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Ritornelo e revolução:

o momento musical em Angelopoulos e Jancsó1

Ritornello and revolution:

the musical moment in Angelopoulos and Jancsó


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Jocimar Dias Jr. (Mestrado – UFF)

Resumo:
Este trabalho busca analisar a presença de "momentos musicais" nos filmes dirigidos por Theo
Angelopoulos e Miklós Jancsó, diante da recorrência da encenação de personagens cantando à
capela -- sozinhos ou em grandes multidões. Em que medida estes realizadores se aproximam ou se
distanciam do cânone do gênero musical? Quais relações podem ser estabelecidas entre o conceito
de “ritornelo” (em Deleuze e Guattari) e estes momentos em que a música cantada adquire maior
relevância narrativa?

Palavras-chave:
Momento musical, ritornelo, distopia, Angelopoulos, Jancsó.

Abstract:
This paper seeks to analyze the presence of “musical moments” in films directed by Theo
Angelopoulos and Miklós Jancsó, once their characters often sing a capella (by themselves or in large
groups) in many scenes. How do these filmmakers approach or take a distance from the musical film
genre? How can we connect Deleuze and Guattari's concept of ritornello and these moments in which
the music acquires more narrative relevance?

Keywords:
Musical moment, ritornello, dystopia, Angelopoulos, Jancsó.

Em uma das cenas mais marcantes de A Viagem dos Comediantes (1975) do cineasta grego

Theo Angelopoulos, Electra (Eva Kotamanidou) presencia um verdadeiro “duelo musical” desenrolar-

se no interior de uma taverna. Neste plano-sequência, ao invés da agressão física, o embate político

entre os partidários da direita monárquica e os representantes da esquerda comunista é travado

musicalmente: de maneira alternada, os grupos entoam canções embebidas de seus fervorosos

discursos ideológicos, à capela. A disputa termina com a derradeira expulsão dos comunistas

desarmados, após um tiro para o alto dos monarquistas. Estes, numa valsa da vitória, passam a

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Trabalho apresentado no XIX Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão: Ensaio
e pensamento no audiovisual (painel), em 21/10/2015.
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Jocimar Dias Jr. é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Federal Fluminense (PPGCOM-UFF), onde desenvolve pesquisa intitulada "Ritornelo e Revolução: O momento
musical nos filmes de Theo Angelopoulos e Miklos Jancsó". E-mail: jocimardiasjr@gmail.com.
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ocupar completamente o espaço antes dividido. Petrificada ao pé da porta, Electra assiste a tudo, tal

qual à um espetáculo musical.

Encenação similar aparece em Salmo Vermelho (1972), dirigido pelo cineasta húngaro Miklós

Jancsó. Perto do final do filme, dezenas de camponeses revoltosos descem uma colina abraçados e

cantando (à capela) sobre o triunfo da luta dos trabalhadores, comemorando as recentes conquistas

da revolução. Aos poucos, soldados desarmados vão se incorporando ao grupo, abraçando-os e

reforçando o coro. Surge música instrumental que aos poucos se revela diegética: a banda dos

militares passou a acompanhá-los. Após o discurso de um dos líderes do movimento, segue-se um

grande plano geral no qual uma multidão de camponeses dança ao som da banda que ainda está a

tocar; os militares voltam a se misturar com o povo e confraternizar. Porém, após o soar de uma

trombeta, estes abandonam a festa, recuperam suas armas e formam um grande círculo ao redor dos

trabalhadores, encurralando-os. A aparente cooperação revela-se uma emboscada, o momento

musical é cruelmente interrompido: o plano termina com os corpos dos camponeses desabando

inertes ao chão, após a enxurrada de tiros desferida covardemente pelo pelotão.

A partir destas duas descrições, que aproximações podem-se estabelecer entre

Angelopoulos e Jancsó, para além da recorrência do plano-sequência? Ambos os cineastas utilizam-

se da música à capela – geralmente canções populares, folclóricas ou de protesto – para encenar as

transformações políticas em suas narrativas históricas. Planos estáticos e de longa duração por

vezes transferem a atenção do que se vê para o que se ouve. Destaca-se o conteúdo das canções

justamente pela recusa ao uso da música de fundo: o resultado são personagens que cantam suas

posições ideológicas, à capela ou acompanhados estritamente de música diegeticamente justificada.

