo da comunicação, toda crítica que pressupõe uma externalidade
aos eventos é, quando assumida como verdade absoluta, ineficaz. Novamente, there is no more
é a própria ética spinozana, não há fora das relações, e a crítica deve ser uma “crítica imanente”
(Ibid., p. 106). A crítica imanente da comunicação parte de dentro das relações
comunicacionais e não desenvolve julgamentos, é o acesso aos segundos e terceiros gêneros
do conhecimento: buscar compreender os agenciamentos, pensar-sentir, ela “ocorre quando os
corpos pensam mais ativamente e sentem-se mais pensantes” (Ibid., p. 106). Inverter a
narrativa, parando-a no encontro, é pensar na micropolítica de seu momento mais potente. A
respeito da dualidade do afeto (passividade e atividade), afirma Massumi (Ibid., p. 93, tradução
nossa) que “[...] o primeiro passo em direção a mobilizar uma teoria do afeto para resistência
144

é entender que há um primeiro nível de resistência em qualquer encontro que não é


simplesmente passivo, mas que expressa uma capacidade”.
Para Brian Massumi, esse é o gesto genuinamente micropolítico. Valorizar a
experiência afetiva não anula a participação em lutas macropolíticas, a psicologia das massas
do fascismo não deve ser vista como um dispositivo transcendental que sobredetermina
subjetividades, cada encontro, mesmo que massivo, é sentido de diferentes maneiras tais quais
forem as singularidades individuais, os corpos, trata-se de um “diferencial compartilhado”
(MASSUMI, 2015, p. 49). Buscar a experiência do maior números de bons encontros é o
pensar-sentir:

[...] A questão micropolítica é como viver mais intensamente, viver de maneira mais
plenamente, com poderes de existência aumentados, dentro dos limites de uma
situação desesperadora, encontrando caminhos para continuar, contudo, martelando
contra os problemas macropolíticos. (MASSUMI, 2015, p. 79; tradução nossa).61

A comunicação, portanto, é o próprio evento ou acontecimento. É difícil deslocar um


signo gerado em cada um de nós por encontro do próprio encontro: “o afeto é um evento, ou a
dimensão de um evento” (Ibid., p. 48), e entra na linguagem pelas cadeias de significação, ou
as composições entre ideias. Toda “transição sentida deixa um traço, e constitui uma memória”
(Ibid., p. 49). Depois do encontro propriamente dito, continua-se a ser encontro, já que esses
afetos passam a fazer parte do próprio ser. É esse novo conjunto de composições que poderá
agir em um próximo acontecimento. E são os resíduos deixados pelos gestos de agora que
germinarão novas composições no futuro.

61. “So, the micropolitical question is how to live more intensely, live more fully, with aumented powers of
existence, within the limits of that desperate situation, while finding ways to continue nevertheless, chipping away
at the macro-problems”. (MASSUMI, 2015, p. 79).
145

CAPÍTULO 6. Da micropolítica dos gestos menores

Nosedive pode ser descrito como o menos fabulativo episódio de Black Mirror e não
apresenta muitas extrapolações aos agenciamentos dos quais já participamos. Nesse capítulo,
vemos Lacei, jovem aparentemente de classe média alta, que vive sob um rígido dispositivo de
avaliação de si e dos outros, manifestado por meio de um aplicativo ubíquo para smartphones.
Qualquer interação humana pode receber uma nota, de uma a cinco estrelas; desde serviços
daqueles que servem cafés, atendentes de guichês, até as afugentadoras e claustrofóbicas
trombadas com o vizinho ou colega desagradável no elevador. Lacei busca obter uma maior
média de sua nota para que então possa ter acesso a mais serviços e interações, e
consequentemente, ascensão no status quo. Para poder ter um desconto na compra de um novo
apartamento, restrito àqueles que têm nota maior do que 4.5, ela vai a um consultor, que lhe dá
dicas para que ela intensifique a divulgação de si mesma e de seu estilo de vida e evite contato
com aqueles que têm notas mais baixas, os excluídos que não podem entrar em determinadas
partes da cidade e tampouco têm acesso a serviços básicos.
Lacei então passa a intensificar tudo o que já fazia nas redes sociais: tira fotografias
com comidas bonitinhas e fofinhas, seu ursinho de pelúcia que mantém desde a escola primária,
elogia no elevador a insuportável e orgulhosa colega de firma e oferece presentinhos a ela, faz
receitas naturebas e tapenade e divulga nas redes seus feitos como cozinheira, em imagens tão
esterilizadas e carregadas de filtros que parecem ter saído de um comercial da IKEA. Às vezes,
sorri e bajula os outros de maneira tão artificial que é negativada no sistema. Seu consultor, um
life coach que auxilia indivíduos a empreenderem para obter maiores pontuações no sistema,
diz que “gestos autênticos são a chave” para conseguir melhores notas. Gestos autênticos, mas
que são programados, pensados antes de serem colocados à vista e ao julgamento dos outros,
seja no dia a dia quanto nas mídias nas quais compartilha o seu cotidiano, ou a parte dele que
pode ser publicada. Não a vemos defecando ou limpando a casa, por exemplo.
Não nos cabe, neste espaço, discutir a ética de tais sistemas de avaliação. De fato,
poderíamos argumentar que, ao contrário do que grande parte das análises faz ao adotar esse
termo e reproduzir o discurso das empresas que o aplicam, ele passa a remeter a um julgamento
moral e não uma avaliação ética, tal como explicamos, por exemplo, no capítulo 2 desta tese.
De qualquer maneira, para além da filosofia spinozista, buscamos aqui ver como tais situações
de exaustão, muitas vezes calcadas na vigilância e no controle de si e dos outros com o auxílio
das mídias, a repetição de gestos programados, podem ser perfuradas por aquilo que escapa do
controle, o que Erin Manning, por exemplo, afirma ser o “more-than”, os gestos menores ou
146

irruptivos. Tal como as articulações sujeitas às lesões por esforço repetitivo (LER), esses
corpos não aguentam mais, e o esgotado é muito mais que o cansado (ver Capítulo 3).
Ao perder acidentalmente pontos em sua avaliação nos aplicativos, Lacei passa por uma
série de fracassos que, exponencialmente encadeados, levam à sua exaustão. O voo que pegaria
foi cancelado. Por não ter pontos suficientes, não é capaz fazer o check-in para um novo voo,
o que a irrita e faz com que novamente seja mal avaliada. O mesmo acontece quando ela vai
alugar um carro, e mais uma vez irritada, trata os funcionários da locadora com desdém e faz
com que eles derrubem sua pontuação no aplicativo. Aluga um antigo carro tchecoslovaco.
Está tão acostumada à vigilância das câmeras de seu smartphone ou a dos “amigos” que a
julgam que, ao sentar, enfurecida, naquela lata velha, puxa o cinto de segurança com força,
mas logo se arrepende, ainda que ninguém a estivesse vendo naquele momento. Em um
segundo, já se autoprograma, faz um gesto delicado para puxar o cinto e encaixá-lo. “Gestos
autênticos são a chave”. Várias ações desse tipo, consecutivamente, acontecem, e, após não
conseguir reabastecer seu carro, parada no meio da estrada, encontra com outra personagem
que parece viver fora de tal sistema meritocrático, ainda que atuando como uma pequena
engrenagem que a coloca em movimento. Uma caminhoneira que desistiu da sua antiga vida
de nota 4.6, após o marido inevitavelmente morrer de câncer, toma café frio em uma velha
garrafa térmica, no gargalo, e vive com uma nota 1.6. Uma outsider.
Após sua nota cair demais, Lacei é “desconvidada” para o casamento de prestígio da
famosa amiga. Decide ir do mesmo jeito, pois ela teria que fazer o seu discurso de madrinha,
quisessem ou não. Em uma nova carona, finge fazer parte de um grupo de fãs de um seriado
de ficção científica que está indo de ônibus ao lugar da festa de matrimônio, mas acaba se
revelando: “Eu nunca vi a merda do programa de vocês”. Toma emprestado um quadriciclo
sujo de barro, que se destaca em meio a todos os carros da rodovia com cores pasteis e claras,
novamente como as imagens do IKEA. Na estrada, toma café gelado no gargalo da garrafa
térmica, “uma saída de emergência” ou escotilha – linha de fuga convocada pela necessidade
de sobrevivência –, presente da caminhoneira, mostra o dedo do meio para todos. Continua
sendo negativada. Encontra um atalho no mato para entrar pelos fundos no parque onde estava
ocorrendo a celebração, reservado somente para pessoas com altas notas. Acaba caindo em
uma poça de lama e sujando todo o vestido. Mesmo com raiva, por menos de meio segundo,
chacoalha a água da lama, como se estivesse fazendo um desenho com o corpo, deitada na
neve. Já podia fazer algo que antes não era possível, pois não havia mais nada a perder. Invade
o casamento e faz seu discurso. Conta fofocas sobre a noiva, que transou com seu namorado
no colégio, nada importante, mas algo que pode derrubar a “avaliação moral” do aplicativo.
147

