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CADERNO

Propostas de reflexão e práticas de ensino para professores que atuam com as várias linguagens da arte na escola

INTEGRAÇÃO MUSEU-ESCOLA
Um exemplo na Amazônia
INCLUSÃO
Estudantes com
deficiência no museu

AUDIOVISUAL
Olhar crítico e
desafio expressivo

ARTES VISUAIS
Leitura de imagens
e apropriações

DANÇA
Sociabilização
e diversidade

TEATRO
Mediações com
o contemporâneo

MÚSICA
Currículo, diálogo
e formação

ARTE POPULAR
Aproximar o Brasil
da sala de aula
Sumário

CONSELHO CURADOR

5 Editorial 50 Jogos de cena Presidente: Holger Rust


Vice-Presidente: Carsten Isensee
Conselheiros: Décio Carbonari de Almeida, André
Por Eduardo de Azevedo Barros TEATRO NA ESCOLA: CENA Senador, Antonio Roberto Cortes, Michael Lehmann,
CONTEMPORÂNEA. O professor Antonio Megale e Bernd Schmidt-Liermann

6 Apresentação e seu papel de mediador entre a arte CONSELHO FISCAL


Presidente: Osmar Carfi
Por Rosa Iavelberg contemporânea e os alunos. Por Dirce Conselheiros: Luis Fabiano Alves Penteado e
Claudio Herbert Naumann
Helena Benevides de Carvalho
DIRETORIA
8 Introdução Superintendente: Eduardo de Azevedo Barros

ARTE É EDUCAÇÃO. A criança como 60 Expressão corporal Diretora de Administração e


Relações Institucionais: Keli Smaniotti
Diretor de Finanças: Mauro Lucchini
fruidora e produtora de obras de arte DANÇA E A QUESTÃO DO CORPO Diretor de Investimentos: Luiz Paulo Brasizza
Por Cesare de Florio La Rocca NA ESCOLA. A contribuição docente
PROJETO
durante a transformação da infância em Aprendendo com Arte: Claudia Frederico, Carlos
Augusto Bohone, Liliane Petris e Mario Offenburger
14 Brasileiríssima adolescência. Por Ana Maria Rodriguez
ARTE POPULAR BRASILEIRA Costas e Annamaria Noêmia Xavier
NA SALA DE AULA. A arte popular
vista de um ângulo mais significativo. 70 Dança contemporânea
Por Ana Carina Marques PLURALIDADE CULTURAL E A Presidente: Edimilson Cardial
Diretoria: Carolina Martinez
DANÇA NA ESCOLA. O ensino diante Marcio Cardial
22 Imagem em movimento das produções culturais contemporâneas. Miriam Cordeiro
Rita Martinez
ARTES AUDIOVISUAIS E EDUCAÇÃO. Por Karenine de Oliveira Porpino Rubem Barros

A produção audiovisual desafia os alunos. CADERNO ARTE + EDUCAÇÂO


Por Laura Maria Coutinho 78 Educação musical Diretor editorial: Rubem Barros
Consultoria editorial e coordenação: Rosa Iavelberg
MÚSICA NA ESCOLA: OS SABERES Edição: Camila Ploennes
Copidesque: Eugênio Vinci de Moraes
© Reprodução

DO PROFESSOR. O equilíbrio entre Projeto gráfico: Casa Paulistana


Diagramação: Cleiton Sá
propostas docentes e o que surge dos Pesquisa iconográfica: Ana Teixeira
Capa: Casa Paulistana
alunos como propulsor de novos saberes. Colaboradores: Amanda Pinto da Fonseca Tojal,
Ana Carina Marques, Analice Dutra Pillar, Ana Maria
Por Marili Macruz e Pedro Paulo Salles Rodriguez Costas, Annamaria Noêmia Xavier, Cesare de
Florio La Rocca, Dirce Helena Benevides de Carvalho,
Karenine de Oliveira Porpino, Laura Maria Coutinho, Luís
88 Métodos musicais Ricardo Silva Queiroz, Marili Macruz, Moema Martins
Rebouças, Pedro Paulo Salles, Vânia Leal Machado
EDUCAÇÃO MUSICAL, CULTURA (texto); Luiz Roberto Malta e Maria Stella Vali (revisão)
Imagem de capa: Getty Images
E CURRÍCULO. Os objetivos, conteúdos Processamento de imagem: Paulo Cesar Salgado
Produção Gráfica: Sidney Luiz dos Santos
e metodologias para a formação escolar PCP: Isabela Elias

na área. Por Luís Ricardo Silva Queiroz PUBLICIDADE


Gerente: Daisy Fernandes

MARKETING
96 Arte e inclusão Diretora: Carolina Martinez
ACESSIBILIDADE CULTURAL: EVENTOS
Coordenadora: Priscilla Rodrigues
A INCLUSÃO DE PÚBLICOS
ESCOLARES COM DEFICIÊNCIAS. OPERAÇÕES
Diretora: Miriam Cordeiro
30 Videoarte A inclusão contribui para ampliar Gerente de Assinaturas: Beatriz Zagoto
Eventos Assinaturas: Lúcia Sousa
LEITURA DA IMAGEM NA SALA DE instrumentos e métodos de aprendizagem.
Caderno Arte + educação é uma publicação da
AULA. Um meio de problematizar os Por Amanda Pinto da Fonseca Tojal Fundação Volkswagen em parceria com a
Editora Segmento. Esta publicação não se
efeitos de sentido gerados por linguagens responsabiliza por ideias e conceitos emitidos em
artigos ou matérias assinadas, que expressam apenas
visuais e sonoras. Por Analice Dutra Pillar 104 Interação museu-escola o pensamento dos autores, não representando
necessariamente a opinião da revista.
EDUCAÇÃO PARA ARTE NA
40 Investigações AMAZÔNIA. O Arte Pará figura EDITORA SEGMENTO
o
Rua Cunha Gago, 412 – 1 andar
APROPRIAÇÃO DE IMAGENS EM entre os projetos mais sólidos e CEP: 05421-001 – São Paulo (SP)

SALA PELO PROFESSOR. A abordagem contínuos no cenário nacional integrando CENTRAL DE ATENDIMENTO AO LEITOR
a a
De 2 a 6 feira, das 8h30 às 18h
semiótica e a significação da obra. saberes e instituições de ensino. Tel.: (11) 3039-5666 / Fax: (11) 3039-5643
e-mail: atendimento@editorasegmento.com.br
Por Moema Martins Rebouças Por Vânia Leal Machado acesse: www.editorasegmento.com.br
Editorial
© Reprodução
4•5

Aprender com arte


Caros Educadores,

É com imensa alegria e satisfação que apresentamos o Caderno Arte +


Educação, elaborado a partir de uma parceria entre a Fundação Volkswagen
e a Editora Segmento.
Este material foi produzido por especialistas na interação entre arte e
educação, a fim de reunir uma ampla abordagem das temáticas que devem
ser trabalhadas em sala de aula, como parte do material de formação do
projeto Aprendendo com Arte, da Fundação Volkswagen.
Tal projeto oferece formação continuada a educadores das redes públi-
cas de ensino que trabalham com Arte, nos anos finais do ensino fundamen-
tal, e que acreditam na Educação como chave para transformar o mundo.
Em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), o
projeto Aprendendo com Arte é orientado pela proposta triangular, que asso-
cia o fazer, a leitura e sua contextualização. Tem como objetivo proporcio-
nar aos professores de Arte e aos alunos de escolas públicas a ampliação da aprendizagem e a oportunidade
de aprofundarem seus conhecimentos em Arte como instrumentos de inserção social.
Estamos sempre inovando e buscando novas formas de educar. Desde 1979, a Fundação Volkswagen
investe em projetos de educação e desenvolvimento social, promovendo e realizando ações que contribuam
para a melhoria da qualidade da educação pública em nosso país e que fomentem o desenvolvimento so-
cial de comunidades de baixa renda. Suas atividades são realizadas em parceria com os setores públicos,
privados e a sociedade civil organizada (organizações não governamentais – ONGs) para, conjuntamente,
implementar projetos que influenciem políticas públicas e que sejam sustentáveis a longo prazo.
O projeto Aprendendo com Arte acontece da mesma forma, em parceria com o Instituto Arte na Escola
e com as secretarias municipais ou estaduais de Educação e Cultura das localidades onde é realizado. Por
meio de um acordo de cooperação técnica com estados e municípios, a Fundação Volkswagen oferece
formação presencial e a distância durante um ano. Nesse período, os educadores aprendem a fazer um
mapeamento de lugares e equipamentos culturais disponíveis, resultando na produção do material regio-
nal para ser usado no seu processo de formação e na construção de seus próprios percursos e trajetórias.
Contudo, queremos ir mais longe e atender mais. Por isso, outra modalidade do projeto é a formação
totalmente a distância, voltada aos professores de Arte interessados em participar, mas que não lecionam nas
cidades onde o projeto acontece. A participação e a inscrição são feitas pela Plataforma do Letramento (www.
plataformadoletramento.org.br) com material exclusivo e moderação com profissionais especializados.
Como premissa e compromisso com a produção do conhecimento oriunda do investimento social pri-
vado como bem público, disponibilizamos todos os materiais de formação desse e dos demais projetos
educacionais da Fundação Volkswagen para acesso livre e gratuito.
É importante destacar que este Caderno Arte + Educação também está disponível on-line para leitura e
download na Plataforma do Letramento. Acessem, leiam, usem e compartilhem.
Acreditamos e investimos nos educadores porque trabalham para garantir um direito que a todos per-
tence: o de aprender.
Boa leitura!
Dr. Eduardo de Azevedo Barros
Superintendente da Fundação Volkswagen e diretor
de Assuntos Jurídicos da Volkswagen do Brasil

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Apresentação por Rosa Iavelberg

Prezado leitor,

Esta revista é um convite à leitura de artigos escritos


por profissionais habilitados e atuantes na área de arte
na educação, radicados em diferentes regiões do Brasil.
Com a publicação buscamos aperfeiçoar a qualidade do
ensino da área nas escolas brasileiras e expandir o acesso
à arte em sua diversidade de culturas, requisito impres-

© Maurizio Cattelan, Sem título, 1997. Reprodução


cindível à equidade social.
Apoiados em experiências e reflexões, na legislação
e nos documentos oficiais, reunimos textos sobre as di-
ferentes linguagens da arte contempladas nas Diretrizes
Curriculares Nacionais e nos Parâmetros Curriculares
Nacionais, com o propósito de orientar práticas com fun-
damentos para professores, gestores e demais agentes da Instalação do artista italiano Maurizio Cattelan.
educação escolar do 6o ao 9o ano do ensino fundamental. A arte é essencial na formação dos estudantes,
porque alia o conhecimento estético à postura ética
A arte é essencial na formação dos alunos, pois pode
aliar o conhecimento estético à postura ética, pela própria
natureza intrínseca aos objetos artísticos, quando feitos
com liberdade, sensibilidade e consciência crítica. realidade da arte no currículo, seja por terem experiência
Além disso, Arte é uma área de conhecimento cujos na interação com escolas em instituições culturais, seja
produtos, quando socializados junto à comunidade, a por trabalharem em pesquisas orientadas à educação es-
aproximam da escola, por tratar de temas culturais consti- colar na área, ou ainda por atuarem ou já terem atuado
tutivos da formação de seus membros ou pelo fato de am- diretamente em sala de aula.
pliar seu repertório cultural, criando espaços de abertura Cada texto foi concebido como alimento para as re-
à participação, na escola, dos familiares, agentes sociais flexões e práticas dos professores, com foco na expansão
e moradores do entorno. Desse modo, Arte na educação do repertório didático e do conhecimento de diferentes
escolar é um caminho aberto à participação cultural e so- modalidades de transposição didática em arte. Na intro-
cial dos alunos e daqueles que usufruem das experiências dução Arte é Educação, Cesare de Florio La Rocca expli-
artísticas promovidas pelas escolas, ao passo que convida cita o valor inestimável da área na formação dos apren-
a comunidade ao diálogo com as questões universais tan- dizes para que alcancem níveis elevados e dignos no seu
gidas pela arte e com os símbolos artísticos como forma existir, reconhecidos como direito pela sociedade.
de pertencimento a cada região. Em Acessibilidade cultural: inclusão de públicos escolares
É por termos consciência do papel único e funda- com deficiências em museus de arte, Amanda Pinto da Fon-
mental da arte na educação que apresentamos aos leito- seca Tojal ressalta que não basta à escola apenas abrir-se
res artigos que articulam teoria e prática. Eles discorrem para a inclusão de alunos com necessidades educacionais
sobre o trabalho de atendimento a públicos escolares especiais nos âmbitos social, cultural, de infraestrutura
com deficiências em museus; propostas de arte audiovi- física ou de aprendizagem. Segundo a autora, além dessa
sual nas escolas; procedimentos de leitura de imagens da abertura, uma educação inclusiva de qualidade requer a
arte por professores na sala de aula e educadores de mu- adaptação de conteúdos da área de arte, realização de pes-
seu; aprendizagem escolar da arte popular brasileira, da quisas e produção de recursos de apoio multissensoriais
música, do teatro e da dança. Seus autores conhecem a e tecnologias específicas para a participação dos alunos.
6•7

Ana Carina Marques, em Arte Popular Brasileira na Sob o ponto de vista de que a música deve ser en-
Sala de Aula, discorre sobre a importância da inserção da sinada e aprendida na escola por ser uma linguagem
arte popular brasileira no currículo escolar, com base em componente do patrimônio cultural da humanidade,
uma visão de História da Arte que inclui as modalidades Luís Ricardo Silva Queiroz, no artigo Educação musical,
de produção artística que seguem cânones próprios liga- cultura e currículo, lista ações que podem ser desenvolvi-
dos aos saberes populares. das pelos professores em sala. Entre elas, práticas cole-
Nessa perspectiva multicultural, Karenine de Oli- tivas e individuais via apreciação, interpretação e cria-
veira Porpino, em Pluralidade cultural e a dança na escola, ção; experimentação de repertórios musicais variados,
situa a dança no contemporâneo como possibilidade de incluindo o da cidade, do estado, da região e do país,
trânsito e troca de repertório. Para a autora, a dança na e expressões musicais de diferentes culturas. Já Marili
escola segue o mesmo caminho da dança contemporâ- Macruz e Pedro Paulo Salles escrevem a quatro mãos
nea: engloba muitas influências estéticas que permitem o texto Música na escola: os saberes do professor, no qual
ao aluno criar, relacionar-se com o mundo e participar desenvolvem a ideia de conexão entre repertórios mu-
de uma experiência com sentido. Já no artigo Dança e sicais e práticas na linguagem, considerando a escuta,
a questão do corpo na escola, Ana Maria Rodrigues Cos- a pesquisa de sons, a notação musical, a construção de
tas e Annamaria Noêmia Xavier valorizam a atitude de instrumentos, com destaque à apreciação musical na
observação do corpo e do movimento dos alunos com o escola e fora dela, assim como a criação e a improvisa-
propósito de lhes oferecer repertório de ações corporais, ção na linguagem como parte da aprendizagem.
formas de movimento, interações, jogos e danças, partin- Finaliza a edição o artigo Contexto sociocultural nas
do do que os estudantes dominam de antemão. interações museu, instituição cultural e escola. Nele, a auto-
Em Teatro na escola: cena contemporânea, Dirce Hele- ra Vânia Leal Machado reitera a importância do trabalho
na Benevides de Carvalho explicita fundamentos do tea- do educador que recebe, em espaços expositivos, públicos
tro contemporâneo, no qual os elementos cênicos (como escolares e seus professores. Com base em suportes teó-
texto, personagens e cenário) interagem sem hierarquia, ricos da didática contemporânea e tendo em vista que a
compondo o discurso da obra. Ao apresentar os conceitos, arte nos faz pensar em constante estado de atenção, ela
ela propõe jogos teatrais para o trabalho em sala. afirma que é preciso considerar o contexto educativo e
No contexto da arte contemporânea, Analice Dutra social dos visitantes, promovendo interações singulares
Pillar analisa imagens e produções audiovisuais em Lei- com as obras a cada encontro.
tura da Imagem na Sala de Aula. E com o foco em habili- Frente à riqueza de conteúdos dos textos da publica-
tar o professor na compreensão do processo de expressão ção, esperamos satisfazer as necessidades e os interesses
com imagens em movimento, Laura Maria Coutinho es- dos profissionais que atuam nas escolas e instigá-los a
creve o texto Artes visuais na produção dos alunos na sala advogar, como nós, a causa da arte no currículo escolar,
de aula. Para a autora, apesar de as escolas costumarem ocupando o lugar de área de conhecimento muito impor-
ter pouco domínio sobre essa linguagem, é fundamental tante entre as demais.
tanto a apropriação como o uso consciente e inteligente
das tecnologias da comunicação contemporânea pelos es-
tudantes. Já Moema Martins Rebouças, ao escrever Apro- Rosa Iavelberg é doutora em Artes pela Escola de Comunicações e
priação de imagens em sala pelo professor, dá pistas para que Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Atualmente é pro-
o docente possa propor a seus alunos investigações com fessora e pesquisadora da graduação e da pós-graduação do curso de
imagens a partir de outras já selecionadas. Pedagogia da Faculdade de Educação da USP (Feusp).

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Introdução
8•9

Arte é
educação
A criança, em contato com as linguagens artísticas,
experimenta as possibilidades de ser fruidora e de se
tornar produtora de obras de arte
por Cesare de Florio La Rocca

A
Arte, em todas as suas manifestações e lingua-
Escultura da artista
americana Tip gens, é a mais atraente, agradável e instigante
Toland. A arte não maneira de transformar o ser humano. Sem um
é a reprodução da
realidade. Criação, processo gradativo, contínuo e permanente de transfor-
imaginação e mação, o homem não atinge os níveis mais altos do seu
ousadia são os
seus ingredientes
existir. A Arte é uma construção artificial, não é uma
fundamentais, força inata e sim uma busca incessante e inalcançável
qualquer que seja a da perfeição. É como o desejo: quanto mais se realiza,
linguagem utilizada
mais se afasta. Por isso podemos afirmar, quase como
um paradoxo, que se a Arte é prazer, realização, ela tam-
bém é busca incessante do belo e do perfeito. É possível
entender isso olhando para a experiência revolucionária
de Michelangelo: diante da obra do Moisés ele grita: “por
que não falas?”. E já na sua velhice, esculpindo sua tercei-
ra Pietà depois da primeira do Vaticano e da segunda em
Florença, essa, chamada de Pietà Rondanini, apresenta ao
visitante em Milão toda a carga de tormento e de êxtase
e, sobretudo, de busca incessante no bloco de mármore
© Tip Toland, Oração Diária, 2010. Reprodução

de uma forma que não conseguiu concretizar.


A mesma vivência, com as devidas diferenças, aconte-
ce na experiência artística da criança. Colocada em con-
tato com o universo das linguagens artísticas, ela experi-
menta e experiencia duas grandes explosões: a primeira
capaz de torná-la fruidora da obra de arte e a segunda que
a transforma em produtora de obra de arte.

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Introdução

Educação é, portanto, um processo de trans-


formação do ser humano. O conhecimento
também é uma construção artificial e se
realiza ao longo de toda a vida, se constitui
na atividade mais caracteristicamente hu-
mana, no processo educativo. A relação dia-
lógica entre educador e educando é a mais
importante e fundamental: Educação não é
monólogo de quem sabe mais, é diálogo per-
manente e contínuo entre duas pessoas das
quais uma já construiu seu conhecimento e
a outra está em franco processo de constru-
ção. O diálogo gera confiança e o educando
adquire a capacidade de elaborar conceitos,
ideias e conhecimentos.
Quando a Educação acontece nesse pata-
mar e com esses instrumentos, então o fato
educativo gera também prazer no educando.
Essa sensação de prazer vem da descoberta de
que o desconhecido pode se tornar conheci-
do; o oculto pode se tornar visível; o incom-
preensível torna-se transparente.
Um processo educativo que não seja ca-
paz de garantir prazer ao educando e ao edu-
© Reprodução

cador não se caracteriza como Educação e


Acreditamos numa criança que demonstra sua vontade de sim como depósito de noções.
crescer, movida e animada pela riqueza da “curiosidade”
Minha trajetória arte-educativa me ensi-
nou que a missão é delicadíssima e, portanto,
o que é preciso fazer? Precisamos fazê-lo com
No processo de criação e de realização da obra de arte, arte. Fazer com arte é fazer bem feito, é superar expectati-
a criança transforma e se transforma, cria e imagina até vas, é superar o tédio, gerar excitação. Todas as portas da
aquilo que não existe no mundo real. Se não entender- percepção têm de estar abertas: somente assim é possível
mos tudo isso, como poderemos entender, introjetar e captar a criança competente (il bambino competente), ou seja,
fruir, por exemplo, da arte de Picasso? Como poderíamos aquela criança que possui de maneira plena seus sentidos,
entender, introjetar e fruir, por exemplo, da música do- em outras palavras, o desejo de conhecimento e da vida.
decafônica? Ou das artes indígena ou africana? Qualquer lugar em que se faça arteducação é um lugar
A Arte não é a reprodução da realidade. Caso contrá- onde a mesa está posta e há sempre “pão e vinho sobre a
rio, a mais perfeita obra de arte seria a fotografia. Por isso, mesa” para os “viandantes da vida”, como dizem os versos
criação, imaginação e ousadia são os seus ingredientes fun- de Georg Trakl citados por Heidegger em A caminho da
damentais, qualquer que seja a linguagem utilizada. A Arte linguagem (1959). A imagem da mesa sempre rica de pão
é uma necessidade básica do ser humano e a história da hu- e vinho é aquela da arteducação, mesa ao redor da qual
manidade nos ensina quanto essa afirmação é verdadeira.

