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POLÍTICAS E GESTÃO PÚBLICAS DE CULTURA:

DIVERSIDADE CULTURAL EM UMA PERSPECTIVA INTERCULTURAL1

Alice Pires de Lacerda (UFBA / Bahia)

Resumo: o presente artigo propõe uma reflexão acerca do desafio contemporâneo de pensarmos
políticas e gestões públicas voltadas para a diversidade cultural. Traçamos uma breve análise de
como a diversidade cultural vem sendo tratada como objeto de políticas culturais e gestões públicas
no Brasil, como também no campo epistêmico (pluri, multi e interculturalismo). Avançamos no
sentido de pensar o caráter relacional das diferenças que a diversidade cultural demanda e, para
isso, encontramos nos estudos descoloniais um horizonte crítico que nos possibilita vislumbrar
paradigmas outros que nos ajudam a enfrentar o desafio posto. Um paradigma outro que reclama
uma perspectiva intercultural para as políticas e a gestão da cultura, onde exercer os direitos
culturais é também exercer o direito de ser e pensar diferente, combatendo a hegemonia de uma
monocultura moderna colonial. No centro dessa questão está a necessidade de um estado pluriétnico
e pluricultural que reconheça a diversidade de etnias e culturas que conformam uma nação e que
precisam ser pensadas e desenvolvidas equitativamente através de políticas e gestões públicas
interculturais.

Palavras-chave: Diversidade cultural; Política e gestão cultural; Interculturalidade.

Políticas e gestão cultural para a diversidade cultural brasileira no século XXI

Nesse texto propomos uma reflexão acerca do desafio contemporâneo de pensarmos políticas e
gestões públicas voltadas para a diversidade cultural. Para isso traçamos, inicialmente, uma breve
análise de como a diversidade cultural vem sendo tratada como objeto de políticas culturais e
gestões públicas no Brasil, com ênfase na última década e na esfera federal da gestão. Além do
campo político, abordamos no campo epistêmico as diferentes correntes que pensam a diversidade
cultural enquanto objeto de reflexão, e destacamos as divergências desses projetos epistêmicos:
pluri, multi e interculturalismo.

Avançamos no sentido de pensar o caráter relacional das diferenças que a diversidade cultural
demanda e, para isso, encontramos nos estudos descoloniais um horizonte crítico que nos possibilita
vislumbrar paradigmas outros que nos ajuda a enfrentar o desafio posto. Um paradigma outro que
reclama uma perspectiva intercultural para as políticas e a gestão da cultura, onde exercer os

1 Trabalho apresentado na 29a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014,
Natal/RN.

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direitos culturais é também exercer o direito de ser e pensar diferente, combatendo a hegemonia de
uma monocultura moderna colonial, onde a cidadania cultural torne-se plena.

Ao trazer para o debate a noção de cidadania cultural, a questão volta-se para a discussão do modelo
de Estado do qual dispomos para pensar as políticas culturais e executá-las, através de uma gestão
cultural. Por isso, dispensamos parte do texto para pensar a construção de um estado pluriétnico e
pluricultural, que reconheça a diversidade de etnias e culturas que conformam uma nação e que
precisam ser pensadas e desenvolvidas equitativamente através de políticas e gestões públicas
interculturais.

As reflexões sobre políticas culturais, gestão cultural e diversidade cultural vem se multiplicando e
extrapolando o espaço acadêmico, congregando pesquisadores, movimentos sociais, artistas,
políticos, e se expandindo para além dos interessados no campo cultural. Uma das questões centrais
sobre a qual se debruçam os interessados no debate é a de como delinear políticas públicas de
cultura que possam contemplar a diversidade cultural, seja ela de um país, estado ou cidade. Ou
ainda, como realizar gestões públicas para a proteção e promoção da diversidade cultural?
Pensadores e pesquisadores do campo cultural se desdobram em contribuições através das suas
análises e críticas, dentre as quais se destacam aquelas voltadas para debater o papel do Estado na
formulação e implementação de políticas culturais pautadas na diversidade cultural.

Somam-se ao debate as discussões quanto a esfera pública da gestão cultural, já que o sentido da
cidadania cultural compreende a participação da sociedade civil em instâncias, processos e espaços
decisórios. Ou seja, pensar políticas e realizar gestão cultural não apenas para a diversidade cultural
mas, também, a partir da diversidade. A diversidade cultural é objeto e sujeito da política e da
gestão cultural pois, numa democracia, a participação da sociedade civil, em sua diversidade
institucional e cultural, é uma prerrogativa.