Pega um facão, ameaça decapitar o ursinho de pelúcia que era símbolo da amizade antiga entre
ela e a noiva. Todos dão notas baixas a ela, com algumas exceções, alguns risos de canto nas
bocas da plateia, para que estes não sejam percebidos pelos colegas tão afinados ao regime
sinóptico de vigilância e avaliação por notas. Sua nota cai a 0, e ela é levada a uma prisão,
onde, desconectada à força, fazendo o gesto que costumava com o smartphone para dar notas,
percebe que não precisa mais daquilo. Pode xingar e trocar ofensas com o colega da cela da
frente, e termina feliz.

Figura 33: Lacei experimenta um momento de autonomia na desprogramação gestual de seu chacoalhar na lama.

Mais do que em outros episódios, neste, Black Mirror traz uma crítica que, muitas
vezes, toma como único ponto de escapatória a desconexão e o isolamento material dos
dispositivos que fazem parte da rede de controle midiático – cortar o gravador de imagens dos
olhos das pessoas com uma gilete, ir para a cadeia e não ter mais acesso a smartphones etc. Tal
crítica é válida, mas o grau de operacionalidade dela é discutível. E, muitas vezes, acaba
enveredando novamente para um julgamento moral – os dispositivos são bons ou ruins em si,
têm uma essência rígida e modo de uso que deve ser obedecido. Um programa: “não há
necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada
instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal em uma reserva, homem em uma
empresa (coleira eletrônica)” (DELEUZE, 1996, p. 224). Uma visão carregada de um certo
reacionarismo.
Trazemos a discussão aos gestos, mais uma vez, para adicionar outra camada de
operacionalidade e pensar, a partir disso, em uma crítica imanente à mídia. A essência de algo
148

imutável se faz no fazer, nos acontecimentos, só é em ato. E uma crítica imanente só pode ser
em ato, que não (necessariamente) promova um isolamento de tais aparatos, a não ser que os
desejos autênticos levem a isso – e para tal “opção”, não cabe julgamento moral também.
Um dos questionamentos que podem emergir a respeito da materialidade da crítica
imanente como discutida no início deste capítulo é como pensar tanto sua corporeidade (a quais
redes estamos submetidos e vigiados?) quanto sua incorporação em ações diretas, mais
especificamente em respeito às possíveis propostas de subversão que podem lançar mão do uso
de todos os aparatos midiáticos disponíveis (ainda que distribuídos maneira irregular, dados os
contextos de diferenças sociais, econômicas, de gênero etc.). Também corremos o risco de
entrar em uma contradição com aquilo que já tentamos explicar, visto que, se a mídia é ubíqua,
não é no que tange à sua disponibilidade direta aos usuários. Entretanto, tem penetração quase
global e, por muitas vezes, mais intensa em setores marginalizados da sociedade, em todos os
aparatos de controle que vão sendo distribuídos em todas as vielas da vida, por onde antes era
possível flanar à vontade sem correr o risco de ter sua imagem capturada e enviada diretamente
para os servidores do Estado.
É preciso desenvolver uma crítica imanente das mídias ou devemos falar apenas em
crítica imanente, devido ao fato de estarmos “imediados”, de acordo com as teorias por nós
utilizadas? (Considerando-se que nenhuma prática ética possa ser individualizada ou restrita a
um dos muitos territórios existenciais que povoamos). O que é chamado de ação direta,
pragmatismo ou materialidade da crítica imanente, para nós é aquilo que se configura nos
gestos, voluntários ou não, seguindo a discussão feita por Erin Manning (2016). E é deles que
falaremos daqui para frente, já adiantando que aquilo que consideramos “amor”, seguindo uma
ética spinozana dos bons encontros, é a personalização conceitual de um gesto minoritário:
todo gesto de amor é minoritário.
149

Figura 34: Performance de Lacei no casamento da ex-melhor amiga.

Se fôssemos classificar os gestos menores dentro da divisão dos níveis de conhecimento


feita por Spinoza, nós os encontraríamos nos três graus, sendo eles tudo aquilo que,
conscientemente ou não, desestabiliza um certo sistema de controle e normatização. Em alguns
casos, é preciso um nível de abstração para encontrar alguns padrões gestuais, de
comportamento, linguagem, para que “desaprendamos” aquilo que já havia sido marcado em
nosso corpo e mente (que, já repetimos muitas vezes, não são entidades separadas). Entretanto,
um gesto menor pode emergir de qualquer prática sensível desestabilizadora. O gesto menor
pode ser compreendido quando não é observado a partir de um dispositivo panóptico externo,
julgador, um aparato policial de julgamento, mas, sim, a partir do próprio acontecimento ou
em sua nova acontencimentalização por meio de um pragmatismo especulativo. A crítica só é
imanente a partir de “um ato que só conhece as suas condições a partir de si mesmo, que recusa
um julgamento exterior” (MANNING, 2016, p. 12). Todo o ideal e imaginário de controle é o
de que podemos desenvolver estratégias anteriores aos futuros atos para torná-los ou
subversivos ou reiterar seus elementos conservadores, ainda que isso não configure, de
nenhuma maneira, um novo estável agenciamento: “nós queremos acreditar que podemos
decidir aonde o acontecimento nos levarará. Isso é uma miragem que subestima a força do
involuntário em nosso cotidiano” (Ibid., p. 21).
Contrariamente a isso, o julgamento é sempre maioritário. Basta lembrar das cenas de
Victoria que se passaram em um parque com todos os elementos arquitetônicos de
150

espetacularização de um show, desde o formato do palco até todo o aparato de transmissão de


todas as cenas de tortura para o exterior via streaming. Os gestos maiores

carregam consigo um nível de espetacularidade. Eles se conectam às “preocupações


do dia a dia” de maneira a futuramente cimentar instalações [iterações ou
agenciamentos] já existentes. Eles nos dão categorias que separam o “bom trabalho”
do “mau trabalho”, o valioso do ignorável. (MANNING, 2016, p. 66; tradução
nossa).62