Arteducação* sem receitas


A Educação é o processo que estimula, facilita e realiza *A pedido do autor, a expressão “arte-educação”, neste artigo, é gra-
a transformação do ser humano. No processo educativo fada “arteducação”, sem o hífen. Para ele, Arte é a própria Educação
a criança não é “uma tábua rasa”. Ela é portadora de cul- e a aglutinação das palavras significa a superação do conceito instru-
tura, de conhecimentos, de percepções, e de sensações. A mental da Arte em relação à Educação.
10 • 11

Um processo educativo que não seja capaz de garantir


prazer ao educando e ao educador não se caracteriza como
Educação e sim como depósito de noções

se conversa, cria-se o conhecimento e aprendizagem, no a necessidade de abrir novos espaços onde cada criança
compartilhar de sentimentos. A energia, indispensável a possa ser construtora de novos direitos. Uma teoria que
esse processo, por sua natureza é volátil. Muito mais que nos permite fazer uma afirmação que não é apenas peda-
o líquido, o fluido se recusa à solidez das coisas que se gógica, mas também política e cultural: a importância de
desmancham no ar. Por isso arte! Arteducação, portanto, respeitar a subjetividade de quem aprende.
é sentimento, mas é também imaginação, estética pura, Assim, a aprendizagem não se dá através da transmis-
sensações e sentidos. são ou da pura reprodução, mas se apresenta como um
Isto é Educação. Isto é Arteducação. processo de construção dos porquês, dos significados, do
sentido dos outros e das coisas, dos acontecimentos, da
A criança competente realidade. Em síntese, da vida.
Relembrando educadores, artistas, processos, ideias, Malaguzzi dizia com grande brilhantismo: “Nunca en-
ações e sobretudo as crianças que fazem arteducação, um sinar à criança aquilo que ela pode aprender sozinha”. A
conceito se apresenta como recorrente – o conceito elabo- grande verdade é que não se vive sem teorias e, portanto,
rado pelos educadores das escolas municipais infantis de essas são as teorias de que a ação político-pedagógica está
Reggio Emilia, na Itália, definidas como “as mais belas esco- impregnada. É aquilo que deve ser.
las do mundo”. O conceito da “criança competente”. No processo de arteducação é fácil perceber a presença
Muitas são as representações e as imagens que se têm da dessas teorias: cada criação, cada produção, cada manifes-
criança. Pode-se pensá-la segundo a psicanálise filtrada pela tação da imaginação constituem a indiscutível explosão da
academia norte-americana ou a partir das várias tendências competência. Arteducação é o locus intelectual, pedagógi-
da sociologia ou da psicologia. São teorias muito diferentes co, político e artístico onde a competência infantil e juvenil
entre si, mas a maioria com um ponto em comum: a iden- se manifesta quase com arrogância e prepotência. Na ma-
tificação determinística da criança como um sujeito frágil, nifestação artística, a criança ao mesmo tempo aprende e
muito mais portador de necessidades do que de direitos. ensina, assimila e comunica.
É indispensável ter a ideia de uma criança forte, rica e
poderosa desde seu nascimento. Nesse sentido, assumimos
decididamente os valores, as significações e as abordagens A arte não é um instrumento para
do Construtivismo e do Socioconstrutivismo. Acreditamos educar, a Arte é a própria Educação

numa criança que demonstra sua vontade de crescer, movida


e animada pela riqueza da “curiosidade” que leva permanen-
temente a buscar os porquês de todas as coisas. Uma criança
que possui de maneira plena seus sentidos, ou seja, o desejo
do conhecimento, o desejo da vida. Uma criança competen-
te! Competente na construção de si própria, por se construir
enquanto constrói o mundo e pelo mundo é construída.
Reconhecer a criança como portadora de direitos não
tem como consequência apenas o reconhecimento dos di-
reitos de cada criança, mas sobretudo a criação de um es-
© Ana Teixeira. Reprodução

tado de acolhimento no contexto mais complexo em que


ela vive e continuará vivendo. A consequência dessa teoria
é, de um lado, a capacidade de acolher a subjetividade, a
unicidade e a originalidade de cada criança e, do outro,

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Introdução

© Mila Petrillo. Reprodução


No Projeto Axé, uma característica está sempre presente: sua independência e sua
proximidade com a transgressão, ou seja, com o rompimento de padrões e paradigmas

Superar a visão instrumental da arte no processo edu- te espiritual, através da qual o ser humano tem a possibi-
cativo não é por um simples desejo de “originalidade”, e lidade concreta de analisar as experiências, a qualidade e
sim porque no dia a dia são cada vez mais claros o concei- o significado da própria vida.
to e a práxis de que arte é Educação. Certa vez o escritor Italo Calvino disse que, ao ver pes-
Um adolescente famoso por assaltar ônibus no subúr- soas que sofrem, sua vida passa a ser povoada por todas es-
bio hoje toca com encantamento e visível prazer o saxofone sas pessoas. As crianças com as quais trabalhamos estarão
ou o teclado do conjunto de câmara do Axé; a menina caída conosco para todo o sempre. Todos os dias vemos a face da
nas redes de exploradores hoje se arrisca a dançar o mais dor, como ela age e como dói. Sob o signo da arteducação.
emocionante pas-de-deux; o jovem que toca a percussão
pesquisa, atento, os sons que extrai de seu instrumento; a Anarquistas da imaginação
moça que cria modelos encantados e encantadores se ex- É claro que, escrevendo este texto, a referência cons-
pressa na aproximação e na fusão de formas e cores. tante é o Projeto Axé. Tendo a arteducação como eixo de
Todo menino que sob o signo da arteducação tece a tela suas ações, o Axé vem gradativamente refinando e consoli-
de sua própria existência no tear da vida, com fios desfiados dando sua proposta e práxis pedagógica, sempre tomando
de sua razão e de sua emoção, revela que a ética e a estética, em consideração e respeitando as características pessoais e
a arte e a educação são filhas legítimas de um único e fan- socioculturais de seus educandos. Para tanto, desenvolve-
tástico princípio que todos os grandes artistas de todos os -se na instituição um processo permanente de reflexão, de
tempos vivenciaram e nele acreditaram: toda pessoa huma- observação da realidade e de formação contínua de seus
na é artista e somente a beleza salvará o mundo. educadores sob o signo da Pedagogia do Desejo, buscando
Paulo Freire inspirou a metodologia do Projeto Axé. A dessa forma participar da discussão da educação no país,
Pedagogia do Desejo elaborada no interior do Axé é uma fi- contribuindo com ideias e experiências para esse debate.
losofia de autossustentação e não de filantropia, envolve o A Arte e a Educação são dois campos específicos que
constante cultivo da ética através da estética, para devolver a podem ou não ser conciliáveis, dependendo da ótica que
dignidade a essas crianças e instrumentalizá-las com as fer- os articulem. No Axé, alguns desses pontos de articula-
ramentas necessárias para realizar mudanças positivas em ção, que aprendemos na prática cotidiana pedagógica,
suas vidas. Ao invés de pressupor suas necessidades, coloca- são a autonomia e a transgressão, características estas dos
-se em evidência e focaliza-se o que as crianças já conhecem educandos com quem trabalhamos. Nos vários conceitos
e gostam: música, dança, criação de moda, artes visuais. de Arte, uma característica está sempre presente: sua in-
Nessa área é indispensável sermos orientados pela dependência e sua proximidade com a transgressão, ou
crença de que o fazer Arte é uma atividade essencialmen- seja, com o rompimento de padrões e paradigmas.
12 • 13

Nos vários modos de fazer educação, dois são signifi- feita àqueles que nada têm ou para quem não tem nada
cativos: o primeiro é uma educação formal e cartesiana, a perder; ou noutros termos, a ‘dívida’ que a socieda-
voltada para a reprodução automática do status quo na de tem com esses adolescentes e crianças é de grande
perspectiva perversa de um controle social de longo pra- significado e, por isso, requer uma ação de excelência,
zo. O outro é a educação libertadora (Paulo Freire), que de extrema dedicação. E isso significa que devem ser
incorpora a transgressão como a alma que permite ao acionados os bens materiais e simbólicos mais valio-
jovem o questionamento, a criatividade, a imaginação e, sos, no processo de associação da ética à estética, na
nesse processo, a transformação do mundo. construção do homem estético, no quadro de formação
Nas crianças socialmente excluídas, transgressoras de um novo referencial para a subjetividade humana.
por sua própria natureza, em sua qualidade de seres em Essa sociedade em construção precisa ser a sociedade
formação, é reconhecida uma tríplice subjetividade. Elas do presente no caso de meninos e meninas em situação
são sujeitos de direitos, sujeitos de conhecimentos, sujei- de risco, de rua/na rua fora de casa e da escola. A trans-
tos de desejos. É nessa intersecção das dimensões política, posição de uma situação de ‘por conta própria’ para a de
pedagógica e artística que o Axé identifica a Arte com a ‘orientado’ é uma necessidade social fundamental, mas
Educação e sua prática como Educação em si. que requer elevada competência. É a construção dessa
A perspectiva que deveria ser da escola pública em ge- competência que nos interessa no momento”.
ral é realizar uma Educação libertadora, como queria Pau- Marle Macedo, na mesma obra, afirma que “na Educa-
lo Freire, aproveitando e valorizando o imenso potencial ção a Arte emerge como catalisadora do desenvolvimento
de meninas e meninos, autênticos sobreviventes da socie- dos educandos, colocando-lhes desafios a superar, esti-
dade brasileira, que lutam bravamente pela vida. mulando seu potencial criativo e interpretativo, impon-
A ideia fundamental é “respeitar” a autonomia con- do-lhes uma disciplina à qual se submetem por prazer/
quistada a duras penas pelos educandos nas suas curtas, opção, uma vez que fazer Arte é uma escolha. E essa es-
mas densas e quase sempre trágicas histórias de vida. É colha é livre”. Após anos de observação e reflexão sobre os
preciso considerar e respeitar no processo educativo o co- processos que a arte deflagra nos educandos, supera-se o
nhecimento prévio dos educandos. Em lugar da opção de conceito instrumental da arte na educação: a arte não é
domesticá-los e torná-los dependentes, impõe como op- um instrumento para educar, a Arte é a própria Educação.
ção de educação reconhecer a vida vivida como a grande Walter Benjamin dizia “a arte é educadora enquanto
experiência do educando, ao invés de negá-la ou negligen- arte, não enquanto arte-educadora”.
ciá-la, o que levaria a ignorar suas dores, suas perdas, suas A maior aprendizagem para os meninos que fazem
derrotas, mas também seu inconformismo, tenacidade, arte é o fato de experimentarem que a miséria não é
capacidade de indignação, superação de dificuldade, bus- um destino inevitável e sim uma construção social, que,
ca de caminhos, incluindo-se aí a transgressão. Certamen- como a intolerância, pode ser desfeita e que esse é o ca-
te eles e elas saem em busca de vida e não da morte. Essa minho para desfazê-la.
fantástica energia vital que Maffesoli chama “vitalismo”, As considerações acima refletem algumas das ques-
essa invencível vontade de viver, é tratada no Axé como tões que inspiram e provocam todos aqueles que fazem
valiosíssima matéria-prima em sua ação pedagógica. arteducação. A anarquia, do ponto de vista político, dis-
É impossível introjetar, executar e repassar para as pensa chefias, autoridades, comandos. É o total triunfo da
crianças o conceito e a prática da arteducação na escola responsabilidade, da autonomia e da liberdade.
pública se o educador não tiver competência suficiente Para fazer arteducação é preciso ser sempre anarquis-
para juntar harmoniosamente a matemática com a mú- tas da imaginação.
sica, a geometria com as artes visuais, a educação física
com a dança e assim por diante.
“É uma utopia!”, dirão alguns. E eu acrescento: para os Cesare de Florio La Rocca é italiano de Florença, está há 47 anos
gregos a Utopia não é algo de impossível. É algo que ainda no Brasil, idealizou e fundou o Projeto Axé, em Salvador, do qual é
não existe, mas que pode vir a existir. coordenador. Trabalhou na Unesco e foi um dos redatores do Esta-
Em Arteducação, vida cotidiana e Projeto Axé (2008), tuto da Criança e do Adolescente. Faz tudo isso sempre sob o signo
Gey Espinheira diz que a “problematização até agora da Infância e da Juventude que são o axé, ou seja, a energia mais
feita permite a percepção de que a ‘oferta’ que deve ser preciosa de uma Nação.

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Arte popular brasileira


Compreender a criação na arte
popular, os caminhos que os artistas
transitam para criar, possibilita ver essa
produção de outro ângulo, mais próximo,
mais verdadeiro, mais significativo
por Ana Carina Marques

E
m todos os cantos do Brasil, inúmeras possibilidades
expressivas encontram-se o tempo todo ativadas. O
talento de milhares de artistas anônimos é colocado
em prática a cada dia. Portadores de história e herança cul-
tural, esses artistas são, muitas vezes, ignorados pelas esco-
las. A arte popular brasileira é a expressão criativa de ho-
mens e mulheres com pouca ou nenhuma formação artís-
tica formal, e ilumina aspectos da cultura brasileira através
da estética da vida cotidiana. Ela fala diretamente da nossa
diversidade, do patrimônio e da experiência compartilha-
da, da criatividade individual, e dos valores da comunidade.
Quando se fala do ensino da arte popular brasileira
em um contexto escolar algumas questões se impõem.
Na escola, abordagens limitadas e por vezes equivoca-
das, sob o pretexto de valorizarem nossa identidade cul-
tural, restringem a ideia de cultura popular ao estudo de
mitologias e lendas, de festas e costumes, que podem,
muitas vezes, parecer caricatos. Quando a arte e a cul-
tura popular aparecem restritas a festas juninas, brinca-
deiras e atividades descontextualizadas como as do Dia
do Folclore, falamos de uma identidade distorcida que
não possibilita o conhecimento sobre a origem, a neces-
sidade, a função e mesmo o resgate dessa cultura.
O ensino da arte no Brasil pouco tem contemplado
as questões relativas à diversidade étnica e cultural bra-
sileira, e as características dos diversos grupos culturais
que a compõem ficam relegadas a segundo plano.Estu-
dar a poética de determinados artistas populares, assim
como se estuda Van Gogh e Monet, é uma maneira de
lutar contra a hierarquização da arte, que a divide em
cultura erudita e cultura popular.
Os professores de arte apresentam, em geral, obras de
diferentes artistas para seus alunos, mas privilegiam a arte
erudita e seus códigos formais. Alguns livros didáticos
14 • 15

na sala de aula

© Ana Teixeira. Reprodução

A arte popular brasileira fala diretamente


da nossa diversidade, do patrimônio e da
experiência compartilhada, da criatividade
individual, e dos valores da comunidade

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© Ana Teixeira. Reprodução


nes de uma determinada história da arte, uma vez que
existem muitas formas de selecionar e organizar os obje-
tos artísticos. Os indivíduos, participantes na formação
da cultura popular brasileira, nas artes visuais, influen-
ciaram gerações de artistas e estabeleceram tradições ar-
tísticas vivas. Em geral autodidatas (ou formados entre
os pares em uma educação de pai para filho), eles se en-
caixam dentro de uma abrangente e mutável cultura, que
influencia, é influenciada e reflete a cultura geral.
Frequentemente apontam-se duas maneiras de com-
preender a arte popular. Ou ela é observada no contexto
em que está inserida ou é compreendida por suas qualida-
des estéticas, poéticas e formais. Isso não colabora na cons-
trução de um projeto significativo de ensino da arte popu-
lar, já que pode parecer que apenas uma forma está correta.
Melhor, então, é utilizar as duas possibilidades den-
tro da prática pedagógica, uma vez que podemos con-
templar diferentes maneiras de abordar o tema, pensar
Em um sentido mais amplo, “arte
popular” descreve artistas que criam nos objetivos, selecionar os artistas e procedimentos de
obras fora das referências e dos cânones criação. Durante todo o processo, é necessário manter as
de uma determinada história da arte
discussões com o grupo de alunos, para avaliar os resul-
tados e adequar as ações posteriores.
Agora passamos a relatar um trabalho que desenvolve-
reforçam essa postura, mostrando determinadas obras mos em uma escola particular, com grupos de 5º e 6º ano do
como referência do que seja a verdadeira arte. ensino fundamental na cidade de São Paulo, cujos alunos
A primeira necessidade do grupo de professores de não têm, em geral, contato e repertório de arte e cultura
arte na escola é estabelecer relações entre as concepções popular, um universo bem distante e desconhecido deles.
de arte popular e meios pelos quais ela possa ser mobili-
zada para a criação em arte. As reflexões devem acontecer Quando a aula pode ser uma festa
sob duas orientações: histórica e prática. A primeira pode Iniciamos uma sequência didática mostrando aos
tratar historicamente do conceito arte popular, buscan- alunos uma gravura representando uma folia de reis de
do demonstrar quais são as referências teóricas que o têm Pirenópolis, Goiás. Queríamos saber o quanto eles en-
delimitado; e a segunda, apresentando um projeto que ar- tendiam aquela imagem. Eles respondiam: “É uma fes-
ticule a arte popular brasileira e proposições práticas que ta!”, “São pessoas tocando!”.
explorem as possibilidades criativas do tema. Perguntamos que festa era aquela e se eles já tinham
visto uma. O que chamou mais a atenção do grupo foi a
Arte popular, como abordá-la? pomba do Divino Espírito Santo e mostraram espanto:
O termo “arte popular” é controverso, e já foi utilizado “É uma festa para a pomba da paz!”.
em contextos muito variados. Esses contextos, segundo Em seguida, o grupo viu fotografias da festa do Divino.
Martha Abreu em Cultura Popular, um conceito e várias As danças e as roupas chamaram-lhes a atenção. Entre as
histórias,“quase sempre [estão] envolvidos com juízos de imagens, uma que representava a cavalhada foi muito men-
valor, idealizações, homogeneizações e disputas teóricas e cionada. Pediu-se a eles que pesquisassem para a próxima
políticas”. Apesar dos diferentes sentidos que a expressão aula o que era a cavalhada e quais componentes a forma-
recebe, é importante delimitar esse conceito, sem perder vam. Na aula seguinte os alunos trouxeram muitas histó-
de vista que essa concepção é apenas uma das maneiras rias acerca da cavalhada. O que despertou mais interesse
de pensar e observar a sociedade e sua produção cultural. foram os mascarados (“curucucus”) e suas indumentárias.
Em um sentido mais amplo, “arte popular” descreve Deste interesse das crianças partiu-se para a atividade de
artistas que criam obras fora das referências e dos câno- criação. Propôs-se a elas que pensassem que tipo de curu-
© Ana Carina Marques. Reprodução
16 • 17

cucu fariam, qual deles representariam em uma máscara e,


então, começou a fase da construção das máscaras.
A produção da máscara foi extremamente desafiadora, já
que, tecnicamente, era uma novidade para eles. Fizemos a
base da máscara de papelagem (técnica onde se aplicam di-
versas camadas de cola e papel, a fim de criar uma superfície
rígida) e depois de pronta passamos a caracterizar os curucu-
cus. Nesse momento eles tiveram de encontrar soluções para
as ideias que tinham criado. Um menino que escolheu fazer
um veado, por exemplo, teve de achar um recurso para fazer
os chifres. Cada máscara requeria uma solução diferente e
foi interessante perceber como nessa fase do processo eles se
ajudavam mutuamente e sabiam que sempre podiam contar
com nosso apoio e orientação técnica.
Depois da confecção das máscaras voltamos às narrati-
vas da cavalhada e dos seus personagens. Uma festa popu-
lar apresenta diversos elementos plásticos e performáticos.
Danças, roupas dos dançarinos e encenações fazem parte
do mesmo contexto festivo, e era importante que os alunos
investigassem a interação das festas populares com a produ-
ção de alguns artistas. O estudo das festas foi a ponte para
a próxima fase do projeto: conhecer virtualmente o maior
acervo de arte popular brasileira e pesquisar suas obras.

Curadorias virtuais
Cada máscara
requeria Não é simples obter imagens e reproduções de arte po-
uma solução pular. Diferentemente de outros segmentos da arte, com
diferente e foi
interessante
rico acervo de livros e catálogos, a arte popular fica restrita
perceber como a poucos museus e a uma quantidade limitada de publica-
nessa fase ções. Por isso, a ideia de fazer uma visita virtual a um mu-
do processo
os alunos se seu com esse acervo nos pareceu uma excelente saída.
ajudavam O Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro, possui o
mutuamente
maior acervo de arte popular do Brasil. Segundo membros
do International Council of Museums (ICOM), associado
à Unesco, ele não é apenas um museu completo de arte
popular brasileira, mas pode ser considerado como um
verdadeiro museu antropológico, que permite uma visão
abrangente da vida e da cultura do homem brasileiro.
Os objetos da arte popular brasileira constituem um
patrimônio que está continuamente ameaçado. Por suas
próprias características de produção e de distribuição, as
obras ficam vulneráveis e muitas já se perderam. O museu
desempenha então, a despeito das qualidades formais e
estéticas dessa arte, um papel importante na preservação
da memória e da produção artística desse segmento.
Jacques Van de Beuque, o idealizador e criador do mu-
seu, divide a produção dos artistas populares em duas gran-
des categorias: realista/figurativa ou imaginária/incomum.

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© Rodrigo Godá, Tecnicolor, acrílica sobre tela. Reprodução


destaca de seu meio, criando um universo singular, que,
mesmo refletindo referências ancestrais, arquetípicas,
religiosas ou mitológicas, traduzem um mundo psíquico
pessoal, de intensa expressividade.
Não é simples categorizar onde as poéticas de determi-
nados artistas populares se encaixam. Essa divisão da pro-
dução plástica em duas grandes categorias contribuiu para
selecionar os artistas que seriam trabalhados e, dentre es-
ses, quais obras seriam mais representativas de sua poética.
O espaço virtual do museu, quando apresenta sua cole-
ção, está dividido em artistas, temas e localidades. Quando
escolhemos um determinado tema e clicamos nele, apre-
sentam-se os artistas que trabalharam esse tema, e a qual
localidade (comunidade criativa) ele pertence. Dessa ma-
neira, organizam o acervo criando possibilidades de conhe-
cimento e interação que favorecem o processo educativo.
Com os alunos sentados em duplas, pedimos ini-
cialmente que visitassem os temas e suas subcategorias
e que fossem selecionando as obras que lhes pareciam
mais interessantes. Eles tinham de discutir com o cole-
Obra do artista goiano Rodrigo Godá, cuja ga de dupla a escolha de determinada obra e por que ela
série “Máquinas delirantes” foi mostrada seria representativa de um tema específico. O conceito
aos alunos, com resultados surpreendentes
de curadoria foi trabalhado nesse momento, mostrando
que o papel do curador é estabelecer relações, articular e
integrar determinadas obras dentro de um vasto acervo,
A produção realista/figurativa está dividida em gru- dando-lhe um novo sentido. No nosso projeto a curado-
pos temáticos: Cotidiano, Religião, Festas e Ciclo da ria foi um exercício de compreensão e sensibilidade com
Vida. Em Cotidiano, estão as cenas do dia a dia, que re- relação às obras. Cada dupla selecionou imagens que
tratam quase sempre o artista e as pessoas que os cer- acreditavam representativas de determinado aspecto da
cam, rotinas e cotidiano social, com um vasto repertório arte popular. Na apresentação para a classe tiveram de
de representações do seu meio. Religião é um tema pre- justificar suas escolhas, o que resultou na invenção de
dominante na produção plástica, com seus santos, presé- novas “percepções” (ou seja, modos de ver).
pios e procissões. Além das obras de inspiração católica, Nesta visita virtual ao acervo do museu os alunos per-
há um vasto repertório de obras ligadas à umbanda, ao ceberam qual era a ideia de coletividade criadora e como
candomblé, a seus rituais e variantes. Em festas apare- essa se insere no contexto da arte popular. Alto do Moura
cem com frequência temas como atividades de entrete- (Pernambuco), Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais) e Jua-
nimento social e comunitário. Intensamente presentes zeiro do Norte (CE) são exemplos de coletividades criado-
na vida brasileira, festas, danças e músicas populares são ras, com estilos próprios e marcas comuns.
representados pelos artistas com figurinos e elementos Mestre Vitalino, por exemplo, é figura maior da co-
característicos. Por fim, o Ciclo da Vida, composto pelos letividade criadora do Alto do Moura (PE). Era um ex-
ciclos da existência – nascimento, a infância, a juventu- traordinário ceramista, construindo figuras a partir do
de, a maturidade e a morte –, e pelos ritos de passagem imaginário popular, mas além de grande criador foi um
– batismo, comunhão, casamento, velórios e enterros. disseminador da escultura cerâmica no seu meio, pri-
Já a produção imaginária/incomum centra-se em uma meiro através da família e, depois, dos outros artistas que
temática subjetiva ou irreal. Ainda segundo Jacques Van se formaram na comunidade e foram continuadores da
de Beuque essas representações surgem como um sinal da tradição por ele inaugurada.
extrema vitalidade da criação estética do gênero arte po- Alguns artistas, embora pertencentes a uma comuni-
pular, e o artista que se dedica a esse tipo de produção se dade criadora, possuem uma produção não confinada a
18 • 19

ela. Essa autenticidade possibilita um percurso criativo máquina que produz floresta”, “A máquina de fazer
que pode ser estudado nas aulas de arte, e foi o que fize- nuvens coloridas” ou “A máquina que produz árvore”.
mos na segunda fase do projeto, conhecendo a produção, Godá constrói engenhocas que ironizam as máquinas
a linguagem e a poética de artistas específicos. poluidoras da qual estamos rodeados. Em roda, conver-
samos sobre cada engenhoca, sobre suas diferenças e
Godá e as suas engenhocas os aspectos plásticos que as constituíam. Depois, como
Rodrigo Godá é um artista goiano cuja obra possui exercício, desenharam no papel e com canetas de dife-
um rico repertório de símbolos e imaginação. Sobre ele o rentes formatos uma engenhoca.
crítico de arte Oscar D’Ambrosio faz a seguinte análise: Os resultados foram surpreendentes: máquinas de
“O diferencial de Godá está na capacidade de articular criar bois (onde se colocavam bifes inteiros de um lado e
o fato de ser autodidata com uma capacidade ímpar de saíam bois do outro), máquinas de voar, engenhocas capa-
olhar ao seu redor”. Sua série a Máquina do mundo foi a zes de molhar plantações com a água do mar. Esse foi um
escolhida para trabalharmos com o grupo, pois já perce- primeiro momento do trabalho.
bíamos algumas identificações dos trabalhos dos alunos Como a obra de Godá que apresentamos era bidimen-
com o do artista. sional, sugerimos que eles construíssem suas engenhocas
No primeiro dia um longo tempo foi dedicado à tridimensionalmente. Na aula seguinte, trouxeram mate-
apresentação da atividade. Trouxemos algumas ima- riais que pensaram para construir a engenhoca. Na sala
gens da sua série “Máquinas delirantes”, tais como “A folhas de papel foram transformadas em formas com rele-
© Ana Carina Marques. Reprodução

