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[Tradução nossa].
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O compositor Tristão Ventura pensa que o cinzel do tempo, assim como esculpiu
o destino desta frágil e apaixonada Odette, agora convertida numa sólida matrona
dedicada à educação da sua prole, modelou igualmente, e de forma porventura ainda mais
radical, o pensamento estético e as modalidades processuais dos coreógrafos e dos
compositores musicais, porque no que respeita à relação entre episódio iniciático que
observa e o ambiente sonoro que o envolve, mais depressa se revê perante uma associação
aleatória de Cage com Cunningham do que assistindo a uma récita da obra de
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Odette e Siegfried são os nomes dos personagens principais do libreto de o “Lago dos Cisnes”, o popular
bailado coreografado originalmente por Julius Reisinger sobre partitura do compositor Piotr Ilyich
Tchaikovsky, estreado a 4 de maio de 1877 no teatro Bolshoi, em Moscou (N.doA.).
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Tchaikovsky, ainda que na perene versão de Petipa. Mas que dupla de criadores seria
capaz de atingir a autenticidade absoluta do que se desenrola perante os seus sentidos, a
sinceridade espontânea e imanente da relação entre esta aula de natação e a arquitetura da
sua sonoridade envolvente, na total conexão expressiva entre o tecido modulado pelas
aves canoras e a poética naturalista dos patos?
Ei-lo lançado nas suas recorrentes divagações! Mas as suas divagações são uma
espécie de “cair em si”, um movimento recorrente de organização mental, uma imposição
da sua natureza meticulosa e um imperativo da sua inquietude espiritual. Pensar no
processo criativo de obras coreográfico-musicais sempre transporta Ventura, num
primeiro momento, para a indagação de aproximações semânticas entre música e
movimento, o que o leva a questionar que semânticas são essas, se elas existem, o que o
precipita em indagações históricas sobre a produção de sentido na música e na dança, o
que o aproxima de uma semiótica da performance coreográfica e da composição musical,
o que o orienta a uma conjetura cartográfica das relações de dependência expressiva entre
música e movimento, o que o instiga à pesquisa ou identificação de um vocabulário
comum, de uma ementa funcional para a gestão paramétrica do tempo, criando eixos de
análise rítmica, frásica, dinâmica, textural, pesquisando convergências formais e
macroestruturais, uma ementa aromatizada com o tradicional mistério do que nasce
primeiro, a música ou o movimento, abandonando-o no limbo histórico das relações
colaborativas entre grandes compositores e grandes coreógrafos, Tchaikovsky e Petipa,
Stavinsky e Nijinsky ou Balanchine, Cage e Cunningham, Copland e Graham, De Mey e
Anne Teresa, tudo em prol de uma cartilha operacional que resolva esse dilema
composicional, organizando um pensamento produtivo que aproxime da obra um
compositor cego e um coreógrafo surdo.
singularidade auditiva, mas trilhando em cada momento uma reciprocidade propícia à sua
correlação expressiva.
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“...a música deve ser mantida dentro de limites e obrigada a diminuir o seu poder expressivo para permitir
que o elemento com o qual está associada se afirme, não em redundância, mas em colaboração” (Dalcroze,
2011, p. 9) [Tradução nossa].
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“Estou convencido de que a solução correta é considerar música e dança com igual importância, a dança
como veículo de interpretação da música, e, ao mesmo tempo, a música como moldura tonal para os ritmos
e ânimos da dança, ambos entrelaçados numa forma orgânica que não é nem pura coreografia nem pura
música, nem a sua soma, mas a fusão em algo ainda sem nome” (Riegger, 2011, p. 61) [Tradução nossa].
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: “Se os dois criadores desejam honestamente erguer uma verdadeira estrutura polifônica, devem ambos
aprender como, ocasionalmente, se retirar, cada um de sua vez, em favor do outro” (Engel, 2011, p. 84)
[Tradução nossa].
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“Música para dança só é bem sucedida e efetiva quando foi tão habilmente utilizada que você não a
percepciona como um componente ou ingrediente separado” (Limón, 2011, p. 288). [Tradução nossa].