O gesto, portanto, e a possibilidade de produzir novas concatenações de causas e efeitos


materiais que consigam quebrar as rotinas e os códigos dos dispositivos de controle e de
julgamento devem ser localizados no campo do acontecimento, não por meio de uma descrição
externa, mas de dentro dele, em algo que pode ser definido como uma presentificação das
relações nas quais estamos envolvidos e que nos produzem como sujeito. O gesto é operativo
e material, é um bug, como os insetos que invadiam os grandes computadores das décadas de
1950 e 1960 e promoviam pequenas panes elétricas e curtos-circuitos – é um ativador, que
desloca a organização dos corpos e das ideias. O sujeito, no caso, é sempre o sujeito da
experiência (MANNING, 2016). “Condições devem ser inventadas, no acontecimento, para
torná-lo operacional. Esse tornar-operacional, do interior do próprio acontecimento, produz
não somente novos modos de vida, mas uma vida mais vívida” (Ibid., p. 37). É nesse trecho
que a autora deixa clara a proposta ética de uma mudança na maneira de perceber, sentir e lidar
com o contato de corpo e mente com o mundo experiencial, fator para o qual já tínhamos
atentado também em Massumi, ao falar da crítica imanente, no último capítulo (“A questão
micropolítica é como viver mais intensamente, viver de maneira mais plenamente, com poderes
de existência aumentados, dentro dos limites de uma situação desesperadora”) (2015, p. 49).
Aos corpos exaustos pelos estímulos e regras da sociedade de controle só restam os
gestos menores, que involuntariamente dizem não a esses agenciamentos. Sujeitos à exaustão
e ao cansaço, buscam neles linhas de fuga. É interessante ressaltar que, em Black Mirror, esse
gesto, por muitas vezes, está materializado no uso dos cacos de vidro e na ameaça à própria
integridade física, até mesmo na possibilidade de suicídio ser tolhida desses indivíduos. Um
corpo vivo e funcionando acordado 24/7 produz mais à máquina capitalista. É o caso de Bing,
que, como já citamos, tenta cortar o seu pescoço com esse caco de vidro das telas de seu quarto,
do personagem gamer de Playtest, que busca fugir do mundo de realidade virtual cortando-se;
em Hated by The Nation, um condenado a morrer via julgamentos feitos nas pesquisas do

62. “Grand gestures carry with them a degree of the spectacular. They connect into concerns ‘of the day’ in ways
that further cement already existing stakes. They give us categories to separate out ‘goo work’ from ‘bad work’,
the valuable from the overbookable”. (MANNING, 2016, p. 66).
151

Twitter busca cortar sua cabeça com vidro para reduzir a dor na mesma após um drone-abelha
ter entrado pelo seu canal auditivo. Todos esses falharam nessas tentativas, e aqui podemos
discutir se a crítica de mídia feita em Black Mirror mostra alguma operatividade em sua
narrativa ou produziu afetos de melancolia sobre os atuais estados de coisas. Ainda assim, há
um caso em que a mutilação funciona como gesto que traça uma linha de fuga efetiva: em The
Entire History of You, o protagonista remove o dispositivo de gravação de suas têmporas, com
uma gilete, assim não participando mais do sistema de vigilância e paranoia (em partes, ainda
que seu corpo continue a ser rastreado, filmado e julgado pelos outros indivíduos e aparatos).
É nos gestos menores que podemos identificar aquilo que Brian Massumi (2014) e José
Gil (2004) discutem ao retornarem para o que Daniel Stern denomina “afetos de vitalidade”,63
aqueles que “exprimem a potência da vida de um afeto, a força da afirmação da vida,
assemelhando-se nesse aspecto ao conatus de Spinoza” (GIL, 2004, p. 87). Tais afetos,
emergem, por exemplo, em uma “irrupção brusca de cólera ou de alegria” (Ibid.), em corpos
esgotados, como os de Lacie, Bing e de todos aqueles que não conseguem enquadrar seus
movimentos nas normas disciplinares. E não podem ser explicados, não buscam significar
nada, são os possíveis suspiros que tais corpos podem dar, carregam consigo seus próprios
“dispositivos de decodificação (que não são nada além de seu próprio desdobrar-se). Esses
gestos, ainda que emergindo como ações que possam de alguma maneira chocar, já estavam
incipientes, os “afetos de vitalidade não são nem discretos nem macroscópicos, mas
microscópicos e contínuos” (Ibid., p. 87). Ao cortar o pescoço ou ao gritar “quero ir embora
daqui!”, os personagens apenas expressam algo que já estava presente em pequenos gestos
assignificantes que expressam e insistem em uma resistência à programação de ambientes e
dispositivos tão controladores.

Figuras 35 e 36: “Cortando” a programação de seus gestos programáticos.

63. Para uma discussão sobre as diferenças entre os gestos de vitalidade e os gestos categoriais, que não são
opostos aos primeiros, mas entram em regimes de co-composição com eles, ver Massumi (2017, no prelo).
152

Esse é o trabalho árduo de viver buscando possibilidades na exaustão, é a tarefa de


Bing, Clov, Hamm, Victoria. Esta última, em cada iteração de sua punição física e moral, todos
os dias, encontra novas falhas no sistema de gravação e imposição de novas memórias em seu
cérebro. Podemos instaurar um movimento especulativo e separar duas das inúmeras e infinitas
possibilidades de novos desfechos, caso novos episódios todos os dias mostrassem o dia a dia
no parque de diversões White Bear: I) as falhas se acumulariam e Victoria encontraria alguma
saída ou brecha para escapar daquele lugar, (ainda que, provavelmente, fosse detida e punida
novamente, visto que a disseminação de sua vigilância é quase absoluta – é nesse quase que
um gesto menor poderia emergir e modificar todo esse conjunto de agenciamentos); II - seu
corpo, que já estaria exausto, passaria para o domínio do cansaço e definharia até uma eventual
morte, que, de certa maneira, seria um alívio (mas atentemos, novamente, aos terríveis e quase
inevitáveis parênteses: sendo Victoria o personagem que dá o lucro ao parque, tudo seria feito
para que ela não morresse, seguindo o mesmo caminho de Bing). Não se pode cair na ilusão
de que a emergência de um gesto menor possa ocorrer a partir de uma receita pré-programada
de atividades que, inevitavelmente culminarão no gesto desejado. Pensar dessa maneira seria
partir para a dimensão oposta de toda corrente filosófica e ética por nós discutida. Um gesto
menor é estético atua seguindo deslocamentos na experiência, desdobrando-se em fabulações
criativas. É um ativador de processos disruptivos, um “corte operacional que move a
experiência para algo que não poderia ser previsto e conhecido anteriormente” (MANNING,
2016, p. 209), mas que não pode ser previsto, só condicionado.
Manning ressalta que:

[...] o foco aqui não é como “fazer” um gesto menor, ou como resistir a um gesto
maior, mas como desenvolver técnicas que permitam a singularidade de um gesto que
inicie o trabalho de fazer com que esses gestos venham à tona, como inventar técnicas
que resistam à captura imediata pelo maior. (MANNING, 2016, p. 66; tradução
nossa).64

As abordagens usuais sobre Black Mirror geralmente esbarram em um determinismo


tecnológico que não leva em consideração as possibilidades de fuga dos regimes de controle.
Estes não emergem puramente das materialidades midiáticas dispersas que sujeitam os
indivíduos a mudar seus hábitos, comportamentos e subjetividades. Black Mirror não é
somente uma antologia sobre tecnologia, mas sobre mutações no campo do desejo humano. E
é a partir da própria tecnologia (mas não somente dela, obviamente, para não entrarmos na