Alguns
desenhos de
engenhocas
feitos pelos
alunos,
inspirados
pela obra
de Rodrigo
Godá

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© Ana Carina Marques. Reprodução


estão sempre relacionados a ações humanas: usam reló-
gio, trabalham e constroem coisas. Na sua obra percebe-se
como a arte popular se modificou e incorporou elementos
do meio urbano as suas criações.
Nessa aula o grupo teve contato, primeiro, com as re-
produções das pinturas de Manoel Santos. Queríamos que
o grupo percebesse o que caracterizava a poética do artista
e sua temática. Sua pintura tem muitos detalhes e logo
eles ficaram interessados na sua liberdade imaginativa. O
antropomorfismo é temática recorrente na arte popular
e a proposta era que eles criassem um ser mágico, mistu-
rando animais e ações humanas. Nesse momento ouvi no
grupo uma das frases mais emblemáticas e representati-
vas da apropriação da arte popular pelos alunos: um dos
alunos perguntou se podia misturar um jacaré com uma
borboleta fazendo rapel. A resposta veio prontamente de
outro aluno – “Claro que pode, é arte popular!”. Criados
O antropomorfismo é temática os seres, cada um apresentou na roda a sua figura. Discu-
recorrente na arte popular e
a proposta era que os alunos timos se era possível perceber quais animais estavam mis-
criassem um ser mágico, misturando turados e o que eles faziam. Esses seres antropomórficos
animais e ações humanas
foram a base para uma pintura e também a chave para a
compreensão do próximo artista.

vos a partir de cortes e dobras. Eles precisavam pensar em Miguel dos Santos e suas esculturas
soluções para que essas construções ficassem em pé. Ou quase “surrealistas”
seja, depois de dar os cortes necessários, a dobra precisa Miguel dos Santos é um artista que transita entre a
ser bem marcada, podendo-se fazer isso com o auxílio da arte erudita e a arte popular, e despertou nosso interesse
régua ou da tampa de uma caneta. Novamente as soluções justamente por isso. Queríamos discutir as aproximações
foram as mais inventivas. Muitos queriam que as engenho- e rupturas entre os dois universos. Ficou claro para nós,
cas tivessem movimento, como as máquinas, e pensavam professores, que as fronteiras entre o erudito e o popular
o objeto com esteiras, entradas e saídas, roldanas. A trans- estão cada vez mais tênues. Muitos artistas contemporâ-
posição de uma ideia bidimensional para o tridimensional neos utilizam elementos da arte popular em sua lingua-
criou possibilidades inventivas e de experimentação. Eles gem, assim como a arte popular acaba por ser influencia-
puderam perceber que as soluções podiam ser alcançadas da por uma cultura ampla e dominante.
a partir da manipulação da forma, do tratamento dado aos Segundo Ariano Suassuna, o que distingue o trabalho
materiais assim como pela escolha desses. de Miguel dos Santos é a ligação com o realismo mágico
do romanceiro popular nordestino. A escultura de Miguel
Manoel Santos e seus animais dos Santos é povoada de seres estranhos, metamorfoses
Manoel Santos nasceu em 1965, em Goiânia, onde vive de dragões e humanos, mitos e demônios. “Uma obra tão
atualmente. É um artista autodidata, mas teve acesso aos ligada ao romanceiro e por isso mesmo, tão expressiva da
materiais de arte quando foi modelo vivo em uma facul- visão tragicamente fatalista, cruelmente alegre e mitica-
dade de artes plásticas, onde trabalhava como faxineiro. mente verdadeira que o povo brasileiro tem do real.”
Em seu trabalho destacam-se como forma recorrente os Nascido em 1944, em Caruaru (PE), Miguel dos Santos
animais, retratados com delicadeza. Uma fauna fantásti- reside e trabalha em João Pessoa. Suas esculturas possuem
ca, repleta de pássaros, tartarugas, jacarés, capivaras, pin- forte influência africana e do imaginário das lendas nordes-
tada com detalhes, utilizando cores contrastantes em tin- tinas. Sua produção inclui totens de quase três metros de
ta a óleo. Sua temática está relacionada à degradação do altura. Quando mostramos essas esculturas para os alunos
meio ambiente e ao extermínio dos animais. Seus bichos eles ficaram muito surpresos. As obras de Miguel dos San-
20 • 21

tos causam certo estranhamento a princípio. São pessoas, da argila. Apresentamos algumas técnicas de cerâmica
são animais, são seres míticos? Todas as respostas são afir- que poderiam ser utilizadas, conforme as necessidades do
mativas. O grupo criou muitas interpretações possíveis. trabalho. Essa foi a fase do projeto pelo qual eles ficaram
Passamos para a criação das esculturas. Cada um es- mais fascinados. Na roda discutíamos quem tinha conse-
colheu um pedaço de argila (de tamanhos diferentes) e guido atingir os seus propósitos, quais tinham sido as di-
depois receberam algumas orientações de como trabalhar ficuldades. Todas as vezes que as turmas entravam na sala
o material. Toda a parte procedimental foi encaminhada corriam para a bancada para ver as produções das outras
para que eles pudessem expressar suas ideias sem medo turmas e discutiam o que tinha sido feito. Organizamos
uma grande exposição desses trabalhos, envolvendo es-
culturas, pinturas, máscaras.
Compreender a criação na arte popular, os caminhos
© Ana Carina Marques. Reprodução

que os artistas transitam para criar, possibilita ver essa


produção de outro ângulo, mais próximo, mais verdadei-
ro, mais significativo. Esse projeto procurou evidenciar o
papel imprescindível da arte popular brasileira no currí-
culo das nossas escolas, e como ela pode promover nos
alunos um enriquecimento dos seus percursos criativos
individuais. Para isso foi preciso conhecer e compreender
as concepções presentes na Arte Popular que se relacio-
nam com as suas possibilidades de criação e interpretação.

Ana Carina Marques é especialista em Linguagens da Arte pela Uni-


versidade de São Paulo (USP), graduada em Artes Plásticas pela Uni-
versidade Estadual Paulista (Unesp) e formada em gravura pela Toron-
Cada to School of Art. Trabalhou na Formação Contínua de Professores da
aluno
escolheu Prefeitura de São Paulo e de escolas particulares. Desenvolveu e atuou
um pedaço em oficinas de Arte no Sesc-SP. Atuou em projetos de mediação cul-
de argila
e depois tural em instituições como Fundação Bienal e MAC- USP. Atua como
recebeu professora da rede particular de ensino de São Paulo.
algumas
orientações
de como
trabalhar o Referências
material
ABREU, Martha. “Cultura popular, um conceito e várias histórias”. In:
ABREU, Martha e SOIHET, Rachel. Ensino de História, Conceitos,
Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
AYALA, Marcos & AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura Popular no
Brasil. 2ª ed. São Paulo, Ática, 2003.
BEUQUE, Jacques Van de. “Arte Popular Brasileira”.In: AGUILAR,
Nelson (org.). Arte popular. Mostra do Redescobrimento. São Paulo:
Fundação Bienal: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000.
CHARTIER, Roger. “Cultura popular”: revisitando um conceito his-
toriográfico. Estudos Históricos, v. 8, n. 16, págs. 179-192, 1995.

Sites
ArtCanal: www.artcanal.com.br/oscardambrosio/rgoda.htm.
Museu Casa do Pontal: www.museucasadopontal.com.br/.
Miguel dos Santos: www.migueldossantos.com.br/criticas.aspx?id=3

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Imagem em movimento
© Babel, de Alejandro González Iñárritu, 2006. Reprodução

Cena do filme Babel. O sentido de um filme não está


apenas nas imagens vistas, está também nas que não
se vê. E o que não se vê é também pleno de sentidos
22 • 23

Artes
audiovisuais
e educação
Levar a produção audiovisual para a sala de aula é
desafiar os alunos a trabalharem com a arte de pensar e
de se expressar por meio de imagens em movimento
por Laura Maria Coutinho

O
cinema é a arte de criar histórias deslocando
pontos de vista. Uma arte que pode ser compre-
endida por quase todas as pessoas que vivem em
cidades. Mas não foi sempre assim; no início do cinema,
era necessário ensinar o público a ver filmes. Ao lado da
tela havia uma pessoa, o explicador, segundo nos conta
Carrière, no livro A linguagem secreta do cinema, para ir
fazendo as relações entre as cenas, as personagens e os
fatos. De certa forma, o que o explicador fazia era sig-
nificar o corte e a montagem, ou seja, expressar o senti-
do presente no intervalo entre uma e outra imagem. O
sentido do filme não está apenas nas imagens vistas, está
também nas que não se vê. E o que não se vê é também
pleno de sentidos, torna-se um intervalo de significação.
É preciso haver o corte para que haja a montagem que é
chamada específico fílmico, aquilo que faz do cinema, ci-
nema. É o corte e a montagem que fazem o filme ser filme
e não apenas uma justaposição de imagens e sons. Hoje,
fazer uma referência a isso pode soar estranho, pois a
linguagem cinematográfica – e, ampliando-se o leque, a
linguagem audiovisual em todos os suportes – ganhou
tanta autonomia, que não se pensa mais nesse aspecto.
A arte cinematográfica e a gramática do audiovisual são

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Imagem em movimento

Pinturas
de Giotto
datando de
1305, na
Capela dos
Scrovegni,
em Pádova,
Itália. E
(na página
ao lado)
Câmera
escura feita
de caixa de
papelão,
que pode ser
utilizada com
os alunos
para que eles
entendam os
princípios da
fotografia
© Reprodução

acessíveis a todos, sobretudo aos jovens que estão nas es- Cristo em quadros que podem ser vistos à semelhança das
colas e que já trazem consigo, na maioria das vezes, no histórias em quadrinhos. Ao entrar nessa capela “estamos
seu rol de habilidades, a capacidade de ver filmes e de dentro de um processo de educação cultural da inteligên-
compreendê-los sem grande esforço. cia visual. Uma arte que, em forma plástica, dá visibilidade
estética a um momento social, político, religioso”.
A origem Nesse estudo, Almeida reflete sobre a perspectiva e os
As origens do cinema estão dispersas em muitas eta- usos dessa técnica de representação como instrumento de
pas precursoras do que conhecemos como arte cinema- educação visual e de construção imagética. A perspectiva, ao
tográfica. Para que se chegasse à obtenção da fotografia constituir-se predominantemente como teoria e prática da
foram necessários muitos estudos e experiências com o representação do real visível, de forma lógica, natural, neu-
desenvolvimento de processos óticos, químicos e mecâ- tra, científica, artística, está, ao mesmo tempo, reproduzin-
nicos. O físico francês Joseph Niepce realizou um dos do “em ilusão geométrica e matemática, a estética do poder
primeiros trabalhos, que conseguiu, com sucesso, fixar burguês laico e religioso”. Esse está presente, ainda hoje, nas
imagens captadas da realidade em superfície sensível à lentes, câmeras e em todo tipo de aparato tecnológico para
luz, no ano de 1839. Antes disso, porém, foi necessário o captação de imagens, inclusive os telefones celulares.
aperfeiçoamento da câmera escura que permitia construir As primeiras formas da linguagem cinematográfica
imagens pictóricas considerando a ideia de espaço em três tiveram lugar de destaque nas exposições universais que
dimensões, a partir da perspectiva que buscava dar mais eram os locais onde se buscavam reunir inventores, co-
realidade e naturalidade à pintura. merciantes, fabricantes, cientistas, artistas. A Exposição
Em seu livro Cinema: arte da memória, Milton José de Universal de Paris de 1900 foi palco para a apresentação
Almeida (1999) cria uma alegoria do nascimento do cinema, de um cinematógrafo com uma tela gigante que exibia a
considerando que uma de suas origens, como arte narrativa projeção de filmes e de fotografias que ganhavam cores.
e figurativa, estaria na Capela do Scrovegni, em Pádova, na Esse espetáculo promovido pelos irmãos Lumière foi visto
Itália, onde Giotto pintou as principais cenas da história de por cerca de 1,5 milhão de pessoas.
24 • 25

São muito interessantes trabalhos escolares que utilizam os


princípios do teatro de sombra e as lanternas mágicas, pois desde
sempre os jogos de luzes e sombras fascinam a humanidade

A invenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsese, é um ma mudo criou obras-primas como Metrópolis (1927), O
filme que constrói uma alegoria da história de Marie- Encouraçado Potemkin (1925), um dos filmes mais impor-
-George-Jean Méliès. Méliès era um ilusionista e mágico de tantes do cinema em todos os tempos. Charles Chaplin
profissão francês que estava presente na plateia que assis- criou filmes antológicos como O garoto (1921) e Tempos
tiu, em 1895, à primeira projeção realizada pelos irmãos modernos (1936). O cinema mudo imortalizou inúmeros
Lumière, de quem desejou, sem sucesso, comprar a nova atores e muitos não puderam ser absorvidos pelos filmes
invenção. Com um protótipo do cinematógrafo Méliès sonoros por não terem voz ou não se adaptarem à nova
inicia suas próprias experiências com o registro de ima- forma de atuação que a introdução do som exigia.
gens em movimento. Realiza os primeiros filmes de ficção Em 2011, outro filme, O artista, de Michel Hazanavi-
a partir de trucagens e cenários móveis e constrói o pri- cius, homenageia o cinema mudo e seus atores. Esse filme
meiro estúdio cinematográfico na Europa. George Méliès mudo, passado na Hollywood dos anos 1920 e 1930, conta
é considerado o criador do cinema de ficção, um dos pri- a história de um casal formado por uma atriz iniciante –
meiros e o principal artista a colocar em prática as possi- vivida por Bérénice Bejo – em ascensão – e um ator famoso
bilidades expressivas do novo invento – o cinematógrafo. – Jean Dujardin – em franco declínio, enquanto os filmes
mudos iam, cada vez mais, dando lugar aos filmes falados.
Depois da imagem, o som
Para que os sons se unissem às imagens e constituíssem Cinema na sala de aula
a forma de arte e espetáculo audiovisual que temos hoje, Além de ter acesso ao extenso material disponível
foram necessários cerca de 30 anos. Nas salas de cine- por meios eletrônicos e digitais, é possível realizar com
ma, as músicas, que ajudavam a dar o ritmo e a criar o alunos atividades práticas que recriam situações do
clima dramático da narrativa, eram executadas ao vivo universo de criação das imagens. Pode ser muito pro-
por músicos locais contratados para cada exibição. So- veitoso o aprendizado em sala de aula, fazendo uso de
mente em outubro de 1927, quando estreou, com enorme uma caixa de papelão ou de outro material disponível,
repercussão e sucesso de público, em Nova York, o filme recriando a câmara escura. São muito interessantes tra-
O cantor de jazz (1927) é que, pela primeira vez, foi pos- balhos escolares que utilizam os princípios do teatro de
sível assistir a um filme falado. Ele ainda tinha partes sombras e as lanternas mágicas. As lanternas mágicas
mudas e um roteiro medíocre têm suas origens perdidas no
e pouco convincente, mas o tempo, pois desde sempre os
© Reprodução

rosto em close do ator Al John- jogos de luzes e sombras fas-


son enchia a tela e a sua voz cinam a humanidade, muito
sincronizada com a imagem antes que pudessem ser usa-
foi ouvida perfeitamente por das para contar histórias.
uma plateia extasiada. Uma pesquisa desenvolvida
Estava consolidada assim por Erizaldo Pimentel aponta
a arte audiovisual, fato que para o fato de que “um dia to-
revolucionou a indústria cine- das as escolas poderão lidar (...)
matográfica, embora muitos com as novas tecnologias, em
cineastas famosos do cinema particular, com o audiovisual,
mudo se opusessem à novi- e mais particularmente ainda
dade como Charles Chaplin com a prazerosa aventura de se
e Serguei Eisenstein. O cine- construir vídeos com e para os

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Imagem em movimento

alunos” (2013). Existem tecnologias disponíveis, baratas e Nas oficinas que realizamos com alunos, após uma bre-
acessíveis a professores e os alunos estão prontos para aco- ve passagem pelas dimensões políticas e estéticas das lin-
lher a linguagem audiovisual no âmbito das escolas. guagens audiovisuais, são discutidos os aspectos específicos
Bons trabalhos com o uso da linguagem audiovisual da construção de um produto audiovisual e o seu processo
têm acontecido em escolas do Distrito Federal. No Nú- de elaboração. Toda construção artística audiovisual come-
cleo Bandeirante, produziu-se a TV Guri. Alunos de 7 a ça por uma ideia. Em Da criação ao roteiro (1993), Doc Com-
12 anos, sob a orientação do professor Jefferson Guima- parato afirma que “as ideias não surgem do nada”. Ele defi-
rães, elaboraram vídeos jornalísticos sobre temas varia- niu seis campos de ideias que podem ser interessantes para
dos, que eram veiculados na escola durante o recreio. O o trabalho em sala de aula: “ideia selecionada, ideia verbali-
professor Josué de Sousa Mendes realiza, em uma escola zada, ideia lida, ideia transformada, ideia solicitada, e ideia
de Brasília, um trabalho em que os alunos registram em procurada”. A esses seis campos acrescentamos o campo da
vídeo as atividades comunitárias que realizam e poste- ideia demandada. Muitas vezes as ideias surgem como nar-
riormente editam os programas e os exibem na escola. rativas de ficção, mas devido ao tempo exíguo e às dificul-
Não é possível criar uma sistemática de uso do audio- dades, sobretudo com relação às locações, aos atores e aos
visual na educação, sem que os professores tenham con- cenários, terminam transformando-se em documentário.

Cenas do filme O artista, de 2011, que


homenageia o cinema mudo e seus atores

tato mínimo com essa linguagem em sua formação. Os O mundo das ideias é praticamente inesgotável. Mas
cursos regulares de formação de professores, de alguma sempre é preciso escolher uma. Uma vez escolhida, essa
forma, se preocupam em dar espaço para a utilização das ideia é trabalhada em uma breve explanação escrita, a si-
chamadas tecnologias da educação. No entanto, essa for- nopse. Do desenvolvimento da sinopse chega-se ao argu-
mação é intermitente, mesmo naquelas faculdades que mento, que é construído já como um relato de uma histó-
têm tradição com o uso dessa linguagem. ria com começo, meio e fim. Com a história alinhavada é
A linguagem audiovisual, que, como a própria palavra o momento de caminhar para a elaboração do roteiro lite-
expressa, é feita da junção do som e da imagem, parece rário; nele a história é descrita já introduzindo a descrição
expandir-se cada vez mais. São artefatos da cultura que das sequências, ou seja, o encadeamento das imagens e
afetam estes dois sentidos do homem: a visão e a audição. sons que comporão o audiovisual. O roteiro técnico será
Estes são os sentidos humanos mais privilegiados e exigi- o guia da gravação de imagens e sons na etapa da capta-
dos no mundo moderno, pois por meio deles podemos ver ção. Após a captação é realizada a decupagem, ou seja, são
o mundo estando fora dele, e uma das características da definidos os cortes que irão compor cada plano. Depois da
modernidade é justamente esta: permitir um afastamento decupagem feita, é possível fazer o roteiro de montagem
cada vez maior das pessoas do chamado mundo natural. ou edição. Após a montagem chega-se ao processo de fi-
26 • 27

nalização onde são inseridos, basicamente, textos off, efei- da, o que se deseja expressar. As histórias seguem sempre,
tos e créditos. Ao final é preciso acontecer a apresentação, de alguma forma, essa estrutura inicial. Se esses aspectos
sem a qual nenhum audiovisual se realiza plenamente e forem considerados, o argumento da história estará cons-
nem cumpre a sua função. truído e é possível passar para o roteiro.
Realizar coisas em sala de aula é sempre um desafio,
pois os alunos estão muito acostumados com o mode- Som e imagem em ação
lo de aulas expositivas, lousas, slides projetados, textos, Quando passamos para a etapa de elaboração do ro-
discussões, provas. Para superar essa etapa inicial é pre- teiro técnico, os alunos são levados a refletir sobre a natu-
ciso convencê-los de que realizaremos um audiovisual e reza da linguagem audiovisual. As imagens são elementos
contaremos uma história por meio de sons e imagens em estético-visuais que, a partir da sua composição, visam dar
movimento e precisamos encontrar uma ideia. Para isso unidade e harmonia aos assuntos que serão expostos. As
podemos recorrer, por exemplo, às histórias orais ou às imagens serão lidas a partir da identificação do que, ob-
histórias que acabaram de ouvir em casa, na televisão, no jetivamente, é possível ver, dos elementos que possuem
rádio, no transporte coletivo. e esses elementos podem ser vivos, quando apresentam
A partir de uma relação de histórias possíveis as ideias pessoas e animais; móveis, quando tratam de coisas que
© The artist, Michel Hazanavicius, 2011. Reprodução

vão tornando-se mais concretas. Para Doc Comparato, a implicam deslocamentos como carros e outros tipos de
primeira forma da narrativa audiovisual é a palavra, ini- transportes; e estáveis, como edificações, cidades, árvores,
cialmente oral e depois escrita. Os alunos começam a paisagens naturais. As imagens poderão ser lidas também
contá-las por meio de relatos orais e depois em pequenos pelo que os seus elementos representam.
textos escritos como relatos ou diálogos e em seguida pas- Os elementos que serão vistos pela câmera, e poste-
sam a desenhá-las no formato de um pequeno storyboard. riormente expostos na tela, precisam obedecer a certa
Ao desenvolverem essa etapa, vão se apropriando das di- composição a ser resolvida quando se definem os seus
ferentes formas de contar as histórias e os grupos de tra- elementos estruturais. Esses elementos estruturais são os
balho vão se definindo a partir da identificação das habili- planos, os ângulos de câmera, os enquadramentos, a ilu-
dades que cada participante possui e das próximas etapas. minação, a cor. No audiovisual os movimentos de câmera
Doc Comparato diz ainda que o roteiro deve ter três permitem a alteração dos enquadramentos – distantes,
aspectos fundamentais: o logos, que é o discurso, a forma intermediários e aproximados – sempre em relação ao as-
oral e escrita da história; o páthos, o aspecto dramático sunto principal, dentro do mesmo plano, que é tudo o que
da narrativa, o que gera os acontecimentos; e o ethos, o se registra, entre o disparo do dispositivo para gravar e o
objetivo da história, o que justifica a história ser conta- disparo do mesmo dispositivo para parar a gravação.