Oscilando entre um registro “realista” e uma encenação intensamente alegórica, tais performances

musicais desdramatizadas interpelam diretamente a plateia, buscam produzir uma inquietação e um

distanciamento crítico por parte do espectador – em termos brechtianos mesmo, uma música que

funciona como comentário à trama e que “deve resistir fortemente à incorporação suave que

geralmente se espera dela” (BRECHT, 1948 In: BRANDT, 1998, p. 245).

A partir do conceito de “momento musical” de Amy Herzog, poderíamos considerar estas

cenas como “momentos musicais”, ou seja, momentos em que a hierarquia entre imagem e som

inverte-se, e a música passa a exercer uma “força dominante” sobre a obra fílmica, chamando

atenção para si mesma e para seu conteúdo (HERZOG, 2010, p. 6). Mais simples e ao mesmo tempo

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mais abrangente que a ideia de “número musical”, este conceito serve-nos para analisar obras que

propõem intertextualidades com o denominado gênero musical sem necessariamente encaixar-se no

cânone do mesmo, ou que inclusive o questionam ou o subvertem. É o caso destes filmes que, por

exemplo, ao negarem o acompanhamento sonoro extradiegético das canções, negam a transição

suave para o número musical – a deixa para a canção (cue-for-a-song), introdução instrumental

apontada como componente sintático importante da estrutura do musical (ALTMAN, 1987).

Outra convenção que estes filmes parecem recusar é a suposta sensação de utopia que

permeia as narrativas dos musicais. Para Richard Dyer, nos musicais americanos, há constante

oposição entre as partes não-musicais (representativas, que se assemelham à “realidade”) e as

partes musicais (não-representativas, utópicas). O entretenimento do espectador é alcançado com

êxito através da “sensação de utopia” dos números musicais, que resolvem os conflitos da narrativa

através de respostas utópicas aos mesmos. Assim, em contraponto à manipulação e à falsidade da

vida cotidiana, temos personagens que cantam seus sentimentos abertamente uns aos outros

(transparência emocional); ao invés de individualismo e fragmentação, todos cantam e dançam juntos

de maneira coreografada (sensação de coletividade, comunidade), entre outros exemplos. Estas

resoluções são escapistas e ilusórias, na medida em que os “males do capitalismo” são remediados

por respostas que se inserem na própria lógica capitalista da sociedade (DYER, 2002).

Acredito que tanto Angelopoulos quanto Jancsó utilizam-se da antecipação da repetição de

certos padrões tão somente para introduzir uma diferença que subverte o que era esperado, através

de mecanismos de distanciamento brechtiano – seja a ausência de acompanhamento sonoro, a

desdramatização, ou mesmo a interrupção brusca da performance. Criam performances musicais

marcadas pela incompletude, pela falha: “imagens musicais falhadas” (“failed musical image”), cujo

desconforto produzido provoca “indeterminação e significados não-fixos” e permite “a geração de

leituras críticas e pensamento criativo” (HERZOG, 2010, p. 4). Assim, a sensação de utopia que

poderia ser experimentada é desestabilizada, questionada e, por fim, substituída por uma sensação

de distopia: convida-se a uma espectatorialidade incômoda e reflexiva, através do olhar crítico e

melancólico dos cineastas sobre a história de seus países (Grécia e Hungria, respectivamente).

Por fim, uma aproximação entre “momento musical” e o conceito de “ritornelo” parece

pertinente. Tanto Angelopoulos quanto Jancsó filmam momentos de instabilidade política, de

questionamento da ideia de nação, de acirramento dos embates ideológicos. É através das canções

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que os personagens agenciam seus territórios, articulam suas ideias, se mobilizam ou se confrontam.

Seriam estes momentos musicais “ritornelos”? O conceito de “ritornelo” é definido em linhas gerais

por Gilles Deleuze e Félix Guattari como “todo conjunto de matérias de expressão que traça um

território, que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais” (2012, p. 139) e no qual

o componente sonoro (música, canto, melodia) possui um papel de destaque nos agenciamentos

territoriais (territorializações, reterritorializações e desterritorializações).

Um exemplo de ritornelo dado pelos autores é a melodia que o pássaro canta enquanto está

construindo seu ninho – mas também é ritornelo todos os agenciamentos que rodeiam este

fenômeno, como buscar os galhos que serão matéria-prima da estrutura que será edificada.