64. “[…] the focus here is not on how to ‘make’ a minor gesture, or how to resist a grand gesture, but on how to
develop techniques that allow the singularity of a gesture that opens the work to its workings to come to the fore,
how to invert techniques that resiste immediate capture by the major”. (MANNING, 2016, p. 66).
153

mesma categoria de determinismo) que falhas são encontradas, não somente nas máquinas
movidas à energia elétrica, mas também nas máquinas de carne, indivíduos ligados a visões e
comportamentos fascistas. Nas falhas, os personagens buscam novas saídas, ainda que não
possamos afirmar que as narrativas apresentem perspectivas otimistas a respeito. Um
movimento necessário é ampliar o entendimento do vocábulo “tecnologia”, para que possamos
pensar “como a tecnologia pode ativar um efeito de campo, sem fazer com que o efeito de
campo seja sobre a tecnologia ela mesma?” (MANNING, 2016, p. 84).
Voltemos à Ética de Spinoza para esclarecer. Sendo qualquer corpo ou ideia passível
de infinitos encontros com outros corpos que podem compor ou decompor-se nesses choques,
não há indivíduo que resista com uma essência permanente. O mesmo vale para qualquer
aparato tecnológico, que só estabelece sua função a partir da rede de relações na qual está
inserido. Deslocando-o de seu funcionamento normal, gerará novas variações que mudarão o
estado das coisas. Nunca estamos no controle das situações, mas, para exemplificar, não é
sempre que temos as condições materiais de controle de certos dispositivos (câmeras de
segurança, por exemplo), e novas estratégias devem ser pensadas, seja por ação direta (como a
ação de black blocs de quebrá-las ou novas maneiras de disfarçar-se perante sua vigilância). A
técnica ou a tecnologia deve ser igualada à Ética, que deve ter primazia, uma ética dos gestos
menores, sejam eles pensados como no terceiro gênero do conhecimento de Spinoza, ou
involuntários, frutos de certa plasticidade dos corpos. Não há hierarquia entre os gêneros do
conhecimento, como possa parecer; navegar pelo sensível pode e deve trazer novas
possibilidades de fuga.
O movimento a ser feito e no qual insistimos por tantas vezes é o de não pensar em nós
mesmos como agentes por trás desses dispositivos determinando o seu funcionamento, mas
estabelecer uma crítica que parta de um posicionamento ecológico (não confundir com ecologia
das mídias). Comunicação não é agência, mas agenciamento: a primeira é definida por
“entidades individuais”, enquanto o agenciamento acontece sempre em um estrato ou estágio
de pré-formação, no intervalo entre relações ecológicas (Ibid., p. 126).

A agência sempre começa em uma categoria. É usada para localizar a ação de volição
de um sujeito ou grupo. Dito isso, eu reconheço que [o conceito de] agência é usado
frequentemente no discurso acadêmico para dar voz a um grupo sub-representado.
Nós falamos sobre a agência dos desabilitados, a agência do autista, a agência da
mulher de cor. Nós falamos da necessidade dos desprivilegiados terem agência. A
última coisa que quero fazer aqui é negar a complexidade do poder e os modos como
ele pode marginalizar populações. Na verdade, o que é importante aqui é
precisamente a questão de como uma ênfase naquilo que está no interior do ato, na
temporalidade do acontecimento, abre o caminho para que possamos repensar o poder
e as políticas que o acompanham. Focar no agenciamento ao invés da agência, quero
argumentar, permite-nos não somente dar valor a modos de experiência que ficam no
154

segundo plano da agência, mas também chacoalha os alicerces poderosos da


neurotipicalidade, um modo de existência que profundamente desvaloriza os relatos
de experiências que não podem ser reduzidos à tríada volição-intencionalidade-
agência. (MANNING, 2016, p. 123; tradução nossa).65

Ao partir da agência para o agenciamento, mudamos a configuração de um terreno de


modo a criar condições permissivas à emergência de uma crítica imanente, e, pragmaticamente
perfurando nosso objeto, diferenciar técnica de tecnicidade (technique/technicity);

A técnica e a tecnicidade coexistem. Se a técnica é definida pelas práticas repetitivas


que modulam um processo, a tecnicidade é um conjunto de condições propícias que
extraem da técnica o potencial para que o processo exceda sua forma. A técnica
pavimenta o caminho para um grau de complexidade em um dado campo de
experiências, a tecnicidade abre o evento para o seu agenciamento. (MANNING,
2016, p. 126; tradução nossa).66

De nenhuma maneira, estamos querendo desvalorizar o trabalho de crítica textual que


é desenvolvido por autores e comunicólogos de base textual. Ao contrário, pensamos que tal
modo de crítica pode conviver e gerar interessantes intercruzamentos com a crítica imanente,
já que não assumimos a mídia como uma entidade exterior isolada dos corpos e mentes
viventes. Entretanto, a crítica imanente não pode ser baseada em uma lógica estruturada nos
processos de julgamento, que, como dizemos, não fazem sentido algum, já que recortam
isoladamente um conjunto de encontros muito restrito de toda uma rede de acontecimentos.
Tampouco advogamos que nada possível pode ser feito para evitar novas tragédias que
envolvem a responsabilidade de um indivíduo ou um grupo deles, mas devemos evitar a
condenação, que é sempre moral, buscando novas construções de relações que possam ajudar
à composição da maior quantidade de indivíduos, vivendo o que Spinoza definiu como sua
Ética. Evitando-se o julgamento, as críticas negativas tendem a diminuir (sem desaparecer; um
pouco de negatividade, por favor), devemos focar naquilo que é possível ser feito com o que
existe em sua forma atualizada (como o chute na máquina de refrigerante, a gambiarra) todos
os esforços incabíveis na linguagem dos personagens de Beckett, e todos os gestos menores
listados nos primeiros parágrafos deste capítulo. Em contrapartida, o trabalho da

65. “Agency begins in a category. It is used to place the action of volition in a subject or a group. That said, I
recognize that agency is often used in academic discourse to give voice to an underrepresented group. We talk
about the agency of the disabled, the agency of the autistic, the agency of women of color. We speak of the need
for the disenfranchised to have agency. The last thing I want to do is to deny the complexity of power and the
ways in which it sidelines populations. Indeed, what is important here is precisely the question of how an emphasis
on the in-act of event-time opens the way for a rethinking of power and the politics that accompanies it. Focusing
on agencement instead of agency, I want to argue, allows us not only to value modes of experience backgrounded
in the account of agency, it also shakes the powerful foundations of neurotypicality, a mode of existence that
profoundly devalues accounts of experience that cannot be reduced to the volition-intentionality-agency triad”.
(MANNING, 2016, p. 123).
66. “Technique and technicity coexist. Where technique is defined by the repetitive practices that tune a process,
technicity opens the event to its agencement”. (MANNING, 2016, p. 126).
155

[...] crítica negativa é ativamente traçar aquilo que o acontecimento não pode fazer.
Trata-se de uma ação, que pressupõe, a priori, qual será a sua orientação. A crítica
negativa somente pode ser pró ou contra. Pró-ou-contra é o gesto do isso-ou-aquilo.
As apostas são claras. Isso faz com que a crítica negativa esteja em uma profunda
cumplicidade com o modo como as coisas já são. É nesse sentido que a negação
permanece, sempre, naquilo que já é, ainda que a postura possa ser ouvida a respeito
daquilo que não é [...] A afirmação cria trajetórias e é de lá que o potencial do o-que-
mais possa emergir. A negação, por outro lado, viaja por meio de um círculo fechado
de coreografia previsível. Apesar de haver movimento, ele só vai para lugares em que
já esteve antes. (MANNING, 2016, p. 203; tradução nossa).67

Erin Manning, em todo o trabalho de desenvolvimento de sua proposta de crítica


imanente, ao lado de Brian Massumi, ressalta que a ela é focada em sempre “dizer sim”. Dizer
sim, no caso, não significa retornar a um tipo de enunciado ou prática new wave ou yuppie, que
enunciam e pregam o “dizer sim para a vida” – sabemos que o capitalismo se alimenta dessa
positividade e do imperativo da felicidade, tão discutidos pelo pesquisador João Freire Filho
(2011). Dizer sim é dizer sim à abertura ao acontecimento, “criando uma prática afirmativa que
não seja reduzida nem signifique ‘sim, eu vou seguir e concordar com você em todos os
aspectos de sua ideia’” (MANNING, 2016, p. 203), mas, de certa forma, “significa, sim,
tentaremos coletivamente aprimorar os efeitos [desse acontecimento]”, (Ibid., p. 203). Criar
condições para gestos menores, fugas, inserir e se aproveitar das falhas e brechas dos
dispositivos, estar a muitos passos de distância de qualquer crítica ou julgamento midiático
como os exemplificados em várias situações de Black Mirror, a punição ilimitade de Victoria
e do trambiqueiro de White Christmas, baseadas em uma dualidade entre seres bons,
merecedores de glória, e ruins, que devem ser culpados, expostos nos streamings e redes
sociais, reprimidos e punidos infinitamente.
Tudo isso calcado em ideias como representatividade, essencialismo, comunidade de
iguais, limando qualquer multiplicidade em favor de um achatamento ontológico que separa,
por meio de rígidas fronteiras, os opressores dos oprimidos, os assassinos das vítimas e,
cruelmente, os animais dos humanos (Massumi, 2017, no prelo). Qualquer um está sujeito a
ter seu corpo inserido em um agenciamento de um gesto maior ou menor que gerará uma cadeia
distinta de causalidades, que não são boas ou ruins, mas perspectivamente distintas. À Victoria
deveria ter sido dado o mesmo tratamento dispensado ao detento citado por Malabou (2014).