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Imagem em movimento

No roteiro, os enquadramentos são definidos a partir que dão certa precisão ao tema. MPP: meio primeiro pla-
de uma determinada nomenclatura que pode mudar de ro- no; PP: primeiro plano; PPP: primeiríssimo primeiro plano
teirista para roteirista: GPG: grande plano geral; PGG: pla- são planos aproximados que procuram revelar a expressão
no geral de conjunto; PG: plano geral; PC: plano de conjun- mais íntima e peculiar, sobretudo das pessoas.
to; esses são os planos distantes que situam a ação. PMC: Outro aspecto fundamental que deve ser definido no
plano de médio conjunto; PM: plano médio; PA: plano roteiro técnico é a posição da câmera. Ela pode estar no
americano; Pfig: Plano de figura; são planos intermediários alto, CA; na posição horizontal, CH; e câmera baixa, CB.

A AVANT-PREMIÈRE NA ESCOLA

Trazer os audiovisuais para a tenham a experiência de passar por aula é sempre um prazer e uma
sala de aula é desafiar os alunos a todas as etapas, o que é sempre festa. Chegar ao fim de um
trabalharem com a arte de pensar e bastante desejável. É estabelecido trabalho dessa natureza é muito
de se expressar por meio de imagens o cronograma de gravação, são positivo sob vários aspectos, que
em movimento. Sobretudo com a arte definidas as equipes de trabalho, os vão além da apresentação do
do enquadramento. personagens, os locais de gravação; audiovisual, que é a última etapa da
Na linguagem audiovisual se as gravações ocorrerão durante sua realização. E, como já foi dito,
as palavras escritas são muito o dia ou durante a noite, para que o sem um público que possa assisti-lo,
importantes e ajudam a estruturar registro não seja prejudicado. o trabalho não cumpre a sua
a ideia para que ela possa se Com as imagens e sons função artística e social.
transformar em um audiovisual. Jean- registrados, chega-se à etapa
Claude Carrière, um dos roteiristas da pós-produção. É o momento
mais importantes do cinema, diz em de assistir ao material e fazer a
A linguagem secreta do cinema, que decupagem, ou cortes. Em seguida,
uma das características do roteiro é o elaborar o roteiro de edição, gravar
fato de ele ser evanescente, ou seja, as narrativas sonoras que serão
algo que se faz para desaparecer inseridas em off e selecionar as
em seguida, algo que não terá mais músicas e sons complementares.
sentido depois de ser transformado O que cortar, o que deixar de fora?
em imagens e sons. O corte é um dos aprendizados mais
Com o roteiro pronto e a importantes para os realizadores
© Reprodução

produção organizada, a etapa iniciantes. A melhor sequência fora


da pré-produção está cumprida e do fluxo narrativo pode ser a pior
chega-se à fase da captação de opção para compor um trabalho
imagens e sons. A câmera de vídeo em audiovisual. No momento da
entra em cena e este é um momento finalização, são inseridos os efeitos
de muita animação. Muitos iniciantes especiais, quando necessários, e os
são levados pelo lado lúdico que os créditos de início, com o título do
equipamentos possuem e passam a audiovisual, que deve ser definido
usar certos recursos, como o zoom, nesta etapa, e os créditos finais com
por exemplo, pelo simples fato de o nome de todos os participantes,
acioná-los. Alguns participantes colaboradores e responsáveis.
tendem a assumir demais certas A avant-première de um
tarefas, não permitindo que outros audiovisual produzido em sala de
28 • 29

© www.pequenoprincipe.org.br Reprodução
Programa televisivo feito por crianças do Hospital Pequeno Príncipe de Curitiba, desde 2013:
exemplo de um excelente trabalho audiovisual que pode ser realizado também em escolas

Toda posição de câmera revela e faz a imagem significar Laura Maria Coutinho é professora da Faculdade de Educação da
muita coisa. Por meio da câmera alta, de certa forma, é Universidade de Brasília. Graduada em Comunicação Social – Audio-
possível enterrar uma pessoa ou assunto. A câmera – e, visual: Cinema, Rádio e Televisão – pela FAC/UnB, é doutora em Edu-
portanto, quem vê– assume uma postura de maior rele- cação, Conhecimento, Linguagem e Arte, pela FE/Unicamp. Atuou
vância em relação ao assunto em tela. A câmera baixa ele- como consultora na área de cinema e televisão em educação em várias
va o assunto podendo enaltecê-lo. E a câmera posicionada séries do programa Salto para o futuro da TVEscola/MEC/TVBrasil.
na horizontal estabelece uma relação de igualdade de va-
lor entre quem filma e quem ou o que é filmado.
O som é um elemento estético auditivo e também Referências
possui uma estrutura. A estrutura do som pode ser per- ALMEIDA, Milton José de. Cinema arte da memória. Campinas: Au-
cebida a partir da intensidade, do volume, da altura, do tores Associados, 1999.
timbre e da duração. No audiovisual, de modo geral, os CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janei-
sons são constituídos a partir da fala produzida por meio ro: Nova Fronteira, 1993.
da captação do som direto, que é aquele captado ao mes- COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: a arte de escrever para cine-
mo tempo que a imagem, o som off ou a narração oral ma e televisão. Lisboa: Pergaminho, 1993.
que é construída e gravada posteriormente, as músicas e PIMENTEL, Erizaldo Cavalcanti Borges. Cine com ciência – luz, câ-
os ruídos adicionais. Quando, na história a ser contada, mera... educação. Tese de doutorado. Faculdade de Educação,
há a necessidade de gravar entrevistas, há um momento Universidade de Brasília, 2013.
específico para tratar desse aspecto. São trabalhadas as
perguntas de maneira que o interlocutor possa expressar Filmes citados
as suas ideias e não apenas responder sim ou não. Para A invenção de Hugo Cabret. Martin Scorsese, EUA, 2011.
a entrevista é importante estudar também os enquadra- Metrópolis. Fritz Lang, Alemanha, 1927.
mentos e os contraplanos que enriquecem a narrativa e O artista. Michel Hazanavicius, França e Bélgica, 2011.
revelam os assuntos de forma bastante positiva quando O cantor de jazz. Alan Crosland, EUA, 1927.
usados adequadamente. O Encouraçado Potemkin. Serguei Eisenstein, Rússia, 1925
O garoto. Charles Chaplin, EUA, 1921
Tempos modernos. Charles Chaplin, EUA, 1936.

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Videoarte

Leitura da
imagem na
sala de aula
Ler videoproduções na escola torna
possível problematizar os efeitos de sentido
gerados por linguagens visuais e sonoras
inter-relacionadas, levando assim
um olhar crítico ao mundo audiovisual
por Analice Dutra Pillar

N
o universo multissensorial contemporâneo, as
produções audiovisuais se multiplicam e se di-
fundem de modo vertiginoso através de diversas
mídias. Inundam nosso cotidiano com sua presença em
praticamente todos os lugares. Não basta apenas viver uma
determinada situação, é preciso registrá-la e postar nas re-
des sociais. A vida se transformou num espetáculo audiovi-
sual compartilhado com todo mundo. Tais produções, por
envolverem diferentes linguagens que articuladas geram
efeitos de sentido audiovisuais, tornam-se objetos comple-
xos e sua leitura solicita um outro tipo de abordagem.

Leituras
© James Coupe e Juan Pampin, Sanctum, 2014. Reprodução

Na leitura de uma imagem estão implicados movimen-


tos de aproximação gradual do objeto, como se nosso olhar
fizesse um zoom-in, desfocando o fundo para realçar certos
detalhes, sua linguagem, seu modo de produção; movi-
mentos de afastamento gradual, como um zoom-out, para
visualizar o todo da imagem, seu contexto num enquadra-
mento espacial e cultural que posiciona imagem e leitor; e,
ainda, tempo para analisá-la. Esta alegoria da leitura com os
movimentos da câmera busca evidenciar a complementari-
30 • 31

A vida se transformou num espetáculo


audiovisual compartilhado com todo
mundo. “Sanctum”, videoinstalação dos
artistas James Coupe e Juan Pampin
que usa informações do Facebook
para desafiar as nossas ideias de
privacidade e espaços públicos

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dade entre essas ações na produção de efeitos de sentido, e às relações de poder que permeiam. A análise com base
mostrando a relevância de cada uma e focalizando os deslo- nos estudos da cultura visual propicia apreender as intera-
camentos entre elas, suas intensidades. Esses movimentos ções discursivas presentes nas diferentes imagens que nos
são contemplados na leitura tanto na abordagem da teoria rodeiam e nos constituem. María Acaso, em Esto no son las
semiótica discursiva como nos estudos da cultura visual. Torres Gemelas: cómo aprender a leer la televisión y otras imá-
A leitura semiótica busca apreender os efeitos de senti- genes (Estas não são as Torres Gêmeas, como aprender a ler
do que cada leitor produz na sua interação com diferentes a televisão e outras imagens, 2006), destaca que este mode-
textos, entendendo o mundo como um texto. Para com- lo teórico propõe uma leitura crítica das imagens quanto às
preender como o sentido se constitui num determinado relações de poder, às concepções de gênero, raça, classe so-
objeto, a semiótica propõe a desconstrução e a reconstru- cial, religião que as atravessam e que modelam nossa visão
ção deste objeto. Poderíamos, então, relacionar o movi- de mundo e a construção de nossa identidade.
mento de aproximação aos procedimentos de desconstru-
ção e reconstrução de uma imagem. Ao desconstruir uma Contextos da leitura
imagem, descrevendo e analisando o que ela mostra (seu Nesses sistemas de análise de campos teóricos distintos,
conteúdo) e como mostra (a linguagem utilizada, sua ma- a semiótica discursiva e os estudos da cultura visual, im-
terialidade, as cores, formas, organização espacial) se quer porta desconstruir a imagem identificando tanto o modo
identificar seus elementos. E ao reconstruir, o foco estará como ela se mostra, quanto seu significado, o que aborda;
nas relações entre os elementos, como elas se estruturam e reconstruí-la para compreender como as relações entre
e que significações propiciam. Ainda, nessa concepção de estas duas instâncias significam. O entrelaçamento dessas
leitura, para que se apreendam os efeitos de sentido não duas perspectivas teóricas, sem o apagamento de suas es-
se pode focar somente a imagem nem somente o leitor, pecificidades e diferenças, busca ampliar as possibilidades
pois os efeitos de sentido são uma criação que se dá na re- de leitura de imagem na sala de aula. A leitura é, então,
lação do leitor com a imagem, num determinado contex- um modo de compreender o que e como as produções vi-
to. Assim, é preciso também um afastamento para colocar suais e audiovisuais se mostram, de conferir-lhes sentido.
em foco outros elementos como o espaço em que esta Importa lembrar, também, que não existe leitura que não
produção se insere e as informações culturais que tanto a esteja contaminada pelo contexto, pelas inquietações de
imagem como o leitor portam. uma época e lugar, por determinados discursos.
A respeito da produção de sentidos, Eric Landowski, É preciso considerar, ainda, o tempo que a leitura
em Avoir Prise, Donner Prise (Apreender, Apreensão, 2009), solicita. A respeito do tempo, Zygmunt Bauman, em Los
ressalta que o sentido não é uma substância que habita Retos de la Educación en la Modernidade Líquida (Os De-
as coisas e se oferece na imediaticidade de sua presença, safios da Educação na Modernidade Líquida, 2007), ob-
nem está fixado numa grade cultural de reconhecimento serva que atualmente “o tempo chega a ser um recurso
dos objetos ou dos sujeitos, mas é um efeito, uma resul- (...) cujo gasto se considera unanimemente abominável,
tante da interação do sujeito com os objetos. O sentido é, injustificável e intolerável”. Ele comenta que hoje em dia
portanto, uma construção que emerge da relação de cada toda demora, espera ou adiamento gera um estigma de
sujeito com os elementos que estão postos nos textos; as inferioridade. Esta relação com o tempo, Bauman deno-
informações de que dispõem; e o contexto que o acolhe. mina de “síndrome de impaciência”, na qual “o tempo é
Assim, à medida que o leitor olha e reflete sobre o que vê, um incômodo e uma obrigação, uma contrariedade, uma
sua leitura vai se tornando mais complexa e mais densa. afronta à liberdade humana, uma ameaça aos direitos hu-
A leitura, na perspectiva dos estudos da cultura visual, manos e não há nenhuma necessidade nem obrigação de
põe em foco as representações visuais e seus significados. O sofrer tais desconfortos de boa vontade”.
movimento de aproximação consistiria, aqui, em descons- A leitura visual e audiovisual anda na contramão da
truir o modo como as imagens mostram as representações “síndrome da impaciência”, pois para ler é preciso tem-
de classes sociais, de gênero, raça, etnia, inscrevendo-as po. Ao discutir as diferenças entre ver e ler, María Acaso,
como universais dentro de determinados padrões estéti- em Esto no son las Torres Gemelas..., diz que “o verbo ‘ver’
cos. Já o movimento de afastamento estaria relacionado (...) significa pousar nosso olhar de forma superficial so-
à reconstrução dessas representações visuais quanto aos bre algo. Sem dúvida, ‘ler’ significa primeiro olhar, deter
efeitos sociais que ensejam nas construções de identidades o olhar no que se vê, obter a informação e selecionar um
32 • 33

Videoinstalação
sonora do artista
americano Bill Viola,
um dos expoentes
da videoarte no
mundo: ruptura
com a narrativa
sequenciada e
contínua; silêncios,
redundâncias,
excessos
© Bill Viola, The Greeting, 1995. Reprodução

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Videoarte

é visível, que percebemos visualmente. Nos espaços de


Obra da artista educação formal, observa-se que os professores têm pro-
sérvia Marina
Abramovic. A curado tematizar e inserir em suas práticas a leitura de
leitura da arte imagens através de reproduções de obras de arte, de pro-
contemporânea
tem recebido pagandas da mídia impressa e vídeos. No entanto, pouca
pouca atenção na atenção está sendo dada à leitura de produções audiovisuais
escola e, quando é
analisada, utilizam-
da arte contemporânea.
se parâmetros da Como, então, ler produções audiovisuais, em especial,
arte moderna como ler aquelas relacionadas à arte contemporânea?

Produções audiovisuais: videoartes


As produções audiovisuais, realizadas a partir da mon-
tagem de fragmentos de textos imagéticos e sonoros, con-
sistem num trabalho em que diferentes linguagens se in-
ter-relacionam para construir uma significação. Ana Sílvia
Médola, em A Articulação entre Linguagens: a problemática
do sincretismo na televisão (2000), mostra que no audio-
visual os sistemas visual e sonoro abrigam várias lingua-
gens. No sistema visual podemos identificar as linguagens
verbal escrita, imagética, cenográfica, gestual e a moda; e
no sistema sonoro, as linguagens verbal, oral, da música
© Marina Abramovic. Reprodução

e os ruídos. E Nilton Hernandes, em Duelo: a publicidade


da tartaruga da Brahma na Copa do Mundo (2005), chama
a atenção, ainda, que as “tomadas de câmera, sons, músi-
cas, iluminação, cenários, figurinos entre muitos outros
elementos possíveis, constroem um todo de significação”.
A montagem é que vai articular os sistemas visual
e sonoro para criar uma produção audiovisual. Yvana
Fechine, em “Contribuições para uma Semiotização da
produto visual do resto (...)”. Ela observa, também, que o Montagem” (2009), observa que para compreender tais
ler envolve compreender o que e como a informação se produções é preciso, então, analisar que efeitos de senti-
mostra ao nosso olhar. E ressalta que, “aprender a ler uma do os procedimentos de montagem produzem ao articu-
imagem não se desenvolve de forma inata. Para isto é ne- larem as linguagens visuais e sonoras.
cessário adquirir uma série de conhecimentos e colocar Em relação aos procedimentos técnico-expressivos de
em funcionamento um sistema de análise”. montagem, que articulam as qualidades sensíveis das dife-
No contexto brasileiro, a denominação leitura de ima- rentes linguagens, a autora menciona que a primeira pre-
gens passou a fazer parte do ensino de arte na escola, de ocupação é com a construção da sucessividade visual, com
modo sistemático, a partir do final da década de 1980, as articulações dos planos em cada quadro e entre os dife-
com a Abordagem Triangular. Tal Abordagem, criada por rentes quadros. Para analisar a articulação da imagem com
Ana Mae Barbosa, propõe que o ensino da arte envolva o som, Fechine considera importante identificar categorias
a criação nas linguagens artísticas, a leitura de imagens nas duas formas de expressão (visual e sonora), as quais ao
e a contextualização. Ana Mae Barbosa, em A Imagem no serem superpostas criam “homologações, que funcionam
Ensino da Arte (1991), Tópicos Utópicos (1998) e Abordagem como ‘engates’ de uma expressão em outra, amalgamando
Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais (2010), tra- o sentido entre as diferentes linguagens”. Na montagem,
ça os pressupostos dessa teoria em construção. as articulações entre o que se vê e o que se ouve criam um
A palavra imagens abriga, em sua amplitude, não só efeito audiovisual, com coincidência temporal ou não en-
criações artísticas, mas também produções da mídia, ob- tre imagem e som, o que provoca sensações seja de coe-
jetos do nosso cotidiano, lugares, pessoas, enfim tudo que rência em relação ao percebido ou de estranhamento. De
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acordo com Fechine é o ritmo, como propriedade comum (2005), diz que um dos conceitos fundamentais que per-
ao vídeo (movimento visual) e ao áudio (tempo musical), correm a estética do vídeo é a ideia do tempo. O tempo
que vai fazer as “suturas audiovisuais”. pode ser percebido, então, em sua inscrição discursiva na
A visibilidade editada do espaço e do tempo no vídeo imagem, no ritmo e no movimento impressos às imagens
apresenta imagens do real e de ficção em diálogo, mas e aos sons no vídeo, na aceleração ou na desaceleração, na
também as funde, criando novas realidades. Priscila Aran- rapidez ou no congelamento do que se apresenta.
tes, em Arte e Mídia no Brasil: perspectivas da estética digital Dentre as produções audiovisuais, nossa escolha re-

COMO ANALISAR PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS COM OS ALUNOS

Em relação às produções no objeto, do contexto de leitura os seguintes conhecimentos


audiovisuais contemporâneas, e das informações que temos. técnicos acerca do processo de
sejam as televisivas ou as artísticas, Assim, é importante assistir às criação na linguagem audiovisual:
a escola pode assumir diferentes videoartes junto com os alunos para - modo de capturar as imagens;
posicionamentos. depois analisá-las em conjunto. - armazenamento;
Roxana Morduchowisz, em La Para analisar as produções - programas que alteram as
TV que queremos: una televisión de audiovisuais junto aos estudantes, imagens realizando distorções
calidad para chicos y adolescentes com base na semiótica discursiva e deformações;
(A TV que queremos: uma televisão e nos estudos da cultura visual, - possiblidades de montagem
de qualidade para crianças e pode-se, em primeiro lugar, de diferentes cenas.
adolescentes, 2010), menciona três desconstruir o texto audiovisual Sua acuidade visual e sonora
práticas pedagógicas possíveis em identificando, descrevendo e foi evidenciada ao identificarem
relação à televisão, que podem analisando as linguagens que tipos de músicas e de instrumentos,
abarcar, também, outras criações participam tanto no sistema visual bem como dissonâncias entre o
contemporâneas. A primeira é uma como no sonoro; as relações que era visto e o som. Refletir sobre
postura restritiva, que considera que criam entre os sistemas para estas experiências com a linguagem
que não é útil ensinar crianças e constituir o efeito audiovisual e audiovisual é uma das funções do
adolescentes a serem leitores críticos seus significados. E reconstruir para ensino de artes visuais na escola.
dessas produções. A segunda é uma compreender os efeitos de sentido que Foi possível apreender,
postura ativa ou instrutiva que busca a montagem provoca ao articular as também, os posicionamentos dos
realizar uma mediação através diversas linguagens. Tais significações alunos diante dessas produções, suas
de informações que possibilitem a estão contaminadas pelos significados inferências, além das relações que
crianças e adolescentes entenderem culturais que perpassam esses estabelecem a partir do que é visto
melhor o que veem. E, por trabalhos, pelas experiências do com um contexto cultural mais amplo.
fim, uma postura de visualização professor e dos alunos. Na pesquisa realizada
compartilhada, que procura Experiências de leitura de com um grupo de alunos do ensino
ver junto com os alunos tais videoartes realizadas em sala de fundamental, surgiram discussões
produções para conhecer suas aula – que podem ser conhecidas acerca da imagem como um objeto
leituras e problematizá-las. em Inscrições do Contemporâneo construído e não como uma
Interessa-nos esta postura de em Narrativas Audiovisuais: realidade; dos tipos de imagens,
visualização compartilhada de simultaneidade e ambivalência dos ângulos em que as cenas são
produções audiovisuais buscando (2013) e Produções Audiovisuais mostradas e seus significados; da
apreender, em presença, possíveis Contemporâneas e o Ensino da montagem como um procedimento
efeitos de sentido que se alteram Arte: exercícios de leitura (2011) – da linguagem audiovisual muito
em função do que percebemos mostraram que os alunos possuem presente em nosso cotidiano.