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“Para Laban, não há qualquer relação possível ou pensável entre os dados musicais e o movimento”
(Louppe, 2012, p. 314)
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“…a medida dos músicos não corresponde à dos bailarinos, porque os músicos contam segundo a linha
musical e os bailarinos contam segundo o ritmo do movimento” (Louppe, 2012, p. 314)
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“A música podia ser vista como analogia à moldura de um quadro: deveria realçar a pintura mas não a
prejudicar. O compositor Lehman Engel foi mais longe na sua declaração: o bailarino não deveria
considerar a música na sua criação mais do que o dramaturgo se preocupar com a cor ou a textura do cenário
ou outros adereços de cena” (Teck, 2011, pp. 43-44)
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“Coreografia, tal como eu a concebo, deve realizar a sua própria forma, independente da forma musical,
embora submetida à unidade de medida da música. A sua construção será baseada em qualquer
correspondência que o coreógrafo possa inventar, mas não deverá duplicar a linha e o tempo da música.
Não imagino que alguém possa ser coreógrafo sem ser, primeiro, músico” (Joseph, 2011, p. 1).
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“Martha criou a maior parte da coreografia antes de eu ver fosse o que fosse. Interpretou-a, sozinha ou
com suas bailarinas para fixar as contagens. Eu deveria entender o temperamento geral, escrever as
contagens, notar as frases, ou as acentuações ou os climaxes ou os momentos em que deveria haver silêncio”
(Engel, 2011, p. 80)
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In “Making Music for Modern Dance” (Teck, 2011, pp. 175-176)
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Para mais informação sobre “forma elástica”, consultar “Relatins Music and Concert Dance: An Idea for
Elastic Form”, (Teck, 2011, pp. 87-90).
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Estas perguntas integram um questionário recomendado a compositores musicais interessados em
colaboração com coreógrafos, elaborado na sequência das conclusões do estudo “Composer and
Choreographer: a study of collaborative compositional process “ (Kim, 2006, pp. 106-107)”.
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dos mais novos, admoestações moles ou agastadas dos seu pais, um cafarnaum digno de
vendilhões do templo que oblitera por completo a suave concertação inicial que ditara o
rumo das suas especulações. É certo que os patinhos continuam o seu bailado, ora se
aproximando ora se afastando da berma do lago (agora rodeado por uma plateia numerosa
e pouco reverente), resistindo ainda à perseverança pedagógica da sua tutora, e que esta
insiste na sua repetitiva estratégia de breve imersão seguida de um frenesim instantâneo.
Mas a trilha sonora ganha uma evidência de aleatoriedade, cindindo a convergência
anterior numa duplicidade discursiva angulosa e numa áspera oposição expressiva.
É nesse momento que John Cage e Merce Cunningham invadem a arena mental
do compositor Tristão Ventura. O movimento dos patos e o banzé das famílias são
percebidos em simultâneo, mas permanecem acontecimentos autônomos. Foi essa
disrupção que revolucionou o panorama colaborativo à época, e que desperta agora
Ventura para novos pensamentos, desafiando o impasse dos formalismos operacionais
que o incomodavam momentos atrás. No encontro de Cunningham com Cage, a
interpretação da imprevisibilidade como espelho da ordem dos acontecimentos naturais,
cria uma unidade objetiva nas preocupações e interesses da sua experiência de
colaboração. Cunningham tenta afastar-se de relações de causa-efeito para enfatizar a
continuidade espaço-temporal, tal como Cage procurava que a sucessão de eventos
sônicos ao longo do tempo refletisse, de algum modo, a aleatoriedade sequencial dos
acontecimentos na realidade mundana. Recorrer ao acaso (determinando sistemas de
escolha como lançar moeda ao ar, ou adotar as imperfeições de uma folha de papel para
ordenar acontecimentos) tornou-se uma ferramenta mediadora da colaboração entre os
dois, sem que a independência discursiva fosse de algum modo comprometida. Nessa
determinação obstinada e radical, Cage e Cunningham ocupam o espaço do movimento
e do som num plano que continuamente se dobra sobre si próprio e que em tal dobra forja
a co-presença da dança e da música no tempo. Respondem assim à tirania da dependência
entre desígnios coreográficos e rigores musicais com um clamor libertário, o que acalma
um pouco Tristão Ventura, que olha por fim o lago dos patos com uma empatia solidária,
irmanando-se com a turba e torcendo pelo desfecho do libreto, agora que os patinhos se
afeitam cada vez mais temerariamente aos exuberantes apelos da mãe pata. Mais do que
a qualidade dos resultados artísticos da dupla americana, o compositor sente florescer em
si a liberdade do seu pensamento, a multiplicidade da vida que envolve a arte, que a
trespassa, que lança sobre a colaboração um desafio vibrante, que a interroga e que nunca
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lhe concede uma operacionalidade fechada, que nunca se tipifica, que nunca lhe dá
descanso.