Se nos determos na realidade brasileira podemos perceber o quanto as políticas culturais avançaram
no sentido de contemplar a diversidade cultural do país, com destaque para a esfera federal da
gestão pública da cultura no Brasil. A última década foi especialmente estimulante tanto para o
debate quanto para a implementação de políticas e gestões públicas de cultura focadas em abarcar a
diversidade cultural. As gestões dos Ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, no Governo Lula, foram
decisivas para avançarmos no projeto de democracia cultural, que permite o gozo dos plenos
direitos culturais de todos os cidadãos brasileiros garantidos pela Constituição Federal de 1988.

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Para Barbalho, no Governo Lula,

a diversidade não se torna uma síntese, como no recurso à mestiçagem durante a era Vargas
e na lógica integradora dos governos militares, nem se reduz à diversidade de ofertas em
um mercado cultural globalizado. A preocupação da gestão Gilberto Gil está em revelar os
brasis, trabalhar com as múltiplas manifestações culturais, em suas variadas matrizes
étnicas, religiosas, de gênero, regionais etc. (2007, p. 13-14)

A gestão cultural do Governo Lula (2003 – 2010) posicionou-se numa contra-corrente ao projeto de
integração do Estado-nacional brasileiro através da cultura, iniciado pelo Governo Vargas e que
ganhou novos contornos com os governos militares após o golpe de 1964. Na última década o
Ministério da Cultura apostou em políticas que valorizaram e reconheceram a pluralidade cultural
brasileira, num esforço de desconstruir a ideia de uma identidade nacional homogênea e isomorfa.
Um exemplo emblemático de êxito desse esforço é o Programa Cultura Viva, que primou pela
diversidade de expressões culturais, bem como de suas origens étnicas, geográficas e sócio-
econômicas, que passaram a ser apoiadas e estimuladas com recurso público federal (LACERDA,
2010).

O que o Governo Lula propunha, através de políticas como o Programa Cultura Viva, era uma
gestão cultural orientada para o estabelecimento de uma democracia cultural no Brasil, na qual o
Estado tem o papel de garantidor de direitos culturais, direito entendido em sua plenitude, e não
somente direito de acesso aos meios de produção, fruição e divulgação da cultura, mas direito do
povo de participar das políticas culturais, com poder de decisão (CHAUÍ, 2006). Porém o
Programa, assim como toda a gestão do MinC, esbarrou em entraves burocráticos, na inabilidade de
alguns gestores públicos em tratar das especificidades do campo cultural e na ausência de uma
cultura de diálogo entre Estado e sociedade civil.

O Programa Cultura Viva alcançou repercussão dentro e fora do país, sendo apontado como uma
referência para as políticas culturais na América Latina, o que pode ser explicado por diferentes
motivos: seu modelo inovador de gestão, pelo aporte direto de recurso público ou devido ao alcance
nacional do Programa. Mas um desses motivos pode ser identificado como a forma que o programa
encontrou para gerir a diversidade cultural do país. O Cultura Viva injetou recurso público federal
em iniciativas da sociedade civil de livre iniciativa, ou seja, a partir da demanda espontânea da
sociedade, sem determinar linguagem, segmento ou formato dos projetos apoiados. Dessa maneira,
diferentes atores, instituições, produtores, grupos e organizações puderam acessar recursos públicos
para dinamizar suas iniciativas, ações e projetos como acharam mais oportuna dentro, claro, das

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limitações legais.