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Videoarte

© Nicola Costantino, Rapsodia Inconclusa. Eva los sueños, 2013. Reprodução

Videoinstalação da
artista argentina
Nicola Costantino.
Micronarrativas são
criações artísticas
que propiciam um
olhar crítico acerca
do que apresentam
36 • 37

caiu naquelas vinculadas à arte contemporânea, as vi- ram as primeiras videoartes brasileiras, como uma nova
deoartes, por utilizarem a mesma linguagem da mídia forma de olhar e de criar que se distanciava da ilusão
televisiva, a qual faz parte do cotidiano de crianças e ado- presente nas produções da mídia televisiva ou cinema-
lescentes brasileiros, mas agora de um modo diferente, o tográfica. Com interesse nas possibilidades expressivas
das investigações poéticas. da linguagem audiovisual, artistas começam a explorar o
Na mídia televisiva, em especial na televisão comercial, é vídeo como meio de expressão, contrapondo-se aos mo-
possível destacar algumas características gerais como: uma dos utilizados na televisão comercial. Destas experimen-
sofisticada tecnologia de produção e exibição de programas, tações originaram-se as videoartes, que propiciam outras
que explora a alta definição de imagem e som; imagens fi- relações estéticas e estésicas com o audiovisual.
gurativas que buscam efeitos de verossimilhança para que Naquele momento, as videoartes eram apresentadas
o espectador sinta-se participando da cena; sincronia entre em espaços museológicos, galerias de arte, em lugares pú-
vídeo e áudio; uma narrativa clara, contínua, sequenciada, blicos relacionados às artes visuais. A respeito do lugar de
que alterna ritmos acelerados e desacelerados. Trata-se de exibição e do acesso a estas produções, Gilles Lipovetsky,
narrativas em que as linguagens sonoras homologam as lin- em A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermo-
guagens visuais produzindo efeitos de realidade. derna (2009), diz que no início do século XXI “um novo e
Diferentemente das produções audiovisuais da mídia formidável vetor de difusão vem mudar a situação, sub-
televisiva, as produções audiovisuais da arte contemporâ- traindo a videoarte desse mundo fechado [do circuito das
nea (videoartes) experimentam a criação de experiências artes visuais]: a web”. Com o aparecimento de sites de di-
estéticas com sobreposições, deformações, distorções de fusão e compartilhamento de vídeos, como o YouTube, as
imagens e sons. Com relação às rupturas provocadas pelas videoartes passaram a ser expostas na rede.
experimentações dos artistas com a linguagem do vídeo, No entanto, apesar de estarem disponíveis na web, a lei-
Arlindo Machado, em Arte e Mídia (2007), diz que “a pers- tura de videoartes no ensino de artes visuais é muito tími-
pectiva artística é certamente a mais desviante de todas, da, seja por receio ou rejeição do professor em tematizá-las
uma vez que ela se afasta em tal intensidade do projeto tec- com os alunos; seja por estas criações mobilizarem distin-
tas linguagens e práticas de leitura. As-
sim, numa primeira instância, se pode
“Pode-se buscar no YouTube videoartes buscar, no YouTube, videoartes que

que explorem a linguagem audiovisual de explorem a linguagem audiovisual de


modo diferenciado da mídia televisiva,
modo diferenciado da mídia televisiva” para mostrar aos alunos outras for-
mas de criação nessa linguagem. Esta
busca vai ser orientada pela proposta
nológico originalmente imprimido às máquinas e progra- do professor, pelos interesses dos alunos, pelas temáticas e
mas que equivale a uma completa reinvenção dos meios”. possibilidades expressivas, pelo tempo de duração. Selecio-
São, pois, produções que exploram tanto o movimen- nadas as videoartes, como, então, analisá-las?
to nas imagens e as imagens em movimento, quanto dife-
rentes articulações entre as linguagens visuais e auditivas; Leituras da imagem em sala de aula
distanciam-se da narrativa linear, dos efeitos de verossi- No ensino de artes visuais realizado nas escolas brasi-
milhança; e rompem com as montagens convencionais da leiras podem-se constatar práticas de leitura de imagens
televisão comercial. As pesquisas dos artistas, neste meio, da arte, de diversas épocas e lugares, através de reprodu-
utilizam sobreposições de imagens e sons; rupturas com ções de obras e de vídeos. No entanto, a leitura da arte
a narrativa sequenciada e contínua; narrativas fragmen- contemporânea tem merecido pouca atenção na escola e,
tadas, híbridas não só nas linguagens (verbal, imagética, quando é realizada, utilizam-se parâmetros da arte moder-
gestual, musical), como também nas mídias (vídeo, foto- na. A este respeito, Anne Cauquelin, em Arte Contempo-
grafia); silêncios, redundâncias, excessos. rânea (2010), diz que “a imagem da arte moderna, que é
No Brasil, na década de 1960 alguns artistas já faziam mantida através de toda espécie de meio de comunicação,
experimentações com recursos audiovisuais em seus tra- contribui para desconsiderar a arte contemporânea”. Isto
balhos. No entanto, somente nos anos 1970 é que surgi- porque, segundo ela, “julga-se o presente pela bitola do

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Videoarte
© Shirin Neshat, Rapture series (Women in a Line), 1999. Reprodução

passado, em que os critérios de valor subsistiam, em que tistas, teóricos, mediadores culturais e sociais. Muitas expe-
a ‘modernidade’ estava contida e cabia por inteiro no con- riências nesse campo vêm sendo desenvolvidas, no Brasil e
ceito de ‘vanguarda’, em que a arte parecia assumir a sua no exterior, em espaços tanto de educação formal como não
função crítica”. Assim, importa possibilitar leituras da arte formal, com registros históricos do início do século XX sobre
contemporânea a partir de concepções que contemplem a recepção da arte por crianças e adolescentes.
sua complexidade. A respeito de um ensino da arte que dialogue com as in-
Ao se referir aos modos contemporâneos de criação quietações atuais, Arthur Efland, Kerry Freedman e Patricia
de imagens, Nicolas Bourriaud, em O que É um Artista Stuhr, em La Educación en el Arte Posmoderno (O ensino da
(Hoje)? (2003), observa que houve uma mudança de pa- arte pós-moderno, 2003), ressaltam que é preciso incluir a
radigma na concepção de criação artística, não mais arte contemporânea, o multiculturalismo e a cultura visual
associada à criatividade, à originalidade expressiva do em seu currículo. Inclusão, entendida como experimenta-
artista, como na modernidade, mas às relações que ele ção e reflexão acerca dessas produções e experiências.
estabelece entre diferentes referências. E para evidenciar Ao analisar o tipo de narrativa que as imagens e as
os processos atuais de produção artística Bourriaud, em produções audiovisuais produzem, María Acaso (2006)
Pós-Produção (2009), utiliza como alegoria as “figuras gê- diz que podemos considerá-las como macronarrativas ou
meas” do DJ e do programador, que selecionam objetos micronarrativas. As macronarrativas abrangem o conjunto
culturais e os inserem em outros contextos. de imagens que procura estabelecer modelos, levando as
Da mesma forma se dá a leitura dessas produções. As pessoas a realizarem determinadas ações, a seguirem deter-
diversas informações visuais, sonoras e audiovisuais apre- minados padrões. Aqui podemos situar a mídia televisiva.
endidas de várias mídias são editadas, remixadas e acessa- Já as micronarrativas dizem respeito a produções, em geral
das ao darmos sentido às imagens. relacionadas à arte, que se opõem aos modelos e nos fazem
Nas últimas décadas, a leitura de imagens tornou-se uma refletir sobre nossa visão de mundo. São criações artísticas
questão importante para professores de arte, educadores, ar- que propiciam um olhar crítico acerca do que apresentam.
38 • 39

REFERÊNCIAS
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la televisión y otras imágenes. Madri: Catarata, 2006.
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Olhar crítico ma na Copa do Mundo”. In: LOPES, Ivã C.; HERNANDES, Nil-
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sala de aula, com foco nas produções audiovisuais da arte 2005, p.227-244.
contemporânea, buscam oferecer subsídios ao professor e LANDOWSKI, Eric. Avoir Prise, Donner Prise. Nouveaux Actes Sé-
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visuais na escola, sob o enfoque da teoria semiótica e da nas/document.php?id=2812> Acesso em 09/06/2014.
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Analice Dutra Pillar é mestre e doutora em Artes pela Universi- CRS. On-line), Porto Alegre, v. 36, p. 306-313, 2013.
dade de São Paulo. Fez pós-doutorado em Artes, na Universidad PILLAR, Analice D. “Produções audiovisuais contemporâneas e o
Complutense de Madri, Espanha. É professora Associada da Fa- ensino da arte: exercícios de leitura”. In: FREITAS, Neli Klix;
culdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do RAMALHO E OLIVEIRA, Sandra; NUNES, Sandra Conceição.
Sul (UFRGS), onde dá aulas e é pesquisadora no Programa de Pós- (org.). Proposições interativas III: arte, pesquisa e ensino. Floria-
-Graduação em Educação. nópolis: UDESC, 2011, v. 1, p. 11-23.

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Investigações

Apropriação de
imagens em sala
pelo professor
A abordagem semiótica estimula docente e
alunos a inverterem a lógica de que é pela biografia
do artista que se chega à significação da obra
por Moema Martins Rebouças
© Ana Teixeira. Reprodução
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Grafite em rua de
São Paulo. A escola
desconsidera que a
imagem é portadora
de conhecimento,
destinando esse status
aos textos verbais

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Investigações

N
em sempre o professor consegue se apropriar da função estética e decorativa em livros didáticos de di-
imagem como fonte de investigação artística, ferentes disciplinas e em outros suportes existentes no
cultural e estética e relacioná-la com os conteú- espaço escolar, como painéis, faixas, cartazes etc. A esco-
dos de sua disciplina em sala de aula. Vamos discutir nes- la desconsidera, portanto, que a imagem é portadora de
te artigo como atingir essa meta, inevitável num mundo conhecimento, destinando esse status aos textos verbais.
povoado por fotos, desenhos, vídeos, memes etc. Presentes tanto nos suportes tradicionais como nos
Na contemporaneidade, com o acesso crescente às digitais, as imagens integram um sistema visual utiliza-
tecnologias, a convivência com as imagens rompe fron- do como meio de expressão, comunicação e para signifi-
teiras como as que separam o “dentro” e “fora” da escola, car e “criar mundos”. Por meio dele e também de outros
aproxima as pessoas por intermédio da tecnologia e con- sistemas de linguagem, como o sonoro e gestual, é pos-
tinua a desempenhar um importante papel na experiên- sível ao homem realizar deslocamentos, não só espacial-
cia e compreensão da humanidade. mente como temporalmente, possibilitando-lhe conhe-
Isso não escapou às Diretrizes Curriculares Nacio- cer outras culturas, suas manifestações e práticas.
nais da Educação Básica (DCNEB) de 2013. Lê-se nelas Assim, as imagens presentes nas mídias desde as que es-
que enquanto a escola se prende às características da tão em outdoors espalhados nas cidades, como as fotográ-
metodologia tradicionais, utilizando-se de suportes de ficas disponibilizadas em meios como a internet, ou ainda
aprendizagem impressos e de uma relação entre ensino as artísticas, integram o sistema visual que é composto por
e aprendizagem como instâncias concebidas separada- elementos formais presentes na linguagem visual. Inte-
mente, os estudantes, por pertencerem à era digital, têm grantes de um sistema por constituírem-se a partir de uma
acesso à tecnologia e a utilizam como modo de aproxi- organização própria, as imagens são produzidas por sujei-
mação e comunicação entre eles, com os acontecimentos tos em determinado tempo e espaço e possuem as marcas
de seu entorno e do mundo. Agindo assim, comunicam- daqueles que as produziram e do contexto de sua produção.
-se e obtêm informações com rapidez e ainda conseguem A semiótica plástica é a disciplina teórica que estuda a
– e até apreciam –realizar várias tarefas ao mesmo tempo imagem como linguagem e a compreende como um tex-
e em processos paralelos. Em relação às imagens, desde to pertencente a um sistema visual. Entre seus principais
que possuam um celular com câmera fotográfica, podem teóricos estão o lituano Algirdas Greimas,o francês Jean
criar, editar, difundir e ler as suas próprias imagens e às Marie Floch e, no Brasil, Ana Claudia de Oliveira.
que têm acesso mediados pela tecnologia.
Contudo, embora as ocasiões para a criação, edição, Imagem como linguagem e texto visual
difusão, leitura e investigação que envolvem as imagens Um texto visual é como uma trama composta por
sejam cada vez mais frequentes, normalmente elas ocor- pontos, linhas, cores, superfícies, formas retas ou arre-
rem fora das salas de aula. A responsabilidade da esco- dondadas que articuladas compõem um tecido de sig-
la centra-se na formação do produtor e leitor de textos, nificação. Não importa o suporte (tela, papel, écran, ma-
por isso a ênfase maior é dada ao sistema verbal e não deira), ou o tipo da imagem (obra de arte ou da mídia),
ao visual. A imagem na escola é compreendida ora com qualquer texto visual é constituído pelos componentes
uma função ilustrativa de textos verbais, ora com uma formais da linguagem visual.

Em cada mídia a imagem possui recursos


específicos de expressão e pede determinado
tempo para que se possa empreender
© Richard There, Woman in the Wind, 2010. Reprodução

sua leitura
© Mark Tansey, The innocent eye test, 1981. Óleo sobre tela. Reprodução
42 • 43

Pintura do artista americano Mark Tansey. Ler uma imagem de


publicidade ou uma obra de arte requer tempos muito distintos

Para compreendê-lo, não basta ao leitor identificar tura, tampouco uma relação par a par como da letra e
um de seus componentes e caracterizá-lo como perten- seu som, a palavra e suas definições. Para a apropriação
cente à determinada categoria da linguagem visual (dese- da imagem é importante que as escolhas do professor
nho, pintura, fotografia etc.), ou reconhecer que a imagem ou dos alunos atendam ao planejamento, aos objetivos
é composta de cores primárias. A identificação equivale e às competências previstos da disciplina para que pos-
ao processo de aquisição da linguagem escrita quando a sam explorar juntos a complexidade que envolve o ato de
criança reconhece e identifica as letras. Estas não pos- leitura da linguagem visual. Deste modo, em suas aulas,
suem sentido isoladamente, só com a articulação com ou- poderão enfrentar o desafio que envolve a investigação
tras é que a criança terá acesso ao significado da palavra, e a leitura das imagens a partir da produção de sentidos
e assim, sucessivamente. Uma palavra sozinha significa que elas constroem na relação com o leitor.
algo, alguma coisa, ou alguém, mas articulada com outras
assume outros sentidos e significações. Como compreender a significação
O mesmo ocorre no sistema visual, pois ele também Em cada mídia a imagem possui recursos específicos
se estrutura a partir da organização de componentes de expressão e pede determinado tempo para que se pos-
constituintes tais como as cores e formas na superfície sa empreender sua leitura. O tempo exigido de um olhar
pintada, desenhada ou fotografada. leitor para uma obra de arte, uma imagem da publicida-
Entretanto, se na gramática do texto verbal lida-se de, ou para uma charge de jornal, por exemplo, está em
com a arbitrariedade da língua, como a existência de um conformidade com a própria mídia em que essa imagem
alfabeto, ou a necessidade de uma direção de leitura da se manifesta. A explicação para essa diferença não está so-
esquerda para a direita para que se possa compreender mente no prestígio que uma mídia tem sobre a outra, mas
o encadeamento das palavras e das frases, o texto visu- na estrutura comunicativa da própria linguagem visual em
al, apesar de possuir uma organização e uma sintaxe, ou conformidade com seu meio de manifestação ( artístico,
seja, um arranjo e uma disposição dos elementos visuais jornalístico, publicitário). Essa variabilidade permite ao
numa dada superfície, não possui uma direção para a lei- professor escolhas gradativas em que a diversidade estru-

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tural da visualidade possa ser produtiva em seus planeja- Quando nos vemos em fotos antigas, não reconhecemos
mentos de modo a possibilitar que as imagens apropriadas nelas somente traços de nossa juventude, mas também os
em sua prática pedagógica constituam, elas mesmas, con- estilos das roupas e dos cortes de cabelo pertencentes àque-
teúdos de ensino. la época, o que nos inclui naquele tempo e naquele lugar.
Com isso será possível ao leitor estabelecer conexões Na linguagem, todo discurso se manifesta em textos,
com a imagem lida, caso compreenda que ela é portado- e, independentemente de ser verbal ou visual, está envol-
ra de saberes, ou seja, é produção material humana que to e perpassado por ideias, pontos de vista, estilos e apre-
se manifesta em pinturas, esculturas, cartazes, revistas ciações de outros. Isso ocorre porque o acesso à produção
entre outros suportes e,nesse fazer, insere o homem na humana se dá por meio da linguagem e esta se manifesta
sociedade e na cultura. nos discursos que produz.
É importante que se esclareça que ao considerarmos a Assim, a mídia em que a imagem é apresentada é um
imagem como linguagem, e como texto visual, temos de fator importante a considerar em sua leitura, pois, estru-
levar em conta que toda linguagem é biplanar, ou seja, é
composta de dois planos: o da expressão e o do conteúdo.
Possui uma forma e um conteúdo. Para ser linguagem, um A imagem como objeto de significação
© Ana Teixeira. Reprodução exige do leitor uma construção do
sempre está interligado ao outro. Assim, poderíamos dizer
olhar a partir das relações que poderá
que a forma é conteúdo, ou ainda que a materialidade da edificar com a plástica textual
expressão concretiza um conteúdo. Portanto, são insepará-
veis, embora metodologicamente, para a leitura, é necessá-
rio que o leitor faça uma desmontagem da imagem para que
possa ter acesso à organização textual e compreender como
a significação é produzida por um certo uso da linguagem.
Diferente da História da Arte, por exemplo, que pos-
sui uma ênfase mais na história dos estilos, ou da vida
dos artistas, o que a semiótica propõe é uma inversão de
um encaminhamento vigente e ainda muito comum nas
escolas: oferecer a biografia do artista aos alunos, antes
mesmo da proposição da leitura da obra.
O que propomos com base na semiótica é que o pro-
fessor, ele mesmo, e junto com seus alunos permita que a
imagem escolhida aponte a sua visibilidade, visualidade e
sentido num percurso que parta dela mesma.

Texto visual e contexto


A imagem insere-se na sociedade como produção e
comunicação humana, por isso é possível relacioná-la
com o contexto em que ela aparece. O contexto abrange
desde as marcas de seu tempo, como o estilo, que é um
traço cultural, artístico e poético, até os valores de quem
a enuncia e a produz, ou seja, os produtores e criadores
– compreendidos na teoria semiótica como os enuncia-
dores ou produtores do texto visual.
A imagem como linguagem é resultado de interações
que ocorrem em processos comunicativos. Assim uma gíria,
ou até mesmo os bordões evocados e repetidos por nós em
nossas ações rotineiras, constituem-se como manifestações
de linguagem pertencentes a contextos culturais e sociais es-
pecíficos. O mesmo podemos afirmar da linguagem visual.
44 • 45

turada para comunicar, a imagem leva consigo os valores Exercício com as marcas contextuais
do enunciador que a produz, a exemplo de um jornal ou É importante destacar que um exercício investigativo
uma peça publicitária. dessa amplitude só poderá ocorrer quando os professores
O tempo também condiciona a leitura. Ler uma ima- e seus alunos em seus processos de leitura compreende-
gem de publicidade ou uma obra de arte requer tempos rem que o texto visual é portador de marcas contextuais
muito distintos, como um outdoor, uma revista ou uma (de quem o produziu, para quem e como o produziu), e
pintura em uma galeria de arte. Os valores que circulam que estas marcas ao se apresentarem em outros textos
nos textos visuais apresentados nesses diferentes supor- dialogam com ele. A semiótica chama esse diálogo de um
tes, com exigências de temporalidades distintas para a sua texto com outro de intertextualidade e abrange a com-
leitura, são aspectos que o professor pode explorar em preensão de dialogismo para Bakhtin.
sala de aula. Pode até mesmo propor uma aprendizagem Assim, as marcas presentes no texto visual, tais como
para si e seus alunos de construção da significação a partir o estilo, a técnica, a composição, a distribuição da forma,
dessa diversificação de mídias e refletir sobre elas. o assunto tratado e até mesmo a intertextualidade esta-
belecida entre sua plasticidade e visualidade com seu tí-
Uma imagem, diferentes significações tulo verbal, pertencem ao seu contexto formador, ou seja,
Ao levar as imagens para a sala de aula é importante ao macro-texto que as engloba.
que o professor leve em conta a sua variabilidade sígnica A intertextualidade se dá pela reiteração ou aproxima-
e seus diferentes suportes. Desse modo é possível com- ção de componentes de um texto em outro de um modo
preender que uma mesma imagem, veiculada por uma direto, ou indireto. Quando se trata de modo direto, o
mídia diferente, torna-se outra imagem, mudando, por- interesse do enunciador pode ser o de subverter o texto,
tanto, a sua significação. Compreenderá, assim, que cada atribuindo-lhe outras possibilidades de significação.
mídia possui recursos específicos de expressão, e nesse Na Arte, temos vários exemplos de citação direta, in-
operar dos componentes da expressão, o enunciador (ar- dependentemente da época e do lugar. As apropriações
tista/designer/produtor) constrói sua versão dos fatos e os da obra de um artista por outro ocorrem numa reapre-
apresenta ao leitor. Se há uma diferença entre um jornal sentação que leva em conta o ponto de vista, a estética
e outro, entre uma revista e outra, o que dizer entre mí- e repertório plástico do artista. Um exemplo é a série
dias distintas e entre elas e a arte, e entre a arte de deter- realizada por Picasso a partir de 1957 com a pintura As
minada época e outra de determinado local? meninas (1656), de Diego Velázquez (1599-1660), que está
Nesse percurso entre o texto visual e o contexto, a lei- no Museu do Prado na Espanha. Ou ainda, a apropriação
tura envolverá uma dupla movimentação: uma sincrônica da mesma obra de Velázquez pelo artista contemporâneo
e outra diacrônica. brasileiro Waltércio Caldas, com a obra Livro Velázquez,
A abordagem sincrônica possibilitará contextualizar o de 1996, que pode ser “vista” no site do artista.
texto visual lido, articulando-o à época e à sociedade que Ao comparar as três obras veem-se processos diferen-
o gerou. Nesse movimento é possível investigar as condi- tes de um artista a outro, de uma estética à outra, reapre-
ções de produção e de interação entre produtores e leito- sentando a obra não somente a partir de outras articula-
res com seus diferentes pontos de vista, correlacionando- ções no plano da expressão, ou seja, um outro tratamento
-os a distintos suportes, sujeitos e grupos sociais. espacial, cromático e formal, mas também como propo-
Na abordagem diacrônica, o texto visual é investigado sitora de outras relações no plano de conteúdo da obra.
a partir de seu tempo/espaço de produção, seja artístico, Desse modo, em As meninas, de Velázquez, o pintor está
jornalístico ou de moda, em um estudo construído num pintado e pintando na tela. É o narrador da cena e passa
eixo temporal e inscrito na história e na cultura. Como no a ser assunto na pintura. Velázquez inverte uma lógica
exemplo da fotografia, ou quando observamos capas de da época, que consistia na escolha de um ou mais mode-
revistas antigas e as comparamos com as atuais. los para pintar e, nessa troca de papéis, em que o pintor é
As imagens podem ser analisadas partindo de uma, se- modelo, a pintura nos coloca como observadores da cena.
lecionada pelo professor, que sugere aos alunos que a inves- Picasso, ao se apropriar da pintura de Velázquez para rea-
tiguem com base nos movimentos diacrônico e sincrônico. lizar a sua, transforma o sistema pictórico e propõe outra
Isso permite-lhes estabelecer relações entre a imagem su- estética. Em sua obra, as figuras presentes e “apropriadas”
gerida pelo professor com outras escolhidas para esse fim. da pintura de Velázquez, como o pintor, a infanta Marga-

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Pintura
de Diego
Velázquez,
As meninas,
1656, óleo
sobre tela.
Museu do
Prado, Madri
© Diego Velázquez, Las meninas, 1656. Reprodução
© Pablo Picasso, The Maids of Honor (Las Meninas, after Velázquez), 1957. Reprodução
46 • 47