Importante atentar que tais agenciamentos não são estanques nem acontecem de forma gradual e

evolutiva, mas estão em constante articulação e sopreposição uns nos outros:

Não são três momentos sucessivos numa evolução. São três aspectos
numa só e mesma coisa, o Ritornelo. [...] O ritornelo tem os três aspectos, e
os torna simultâneos ou os mistura: ora, ora, ora. Ora o caos é um imenso
buraco negro, e nos esforçamos para fixar nele um ponto frágil como centro.
Ora organizamos em torno do ponto uma "pose" (mais do que uma forma)
calma e estável: o buraco negro tornou-se um em-casa. Ora enxertamos
uma escapada nessa pose, para fora do buraco negro (DELEUZE;
GUATTARI, 2012, p. 123).

Podemos ler vários níveis de agenciamentos sonoro-territoriais sendo encenados ao longo

dos filmes – estes não se restringem às cenas de grandes multidões em protesto, onde o conflito

territorial estaria mais evidente, mas também estão presentes nas sequências mais intimistas. Em A

Viagem dos Comediantes, Crisótemis (Maria Vassiliou) despe-se para o mercador como forma de

pagá-lo por uma garrafa de óleo, cobrindo os seios, a jovem começa a cantar uma leve canção em

busca de reconforto, claramente sem qualquer talento ou vontade de fazê-lo, enquanto o mercador se

masturba de costas para a câmera. O contraste entre o conteúdo da música e a situação de

constrangimento e humilhação vivida pela personagem produz um efeito angustiante. A personagem,

tal qual uma criança no escuro se tranquiliza dos seus medos cantarolando, busca

desesperadamente por “um centro estável e calmo, estabilizador e tranquilizante, em meio ao caos”

e, através das canção, cria “muros sonoros” para si mesma, se pensarmos nos termos de Deleuze e

Guattari (2012., p. 122). Na sequência final de Salmo Vermelho, após a supressão completa da

revolução pelas forças militares, é cantarolando sozinha o hino contra a opressão dos trabalhadores

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que Nagy Mária (Andrea Drahota) encontra forças para empunhar a pistola roubada e desferir os

derradeiros tiros contra o exército: a luta ainda não havia acabado, só esperava para renascer.

Se há algo na “forma” destes filmes que de alguma maneira corrobora o “conteúdo”, então

poderíamos levantar a hipótese de que os momentos musicais seriam falhos, interrompidos, porque

os agenciamentos territoriais estão sendo constantemente perpassados e sobrepostos por outros

agenciamentos, motivos e contrapontos territoriais. Um certo grau de incompletude faz parte dos

ritornelos, dos fluxos contínuos de (des-/re-)territorialização espacial e ideológica que acontecem ao

longo da narrativa, e este aspecto aparece de alguma maneira na encenação. Tentei apresentar aqui

neste pequeno artigo os principais pontos de partida e inquietações desta pesquisa ainda em

andamento, cujo principal desafio será pensar de que maneiras o conceito de ritornelo como

ferramenta teórica ajuda a levantar questões sobre os momentos musicais interrompidos destes

filmes e suas representações distópicas, revisitando a obra de Angelopoulos e Jancsó com ênfase no

uso do som por estes dois cineastas.

Referências

ALTMAN, Rick. The American Film Musical. Indianapolis: Indiana University Press, 1987.

BORDWELL, David. “Angelopoulos, ou A Melancolia”. In: Figuras traçadas na luz: A encenação no


cinema. Campinas: Papirus, 2008.

BRECHT, Bertold (1948). "The Modern Theatre is the Epic Theatre: Notes to the Opera Rise and Fall
of the Town of Mahagonny (1930)" e "A Short Organum for the Theatre". In: BRANDT, George W.
Modern Theories of Drama. Oxford University Press, 1998.

FAINARU, Dan. Theo Angelopoulos: Interviews. Jackson: University of Mississipi Press, 2001.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. "Acerca do ritornelo". In: Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia
2, vol. 4. São Paulo: Editora 34, 2005.

DYER, Richard. "Entertainment and Utopia". In: COHAN, Steven (org.) Hollywood Musicals, The
Film Reader. New York: Routledge, 2002.

HERZOG, Amy. Dreams of Difference, Songs of the Same: The Musical Moment in Film.
Minnesota: University of Minnesota Press, 2010.

HORTON, Andrew. The Films of Theo Angelopoulos: A Cinema of Contemplation. Princeton:


Princeton University Press, 1997.

RUCINSKI, Krzysztof. History as Ritual: Camera Movement and Narrative Structure in Films of
Miklós Jancsó. Dissertação (Mestrado) – Concordia University, Montreal, Quebec, 2004.

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