Embora conhecido pela nomenclatura síntese Cultura Viva, o nome original da política é Programa
Nacional de Cultura, Educação e Cidadania e, com a entrada do Secretário Célio Turino em 2004, a
secretaria responsável pela sua gestão passou a se chamar Secretaria de Cidadania Cultural (SCC).
Não é uma casualidade que a expressão cidadania esteja presente na nomeação da política e do seu
órgão gestor pois, em uma análise anterior, constatamos que:

o Programa [Cultura Viva] pode ser entendido enquanto uma política de cultura que se
aproxima do paradigma da democracia cultural, que compreende o direito cultural na sua
radicalidade, sendo o Estado responsável por assegurar a todo cidadão o livre exercício da
sua cidadania cultural, ou seja, dispor de meios para a produção cultural, fruição e
distribuição da cultura. (LACERDA, 2010, p.75-76)

A dimensão cidadã da cultura foi compreendida e desenvolvida não apenas pelo Programa Cultura
Viva, mas também em outras frentes do MinC na gestão Gil/Juca. Mas, ainda no intuito de
demonstrar algumas das razões da grande aceitação e reverberação do Programa, principalmente
enquanto política e gestão para a diversidade cultural, a aposta na dimensão cidadã da dinâmica
cultural foi decisiva. Ao mirar no objetivo de proporcionar as condições materiais e institucionais
para o exercício dos direitos culturais dos brasileiros, em sua complexidade, a Secretaria de
Cidadania Cultural acertou ao criar o Programa Cultura Viva como uma política para a diversidade
cultural brasileira.

É interessante contextualizar que nessa mesma gestão federal Gil/Juca, o Ministério da Cultura
criou a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, inicialmente gerida pelo secretário
Sérgio Mamberti e posteriormente assumida pelo secretário Américo Córdula, no intuito de
empreender políticas de defesa e promoção da diversidade cultural brasileira. Numa análise pontual
da gestão, enfatizamos a articulação entre identidade e diversidade presente na proposta de criação
da Secretaria:

O trabalho desenvolvido nesses sete anos de gestão da Secretaria priorizou o investimento


em estratos culturais em situação de risco, tais como grupos que sofrem com a
desarticulação de seus membros e correm o risco de verem encerradas as suas
manifestações culturais; segmentos vítimas de preconceito cultural, a exemplo das
comunidades ciganas, e grupos em situação de risco social, tais como quilombolas e
indígenas, que requerem políticas públicas específicas e articuladas. (LACERDA, 2010,
p.60)

Além de objetivar promover a inclusão de segmentos culturais excluídos historicamente das

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políticas culturais, a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SIDC) atuou, em parceria
com o Ministério das Relações Exteriores, na arena internacional dos debates sobre diversidade
cultural, especialmente àqueles promovidos no âmbito da UNESCO. Podemos arriscar dizer que o
trabalho dessa Secretaria foi mais visível pelo seu desempenho internacional do que propriamente
pelas políticas culturais que a gestão desenvolveu internamente. Prova disso foi o papel estratégico
desempenhado pelo Brasil na promulgação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da
Diversidade das Expressões Culturais em 2005.

Tendo o Programa Cultura Viva despontado como uma potente política de valorização da
diversidade cultural do país, a função da Secretaria de Identidade e da Diversidade Cultural passou
a ser a de implementar políticas de identidade. Atuando internamente em frentes diversas
(diversidade, identidade) e externamente de forma incisiva (UNESCO) a gestão Gil /Juca conseguiu
incluir a diversidade não apenas na agenda política e intelectual do país, mas também agregou
experiência no delineamento de política e modelos de gestão pautados na diversidade cultural do
país.

Nesse breve e circunscrito panorama das políticas e gestões culturais, na esfera federal, de parte
significante da última década no Brasil, podemos perceber como a diversidade cultural assume uma
importância nunca antes alcançada em outros governos, traduzida em políticas e gestões pensadas e
desenvolvidas especificamente para tal. Antes de avançarmos na nossa proposta reflexiva, passemos
para uma abordagem, ainda que insuficiente, no sentido de definir e contrastar, as formulações
teóricas que embalam políticas e gestão culturais para a diversidade cultural humana. O intuito é
reforçar e justificar a nossa escolha por uma perspectiva intercultural para as políticas e gestão
cultural.

Multiculturalismo, pluriculturalismo e interculturalismo.

Os termos multiculturalismo, pluriculturalismo e interculturalismo comungam o fato de se referirem


à diversidade cultural, sendo esse um dos poucos aspectos em comum. Essas três conceituações
muitas vezes são utilizadas como sinônimos, mas apresentam diferentes concepções sobre como
perceber e vivenciar as diferenças culturais entre os seres humanos. Por isso, esses conceitos se
desdobram de maneira muito distintas no delineamento de políticas e práticas de organizações e

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instituição sociais, públicas ou privadas.