Pintura de Pablo Picasso, As meninas,


segundo Velázquez, 1957, óleo sobre
tela. Museu Picasso, Barcelona

rida, a dama e o cachorro, ganham traços definidores do quem nunca deles precisou”, como diz o crítico de arte
cubismo e o policromático se transforma em um monocro- Paulo Sergio Duarte. A nitidez da pintura de Velázquez,
mático do cinza ao preto; e a espacialidade que as engloba bem como o rigor e a exatidão das formas e seus contor-
também é modificada, indo de um espaço profundo a um nos, são tomados por uma atmosfera nebulosa que desfaz
mais próximo, o que faz com que nós, antes observadores o foco, como se todos fôssemos míopes.
distanciados da cena, nos aproximemos mais dela. Desse modo, a visão, que é o nosso sentido mais exi-
O título do livro-objeto-arte Velázquez (27 cm x 31 cm), gido para entrar em contato com a estética clássica, como
de Waltércio Caldas, refere-se diretamente ao pintor bar- das obras naturalistas e realistas, é posta de lado. É a di-
roco e não à obra As meninas. O suporte, materiais e técni- mensão sensível, que a leitura desse livro-objeto-arte vai
ca são o livro de papel e a computação gráfica. O percurso exigir do leitor para interagir com ele.
da leitura parte do reconhecimento do autor pelo título A comparação entre essas três obras permite ao leitor
estampado na capa, e ao abri-lo, o leitor encontrará partes percorrer o Barroco, passar pelo Modernismo de Picasso até
da pintura barroca “apropriada” pelo artista brasileiro. Em chegar à Arte Contemporânea de Waltércio. A intertextua-
cada página ela é repetida, entretanto, o que está lá é o lidade dessas três obras nos permite encontrar diferentes
que resta de sua referência, o espaço da cena – como um estéticas, com distintos modos de produção e de recepção.
palco aberto antes de uma peça ser encenada e ocupada Nesse percurso metodológico de leitura, a dificuldade
pelos atores. Além de retirar todas as figuras que estavam pode estar em delimitar o contexto. Há de se considerar
na cena da pintura, “Waltércio tira os óculos mesmo de que, além dos objetivos previstos no planejamento do

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Como
textos
visuais, as
imagens
constroem
sentidos,
ideias e
ideais,
provocam
sensações
©Ana Teixeira. Reprodução

e emoções

professor para a apropriação da imagem em suas aulas, a Assim, o percurso do leitor é sempre singular, pois de-
delimitação do contexto para as investigações de leitura pende de como a imagem é reconstruída, remontada, e
depende da própria experiência e do repertório de cada edificada por ele como objeto de significação. Ao intera-
leitor. Portanto, será sempre singular. girmos com um texto visual podemos considerar que o
vemos, e nesse ato descrevemos a forma plástica e vamos
Desmontar para remontar, desconstruir para reconstruir descobrindo os seus componentes. O que vemos é o que
O professor ao propor a leitura do texto visual deve su- está no plano da expressão do texto visual, e o processo
por que seus alunos são capazes de reconhecer e identificar de o apreendermos se constitui a partir da desmontagem
os elementos do plano de expressão que estão materializa- ou desconstrução do texto. As teorias da forma propõem
dos na forma plástica. Entretanto, não basta identificar e uma divisão desses componentes plásticos, assim como a
reconhecer, nem atribuir a eles conotações simbólicas. As- semiótica, e as unidades que os caracterizam são chama-
sim, a cor vermelha não é a priori quente, nem a azul, fria, das de formantes da expressão.
pois a depender das tonalidades de vermelhos presentes na A semiótica plástica os divide em quatro dimensões:
mesma obra a cor vermelha entra em relação com os de- 1. formantes cromáticos: são compostos pelas cores, suas
mais vermelhos e produz diferentes efeitos de sentido, do intensidades e luminosidades, saturações e divisões; 2.
mais intenso ao menos intenso, sendo um mais “quente” formantes eidéticos: relativos às linhas e formas que com-
que os demais. Outro exemplo do simbólico está na atri- põem categorias como reto vs curvo, horizontal vs verti-
buição de certo sentido à cor. É a cultura que diz que ver- cal, angular vs arredondado, entre outras; 3. formantes
melho é paixão; foi a cultura que disse, em certa época de matéricos: tipos, espessuras e densidades das matérias
nossa história, que vermelho é comunismo, ao associá-lo à que produzem relevos e texturas, entre outros; 4. forman-
bandeira de um país com esse regime político. te topológico: inclui os demais ao tratar da organização
A semiótica defende que a leitura é um processo cons- deles na superfície plástica. Trata, assim, da organização
truído pelo leitor, que resulta das interações entre ele e o das formas no espaço e como em suas articulações edi-
texto visual. A imagem como objeto de significação exige ficam representações espaciais distintas desde as mais
do leitor uma construção do olhar a partir das relações simples como alto vs baixo, central vs periférico, como as
que poderá edificar com a plástica textual. Para empre- mais complexas como a do espaço com a ilusão de pro-
ender essa leitura é preciso considerar que a relação esta- fundidade como o utilizado pelas produções naturalistas
belecida se dá entre dois sujeitos, a imagem e o que a vê. renascentistas, ou o espaço raso ou planar usado no Mo-
48 • 49

dernismo. Com esses elementos, o professor pode revi- Desconstruir para reconstruir,
sitar artistas modernistas e acompanhar essas mudanças dar visibilidade à imagem
no tratamento do espaço num percurso diacrônico, como O mais importante é que o professor e os seus alunos
o que fizemos com a pintura de Velázquez; ou comparar compreendam que o artista, ou outro produtor de texto
obras de arte e imagens das mídias num percurso sincrô- visual, ao escolher e utilizar determinadas cores e formas
nico, para compreender como a mídia, ao se apropriar de em suas produções plásticas, denota um modo de cons-
imagens da arte, as ressignifica. trução plástica singular e que elas, articuladas, compõem
o seu repertório. E que isso pode ser transformado, a par-
E o espaço contemporâneo? tir da aquisição de outros elementos plásticos ou mesmo
Este espaço exige do leitor uma total articulação tanto de novos arranjos da expressão.
dos componentes da obra como de seu corpo na obra. As Como textos visuais, as imagens constroem sentidos,
produções contemporâneas libertaram-se dos suportes e ideias e ideais, provocam sensações e emoções. Está na re-
convocam não só os olhos para com elas interagir, mas lação do texto com o seu leitor a possibilidade de sentir
todo o nosso corpo para senti-las, os nossos ouvidos para e imaginar, enunciando, a seu modo, uma forma de de-
escutá-las, e, nesse ato, sentirmos atração ou repulsão ou nunciar, reivindicar, ou apenas, revelar o próprio modo
outros sentimentos. A materialidade e os demais forman- de a imagem se apresentar a esse leitor. Trata-se de uma
tes da expressão continuam presentes nessas obras con- proposta analítica em que não há roteiros prévios, pois
temporâneas, o que mudou é o modo como elas se fazem a imagem considerada texto visual é o ponto de partida,
presentes, e o modo de interagirmos com elas. tornando visível e fazendo-nos ver o que está manifestado
nela. Uma proposta de investigação e de leitura construída
Biografia e referente externo no e pelo discurso, que será desvendada por aqueles que,
Os textos visuais, e principalmente os artísticos, são seguindo as marcas do enunciador/produtor e das rela-
organizados para desencadear efeitos diversos e o ob- ções formais articuladas e concretizadas no texto, as re-
jetivo da abordagem semiótica nas salas de aula é que o construir e as ressignificar.
professor e seus alunos possam inverter a lógica de que
é pela biografia do artista que se chega à obra. Possam,
ao contrário, desenvolver juntos instrumentos para des- Moema Martins Rebouças é professora associada da Universidade
crição das imagens que permitam conhecer e reconhecer Federal do Espírito Santo. Licenciada em Desenho e Plástica, com
os formantes de expressão presentes nas obras, para que Mestrado em Educação, doutorado em Comunicação e Semiótica
na etapa seguinte possam desmontá-los, desconstruí-los, pela PUC/SP e Pós-Doutorado pela Faculdade de Belas Artes da
a fim de compreenderem como a significação é produzida. Universidade do Porto. Organizou várias publicações e escreveu O
Os arranjos da expressão são resultado das escolhas e, discurso modernista da pintura (CCTA, 2003), e A cidade que mora em
portanto, constituem-se como rastros, ou marcas do pin- mim (Edufes, 2009).
tor na pintura, do escultor na escultura, do designer em sua
produção gráfica. Estão lá para serem vistos, tocados, sen-
tidos e o leitor que remontar, reconstruir poderá reconfi- Referências
gurar as articulações produtoras de sentido no texto lido. BAKHTIN, Mikhail.Questões de literatura e de estética: a teoria do
Assim, ao lermos uma imagem não buscamos nelas o romance. Trad. Aurora Bernardini e outros. São Paulo: Unesp/
reconhecimento de um referente externo, como a iden- Hucitec, 1988.
tificação de uma casa, de uma árvore como fazem alguns CALDAS, Waltércio. Velázquez. São Paulo: Anônima, 1996. Disponí-
professores ao exigir a presença destes elementos nos de- vel em<www.walterciocaldas.com.br/portu/comercio.asp?flg_
senhos das crianças. Propomos, ao contrário, que estimu- Lingua=1&flg_Tipo=D80>. Acesso em 17/07/2014.
lem a busca por um belo rabisco, construído pela firmeza DUARTE, Paulo Sergio. Waltércio Caldas. São Paulo: Cosac Nai-
do traço e escolha das cores. fy, 2001.
Essa atribuição da imagem como representação expli- REBOUÇAS, Moema M. “Textualidade e Plasticidade em Dionísio
ca por que muitos professores e alunos atribuem um valor Del Santo”. In:REBOUÇAS, Moema M.; GONÇALVES, Maria
maior às obras que intencionalmente querem reproduzir G. Dadalto (Orgs.) Investigações nas Práticas Educativas da Arte.
mimeticamente o mundo. Vitória: Edufes, 2012.

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TEATRO NA ESCOLA:
CENA CONTEMPORÂNEA
50 • 51

Hoje o professor deve fazer a


mediação entre a arte contemporânea
e os alunos. É seu papel contextualizá-
la e fazê-los refletir sobre ela
por Dirce Helena Benevides de Carvalho

A
cena teatral contemporânea ou o teatro pós-dra-
mático ocupam um mesmo campo – expandido e
híbrido –, trazendo em si uma mesma filiação que
se dá na esteira da arte contemporânea. Tema de extrema
abrangência e complexidade, pois reúne, principalmente,
as novas concepções acerca do ensino de teatro contem-
porâneo, a formação de professores de educação básica,
os currículos dos cursos de licenciatura em teatro, as re-
lações das instituições escolares com o ensino de arte, as
práticas artísticas de professores, entre outros.
É, portanto, fundamental pensar na articulação da
cena contemporânea com o ensino de arte, compreen-
dendo as suas especificidades para o desenvolvimento de
formação artística na contemporaneidade. Tal tarefa exi-
A ênfase do ensino ge esforço investigativo para trazer à luz procedimentos
de teatro não se metodológicos que subsidiem o ensino de teatro contem-
dá apenas na
porâneo em escolas de Educação Básica.
autoexpressividade
e muito menos em O novo paradigma do ensino de arte em escolas de
reproduções do educação básica integra o conhecimento epistemológico.
teatro formal
A Lei de Diretrizes e Bases Nacionais (LDB 9.394/96) –
sancionada em 1996 – tornou obrigatório o ensino de arte
em escolas de educação básica. No entanto, ela não espe-
cifica as linguagens a serem trabalhadas no ensino de arte.
Nesse sentido, a divulgação dos Parâmetros Curricula-
res Nacionais (Arte), em 1997, possibilita compreender as
especificidades da área de arte considerando as linguagens
a serem trabalhadas no decorrer da formação escolar: artes
visuais, música, teatro e dança, bem como as questões só-

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cio-históricas inseridas na concepção do ensino de arte em cas, lendas, poemas, músicas, notícias de jornal, fragmen-
uma perspectiva que considera a epistemologia, a didática tos de textos, imagens, entre outros.
e os planos expressivos e construtivos no ensino e aprendi- A primazia do texto desloca-se na contemporanei-
zagem em arte. Esta mudança de paradigma possibilita ao dade para um fazer teatral que valoriza o trabalho co-
ensino de teatro considerar a imaginação dramática essen- letivo, a experiência grupal, a relação entre os sujeitos e
cial no desenvolvimento estético-cognitivo no decorrer da os elementos que compõem a arte teatral. Dessa forma,
experiência escolar. Assim, a ênfase do ensino de teatro os meios de expressão cênica, tais como: ações, espaço,
não se dá apenas na autoexpressividade e muito menos corpo, voz, situações, personagens, imagens, fragmentos
em reproduções do teatro formal. A concepção contempo- de textos, constituem, segundo Jean-Pierre Ryngaert em
rânea do ensino de arte torna possível dirimir a dicotomia Jogar, Representar: práticas dramáticas e formação (1998),
cognição/expressividade na experiência artística. “um conjunto significante no qual o processo sensível da
Na cena teatral contemporânea há uma diversidade de encenação ocupa amplamente o espaço”.
materiais que podem ser transformados em matéria cêni- No teatro formal o diretor apresenta um texto para os
ca, a saber, textos literários, dramáticos, romances, crôni- atores, faz a distribuição de papéis seguida pela memori-

A primazia do texto desloca-se na contemporaneidade para um


fazer teatral que valoriza trabalho coletivo, experiência grupal,
e a relação entre os sujeitos e os elementos da arte teatral

Os princípios norteadores do ensino de teatro privilegiam


metodologias ludopedagógicas, possibilitando aprendizagens
por meio de brincadeiras, jogos, improvisações
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52 • 53

O que caracteriza o teatro é a atividade coletiva, assim


COMO TRABALHAR A CENA
TEATRAL COM OS ALUNOS? sendo, o jogo é o princípio gerador da cena teatral. Deste
modo, os princípios norteadores do ensino de teatro privile-
giam metodologias ludopedagógicas, possibilitando apren-
À luz de Viola Spolin, em Improvisação para o Teatro: dizagens por meio de brincadeiras, jogos, improvisações.
No Brasil, os Jogos Teatrais foram introduzidos por
Textos literários, dramáticos, romances, Ingrid Koudela, em 1982, ao traduzir Improvisação para o
crônicas, lendas, poemas, músicas, notícias de Teatro, de Viola Spolin. Os jogos teatrais de Spolin visam
jornal, imagens. Diversas linguagens podem o trabalho com leigos, jovens e crianças, embora possa
virar matéria cênica. ter grande importância quando usado no teatro formal
A improvisação – o jogo – é o princípio gerador com atores e diretores profissionais. Ingrid substitui a
da cena teatral e a palavra “ator” pode ser palavra ator por jogador (pessoa preparada para criar a
substituída por “jogador”. realidade teatral) e sentir por “fisicalizar” (mostrar com
Trabalhar o foco, a concentração no problema ações corporais, diferente de gesticular, fingir), tra-
cênico, dá ao aluno disciplina interna para a balhando o “foco”, concentração no problema cênico,
improvisação. que dá ao aluno o controle e a disciplina interna para
A fisicalização, ou seja, a expressão com ações o exercício da improvisação. Através do foco o aluno se
corporais, é o motor do jogo. concentra na solução de um problema cênico durante
Registros dos alunos após cada sessão e leituras o jogo, desvencilhando-se de julgamentos autoritários
em rodas de conversa promovem reflexão para compartilhar a liberdade de expressão. A instrução,
entre os alunos e são material para o professor inscrita nos operadores deste sistema (Foco, Instrução,
repensar ações. Avaliação), solicita extrema atenção do professor no en-
Os encontros-aulas podem ser iniciados com tendimento do que está sendo comunicado pelos alunos,
jogos e brincadeiras (corda, pega-pega etc.), com possibilitando orientá-los no decorrer da improvisação.
a finalidade de aquecer e integrar os alunos- Aos operadores do sistema de Spolin acrescentam-se
atuantes ao grupo e ao espaço. os protocolos, ou seja, os registros dos alunos após cada
Revezar personagens leva os alunos a sessão de jogo, erigidos das peças didáticas de Brecht. Im-
compartilhar diferentes leituras da obra e a um portante instrumento de trabalho, pois, além do registro
processo colaborativo na criação teatral. dos jogos feitos pelo grupo, constitui-se em importante
material didático para professores. A leitura de protocolos
em rodas de conversa ao final das atividades possibilita a
reflexão do grupo, colaborando com o processo de apren-
dizagem e, principalmente, com as ações pedagógicas a
zação do texto, a marcação das cenas, os ensaios gerais serem repensadas ou reelaboradas pelo professor. Res-
com luz, figurino, maquiagem, cenário, trilha sonora e, saltamos que a fisicalização é o motor do jogo, ou seja, o
na sequência, a estreia da peça. jogador comunica-se corporalmente. “A realidade só pode
Muitas vezes esse modelo é repetido na escola sus- ser física. Nesse meio físico ela é concebida e comunicada
citando uma série de equívocos, como, por exemplo, através do equipamento sensorial”, diz Spolin.
alunos recitando o texto como meros reprodutores, em As abordagens metodológicas por meio de improvi-
uma atuação mecânica. Ou então, fazendo da arte um sações e jogos caracterizam as aprendizagens teatrais na
momento de entretenimento, de recreação. Tais modelos contemporaneidade, capacitando os alunos para experi-
não possibilitam o desenvolvimento da imaginação dra- mentos artístico-teatrais.
mática, pois negam o princípio gerador do teatro, a saber,
o jogo. É, portanto, fundamental o desenvolvimento da A imagem como material cênico
imaginação dramática “no processo de desenvolvimento A imagem enquanto matéria cênica adquire na con-
da inteligência (...). Piaget indica que o jogo está direta- temporaneidade potencialidades para as criações tea-
mente relacionado ao desenvolvimento na criança”, nota trais. Por meio da imagem é possível criar processos
Ingrid Koudela, em Texto e Jogo (1998). de aprendizagens teatrais acionando a imaginação, a

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© Le bal du moulin de la galette, Pierre Auguste Renoir, 1876. Reprodução


© A Aula de Dança, Edgar Degas, 1874. Reprodução

O que está contido na imagem deve constituir-se como um


material cênico capaz de promover aprendizagens da cena
contemporânea. O trabalho do professor de teatro abrange
também a interface com as artes visuais. A hibridação de
linguagens é uma das especificidades do contemporâneo

cognição, as relações com o espaço e, principalmente, o no uma dama debruçada em um parapeito, supostamen-
trabalho corpóreo dos alunos. te conversando com um homem sentando à mesa.
Para o Ensino Fundamental II o trabalho com imagens É uma imagem que possibilita a leitura de diferentes
pictóricas narrativas, ou seja, imagens que tragam acon- narrativas. Quem são esses personagens? Onde estão? O
tecimentos, que comuniquem algo, que apresentem per- que estão fazendo? O que os leva a se colocarem em deter-
sonagens em movimento, colabora para acender a imagi- minadas posições? Como os personagens estão vestidos?
nação dos alunos. Para Ana Carneiro (2013), a escolha de Qual a relação entre eles? São pessoas que se conhecem?
uma imagem deve conter certa qualidade: “Percebo essa Como são os bailes? O que seus corpos comunicam? Suas
qualidade como aquilo que me faz escolher uma determi- expressões são neutras ou comunicam algo? Tais pergun-
nada imagem e não outra; uma espécie de texto/informa- tas são fundamentais para que os alunos comentem a
ção que a ela subjaz”. O que está contido na imagem deve, obra, emitam opiniões, comuniquem suas percepções “A
portanto, constituir-se como um material cênico capaz de etapa da descrição é um dos momentos mais sutis e pro-
promover aprendizagens da cena contemporânea. dutivos na leitura da imagem. A narrativa daquilo que é
A Aula de Dança de Degas, 1874, nos coloca diante de visualizado faz com que a percepção de formas e conteúdos
personagens em diferentes ações: bailarinas que parecem seja trazida para a consciência”, diz Ingrid Koudela, em “O
estar se aquecendo, outro grupo que observa as instruções jogo teatral em Brecht”.
do professor, e assim por diante. Em Arte Moderna, Argan diz Após a descrição da obra, conduzida pelas percepções,
que a obra de Degas “são corpos plasmados pelo exercício faz-se um estudo sobre o pintor (vida e obra), contextua-
em movimento rítmico, essencial (...) o corpo humano não lizando a imagem. Fundamental a historicização para que
é uma entidade abstrata”. O movimento, portanto, é extre- os alunos possam situar a obra, abrindo possibilidades
mamente importante no trabalho com imagens, pois os alu- para o enriquecimento da leitura da cena.
nos diante de tais imagens experimentam ações corpóreas, Nessa segunda sequência, devem ser considerados os
permitindo a criação de uma diversidade de quadros/cenas. aspectos formais da obra. Assim, os elementos compositi-
A obra de Auguste Renoir Le Moulin de la Galette vos da imagem pictórica, tais como formas, linhas, cores,
(1876) apresenta uma cena da vida dos parisienses em um luz, espaço, movimentos, direções, podem ser explorados
baile. Os personagens encontram-se em diferentes movi- em procedimentos que não dissociem as percepções indivi-
mentos, alguns sentados, outros dançando, conversando, duais da obra do artista. “Os indivíduos buscam criar algum
uma mulher recostada em uma árvore e em primeiro pla- tipo de relação pessoal com a obra de arte. Eles exploram a
54 • 55

Os jogos de aquecimento possibilitam revezamento das figuras ou dos persona-

aos alunos se integrarem ao grupo e ao gens. O revezamento dos personagens é


um procedimento que enriquece a criação
espaço de trabalho do grupo por meio do compartilhamento
de diferentes leituras da obra.
Por meio desse revezamento os alunos
tela, permitindo que interpretações da obra lentamente se compartilham diferentes abordagens no decorrer do jogo,
revelem; apontam sutilizas de linha, forma e cor”, observa sendo possível atenuar atitudes exibicionistas, colocando
Iara Iavelberg, em Para gostar de aprender arte: sala de aula e os alunos em processos colaborativos na criação teatral.
formação de professores. O aluno tem a sua própria experiên-
cia na leitura da obra em processos não estagnados, tornan- Fragmentos de texto como matéria cênica
do possíveis novas interpretações, novos significados. A exploração de textos possibilita ampla liberda-
É oportuno ressaltar a interface com as artes visuais de de composições, reafirmando o trabalho autoral dos
no trabalho com as imagens. A hibridação de linguagens participantes, uma vez que não é exigida a linearidade
é uma das especificidades do contemporâneo. As lingua- narrativa. Os atores não mais estão a serviço do texto,
gens artísticas se contaminaram, abrindo novas leituras ao contrário, o texto deve abrir possibilidades para ex-
para a obra de arte. pressividades cênicas. Ao invés do rigor e da reprodução
As improvisações partem da observação da imagem, fiel aos textos os alunos têm ampla liberdade para colar,
ou seja, o foco está na situação da cena apresentada pelo recortar e recriar o texto (peça teatral, fragmento de tex-
artista. Os encontros-aulas podem ser iniciados com brin- to, poema, notícias de jornal etc.). “Trata-se exatamen-
cadeiras, jogos tradicionais, com a finalidade de aquecer os te do status do texto no espetáculo. A tradição que lhe
alunos-atuantes. Os jogos de aquecimento possibilitam aos concedia um lugar exorbitante, o primordial, às vezes em
alunos se integrarem ao grupo e ao espaço de trabalho. Jo- detrimento dos outros meios de expressão cênica”, nota
gos com bola, com corda, pega-pega, cabo de guerra, dentre Jean-Pierre Ryngaert, em Ler o Teatro Contemporâneo.
outros, são usados para aquecer e colocar os alunos dentro No teatro contemporâneo não existe a pretensão de
do jogo, evitando comportamentos estereotipados. contar uma história com começo, meio e fim “O teatro
Após os jogos de aquecimento, os atuantes experi- já não aspira à totalidade de uma composição estética
mentam ações corpóreas em diferentes movimentos,
direções, planos, relações com o espaço e com o outro,
individualmente e em grupos, construindo quadros/
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cenas relacionados à imagem. Em um dado momento o


professor pede para congelar a imagem. Esta parada pos- Os alunos-
sibilita a consciência e memorização da ação corpórea, atuantes
devem
das relações com o espaço e com os colegas. Assim, as estabelecer
relações do atuante com o movimento, espaço e o outro um contato
físico com
tornam-se os princípios geradores da criação. a palavra
Na repetição e refação dos jogos e improvisações os
alunos-atuantes instauram inúmeras possibilidades,
ora reproduzindo a cena por espelhamento, ora criando
cenas diferentes com os mesmos personagens, ora co-
municando os personagens a partir de suas memórias,
ou, então, comunicando os mesmos personagens em
ações e lugares diferentes, apresentando um grupo por
vez, ou dois ou mais grupos ao mesmo tempo. O impor-
tante é a criação a partir de ações corpóreas, evitando
marcações iniciais, bem como fixar gestos e expressões.
Os alunos têm ampla liberdade para trabalhar com a
imagem, realizando cenas ou quadros em constante