67. “Negative critique’s work is to actively trace what the event cannot do. This is an acting, but one that knows,
in advance, what the orientation will be. For negative critique can only be for or against. For-against is the gesture
of the either-or. The stakes are clear. This makes negative critique deeply complicit with the way things are. It is
in this sense that negation remains, always, in the it is, even when its stance may be heard as theit is not. [...]
Affirmation creates the trajectory, and from there the potential of the what else emerges. Negation, on the other
hand, travels a closed circle predictable in its choreography. Though there is movement, it goes only where it has
gone before”. (MANNING, 2016, p. 203).
156

Basta voltarmos um pouco ao conceito apresentado na primeira parte deste trabalho, de


acontecimento (que depois apareceria em versões transmitidas de si como evento, encontro),
mais especificamente ao abordar o modo como a linguagem expressa os acontecimentos, mas
não os representa. Quando nos referimos a um conjunto de termos em um tom de aprovação
ou julgamento, chancelamos que tal estado de coisas tem uma essência, um modo de existência
totalmente determinado e estanque (esse é o motivo de Deleuze e os Estoicos terem a
preferência de falar em algo que está em ação ou movimento por meio dos verbos – a árvore
verdeja em vez de a árvore é verde). A crítica que se baseia em um chancelamento de um valor,
um carimbo permanente sobre suas qualidades, pode ser vista também da mesma maneira.
Afirmar que um filme, um livro etc, é bom ou ruim, implica que já tenhamos bem definido em
nossas mentes o que é como totalidade tal obra, algo impossível, já que, seguindo a mesma
teoria dos agenciamentos, ou a dos encontros, em Spinoza, o livro é um agenciamento, só é
algo em contato com uma série de conexões (os discursos de um tempo, as visibilidades, os
corpos, os modos de percepção etc.).
A linguagem expressa – a quantidade alarmante de novas obras sobre o Nazismo ou o
Fascismo que recentemente vem sendo publicada é um diagnóstico de algo, ela em si não é
algo bom nem ruim, tampouco deve ser combatida de maneira individual ou passível de
julgamento, mas algo como um “termômetro” a ser observado: um sintoma que ajuda a
diagnosticar os agenciamentos contemporâneos. Mudanças nos discursos mostram que há,
paralelamente, novas organizações dos regimes de corpos. Alguém poderia argumentar: “estão
publicando novos livros sobre o tema porque são contra essa ideologia”. Contra ou a favor, é a
emergência de algo dizível que está de volta nas rotinas. Só há mudança de sentido, e o sentido
é puramente vetorial. O sentido

[...] permanece estritamente o mesmo para proposições que se opõem seja do ponto
de vista da qualidade, seja do ponto de vista da quantidade, seja do ponto de vista da
relação, seja do ponto de vista da modalidade. Pois todos esses pontos de vista
concernem à designação e aos diversos aspectos de sua efetuação ou preenchimento
por estados de coisas e não ao sentido ou à expressão. Primeiramente, a qualidade,
afirmação e negação: “Deus é” e “Deus não é” devem ter o mesmo sentido, em
virtude da autonomia do sentido com relação à existência do designado. Tal é, no
século XIV, o fantástico paradoxo de Nicolas d’Autrecourt, objeto de reprovação:
contradictoria ad invicem idem significant. (DELEUZE, 1974, p. 35).

A crítica de mídia tradicional não basta porque muitas analisam as mídias como
entidades separadas da existência humana, ainda que estejamos cada vez mais cheios de
penduricalhos em todas as entranhas de nossos corpos, que estão conectados a redes
comunicacionais, digitais ou não. A crítica da mídia pode ser uma crítica imanente, in the
157

middle, mas tal crítica deve ser um dos elementos de uma ética dos bons encontros. E alegar
que a crítica da mídia tradicional não basta não é anulá-la ou buscar sua eliminação, mas incluí-
la também como uma prática que pode se relacionar com a crítica imanente ou ética, em uma
ecologia de práticas e saberes que não promovem a exclusão umas das outras; têm
similaridades, mas são abordagens diferentes, que podem traçar caminhos paralelos ou não,
mas têm o direito de continuar existindo em seus distintos modos de crítica.
Em outras palavras, pensamos que os elementos de uma crítica imanente atuam no
campo da micropolítica; que, de nenhuma maneira, anulam a macropolítica, já que vivem em
um regime de inclusão mútua. Entretanto, pensamos que mais atenção deve ser dada aos
aspectos micro do dia a dia. Não é uma questão de escala. A micropolítica tem maior
estabilidade, e não é toda ação que tem potência de mudança, de alteração de qualidade (não o
adjetivo qualidade, mas qualidade de existência. A micropolítica é performativa e, como nos
alerta Suely Rolnik (2017, p. 49), contra a moral julgamental, ela “escuta (os afetos), implica-
se (no movimento de desterritorialização provocado pelos afetos)” [em ato]. Os gestos menores
são aquilo que “criam (um dizer para o que pede passagem), contaminam (o entorno),
transfiguram (a cartografia vigente)” (Ibid.) – buscam reorganizar os agenciamentos. Há riscos,
e microfascismos podem emergir dessas operações, quando, no ato micropolítico, o sujeito
assume a “perspectiva antropo-falo-ego-logocêntrica” – sem perceber, retorna ao movimento
perpétuo de colocar por detrás dos agenciamentos como sujeito causal – o risco é a avaliação
ética se transfigurar em julgamento moral. E isso acontecerá, mas é preciso pôr a roda em
movimento.
158
159

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Is “The Handmaid’s Tale” a prediction? That is the third question I’m
asked – increasingly, as forces within American society seize power and
enact decrees that embody what they were saying they wanted to do, even
back in 1984, when I was writing the novel. No, it isn’t a prediction,
because predicting the future isn’t really possible: There are too many
variables and unforeseen possibilities. Let’s say it’s an antiprediction: If
this future can be described in detail, maybe it won’t happen. But such
wishful thinking cannot be depended on either.