Segundo Walsh (2009) tanto o multiculturalismo quanto o pluriculturalismo são categorias


descritivas da diversidade cultural, que buscam explicar esse fenômeno. O multiculturalismo
encontra sua fundamentação conceitual nas bases do Estado liberal, nas noções de direito individual
e na presunção de igualdade. O conceito multiculturalista nasce com o relativismo cultural,
desenvolvido no âmbito da antropologia cultural norte-americana, e é caracterizado por uma
concepção de diversidade marcada por “una separación o segregación entre culturas demarcadas y
cerradas sobre sí mismas, sin aspecto relacional” (WALSH, 2009, p.42). Ainda segundo a autora, as
diferenças entre o pensamento multiculturalista e pluriculturalista são sutis. Enquanto o primeiro
termo refere-se a um conjunto de culturas, que se diferenciam por sua singularidade em relação as
demais, o segundo, além de reconhecer a pluralidade entre as culturas, aponta para as diferenças
internas, inerentes às culturas.

A formulação multicultural nos induz a entender a existência de diversos grupos culturais enquanto
categorias estanques, sem inter ou intra relações, nesse sentido a contribuição do pluriculturalismo à
formulação anterior é considerar a convivência desses grupos culturais entre si que, por existirem
em um mesmo espaço territorial, se relacionam.

O multiculturalismo explica a diversidade cultural como um mosaico de cores que juntas


conformam uma unidade, uma soma, e por isso não se opõe aos argumentos que justificam a ideia
de nação e nacionalidade, ao contrário, agrega as diferenças em um discurso de convivência e
tolerância. A convivência com a diferença é mediada pela tolerância ao outro, o que nos princípios
multiculturalistas garante o pleno desenvolvimento da sociedade e minimiza conflitos. O equívoco
desse pensamento, segundo Walsh (2005a) reside não só em desprezar a dimensão relacional da
diferença, mas em desconsiderar as desigualdades sociais sobre as quais essas relações se
estabelecem, permanecendo inalteradas as estruturas de poder que as sustentam, já que o foco da
questão é posto sobre a problemática da tolerância.

O pluriculturalismo, em contraste com o multiculturalismo, que tem seu uso mais expressivo na
América do Norte, é um conceito mais utilizado na América Latina, o que para Walsh é um “reflejo
de una convivencia histórica entre pueblos indígenas y pueblos afro com blancos-mestizos”
(WALSH, 2005a, p. 45). Ele se baseia no reconhecimento da existência da diversidade, mas esse
reconhecimento é realizado a partir de um prisma central de uma cultura dominante, nacional e

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totalizadora. Nessa lógica, há o reconhecimento da contribuição das culturas indígenas e africanas
ao enriquecimento cultural de uma nação ou país, mas não nas implicações que esse
reconhecimento poderia trazer para repensarmos o próprio país, suas estruturas de poder e suas
instituições. Por isso Walsh (2005a) define a pluriculturalidade como um processo de mão única, no
qual é mais fácil e cômodo aplicar um modelo cultural predominante à maioria da população,
somando a diversidade cultural ao modelo já estabelecido.

Por isso, ambas as teorizações (pluri e multiculturalista) limitam-se a descrever uma realidade, sem
questionar os mecanismos que operam sobre ela, ao passo que a proposta colocada pela
interculturalidade é a de repensar a gestão política da diversidade cultural, sob um prisma
descolonizador:

A interculturalidade deve ser entendida no contexto do pensamento e dos projetos


descoloniais. Ao contrário do multiculturalismo, que foi uma invenção do Estado-nacional
nos EUA para conceder “cultura” enquanto mantém “epistemologia”, interculturalidade nos
Andes é um conceito introduzido por intelectuais indígenas para reivindicar direitos
epistêmicos. A intercultura, na verdade, significa inter-epistemologia, um diálogo intenso
que é o diálogo do futuro entre cosmologia não ocidental (aymara, afros, árabe-islâmicos,
hindi, bambara, etc.) e ocidental (grego, latim, italiano, espanhol, alemão, inglês,
português). Aqui você acha exatamente a razão por que a cosmologia ocidental é “uni-
versal” (em suas diferenças) e imperial enquanto o pensamento e as epistemologias
descoloniais tiveram que ser pluri-versais: aquilo que as línguas e as cosmologias não
ocidentais tinham em comum é terem sido forçadas a lidar com a cosmologia ocidental [...].
(MIGNOLO, 2008a, p. 316)