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O grupo tem amplas
possibilidades de jogar
com os materiais cênicos

feita de palavra, sentido, som, gesto etc. que se oferece à texto é possível organizar o material cênico e criar um ro-
percepção como construção integral. Ao contrário, assu- teiro com todas as sequências das ações corporais e vocais.
me seu caráter de fragmento”, diz Ingrid Koudela (2008). As escolhas são feitas pelos grupos. Assim, várias
Não há hierarquia entre os elementos cênicos, ou seja, a relações podem ser estabelecidas entre imagem e texto,
relação do texto ou fragmento, das personagens, ações, podendo, inclusive, criar um roteiro de ações coerentes
luz, cenário, imagens, sons, entre outros, tece o discur- com a imagem (dramaturgia visual e não verbal) ou, en-
so da obra. É, portanto, o jogo entre esses elementos que tão, buscar conexões entre as ações desenvolvidas com a
compõe o discurso cênico. imagem e com o texto. O grupo tem amplas possibilida-
O trabalho de entendimento, apropriação e memori- des de jogar com os materiais cênicos.
zação de textos deve ser feito através de jogos, evitando Mediante acordo, os alunos estabelecem as ações a
que o texto seja dito de forma mecânica, somente com serem feitas por cada um e selecionam o material a ser
leitura labial. Assim, os alunos-atuantes devem estabele- fotografado, ou filmado ou ainda compartilhado com a
cer um contato físico com a palavra, lembra Spolin, em O comunidade escolar.
Jogo Teatral no Livro do Diretor. Ao compartilharem a criação com a comunidade es-
Depois de vários jogos de memorização podem ser da- colar, é importante a busca da relação com o espaço e,
dos aos alunos vários objetos, tais como tecidos coloridos principalmente, com os espectadores. Não estamos nos
em diferentes texturas, bastões, roupas, dentre outros, reportando ao teatro formal realizado em salas de apre-
incrementando as improvisações. Após jogarem com dife- sentação dos edifícios teatrais em uma relação frontal
rentes possibilidades com a imagem e com o fragmento de entre alunos e espectadores.
56 • 57

Várias relações podem ser estabelecidas entre imagem e texto,


podendo, inclusive, criar um roteiro de ações coerentes com
a imagem (dramaturgia visual e não verbal) ou, então, buscar
conexões entre ações desenvolvidas com a imagem e o texto

JOGOS DE MEMORIZAÇÃO DE TEXTO

Jogo do círculo jogadores formam-se duas fileiras e da ansiedade tomando contato com
1
Forma-se um círculo e cada todos jogam ao mesmo tempo. Esta seus corpos. Ao final de cada jogo é
jogador diz um verso do poema até variação possibilita a abertura da voz, fundamental que se faça uma
completar a roda e, novamente, pois os jogadores terão de falar mais avaliação: todos entenderam o que
do início do poema alternando alto para que possam ser ouvidos. estava sendo dito? Como é estar em
versos para que todos os alunos câmera lenta?
joguem com todos os versos do Jogo do cochicho
4
poema, sem, portanto, distribuir as Sentados em círculo, O diálogo cantado
6
falas entre eles. Todos trabalham o os jogadores cochicham (Extraído de O Jogo Teatral
texto ao mesmo tempo. o texto ao mesmo tempo. no Livro do Diretor)
O professor orienta após um tempo Os alunos cantam o texto
Jogo da caminhada de jogo para que cada jogador experimentando diversas melodias,
2
Os alunos percorrem o espaço cochiche o texto e seja ouvido ritmos, alturas, volume. É um jogo que
de ensaio dizendo o texto em voz pelos participantes do grupo. auxilia muito na emissão do som,
baixa. Na sequência pede-se que embora o objetivo não seja este, mas
alterem o volume, o andamento. Após Câmera lenta por meio do fluxo de sonoridades dos
5
um tempo de jogo, pede-se para não (Extraído de O Jogo Teatral jogadores os alunos entram no foco e
usarem o texto para exercitarem a no Livro do Diretor) suas vozes alcançam diferentes
memória. Este jogo é feito durante O foco consiste em ficar em câmera registros e entonações.
várias sessões e é importante que lenta durante a leitura do texto,
a memorização seja feita somente possibilitando ao aluno ter consciência Jogo do espelho
7
nos encontros, para não correr o risco de seu corpo, de suas relações com (Extraído de O Jogo Teatral
de os alunos recitarem o texto. tempo e espaço e de suas relações no Livro do Diretor)
com o texto e os demais jogadores. O jogador A diz um verso (do poema)
Jogo com bola A câmera lenta no teatro é sempre e o jogador B – espelho – repete o
3
Forma-se uma fileira com os uma oportunidade de fazer verso. Esse jogo é extremamente
jogadores e um deles coloca-se à associações. É importante ressaltar importante para atingir o estado de
frente de todos e joga a bola para um que as instruções no decorrer do jogo precisão ou de alerta, permitindo ao
de cada vez dizendo o texto (poema) servem para os jogadores não se jogador o reflexo rápido para seguir o
e quando esquece o poema não deve distraírem. Assim, no decorrer do jogo outro jogador. O jogo do espelho é
interromper a ação até conseguir as instruções devem ser dadas aos criado no decorrer dos ensaios e
relembrar o texto. Quando termina o jogadores incitando-os a se possibilita inúmeras formas de emitir
texto (poema) troca-se o jogador e deslocarem no espaço em câmera as frases, bem como a riqueza de
assim sucessivamente. Variações: lenta enquanto leem o texto. Este jogo movimentos corporais, promovendo
quando o grupo tem mais de dez possibilita aos jogadores livrarem-se experimentações na emissão sonora.

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Além de
fazeres
artísticos, o
acesso à arte,
como a ida ao
teatro, museus,
cinemas, circo,
entre outros, é
fundamental
para a
formação do
aluno

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Transformar o espaço cotidiano, como a sala de aula, pátios,
saguões, corredores, entre outros, em espaços poéticos é uma
questão extremamente relevante na cena contemporânea

O teatro na escola tem inúmeras possibilidades de ria na criação. Trabalhar com esta perspectiva dos alunos
uso de espaço. Transformar o espaço cotidiano, como a e espectadores no fazer teatral poderá ser uma maneira
sala de aula, pátios, saguões, corredores, entre outros, em de trazer a arte contemporânea para dentro das escolas.
espaços poéticos é uma questão extremamente relevante
na cena contemporânea. Espectadores atuantes
Uma das características do contemporâneo é pensar A importância da apropriação de materiais cênicos
sobre o lugar do espectador. Assim sendo, as narrativas como imagens, fragmentos de textos, poesias, letras de
não lineares criam fissuras, frestas, desvios, permitindo músicas, entre outros, no ensino de teatro, torna possí-
ao espectador digressões, ou seja, exercer sua imaginação vel a experiência da cena contemporânea em escolas de
para fazer as associações e conexões, assumindo a coauto- educação básica.
58 • 59

As questões trabalhadas com imagens e fragmentos de


textos em processos de criação estão inscritas na cena con- Dirce Helena Benevides de Carvalho é licenciada em Artes Cê-
temporânea na narrativa de imagens; na não linearidade do nicas, com mestrado em História e Estética da Arte e doutoranda
texto; na dramaturgia não verbal; na relação dos especta- em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de
dores com a cena; na leitura do espectador aberta a multi- São Paulo, professora do Curso de Teatro da Universidade Fede-
plicidades de sentidos; na leitura das cenas por associação ral de Uberlândia e atriz formada pela Escola de Arte Dramática
de imagens construídas pelos atuantes; no espaço cênico – ECA/USP. Publicou diversos artigos, entre eles, “O corpo na
não frontal, permitindo aos espectadores outras relações poética de Lygia Clark e a participação do espectador” (Moringa,
com a cena; no hibridismo de linguagens (cênica, visual); 2011); e “Ações teatrais para além dos muros da escola: processo
na simultaneidade das cenas, possibilitando leituras não ou produto?” (em Pedagogia do Teatro: práticas contemporâneas
lineares aos espectadores; no corpo como presença e não na sala de aula, 2013).
como representação, da informação propriamente dita.
Daí a ênfase do teatro contemporâneo que privilegia o
corpo, “restituindo assim possibilidades latentes, esqueci- REFERÊNCIAS
das e retidas da linguagem corporal”, como diz Lehmann. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
O corpo é, portanto, a materialidade do teatro, o tema e o BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curricula-
“principal material de significação”, completa. res Nacionais: Arte (5ª a 8ª séries). Brasília: MEC/SEF, 1997.
A partir de algumas especificidades da cena contem- BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio. v.1- Lingua-
porânea, acima descritas, é possível desenhar novas con- gens, Códigos e suas Tecnologias. MEC – Secretária de Educa-
cepções do ensino de teatro em escolas de educação bási- ção Básica, 2008.
ca em consonância com a arte contemporânea. CARNEIRO, Ana. “A pedra lançada no pântano: imagens e aqui-
Além de fazeres artísticos, o acesso à arte, como a ida sição de conceitos no ensino de teatro”. In: NARCISO Telles
ao teatro, museus, cinemas, circo, entre outros, é funda- (org.). Pedagogia do teatro: práticas contemporâneas em sala de
mental para a formação do aluno, fazendo com que se aula. Campinas: Papirus, 2013.
sinta pertencente ao mundo da arte que se faz hoje, pois FLORES, Célia Navarro. “Portinari, leitor de Dom Quixote”. Lumen
sabe-se que a experiência estética possibilitará o enrique- et Virtus, vol.II, nº 5, set. 2011. Disponível em: <www.jackbran.
cimento artístico-cultural dos alunos. Como ler a arte com.br/lumen_et_virtus/numero_5/PDF/PORTINARI.pdf>.
contemporânea sem ter acesso às obras de arte? Como se Acesso em 30/07/2014.
pode apreciar algo quando não se tem conhecimento? A IAVELBERG, Rosa. Para Gostar de Aprender Arte: sala de aula e for-
arte contemporânea exige refletir e saber contextualizar mação de professores. Porto Alegre: Artmed, 2003.
sobre ela. É preciso que o professor faça a mediação entre KOUDELA, Ingrid. Texto e Jogo. São Paulo: Perspectiva, 1996.
a arte contemporânea e os alunos. KOUDELA, Ingrid. “Teatro de figuras alegóricas: A ferida Woyzek”.
Esse é um dos pressupostos mais importantes do en- Urdimento, nº 18, mar. 2012.
sino de arte na educação básica. Os PCNs: Arte destacam KOUDELA, Ingrid. Teatro de figuras alegóricas. Anais V Congresso
o ensino de arte articulado às produções de artistas con- ABRACE, 2008. Disponível em: <www.google.com.br/search?
temporâneos, enfatizando, inclusive, artistas da comuni- q=TEATRO+DE+FIGURAS+ALEGÓRICAS+Profa.+Dra.+Ingri
dade local, regional, nacional e de outros países. d+Dormien+Koudela>. Acesso em 28/07/2014.
Assim, pensar no acesso à arte na aprendizagem dos KOUDELA, Ingrid. “O jogo teatral em Brecht: experiência de uma
alunos, na formação continuada de professores de arte, reflexão”. In: GIL, João Pedro Alcântara et al. O Espectador Cria-
tem relação com políticas educacionais que alavanquem tivo: colisão e diálogo. Porto Alegre: AEG, 2013.
as necessidades do ensino na área. Nas escolas de educa- LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. Cosac Naify, 2011.
ção básica, é importante partilhar e divulgar abordagens RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o Teatro Contemporâneo. São Paulo:
metodológicas de experiências realizadas dentro do es- Martins Fontes, 1998.
paço escolar; isto possibilita vislumbrar uma escola mais RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, Representar: práticas dramáticas em
democrática, permitindo, de fato, que o ensino de arte formação. São Paulo: Cosac Naif, 2009.
cumpra o seu objetivo maior, ou seja, a transformação SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1982.
dos sujeitos de espectadores passivos a espectadores- SPOLIN, Viola. O Jogo Teatral no Livro do Diretor. São Paulo: Pers-
-participantes-atuantes. pectiva, 1999

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Expressão corporal

Dança e a questão do
corpo na escola
O professor de arte pode desempenhar um papel significativo contribuindo para a
plasticidade dessa verdadeira coreografia de tensões e conflitos, mas fundamentalmente,
de relações e convívio, da infância se transformando em adolescência
por Ana Maria Rodriguez Costas e Annamaria Noêmia Xavier

A
dança coloca o corpo em evidência. Ou melhor, Com isso apresentaremos alguns apontamentos para
sua singularidade e potencialidade de relacionar- o professor de arte quanto à importância da observação
-se com e pelo movimento. Mas nem sempre a do corpo e do movimento dos alunos do 6o ao 9o ano do
escola se dedica a refletir sobre a importância desta vita- ensino fundamental no cotidiano escolar como procedi-
lidade desenvolvendo um trabalho consistente com essa mento metodológico fundante para a concepção e para
linguagem nas aulas de arte. Pretendemos discutir essa o planejamento de práticas e projetos artístico-pedagó-
questão aqui com base em nossas experiências, em uma gicos que contemplem a sensibilização, a percepção, a
revisão bibliográfica e norteadas pelas Diretrizes Curricula- imaginação, a invenção, a expressão e a sociabilidade que
res Nacionais da Educação Básica (2013). caracterizam algumas das abordagens do ensino da dan-
Os eixos de reflexão deste texto serão o corpo do alu- ça no mundo contemporâneo.
no (da criança e do adolescente) e suas formas de se rela-
cionar pelo movimento; os olhares lançados para tal cor- O corpo na escola sob diferentes olhares
poreidade em movimento no contexto escolar, suas im- Em um trecho das novas Diretrizes Curriculares Nacio-
plicações e possíveis transformações, destacando-se aqui nais da Educação Básica (2013), especificamente dedicado
a ação do professor; e, sob o prisma da arte, o corpo visto ao ensino fundamental, lemos que os alunos são “crianças
em sua potência de dançar, sozinho e em relação, nos e adolescentes de faixas etárias cujo desenvolvimento está
tempos e nos espaços de formação do cidadão no ensino marcado por interesses próprios, relacionado aos seus as-
fundamental. Na intersecção desses eixos, abordaremos pectos físico, emocional, social e cognitivo, em constante
ainda um fenômeno observado ao longo de nossa trajetó- interação. Como sujeitos históricos que são, as caracterís-
ria: as zonas de conflito entre a estética corporal escolar e ticas de desenvolvimento dos alunos estão muito relacio-
as poéticas e estéticas do corpo propostas nos estudos da nadas com seus modos próprios de vida e suas múltiplas
arte, e mais especificamente, da dança. experiências culturais e sociais, de sorte que mais adequado
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Seria mais
adequado falar
de infâncias e
adolescências
no plural
© Ana Teixeira. Reprodução

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Expressão corporal

seria falar de infâncias e adolescências no plural”. Veem-se sições) e se mover, seja quando está consigo mesmo, seja
aí dois aspectos importantes enquanto um possível olhar com os outros, ou em diferentes ambientes e contextos.
para o tema corpo. Em primeiro lugar, apresenta-se uma Durante o desenvolvimento do projeto “Poemas Ciné-
concepção do aluno (uma concepção de ser humano, por- ticos”, promovido pelo grupo Lagartixa na Janela em parce-
tanto) que se desenvolve na interação de aspectos “físico, ria com a Escola Municipal de Ensino Fundamental Olavo
emocional, social e cognitivo”. Em segundo lugar, chama Pezzotti em 2013, na cidade de São Paulo, foi possível ob-
a atenção para as individualidades, para as singularidades, servar como os alunos interagem no espaço-tempo escolar
em suas relações com aspectos coletivos, sociais e culturais. criando diversas composições, estabelecendo inúmeros jo-
Daí, fala-se em “infâncias e adolescências”, o que permite gos de corpo e movimento. Nesse caso, pensamos a noção
pensar em uma multiplicidade de posturas, de gestuais, de de jogo como fenômeno em que as possíveis relações entre
jeitos de se mover, enfim, de corporeidades. os corpos em ação estão pautadas por regras que os orga-
Seguindo ainda com essa referência norteadora, a nizam e que também atravessam as relações de quem joga.
adolescência é marcada por inúmeras transformações Em geral, quando as crianças e os adolescentes encon-
“biológicas, psicológicas, sociais e emocionais”; as rela- tram-se no ato de jogar, quando vivenciam suas relações
ções sociais se modificam, assim como os laços afetivos, através do movimento, estão plenos, corporificados nas
intensificando-se as relações com os colegas da própria ações e em suas histórias. O estado de presença do jogo
idade, e o processo de ruptura com a infância vai se ace- corporal envolve grande concentração e fluidez das poten-
lerando diante do desejo do adolescente de manifestar cialidades sensório-motoras. Se observarmos atentamente
seus posicionamentos. Ao mesmo tempo, como alunos esses momentos de convivência, poderemos ver o quanto
tornam-se aptos a novas possibilidades intelectuais, reali- cada um se diferencia do outro na sua gestualidade, na sua
zando raciocínios mais abstratos, passando a ver o mun- postura e na organização de seus movimentos, pois, para

No percurso do ensino fundamental II, a dinâmica coreografia


de transformações da infância em adolescência atingirá
seu vigor, expressando-se no modo de cada aluno estar e se mover

do também a partir do olhar do outro, o que, por sua vez, além dos comportamentos sociais e culturais, a corporei-
possibilita-lhes construir sua autonomia e valores fun- dade expressa a singularidade de cada pessoa no mundo.
damentais à vida social. Assim, há uma imensa riqueza a ser observada, perce-
Sabemos dos paradoxos implicados nessa fase da vida, bida e compreendida no corpo e no movimento da crian-
talvez, pelas lembranças de como passamos por ela ou por ça e do jovem na vida cotidiana da escola. Mas, quais
perceber e acompanhar nossos alunos. Ao mesmo tempo lentes têm oferecido prismas de observar, perceber, com-
que um pré-adolescente ou adolescente pensa a partir de preender esse fenômeno? Será que a maneira de a comu-
outros olhares, é preciso que ele desenvolva o seu próprio nidade adulta – professores, assistentes, funcionários,
ponto de vista. Desejos, sentimentos, pensamentos, atitu- coordenadores, diretores – entrar em contato com essa
des emergem e submergem com a mesma intensidade. No- corporeidade manifesta em pausa e em movimento in-
vas formas, volumes, cheiros, texturas surgem no seu corpo corpora as orientações previstas nos documentos oficiais
que, enquanto se define, vive em constante transformação. e as observações que acabamos de apresentar? Como os
Enfim, especialmente, no percurso do ensino funda- diferentes olhares sobre o corpo se materializam em uma
mental II, essa dinâmica coreografia de transformações da educação do corpo no cotidiano escolar?
infância em adolescência atingirá todo o seu vigor e sua Para Diana Milstein e Héctor Mendes, autores de Es-
plenitude, expressando-se corporalmente na maneira de cola, corpo e cotidiano escolar (2010), uma educação do/no
cada aluno estar (posturas, estados de ânimo, predispo- corpo se efetiva nas diferentes situações e práticas do coti-
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© Reprodução

Quando as crianças
e os adolescentes
encontram-se no ato
de jogar, quando
vivenciam suas
relações através do
movimento, estão
plenos, corporificados
nas ações e em suas
histórias
© Reprodução

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Expressão corporal

“A dança é uma linguagem artística que entende a


sensibilidade (relativa aos sistemas sensoriais) e a motricidade
como pares entrelaçados do ser-corpo”

diano escolar. Segundo os autores, o trabalho pedagógico ilustrativas, figurativas, entre outras, para reforçar certas
com os alunos, em qualquer situação escolar, pressupõe concepções e práticas de estetização que estão em desa-
um trabalho que pode ser mais ou menos explícito, com e cordo com seus fundamentos e propósitos.
no corpo, o qual está na base das demais aprendizagens. Vejamos, então, alguns dos possíveis olhares da dan-
Em uma criteriosa pesquisa de campo desenvolvida em ça sobre o corpo e o movimento. A dança é uma lingua-
escolas argentinas, foi possível observar as relações que as gem artística que entende a sensibilidade (relativa aos
crianças são orientadas a estabelecer no que diz respeito à sistemas sensoriais) e a motricidade como pares entrela-
noção de ordem, envolvendo diretamente o corpo em “re- çados do ser-corpo. A prática da dança, nos âmbitos artís-
lação ao tempo, ao espaço, aos jogos, à estética e à moral” tico e estético, abarca processos de consciência corporal
na vida escolar, como notam Ana Lúcia Ratto e Gizele de individual e relacional, assim como processos de percep-
Souza na apresentação do livro. ção, memória, imaginação e criação, gerando novas pos-
Uma possível ilustração desse fenômeno seria pensar sibilidades de expressão e comunicação das sensações,
sobre o que estaria em evidência na comemoração festiva, sentimentos e pensamentos.
por exemplo, do Dia do Índio. Saber a respeito da situação São esses alguns dos propósitos da dança a ser ensinada
dos índios em uma determinada localidade, de sua histó- e aprendida na escola, tendo em vista os Parâmetros Cur-
ria, de sua cultura corporal, de suas danças, etc., ou apren- riculares Nacionais para o ensino da arte, assim como, ma-
der o que se “deve fazer”, segundo convenções e regras da teriais produzidos recentemente pelo MEC (como o pro-
cultura escolar quanto à forma de comemorar uma data grama Salto para o futuro – dança na escola: arte e ensino,
do calendário oficial escolar, quem sabe,
imitando de maneira “organizada” os ín-
dios? Apesar de não estarem relacionadas A artista americana
com a educação artística ou com o estudo Trisha Brown, desde
o início da década de
da arte, as possíveis atividades propostas 1970, compõe e ocupa
como forma de comemorar têm em sua di- espaços de museus,
praças e até paredes
versidade uma relação com o estético. His- de grandes edifícios na
toricamente, constituem-se segundo Mils- cidade de Nova York
tein e Mendes como uma espécie de acordo
tácito do senso comum do que se faz ou se
deve fazer na escola, o que os autores defi-
nem como práticas de estetização, nas quais
se aprende a qualificar segundo categorias
especificamente estéticas – “belo, feio, gro-
tesco, ridículo, sublime, cômico, burlesco,
dramático” – os objetos, as mensagens, os
signos, as situações, os indivíduos.
Apesar de em nosso país existirem
avanços quanto à efetivação do ensino
© www.sxc.hu .Reprodução

da arte nas quatro linguagens que a com-


põem, muitas vezes no momento dessas
festividades a disciplina é lembrada como
celeiro de possíveis estratégias decorativas,
64 • 65