Margaret Atwood

Antes de retomarmos as discussões sobre algumas conclusões tiradas nesta pesquisa,


bem como para onde lançaremos nosso olhar em um próximo momento, devemos fazer uma
consideração sobre o universo de Black Mirror. É preciso negar um conjunto frequente de
enunciados nomeados para definir essa obra, a suposição de que se trataria de um conjunto de
narrativas distópicas. Tais comentários estão completamente equivocados, já que, segundo
nossa linha de reflexão, Black Mirror é um sintoma de um presente que promove a exaustão
ao contrabalancear a apresentação forçosa de um suposto excesso de possíveis, que, entretanto,
são submetidos a diagramas pré-programados muito específicos. Vale ressaltar que que os
agenciamentos discutidos em suas tramas não são referentes a um único mundo possível e
atual, visto que existem comunidades marginalizadas exaustas pela ausência dos possíveis; e
mesmo que haja uma mudança de tonalidade afetiva experimentada nas últimas temporadas.
“Nós não quisemos sempre jogar vocês [espectadores] em um poço de desespero” (“we
wanted to not always fling you into a pit of despair”68), afirmou Charlie Brooker, em uma
entrevista coletiva, na época do lançamento da primeira leva de episódios da terceira temporada
da antologia. Com um número maior de narrativas a serem desenvolvidas (não restrição a uma
pequena quantidade de episódios) e um aporte financeiro mais robusto (injeção de grandes
quantidades de fundos na produção através da Netflix), esse conjunto de filmetes pôde
experimentar finais felizes: paixões avassaladoras, amores, risadas etc. Tais afetos obviamente
já estavam nas iterações anteriores do programa, mas segundo uma distinta proporção.
Não negamos que também falamos do futuro, mas de um futuro vendido como pré-
determinado a um presente rígido. Futuro esgotado, de tanto o vivermos por meio das projeções
de um futuro cujas preensões já sentíamos, os espectros de um futuro de sucesso que nunca se
atualizou, mas para o qual devemos preparar nossos corpos, colocando-os em prontidão.
“Learn More. Make More. Play More. Make More. Connect More. MORE. MORE. M – MORE.

68. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HVb2qxhDkrc>. Acesso em: 26 out. 2016.


160

More. More. Be Yourself. No More. The Future is Broken”. “The Future is bright”, são as frases
ditas em um comercial do programa. Os enunciados convocatórios e irônicos das próprias peças
publicitárias oficiais dão a entender que a todo instante estamos tratando de um futuro
distópico. Discordamos desse conjunto de enunciados. Ou melhor, concordamos com quase
tudo, inclusive com o uso estilístico da linguagem que, para nós, funciona como uma expressão
da exaustão do presente. “MORE. MORE. M.”
Halbe Kuipers (2016, p. 10), em um ensaio genealógico e escavatório sobre as menções
de Gilles Deleuze ao conceito de exaustão, lembra-nos que, no livro O que é a Filosofia, escrito
com Félix Guattari, o filósofo francês nos alerta que “não nos falta comunicação, ao contrário,
temos comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 140). À maneira dos personagens de Beckett ou do próprio autor irlandês.
A última frase é que nos incomoda – um mau incômodo. Não é o futuro que está quebrado. É
o presente que se prenha. Não há distopia, tampouco há saída nos afetos melancólicos. E é
justamente essa dificuldade em entender que não há enorme diferença entre aquilo que já está
apresentado em discurso e suas atualizações que dificulta qualquer prática pragmática de crítica
imanente.

Figura 37: Imagem de divulgação publicada no perfil oficial do Netflix antes do lançamento da terceira temporada de Black
Mirror (2016).
161

A enxurrada de enunciados nas redes sociais e nos microblogs, como o Twitter, em


postagens que continham uma imagem aparentemente absurda, porém real, de alguma notícia
ou fato ocorrido nos últimos tempos, seguida do enunciado “parece Black Mirror”, é um
exemplo dessa aposta na falsa surpresa de um futuro absurdo que já está atualizado. O trabalho
que buscamos fazer nesta tese é traçar uma cartografia de algumas mutações no desejo e no
comportamento que já estão manifestadas de diversas maneiras e nuances nas sociedades
ocidentais, mas também listar os movimentos de fuga e subversão que emergem pelas
condições criadas por técnicas e éticas de vida: os gestos menores, a potência do esgotado, a
performatização perante as opressões dos sistemas de controle.
Nesse contexto, “parecer Black Mirror” é aceitar que somos golpeados a todo instante
por acontecimentos contingentes que não têm explicação alguma, ignorar toda a cadeia de
enunciados e acontecimentos corporais que levaram a tal conjuntura, ou seja, fugir dos
parâmetros do entendimento em direção à aceitação das ideias inadequadas como
representantes dos fatos. Em 2016, o dicionário britânico Oxford elegeu o termo pós-verdade
como a palavra mais importante do ano. Não tardou para que tal expressão fosse apropriada
pelos circuitos acadêmicos “pop” para descrever situações de confusão aparentemente
provocadas pela incessante produção enunciativa dos inúmeros aparatos midiáticos. A
pesquisadora Ivana Bentes, por exemplo, destaca que

Verossimilhança e evidência são a matéria prima da pós-verdade e do pós-fato. Sua


enunciação repetida e viralizada por muitos, sua expressão em imagens e memes
antecipam o que queremos ver acontecer. Sua simples difusão e circulação, a
quantidade de cliques e visualizações são o que dão legitimidade ao conteúdo que é
exposto. A visibilidade máxima, o compartilhamento, o engajamento em comentários
e cliques são a forma de legitimação do pós-fato e da pós-verdade. Algo que não
necessariamente aconteceu, mas que a simples enunciação e circulação massiva
produz um efeito de verdade. (BENTES, 2016, s.p.).

Um dos problemas da construção de tal conceito é que o prefixo “pós” pressupõe que
houvesse antes um momento histórico no qual a “verdade” reinava como absoluta instância
transcendente. Como vimos, mesmo em situações nas quais o controle parece ser absoluto e as
máquinas de captura do visível e do dizível parecem estar atuando em máxima potência, sempre
há algo que escapa, o conhecimento absoluto de terceiro gênero do conhecimento de Spinoza
só é acessível a Deus, à natureza, ou à própria rede infinita de conexões em maior ou menor
estágio de afetação a determinados corpos. Retornar à ideia de que há uma “verdade completa”
é, de maneira indireta, apoiar os próprios rituais de condenação apresentados em vários dos
episódios analisados de Black Mirror, calcados na essencialização de indivíduos ou de aparatos.
162

Há um limiar perigoso sobre o qual precisamos trabalhar. Sim, é preciso constantemente


combater a disseminação incessante das ideias inadequadas que pretendem dar lastro a
movimentos totalitários e discriminatórios, visando a um entendimento dos agenciamentos que
desencadearam um estado de coisas, e as ciências tradicionais ou não devem agir nesse campo.
Entretanto, a chancela de verdade não pode resvalar na construção de verdades sobre as
constituições ético-morais particulares de um indivíduo. Em algumas instâncias, afirmar que
algo é verdadeiro é o equivalente a assumir que atingimos a essência estática de uma coisa ou
ser vivente, chancelar um carimbo de bom ou mau: “o mau menino pedófilo que visitou um
site de pornografia infantil” e merece ser punido publicamente várias vezes, “a má mãe que
assassinou uma criança” e que merece ser espancada e abusada fisicamente todos os dias, todos
os personagens que são impedidos até mesmo de morrer para que sofram mais por uma suposta
índole ruim, imutável e, portanto, que deve ser decomposta.
Contra a pós-verdade, só há a pragmática das avaliações éticas. A crítica que buscamos
desenvolver juntamente com Erin Manning e Brian Massumi (2014) está calcada nas noções
comuns de Spinoza, desenvolvidas coletivamente envolvendo afetividades e linguagem, mas
com um possível lastro. Os agenciamentos mudam, e as noções comuns da linguagem
acompanham essas mudanças. Aos produtores da excessiva discursividade não interessa se o
que é produzido foi um enunciado verdadeiro ou falso. Como já ressaltamos, a diferença entre
“há Deus” ou “não há Deus” é apenas vetorial, carrega implícita uma concordância
epistemológica a respeito do que é Deus (DELEUZE, 1975).
Charlie Brooker, criador de Black Mirror, apresenta, em todo final de ano, sua
retrospectiva. Em dezembro de 2014, junto à transmissão de seu Charlie Brooker’s 2014 Wipe,
exibiu um trecho do então vindouro documentário de Adam Curtis, intitulado Bitter Lake. O
trecho, apresentado como um curta-metragem, Oh-Dearism II – Non-Linear warfare, narrado
pelo documentarista britânico, apresenta o conceito de “estado de guerra não linear”.
Apresentando no início uma infinidade de enunciados que nos golpearam naquele ano pelas
mídias ocidentais, como Ebola, ISIS (Estado Islâmico), Ucrânia, Síria, decapitações, pedofilia,
afirma se tratar de tópicos que foram tão exaustos pela linguagem e pelo alastramento das
notícias falsas que aparentemente não significam mais nada. A única coisa que poderia ser feita
a respeito deles é dizer “oh, Dear” (“minha nossa”). Essa produção de verdades de vetores
opostos em velocidade absurda, para Curtis, seria de uma “estratégia de poder que deixa
qualquer oposição constantemente confusa”. Em uma guerra de informação e comunicação não
linear, “o objetivo não é vencer a batalha, mas usar o conflito para criar um estado constante
163