Assim como Mignolo, Walsh (2005a) defende que o movimento indígena andino tem dado provas
da possibilidade de pensar e atuar com projetos que respondam ao legado colonial, evidenciando
uma compreensão e prática da interculturalidade que se diferencia radicalmente do que vem sendo
realizado pelo Estado com suas políticas de identidade, vistas pela autora mais como políticas de
caráter pluri ou multicultural, com incorporação da diversidade étnica no bojo de uma estrutura
colonial e hegemônica do conhecimento e da cultura.

Tratar a diversidade a partir de uma perspectiva intercultural requer, primeiro, reconhecer a


diferença colonial, e os padrões de poder através dos quais ela opera, no sentido de combatê-la e
superá-la. Enquanto concebermos as políticas e gestões públicas para a diversidade enquanto
políticas especiais, voltados para as identidades e tradições, estaremos tratando sempre da exceção,
ratificando a existência de uma cultura hegemônica colonial e inviabilizando uma cidadania cultural
de fato. Por isso, a perspectiva intercultural combate o universalismo ocidental na medida em que
“desfamiliariza a tradición canónica de las monoculturas del conocimiento, políticas y derecho”

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(SOUSA SANTOS, 2010, p. 40), para que possamos entendê-las como mais uma dentre inúmeras
tradições e epistêmes que corroboram para a diversidade cultural, para que assim seja possível uma
pluriversalidade epistemológica e cultural.

Como bem sinaliza Mignolo, o caráter universal da tradição clássica ocidental apaga as diferenças
em nome de uma expansão imperial. Isso nos ajuda a entender a experiência brasileira em termos de
convivência na diversidade cultural. Fomos constituídos enquanto uma nação pluriversal, em
termos de saberes e culturas, pois os povos nativos, denominados pelo colonizador de índios, assim
como os africanos escravizados, foram forçados a vivenciar culturas alheias as suas (européia), mas
não sucumbiram totalmente à elas. Há cinco séculos exercitamos uma existência simultânea de
cosmovisões das diversas etnias indígenas, africanas e européias, o que não significa uma
convivência equilibrada e harmoniosa, ao contrário, sempre marcada pela violência física e
simbólica, mesmo que em diferentes intensidade.

Porém, a interculturalidade, por si só, nos serve como um valor e, por isso mesmo, precisamos
pensar e desenvolver metodologias para pôr em prática esse código ético de uma convivência na
diversidade. O intelectual português Boaventura de Sousa Santos apresenta uma proposta
metodológica para tratarmos a pluriversalidade epistemológica na contemporaneidade através de
uma perspectiva intercultural, que aproveitaremos para a nossa proposta de reflexão sobre políticas
e gestão públicas de cultura. Passemos então a explicitação dessa metodologia denominada ecologia
de saberes.

Sousa Santos (2010) parte do princípio da infinitude da pluralidade de saberes (conhecimentos)


existentes no mundo e da impossibilidade de um único conhecimento abarcar todos os demais, já
que cada um se fundamenta a partir de uma perspectiva própria. Ao delinear o caráter localizado e
temporal de cada conhecimento, Sousa Santos aponta para outra característica do conhecimento: o
seu aspecto relacional. Um conhecimento passa a ser melhor compreendido se colocado em relação
a outros conhecimentos. Ou seja, a definição dos limites internos e externos de um conhecimento se
dá em relação a outro conhecimento. Porém o autor chama atenção de que essa necessidade de
comparação entre os conhecimento será sempre uma versão comprimida da diversidade
epistemológica do mundo, já que essa é infinita. Logo, esse caráter limitado, deve estar sempre no
horizonte da comparação entre os conhecimentos, sendo salutar no sentido de estabelecer seus
limites e possibilidades.

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Por isso, Sousa Santos defende que a comparação seja realizada através de procedimentos que
busquem as proporções e correspondências “que permitan aproximaciones siempre precarias a lo
desconocido a partir de lo conocido, a lo extraño a partir de lo familiar, a lo ajeno a partir de lo
propio” (2010, p. 69), em um contínuo trabalho de tradução. Porém, esse esforço de tradução
proposto pelo autor precisa ser realizado por todos os saberes que compõem um determinado
círculo de ecologia de saberes, passando essa tradução a ser uma tradução recíproca.

A ecologia dos saberes é uma interessante proposta para pensarmos a diversidade cultural, em um
exercício já realizado por outros pensadores de aproximá-la da noção de biodiversidade, ou seja, em
um complexo sistema de saberes e culturas que se interdependem e trocam fluxos e informações
entre si, estando o equilíbrio sempre como perspectiva. Em uma situação de democracia cultural, o
exercício da cidadania cultural reside em exercermos o direito de expressão, produção, circulação,
consumo, formação e preservação cultural em um largo espectro de escolha.

As diferenças existem e sempre irão existir, pois é inerente a condição humana. A nossa decisão
consiste na forma como trataremos as diferenças, pois disso depende se produziremos diversidade
ou desigualdade (BARROS, 2009). Por isso, para que o projeto de democracia cultural permaneça
em nosso horizonte de possibilidades, precisamos voltar nossa atenção para questões constituintes
das políticas e gestão públicas culturais, sendo uma das principais delas os seus sujeitos. Passemos
então a debater um sujeito primordial das políticas públicas de cultural, busquemos uma definição
do Estado e da gestão que queremos para dar conta de assegurar condições propícias para o
exercício de uma perspectiva intercultural para a diversidade cultural brasileira.

Estado-nacional, políticas de identidade e diversidade cultural.

Se as políticas e gestão públicas culturais brasileira da última década (LACERDA, 2010)


contribuíram para a promoção e proteção da diversidade de manifestações culturais, elas ajudaram a
avançar também no campo político, visto que houve sensível aumento da participação da sociedade
civil nos processos decisórios relativos à cultura2. Exemplo disso são as recorrentes conferências de
cultura, a crescente criação de conselhos de cultura pelo país e outras tantas formas de consulta
2 Nos últimos anos foi produzido um número significativo de pesquisas sobre os processos participativos nas políticas
culturais brasileiras, onde são avaliados quesitos como a qualidade da participação nas diferentes esferas
participativas, a exemplo das conferências (CANEDO, 2008).

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pública. O papel do Estado também passou por reconfigurações, de uma atuação historicamente
autoritária, tivemos uma política cultural mais democrática também no que diz respeito a função
desempenhada por este.

Porém, todas essas questões nas quais a gestão avançou têm esbarrado em uma demanda crucial: a
necessidade de repensarmos o Estado brasileiro. A forma como o Estado foi concebido e como ele
se estruturou no Brasil, ao longo da história, não corresponde às demandas da sociedade
contemporânea, principalmente no que se refere ao campo cultural. O Estado precisa passar por
uma mudança conceitual, deixar de ser um espaço de exercício de poder de uma classe minoritária,
que se utiliza de seus cargos e de sua estrutura para oprimir a população, passando a ser um espaço
de empoderamento das ações e demandas da sociedade, em sua diversidade, potencializando suas
vocações e minimizando suas carências nos diversos segmentos (TURINO, 2009).

A problemática proposta nesse texto consiste em pensarmos políticas e gestão públicas de cultura a
partir da diversidade cultural, e não somente para a diversidade cultural. Levando-se em conta a
diferença colonial que delineia mapas geo-epistêmicos, marcando lugares e sujeitos aptos ou não à
produção de pensamento, o desafio de repensar essas políticas e gestão culturais passa por uma
descolonização epistêmica e pela transformação do Estado em outro de caráter pluriétnico e
pluricultural.

A luta pelo reconhecimento de estados plurinacionais e pluriétnicos já conseguiu avanços em países


latino-americanos como Bolívia e Equador nos últimos anos, realidade diferente da brasileira. Para
Mignolo (2008a) esses avanços são consequências do que a identidade na política pode produzir. A
ideia de identidade na política é uma proposta defendida pelo autor em contraponto às políticas de
identidade, em voga.

Sob o prisma da opção descolonial, o Estado moderno é mono-tópico, fundado e perpetuado sob
uma falsa ideia de neutralidade e objetividade democrática. Mignolo (2008a) esclarece que o estado
moderno desenvolve uma política de identidade sob a tutela de teorias democráticas universais que
torna-se a aparência “natural” do mundo. Ou seja, ser branco, heterossexual e do sexo masculino
são as principais características dessa política de identidade. Identidades opostas são taxadas como
essencialistas e fundamentalistas. “A política identitária dominante não se manifesta como tal, mas
através de conceitos universais abstratos como ciência, filosofia, cristianismo, liberalismo,
marxismo e assim por diante” (MIGNOLO, 2008a, p.289).