de percepção desestabilizada, de maneira a gerenciá-la e controlá-la.69 O desentendimento é


um dos melhores comparsas dos dispositivos de controle.
Não se trata de travar uma batalha contra a absoluta contingência, tampouco ignorar
que há coisas que nunca teremos capacidade de definir e esquadrinhar sobre os saltos de nossas
bolhas identitárias. Todos os projetos de controle antropotécnicos já tratam disso, e devemos
aceitar que existem flashes que provocam uma disjunção no pensar e no sentir, aquilo que o
filósofo argentino Fabián Romandini Ludueña chama de intervenção da espectralidade. Trata-
se de dar nome aos bois. Bois esses que são inteira e talvez demasiadamente humanos e têm
lógicas bem definidas de atuação, que visam a modular toda uma gama de afetos que
discutimos aqui nesta tese: desejo de controle, de julgamento etc. As eleições e a tomada de
poder em diversos cantos do mundo ocidental por uma direita conservadora e a ascensão de
movimentos fascistas não se tratam de emergências puramente contingentes, deslocadas do
mundo dos corpos e dos enunciados. E não se tratam de eventos futuros, já estão atualizados.
“Vivemos em um vaudeville constante de histórias contraditórias que tornam a emergência de
qualquer real oposição impossível, já que não conseguimos levar em conta nenhuma narrativa
coerente por si só [...] vivemos em um estado de confusão e incerteza. O que Adam Curtis
define é a produção e o espalhamento sem freio de ideias inadequadas, como Spinoza as define.
A pretensão das ideias inadequadas é a de serem reconhecidas como verdades
absolutas. Não importa que elas não se refiram a algo ontologicamente real. Spinoza afirma
que só a ideia de uma coisa provoca afetos que correspondem à coisa imaginada. “O homem
experimenta pela imagem de uma coisa passada ou futura a mesma afecção de alegria ou de
tristeza que a de uma imagem presente” (SPINOZA, 2014, p. 214, Ética III, Proposição 18). A
imagem presente, por sua vez, é produzida “enquanto o corpo humano é afetado de maneira a
envolver a natureza de um corpo exterior, a mente humana considera esse mesmo corpo como
presente” (SPINOZA, 2014, p. 209 Ética III, Proposição 12). Em respeito às então chamadas
distopias desenvolvias em Black Mirror, podemos adotar a mesma perspectiva. Basta a ideia
das coisas, de aparatos até então não disponíveis tecnologicamente. Os comportamentos ali
descritos já estão presentes. Black Mirror faz o uso do que Norval Baitello chama de técnica
do estilingue (esticar as narrativas da realidade às mais exageradas consequências como forma
de alerta para os riscos atuais em potencial), ou, de acordo com Margaret Atwood, poderia ser

69. A esse respeito, ver, também, Massumi, 2015b. Em Ontopower, o autor desenvolve o conceito de ontopoder,
um poder que não atua somente nas discursividades, mas atinge diretamente o campo dos afetos, de modo a
desestabilizar totalmente o inimigo. Segundo o autor, tal estratégia foi utilizada no início da Segunda Guerra do
Iraque (2003), no que foi chamado de Shock and Awe.
164

classificada como uma ficção especulativa. Isso porque uma história “pode falar daquilo que
acontece ou está acontecendo, mas especialmente sobre aquilo que também pode vir a
acontecer” (ATWOOD, 2004, p. 515). Nossa resposta, como a de Atwood, é não somente
encará-las como ficção, mas também como eventos que já se atualizaram. Em outras palavras:
o que podemos fazer com isso tudo, com esse estado de coisas e agenciamentos?
O que buscamos, nesta tese, foi enumerar práticas. Práticas e técnicas de fuga do
presente. A crítica imanente é válida se pensada juntamente com o seu fazer, é o pensamento
em ação – thought in action – ressaltado por Erin Manning e Brian Massumi. Black Mirror
deve ser pensado como um conjunto de sintomas que indicam algo, não preocupações que
devemos ter com o futuro. Se adotássemos essa perspectiva do senso comum em relação a um
possível futurismo do seriado, estaríamos atendendo justamente às necessidades do capitalismo
financeiro. Isso porque o capitalismo, ou o capitalosceno, como nomeia Massumi (2016) atua
exatamente no limiar de um capitalismo que alimenta e se alimenta de imagens
cinematográficas muito precisas (basta lembrar os carros voadores tão certos nas previsões de
como o século XX se instauraria nas grandes cidades). Shaviro traça essa característica
inexorável do capitalismo moderno:

Em última instância, o débito financeiro é um modo de colonizar e pré-esvaziar (ou


premediar, se formos usar o conceito de Richard Grusin) o futuro, de dar valor àquilo
que ainda não é previsível de acordo com o que é apreensível e controlável no
presente – não levando em conta que tal prática é uma leitura e desilusão, já que o
futuro é intrinsicamente desconhecível e imprevisível. Nesse sentido, o débito
capitalista que conhecemos hoje é um tipo de processo duplo. Ele devasta o presente
em nome de um futuro que nunca ocorrerá realmente, esgotando nossas esperanças e
nossas imaginações para com ele, transformando-o em nada além de uma projeção e
eterna repetição do presente. (SHAVIRO, 2011, p. 08-09; tradução nossa).70

Há um esgotamento do presente, projetando-o como futuro distante e projetando o


futuro distante como uma certeza de continuidade, sem atentar para a contingência e o acaso
das próximas atualizações de corpos e ideias. Vale lembrar que sempre que falamos em
contingência, não estamos nos referindo à absoluta contingência ontológica de Quentin
Meillassoux, mas àquilo que não temos capacidade de prever, já que traçar toda as redes de
relações e agenciamentos é uma tarefa impossível a não ser para próprio Deus ou natureza (ou
o conhecimento de terceiro gênero para Spinoza). O controle absoluto do futuro e do presente

70. “Ultimately, financial debt is a way of colonizing and pre-empting (or premediating, in Richard Grusin’s term)
the future, of pricing its unknowability according to a measure that is graspable and controllable in the present –
despite the fact that such a practice is madness and delusion, since the future is intrinsically unknowable and
unpredictable. In this sense, capitalist debt as we know it today is a kind of double process. It ravages the present
in the name of a future that will never actually arrive; and it depletes our hopes for, and imaginings of, the future
by turning it into nothing but a projection and endless repetition of the present”. (SHAVIRO, 2011, p. 08-09).
165

é uma ilusão. Podemos traçar noções comuns que nos levam a uma maneira ética de
entendimento do que é possível, mas não nos devemos render à linearização do tempo e das
certezas de um futuro traçado.
Quais técnicas de atuação presente conseguimos enumerar nesta tese? Dadas as
inúmeras camadas que investem no controle e nos desejos, não podemos excluir nenhum
modelo de ação direta (ver tabela 4 para um brevíssimo levantamento de tais possíveis ações).
O gesto menor (Manning), as máquinas revolucionárias de Deleuze, Guattari e Levi R. Bryant
(ainda que tenhamos traçado críticas ao pensamento do último), a crítica imanente, a ética
Spinozista, o amor. Formas de resistência para o aqui e o agora. Não necessariamente quebrar
os espelhos, mas reposicioná-los.