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O projeto de opção descolonial propõe que as identidades sejam postas às claras, para que assim
seja possível combater essa política de identidade “invisível ”, que só é notabilizada quando
assume sua versão reparadora ou compensatória, como é o caso das políticas culturais de identidade
voltadas para comunidades tradicionais no Brasil, como já nos referimos, voltadas para grupos
étnicos. Alguns autores reconhecem que a questão da diversidade cultural confunde-se com a
questão das minorias étnicas, porém alertam que a primeira não pode ficar circunscrita a segunda
(RIBEIRO, 2011).

A articulação entre identidade e diversidade durante a Gestão do Ministro Gilberto Gil, proposta a
partir da criação da Secretaria de Identidade e de Diversidade Cultural, bem como a opção pelas
políticas de identidade, denotam um não enfrentamento, por parte do Estado brasileiro, da diferença
colonial. Ou seja, se não colocarmos a identidade na política, seja ela cultural ou não, estaremos
tratando a diversidade como exceção e não como regra, continuaremos aceitando a colonialidade
como padrão de poder (QUIJANO, 2001) e subjugando a nossa capacidade de produção cultural e
epistêmica a esse padrão.

Mignolo argumenta que a identidade na política é crucial para a opção descolonial, uma vez que,
“sem a construção de teorias políticas e a organização de ações políticas fundamentadas em
identidades que foram alocadas […] por discursos imperiais […], pode não ser possível
desnaturalizar a construção racial e imperial da identidade no mundo moderno em uma economia
capitalista.” (2008a, p. 289). O autor defende que o pensamento descolonial é o caminho para a
pluriversalidade como um projeto universal, pensamento este que preconiza um Estado pluri-
nacional, reivindicado por movimentos indígenas e afrodescendentes latino-americanos.

Esse horizonte pluriversal se ergue em detrimento de um ideal universal abstrato que foi e é imposto
para toda a humanidade, na tentativa de anular as diferenças. Sendo assim, a identidade na política
combate a política de identidade, vista pelos autores descoloniais como uma forma de colonialidade
do poder. Por isso, Mignolo postula ser a identidade na política uma maneira de pensar
descolonialmente pois, para ele, “todas as outras formas de pensar e de agir politicamente, que não
sejam descoloniais, significam permanecer no âmbito da razão imperial; ou seja, dentro da política
imperial de identidades.” (2008a, p.290).

A perspectiva democrática de qualquer política pública também precisa passar por uma análise
descolonial, ou ainda como propõe Mignolo, uma hermenêutica-descolonial da noção de

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democracia. A proposta não é negar a contribuição que a civilização ocidental apresentou ao mundo
com a re-introdução do conceito de democracia através do Estado moderno, mas isso não justifica a
imposição, para o resto do mundo, dessa maneira particular de conceber a democracia, pois “cuando
el concepto de democracia se convierte en un concepto para justificar expansiones imperiales deja
ya de ser democrático” (MIGNOLO, 2008b, p.43).

Essa hermenêutica descolonial preconizada por Mignolo pretende distinguir o projeto imperial da
diversidade de projetos descoloniais que coexistem sob a alcunha de democracia. Para o autor,
podemos pensar a democracia em termos de projetos descoloniais enquanto um horizonte único de
justiça e equidade a ser alcançado, sendo diversos os seus caminhos, as suas línguas, variados são
os interesses de conhecimento, as religiões e as subjetividades.