Tabela 3: Levantamento de técnicas desviantes discutidas.


Algo a se pensar para futuras pesquisas com maior atenção, e que aqui não pudemos
abordar com aprofundamento, é o papel da imagem nesses agenciamentos midiáticos. Se
166

vivemos sujeitos a ideias inadequadas espalhadas por meio de estratégias afetivas e estéticas,
emergindo convenientemente dos abarrotados arquivos que as armazenam e distribuem-nas
freneticamente, – a ético-política de um arquivo reside também nas condições de seu acesso –
uma ética imagética deve ser pensada. Questão que já é abordada por autores, como Grønstad
(2016, 2017) e Mitchell (1994); bem como a extensiva análise de Horst Bredekamp sobre o
poder de agência das imagens e, sem subjetivá-las, o que elas desejam, em sua Teoria do Ato
Icônico. Se macro e micro-políticas são impulsionadas por uma memética imagética, como
também brilhantemente ressaltou Angela Nagle (2017) ao pesquisar os fóruns e chans pouco
conhecidos pelo público geral e academia, mas com alta agência no cenário político mundial,
além de buscar um entendimento, no sentido spinozano, devemos cravar uma batalha imagética
progressista (ou ética)? Brian Massumi, partindo das teorias do afeto de origem deleuzeana e,
consequentemente, spinozana, afirmará, por exemplo, que uma das poucas maneiras de se
combater um poder centralizador que se manifesta por meio de ações diretamente miradas nos
afetos pré-linguagem é usando das mesmas armas. Ontopoder também [Ontopower] deve ser
combatido com ontopoder. Como é possível alinhar essas duas linhas de ação? “O
micropolítico não se opõe ao macropolítico, é apenas o seu correlato processual. Não faz
sentido falar do micropolítico fora de sua inclusão mútua com o macropolítico – o nível dos
códigos, regras gerais e éticas normativas” (MASSUMI, 2017, s.p.). Enquanto macro e
micropolítica forem entendidas como zonas distintas e separadas por rígidos muros, crescerá o
reino do desentendimento e os afetos ruins que dele podem ser desencadeados.
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FILMOGRAFIA

Episódios de Black Mirror

The National Anthem. Direção: Otto Bathurst. Escrito por Charlie Brooker. Produzido por
Zeppotron. Reino Unido: Channel 4, 2011. (44 min)
Fifteen Million Merits. Direção: Direção: Euros Lyn. Escrito por Charlie Brooker. Produzido
por Zeppotron. Reino Unido: Channel 4, 2011. (62 min)
The Entire History of You. Direção: Brian Welsh. Escrito por Jesse Armstrong. Produzido por
Zeppotron. Reino Unido: Channel 4, 2011. (44 min)
Be Right Back. Direção: Owen Harris. Escrito por Charlie Brooker. Produzido por Zeppotron
Reino Unido: Channel 4, 2013. (44 min)
White Bear. Direção: Call Tibbetts. Escrito por Charlie Brooker. Produzido por Zeppotron.
Reino Unido: Channel 4, 2013. (44 min)
The Waldo Moment. Direção: Bryn Higgins. Escrito por Charlie Brooker. Produzido por
Zeppotron. Reino Unido: Channel 4, 2013. (44 min)
White Christmas. Direção: Call Tibbetts. Escrito por Charlie Brooker. Produzido por House of
Tomorrow. Reino Unido: Channel 4, 2014. (75 min)
Nosedive. Direção: Joe Wright. Escrito por Charlie Brooker, Michael Schur e Rashida Jones.
Produzido por House of Tomorrow e Netflix. Reino Unido: Netflix, 2016. (63 min)
Playtest. Direção: Dan Trachtenberg. Escrito por Charlie Brooker. Produzido por House of
Tomorrow e Netflix. Reino Unido: Netflix, 2016. (57 min)
Shut up and Dance. Direção: James Watkins. Escrito por Charlie Brooker e William Bridges.
Produzido por House of Tomorrow e Netflix. Reino Unido: Netflix, 2016. (52 min)
San Junipero. Direção: Owen Harris. Escrito por Charlie Brooker. Produzido por House of
Tomorrow e Netflix. Reino Unido: Netflix, 2016. (61 min)
Men Against Fire. Direção: Jacob Verbruggen. Escrito por Charlie Brooker. Produzido por
House of Tomorrow e Netflix. Reino Unido: Netflix, 2016. (60 min)
Hated in The Nation. Direção: James Hawes. Escrito por Charlie Brooker. Produzido por House
of Tomorrow e Netflix. Reino Unido: Netflix, 2016. (89 min)

Outras obras referenciadas


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A Clockwork Orange. Direção: Stanley Kubrick. Reino Unido: 1971. (136 min)
Adieu au Langage. Direção: Jean-Luc Godard. França: 2014. (70 min)
Äkta människor. Direção: Lars Lundström. SVT, Suécia: 2012-2015. (60 min/episódio)
Beckett Directs Beckett: Endgame by Samuel Beckett. Direção: Samuel Beckett. EUA: 1992.
(96 min)
Bitter Lake. Direção: Adam Curtis. Reino Unido: BBC, 2015. (136 min)
Chaumière. Direção:, Emmanuel Marre. França: 2013. (69 min)
Death Note [Desu nôto]. Vários diretores. Japão: Nippon Television Network (NTV), 2006-
2007. (24 min/episódio)
Dimensions of Dialogue. Direção: Jan Svankmajer. República Tcheca: 1983. (12 min)
Doctor Who: Dark Water. Direção: Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2014. (45 min)
Doctor Who: Death in Heaven. Direção:, Steven Moffat. Reino Unido: BBC, 2014. (60 min)
En duva satt på en gren och funderade på tillvaron. Direção: Roy Andersson. Suécia, Noruega
e França: 2014. (101 min)
Ex Machina. Direção: Alex Garland. EUA: 2015. (108 min)
Gefängnisbilder. Direção: Harun Farocki. Alemanha: 2001. (80 min)
Her. Direção: Spike Jonze. Estados Unidos: 2014. (126 min)
Last of You (‫)סחר דן של קצר סרט‬. Direção: Dan Sachar. Israel: 2013. (29 min)
Minority Report. Direção: Steven Spielberg. EUA: 2002. (145 min)
Nymphomaniac. Volume I. Direção: Von Trier. Dinamarca, Suécia, Alemanha, Bélgica e Reino
Unido: 2014 (145 min) [Uncut]
Nymphomaniac. Volume II. Direção: Von TRIER. Dinamarca, Suécia, Alemanha, Bélgica,
França e Reino Unido: 2014 (180 min) [Uncut]
Oh dear”-ism II – Non-Linear War. Direção: Adam Curtis. (05 min) Segmento de Charlie
Brooker. Charlie Brooker’s 2014 Wipe. Reino Unido: BBC, 2014. (60 min)
P.O.V. Centerfolds 7. Direção: Mick Blue. EUA: 2008. (150 min)
Periscópio. Direção: Kiko Goifman. Brasil: 2013. (82 min)
Quadratt I + II. Direção: Samuel Beckett. Alemanha Ocidental: SDR Süddeutscher Rundfunk
1981. (14 min)
The Matrix. Direção: Andy Washowski e Lana Washowski. EUA: 1999. (136 min)
Tree of Life. Direção: Terrence Malick. EUA: 2011. (139 min)
True Detective. Direção: Nick Pizzolatto. EUA: HBO, 2014-. (55 min/episódio)
Westworld. Direção: Michael Crichton. EUA, 1973. (68 min)
Westworld. Direção: Jonathan Nolan e Lisa Joy Nolan. EUA: HBO, 2016 (60 min/episódio)
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