A diferença colonial epistêmica foi demarcada pelo processo de afirmação e expansão imperial
possibilitada pelo projeto de modernidade. Por tanto, uma tomada de consciência desse processo
implica desprender-se dos princípios cognitivos e epistêmicos que construíram e ainda constroem a
diferença colonial. Esse desprendimento, na proposta de Mignolo “implica imaginar formas de
organización social montadas sobre teorías políticas y económicas pensadas a partir de historias,
experiencias, subjetividades y necesidades de países, regiones y gentes que habitan las regiones ex-
colonizadas del globo” (2008b, p.51). O desafio atual posto em termos de política de Estado, na
perspectiva dos estudos descoloniais, seria o de identificar
qué caminos están abiertos al dilema entre la globalización de prácticas y retóricas de
crecimiento que provienen de la fundación histórica del capitalismo, con prácticas y
retóricas que provienen de la adaptación histórica del capitalismo en historias, memorias,
subjetividades, religiones, lenguas, formas de vida ajenas a los procesos que llevaron a la
fundación histórica del capitalismo. (MIGNOLO, 2008b, p.52)

A opção descolonial defendida propõe que pensemos a política, a economia e a cultura a partir de
cosmovisões próprias, desvinculando-se da tradição clássica fundada e disseminada pelos europeus.
Negar um alinhamento político, econômico e cultural com os padrões hegemônicos eurocêntricos
por um lado e assumir uma atitude de desobediência epistêmica por outro, construindo, assim,
nossos próprios pensamentos e práticas, pondo fim a uma tradição de privilégios:

Na América do Sul e no Caribe, sabemos, os privilégios do homem branco são


fundamentados na história e nas memórias de pessoas de ascendência européia que levaram
com eles o peso de certas formas de gestão política, econômica e de educação. Esse
privilégio, se não estiver acabado, está sendo revelado. O caminho para o futuro é e
continuará a ser, a linha epistêmica, ou seja, a oferta do pensamento descolonial como a
opção dada pelas comunidades que foram privadas de suas “almas” e que revelam ao seu
modo de pensar e de saber. O que estamos testemunhando nos Andes hoje já não é um

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“virar à esquerda” dentro das maneiras eurocêntricas de saber, mas um desligar e a abertura
a opções descoloniais. Ou seja, estamos testemunhando um ato de desobediência epistêmica
que afeta o estado e a economia. Isto não é nada menos que o desafio que o governo de Evo
Morales está colocando diante de nós. (MIGNOLO, 2008a, p. 323-324)

Trabalhar a partir da desobediência epistêmica é fundamentar-se nos conhecimentos, subjetividades


e práticas que foram silenciados e rebaixados a categorias ocidentais como barbárie e primitivismo
e reinscrevê-las em um campo epistêmico pluriversal para que possam suscitar intervenções em
projetos democráticos contemporâneos. O reconhecimento dessa diversidade epistêmica nos mostra
que existem outras fontes e valores de conhecimento, outras subjetividades e outras teorias baseadas
no acúmulo de experiência que não se fundamentam nas referências clássicas européias.

As políticas e gestões culturais no Brasil, em especial na esfera pública, vem se desenvolvendo no


sentido de abarcar a cultura em seu sentido ampliado, ou seja, estão atentas ao desafio que a
diversidade cultural representa no mundo contemporâneo globalizado. Nas últimas décadas
avançamos no debate da diversidade cultural superando as propostas de multi e pluriculturalismo,
caminhando para o amadurecimento de uma perspectiva intercultural. Porém a escolha por uma
perspectiva intercultural para as políticas e gestão da diversidade cultural demanda repensarmos o
Estado brasileiro e suas estruturas institucionais, responsáveis por produzirem políticas de
identidade (eurocêntrica, moderna/colonial) que são invisibilizadas por categorias como
universalidade e objetividade.

A diversidade cultural deve ocupar o Estado brasileiro, se fazendo presente através de


representações nas diferentes instâncias de participação e decisão, não apenas no que se refere às
políticas e gestão culturais, mas em todos os setores da vida pública brasileira: saúde, educação,
segurança, etc. As políticas e gestões de Estado no Brasil precisam ser pensadas e realizadas
potencializando as práticas que favorecem o diálogo entre os diferentes, com o Estado
desempenhando de fato o papel de minimizar as desigualdades de condições simbólicas e materiais
em que se estabelecem as relações entre as diversas expressões culturais brasileira.

O esforço intelectual de desnaturalizar as fórmulas e modelos políticos a que somos submetidos, e


reproduzimos, precisa ser somado ao exercício de identificarmos formas e modelos outros de
organização e prática política e de conectá-los numa rede de diálogo permanente, a partir de
negociações democráticas. Esse exercício nos permitirá abordar de forma intercultural as políticas e
a gestão públicas de cultura.

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REFERÊNCIAS

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