© New Zealand contemporary dance troupe Black Grace. Reprodução


da TV Escola) e por diferentes secretarias de Educação dos
estados e municípios brasileiros, a produção da pesquisa no
âmbito da educação e das artes, e das diretrizes curriculares
que norteiam a formação de licenciados em dança.
No âmbito da produção artística e pedagógica, in-
cluindo a educação formal e não formal, identificam-se
alguns pilares que continuam a fomentar e sustentar a
criação dos currículos e dos conteúdos do ensino da dan-
ça na escola: os estudos do movimento desenvolvidos por
e a partir do legado do coreógrafo e pesquisador Rudolf
Laban (1879-1958); as manifestações culturais tradicionais
e as culturas urbanas, em sua diversidade; e a dança con-
temporânea entendida aqui como aquela que se caracteri-
za pela multiplicidade estética e poética, pela investigação
das singularidades dos corpos em movimento nos mais
diferentes contextos, mas que fundamentalmente assume
sua dimensão ética e política concebendo pedagogias ir-
manadas com a formação de um cidadão autônomo, críti-
co, sensível, colaborativo e criativo.
Quanto a isso, a historiadora e pesquisadora francesa
Laurence Louppe (2012) chama a atenção para o fato de
que existiria, desde sua emergência no século XX, apenas
uma dança contemporânea. Apesar de não exatamente
norteada pelos mesmos princípios estéticos, ela se defini-
ria a partir dos mesmos valores. Em linhas gerais, dizem Um dos valores da dança
respeito à valorização da individualidade de cada corpo e contemporânea é o reconhecimento
da importância da gravidade
de cada gesto como expressão de uma identidade e marca como impulso do movimento, quer
de um projeto de criação; ao entendimento do que cada se trate de jogar com ela ou de se
abandonar a ela
corpo produz e não exatamente do que reproduz, pois
dançar a dança criada por alguém implicará a adesão sen-
sível e individual do intérprete; à relevância sobre o traba-
lho sobre a matéria do corpo e do indivíduo, de maneira a possibilidade de apropriação das manifestações do campo
subjetiva e, simultaneamente, na alteridade; a não anteci- artístico, já que, tal como assinalava Dewey: “A função mo-
par-se nas definições formais, mas lançar mão da investi- ral da arte é acabar com preconceitos, isolar as referências
gação, mesmo que os planos coreográficos possam estar que impedem ver, romper os véus da rotina e do costume,
traçados de antemão; e, finalmente, ao reconhecimento aperfeiçoar o poder de perceber”.
da importância da gravidade como impulso do movimen- É importante observar que os diferentes olhares lança-
to, quer se trate de jogar com ela ou de se abandonar a ela. dos para o corpo e o movimento das crianças e jovens na
Para Louppe, haveria ainda valores morais fundamen- escola se traduzem em ações e práticas que podem implicar
tais à dança contemporânea nos seus processos de criação zonas de tensão e conflito: as práticas de estetização esco-
– o dançarino tornar-se sujeito do próprio corpo, respeitar lar devotadas à noção de ordem podem se confrontar com
o corpo do outro, compartilhar o princípio da não arro- noções estéticas e poéticas propostas no estudo e criação
gância e procurar uma solução justa, e não somente espe- em arte/dança contemporânea. Talvez seja possível com-
tacular. Acreditamos que esses sejam princípios e valores preender, então, as resistências para a implantação efetiva
ético-estéticos de corpo e movimento a serem trabalhados da disciplina arte (em todo seu potencial) nas escolas. E
e propostos pela dança para crianças e jovens no contexto torna-se possível compreender por que a dança que mui-
escolar. Segundo Milstein e Mendes a legitimação de certas tas vezes “serve” à escola é aquela que, por exemplo, produz
convenções estéticas na escola pode interferir e até excluir coreografias para as comemorações e demais festividades.

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Expressão corporal

Por que as crianças ou jovens não poderiam andar de costas no


pátio ou investigar sua movimentação lateral enquanto estão em
uma fila, ações essas que espontaneamente acontecem?

Em geral, a escola está orientada por uma noção de ordem Observação do corpo e do movimento:
sustentada pela maneira de os corpos em movimento se com- uma premissa
portarem no espaço, planejado arquitetonicamente com esse Conforme proposto nas novas diretrizes para a edu-
propósito; para cada lugar existe um preceito de movimento, cação básica, é fundamental a observação e o reconheci-
uma expectativa definida de comportamento. Na maioria mento das culturas corporais, gestuais das crianças, pré-
das vezes, a própria estrutura educacional está baseada em -adolescentes e adolescentes. Os professores desempe-
noções do uso dos espaços e de ditames de comportamento nham papel importante, disponibilizando-se a observar
tão arraigados, que existe a dificuldade de serem absorvidas movimentos aparentemente desorganizados, mas espontâ-
quaisquer outras possibilidades. Se fizermos uma pequena neos, no sentido de serem próprios e legítimos do sujeito
provocação: por que as crianças ou jovens não poderiam an- e de sua possível manifestação identitária (quem são). Para
dar de costas no pátio ou investigar sua movimentação late- isso, é fundamental evitar julgamentos de valor – moral,
ral enquanto estão em uma fila, ações essas que espontanea- amoral, adequado e inadequado – que coloquem em ris-
mente acontecem? É possível que nem os educadores saibam co o diálogo, a comunicação, a expressão e, portanto, o
responder, pois, afinal, é assim que tem de ser. Para a arte da processo de formação plena desses cidadãos. E, segundo
dança, perguntas como essas seriam bem-vindas, pois servem as próprias Diretrizes Curriculares (2013), a adolescência
como mote para um estudo do movimento no espaço, capaz requer dos educadores “maior disposição para entender e
de oferecer ricos aprendizados, proporcionando novas per- dialogar com as formas próprias de expressão das culturas
cepções do corpo em relação com a espacialidade. juvenis, cujos traços são mais visíveis, sobretudo, nas áreas
Esse é um dos propósitos da dança na escola, possibili- urbanas mais densamente povoadas”.
tar que os alunos percebam, se relacionem, se apropriem e Retomamos, de forma mais pontual, as perguntas
ressignifiquem os espaços da organização escolar. Em suas que fizemos anteriormente, e tomando como referência
diversas manifestações, a dança contemporânea também os verbos de ação propostos nas diretrizes, como o pro-
questiona o lugar onde se dança, saindo dos teatros e ga- fessor entende e dialoga com a expressão das culturas e
nhando novos espaços públicos ou privados, na natureza e das singularidades nos corpos em movimento dos seus
nas cidades. Nessa direção, temos as performances da ar- alunos? Para haver diálogo, existe a necessidade de uma
tista americana da dança Trisha Brown que, desde o início reflexão atenta e crítica sobre as práticas de estetização
da década de 1970, compõe e ocupa espaços de museus, escolar, sobre quais são as implicações dessa estética no
praças e até paredes de grandes edifícios na cidade de Nova seu próprio olhar, de maneira que ele possa perceber o
York. Antes ainda, Rudolf Laban, engajado no movimento corpo em movimento não apenas como desordem, de-
expressionista, desenvolve durante o período que antece- sorganização, descontrole, desconcentração, entre tan-
de a Segunda Guerra Mundial na Alemanha o conceito tas adjetivações, mas como dizeres importantes a serem
de dança coral, levando pequenas multidões a dançarem escutados para de fato se processar uma conversa, na
em grandes espaços abertos. Na atualidade, outros tantos verdade, uma percepção. Mas, considerando os proces-
artistas criam para espaços não convencionais, buscando sos de formação, as licenciaturas da área de artes, de
interferir poética, política e esteticamente na vida social. quais saberes, ferramentas o professor dispõe para repo-
Pensando em nosso específico recorte, o corpo sob o sicionar-se diante desses desafios?
prisma da arte, e mais especificamente, da dança, enten- Um dos objetivos deste texto é colocar à luz essa cultura
demos que professor de arte pode desempenhar um papel dos corpos em movimento – inscrita, latente, emergente e
muito significativo com inúmeras contribuições na plasti- efervescente – dos alunos do ensino fundamental II, con-
cidade dessa verdadeira coreografia de tensões e conflitos, vidando os professores a observá-la sob o prisma da dança.
mas fundamentalmente, de relações e convívio. Entendemos que as bases para que tal propósito se concreti-
66 • 67

ze é que o professor se permita vivenciar uma aproximação Estado de São Paulo, em uma das oficinas propusemos que
do próprio corpo: observar/perceber seu “corpo-casa”, como os participantes observassem as crianças no momento de
sugerem Angel Vianna e Jacyan Castilho num dos capítulos recreio e lessem suas movimentações com o olhar direcio-
de O corpo que fala dentro e fora da escola (2002). Concomi- nado para alguns aspectos: a maneira de ocupar e explorar
tantemente, uma atitude de observação constante do corpo o espaço; a duração, velocidades e ritmos de suas ações;
e do movimento da criança e do adolescente no cotidiano as alterações quanto ao investimento do peso do corpo,
escolar irá, sem dúvida, lhe oferecer um rico repertório de do uso dos esforços nos movimentos; as relações criadas,
ações corporais, formas de movimento, interações, jogos e seja em jogos individuais ou em grupo, assim como a in-
danças que seus alunos vivenciam entre eles na escola. dividualidade gestual no coletivo. Essas observações foram
Quando fizemos a consultoria para a criação do currí- propostas como base para que, a partir dessa leitura e de
culo de arte do 1º ao 5º ano da Secretaria de Educação do uma análise posterior, fossem criadas as proposições que
integrariam o referido documento. Foi
uma experiência transformadora para
aqueles profissionais, pois ali, naquele

© Ana Teixeira. Reprodução


contexto, a observação aconteceu em
um espaço-tempo de fruição.
O ato da observação é um proce-
dimento enriquecedor, que deve es-
tar na base da elaboração e proposi-
ção dos conteúdos artístico-pedagó-
gicos. Da mesma forma, a observação
pode adquirir um alcance etnográfi-
co, permitindo o conhecimento de
quem são os alunos sob a perspectiva
sociocultural, no contexto escolar.
Como um procedimento a ser apro-
priado pelo professor, o exercício de
observar, partindo dos princípios de
Dewey, principalmente nas ações
que se referem a “isolar referências
que impedem ver, romper véus da
rotina e do costume e aperfeiçoar o
poder de perceber”, pode possibilitar
um novo olhar para o corpo em mo-
vimento dos seus alunos.

Projetos em dança:
possíveis subversões do
corpo na e da escola
Nos estudos da dança, o proces-
O ato de observar so de aprimoramento e apropriação
crianças e dessa linguagem artística acontece ao
adolescentes é
um procedimento
longo de vários anos e etapas de es-
enriquecedor, que tudo. Na escola, dentro da disciplina
deve estar na base arte, acreditamos na possibilidade de
da elaboração e
proposição dos acontecer um processo de iniciação à
conteúdos artístico- dança, trabalhando-se com seus fun-
pedagógicos
damentos, seus elementos constituti-

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Expressão corporal

As técnicas de
danças urbanas
exigem habilidades
tão intensas, que
demandam horas de
treinamento; mesmo
assim, mobilizam
inúmeros jovens a se
exercitarem nessas
práticas

© www.nice-cool-pics.com. Reprodução
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vos, a partir de alguns conteúdos como: a consciência das a sala de aula. Tais projetos podem ser de caráter mul-
estruturas e da espacialidade interna do corpo; a percep- tidisciplinar, podem ser temáticos, aprofundando-se
ção do corpo em relação com ele mesmo, com os outros no estudo das linguagens e seus conceitos, por opção e
corpos e com o espaço externo; noções de tempo e ritmos, escolha dos alunos e com a orientação dos especialistas
próprios e oferecidos por estímulos sonoros e musicais; em arte, nas diferentes linguagens.
noções sobre as inúmeras possibilidades de o movimento Em seu livro A dança, o coreógrafo e pesquisador bra-
desenhar-se e configurar o próprio espaço; noções de uso sileiro Klauss Vianna chamou a atenção para o sentido da
do peso corporal, das diferentes intensidades e esforços aprendizagem da dança, o qual não deveria ser decorar
com que o corpo pode mover-se no tempo-espaço; explo- passos, mas sim aprender um caminho. Até que ponto
ração de ações corporais, de gestos, criando-se vocabulá- a escola está disponível a mover-se e criar novos espaços
rios e repertórios em suas inúmeras combinações. para os corpos em movimento?
Esse processo de iniciação implica o desenvolvimento
de conhecimentos técnicos, no sentido de haver um domí-
nio cada vez maior quanto a certas habilidades sensório- Ana Maria Rodriguez Costas, nome artístico Ana Terra, é mestre em
-motoras, e do aprendizado de movimentos mais simples, Artes (1997), doutora em Educação (2010) pela Universidade Estadual
chegando-se a movimentos de maior exigência e comple- de Campinas (Unicamp), e professora do Curso de Dança do Institu-
xidade. Particularmente, os desafios de dominar uma certa to de Artes da Unicamp.
movimentação em dança podem despertar muito interesse Annamaria Noêmia Xavier, nome artístico Uxa Xavier, é artista, pro-
na pré-adolescência e adolescência. Trabalhar com algu- fessora e pesquisadora da Dança Contemporânea para crianças e di-
mas técnicas mais codificadas, relacionadas a certos estilos retora artística do grupo Lagartixa na Janela, especialista no Método
de dança, pode ser interessante para esses alunos. Laban (Especialização/USP, 1988–1990).
É importante destacar que esse aprendizado aguça a
consciência de si, do próprio corpo. Dominar certos mo-
vimentos e sequência exige atenção, concentração, repe- Referências
tição, de forma que aquilo que geralmente denomina-se BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Se-
como “disciplina” é vivido como auto-organização para o cretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
alcance de um desejo e do prazer de mover-se. É o caso Inclusão. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Con-
das técnicas das danças urbanas, que exigem habilidades – selho Nacional da Educação. Câmara Nacional de Educação Bási-
controle, precisão, prontidão – tão intensas, que deman- ca. Diretrizes curriculares nacionais gerais da educação básica / Mi-
dam horas de treinamento e, mesmo assim, mobilizam nistério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de
inúmeros jovens a se exercitarem nessas práticas para de- Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
pois dançarem nos encontros de grupos. O mesmo pode BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. TV
ser visto nas danças populares tradicionais. Dançá-las é Escola/ Salto para o Futuro. Dança na escola: arte e ensino. Dis-
algo que faz parte da cultura familiar e regional, impli- ponível em:<http://tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/18093102-
cando tempo, uma grande disponibilidade e uma relação -Dancanaescola.pdf>. Acesso em 06/08/2014.
de pertencimento ao coletivo organizado por uma hierar- GARCIA, Regina L. (Org.). O corpo que fala dentro e fora da escola. Rio
quia de saberes, na figura dos mestres. de Janeiro: DP&A, 2002.
Enfim, trata-se de proporcionar práticas que pos- LOUPPE, Laurence. Poética da dança contemporânea. Trad. Rute
sibilitem às crianças e aos jovens a expansão de seus Costa. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.
próprios saberes no desenvolvimento de novos conheci- MILSTEIN, Diana; MENDES, Héctor. Escola, corpo e cotidiano esco-
mentos sobre o corpo e o movimento: sentir, perceber, lar. São Paulo: Cortez, 2010.
expressar, executar, compor e criar, sozinhos e em rela- RATTO, Ana Lúcia S.; SOUZA, Gizele de. Apresentação. In: MILS-
ção, danças. Para isso, além da presença cada vez maior TEIN, Diana; MENDES, Héctor. Escola, corpo e cotidiano escolar.
dos professores especialistas, é necessário um trabalho São Paulo: Cortez, 2010.
de dança continuado na escola. Por que não a escola ter SCHULMANN, Nathalie. Da prática do jogo ao domínio do gesto.
um projeto artístico-pedagógico em dança? Tal projeto In: PEREIRA, R. e SOTER, S. (Orgs.) Lições de Dança 1, Rio de
pode organizar-se a partir de ações articuladas e con- Janeiro: Univercidade Ed, 1998.
tínuas, para além dos planejamentos direcionados para VIANNA, Klauss. A dança. 3ª ed. São Paulo: Summus, 2005.

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Dança contemporânea

Pluralidade
cultural e a
dança na escola
O ensino da dança deve considerar a
receptividade do aluno e do professor diante das
produções culturais contemporâneas para
se criarem novos projetos de vida
por Karenine de Oliveira Porpino

A diversidade cultural
relaciona-se com os
diversos modos por
© Aristoteles Barcelos Neto

meio dos quais os


grupamentos humanos
produzem cultura,
criam e compartilham
conhecimentos
coletivamente
70 • 71

O acesso à diversidade de
referências artísticas é
imprescindível para que
possamos perceber que os

A modelos estéticos existentes


pluralidade cultural tem sido um tema corriquei-
ro nas discussões referentes à educação no Brasil
e estimula a reflexão acerca da diversidade étnica são históricos e modificam-se
e cultural que compõe nossa sociedade e sobre as desi-
gualdades socioeconômicas que a caracterizam. No con-
texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), a
pluralidade cultural é um assunto que transversaliza os Imersa nas relações de poder, a produção cultural
componentes curriculares na escola brasileira e precisa acontece numa constante teia de conformismos e resis-
chegar às nossas práticas educativas, cujos perfis ainda tências, da qual são gerados saberes diversos. A privação
guardam resquícios de modos de pensar centrados nos do acesso a parte desses bens culturais e a falta de condi-
excessos de hierarquias e modelos absolutos. ções de participação na gestão coletiva de sua produção,
Essa discussão requer um olhar abrangente que consi- geradas pela desigualdade social e pela discriminação, de-
dere a mudança de pontos de vista solidificados pelo pre- finem um processo de exclusão social dos grupos culturais
conceito e passe a vislumbrar a diversidade de modos de e das pessoas em particular. A ideia que abriga a diversi-
produzir cultura, incluindo os modos não hegemônicos e dade cultural brasileira sem considerar as singularidades
pouco divulgados. Não se trata, no entanto, de homoge- das produções das diversas etnias e raças que compõem
neizar costumes ou aderir instantaneamente a modos de essa diversidade, nem as condições sociais, políticas e
convivência e produção pouco familiares, mas de aprender econômicas envolvidas nessa produção, por exemplo,
a considerar a diversidade de formas de produzir cultura constitui-se numa visão política de sobrevivência de ati-
como modos de expressão que merecem respeito e que tudes discriminatórias que desconsideram a desigualdade
são necessários à construção de ambientes de convivência de condições e as peculiaridades estéticas das produções
que possam pensar na emancipação dos seus indivíduos culturais. Nesse caso, talvez devêssemos pensar em iden-
pela ampliação das várias expressões humanas, e não pela tidades nacionais, em vez de uma única identidade que
eleição de alguns modelos em detrimento de outros. nos define brasileiros, como também em diferenças que se
Ao tratar a pluralidade cultural como um tema trans- articulam sem perder suas especificidades dentro do todo,
versal, os PCNs reforçam a necessidade de considerar os em vez de pensarmos as diferenças culturais como meio
fatores ligados à diversidade cultural sem, no entanto, de reforçar uma igualdade de condições que não existe.
perder de vista os aspectos voltados à desigualdade social,
embora sejam temas de natureza diferente. A diversidade Pluralidade cultural e o ensino da arte na escola
cultural relaciona-se com os diversos modos por meio dos Apreciar a arte dos diversos contextos culturais nos
quais os grupamentos humanos produzem cultura, criam faz pensar nas condições possíveis para produzirmos nos-
e compartilham conhecimentos coletivamente. Já a desi- sa própria arte ou ainda para usufruirmos dela como apre-
gualdade social é gerada nas relações que envolvem po- ciadores mais atentos, dadas as muitas peculiaridades que
der, exploração e dominação socioeconômica e política. encontramos. O acesso à diversidade de referências artís-
Embora esses dois fenômenos sejam específicos em sua ticas para o conhecimento em arte é imprescindível para
origem e significado, no que tange ao tema da pluralidade que possamos perceber que os modelos estéticos existen-
cultural, não há como separá-los, uma vez que pensar a tes são históricos, modificam-se continuamente, quando
produção cultural de determinado grupo social fora das situados em espaços e tempos diferentes, e dizem respeito
relações de poder nelas implicadas poderia revelar uma aos vários modos como os indivíduos se expressaram ou
visão ingênua ou mesmo discriminatória. se expressam em seus contextos de vida.

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Dança contemporânea

A arte contemporânea mostra-nos, hoje, que o fazer que tem no professor um transmissor de conhecimento
artístico é diverso, tantas quantas forem as necessida- e no aluno, um receptor passivo. Justifica também a ideia
des expressivas de seus artistas, tantas quantas forem as de que os atributos estéticos de uma obra de arte estão
possibilidades de essas formas de expressão se tornarem previamente dados nela mesma e que, para produzi-la, é
possíveis via artefatos e tecnologias múltiplas, ou mesmo imperativo seguir tais modelos estéticos.
pela simplicidade com que são ofertadas ao público. Celso A respeito desse quadro de referências temos na dança
Favaretto, professor de filosofia da Universidade de São o Balé Clássico como exemplo que pode ser discutido, uma
Paulo, no vídeo É isso Arte?, produzido pelo Instituto Itaú vez que este é fruto do pensamento moderno e, tradicio-
Cultural, diz que as obras contemporâneas são propositi- nalmente, mantém suas ideias acerca da arte e da educa-
vas, não se encerram em modelos já conhecidos, produ- ção, embora devamos considerar também que, ao longo do
zem referências antes impensadas, fazendo descentralizar último século, tenha se modificado substancialmente em
as ideias já instituídas pelas culturas, como também os virtude de outras maneiras de conceber a dança, a exem-
modos como nos sensibilizamos com as obras e as com- plo das ideias de Isadora Duncan, Rudolf Laban, dentre
preendemos em nosso contexto social. outras figuras emblemáticas que marcaram o século XX.
No que se refere à educação, no entanto, faz-se neces- Numa aula de balé, por exemplo, o aluno repete à risca os
sário reconhecer a presença ainda forte de um pensamen- ensinamentos do professor, que lhe repassa as sequências
to que prioriza as verdades universais e o conhecimento de movimento já prontas e espelha-se em um modelo de
como algo a ser acumulado, como também práticas edu- corpo e de dança já conquistado por bons bailarinos. Outro
cativas centradas no modelo do professor e modos de exemplo que pode ser dado também é a ideia ainda forte,
ensinar arte que partem da idealização de modelos de em vários contextos artísticos, de que a formação corporal
beleza. Essas são heranças do pensamento moderno (re-
ferimo-nos aqui ao período que vai do Renascimento ao
final do século XIX), que passaram a ser severamente cri-
© Reprodução

ticadas durante todo o século XX, mas que ainda se fazem


presentes no ensino da arte atual, mesmo diante das obras
propositivas dos artistas contemporâneos.

O ensino da dança na contemporaneidade


O ensino da dança que temos hoje ainda guarda mui-
tos resquícios dessa herança a que nos referimos anterior-
mente, fundada numa visão objetivista do conhecimento
e da beleza. De acordo com essa referência, tanto o co-
nhecimento quanto a beleza são dados objetivos, existem
por si sós, não dependendo do sujeito para serem gera-
dos. Cabe ao sujeito descobri-los ou se apropriar deles
pela educação ou pela arte. Essa visão justifica o ensino

Talvez devêssemos pensar


em identidades nacionais, em
vez de uma única identidade
que nos define brasileiros
e reforça uma igualdade de
condições que não existe
72 • 73

© Ana Teixeira. Reprodução


Instalação “Inn Orbit”, do artista
argentino Tomás Saraceno. A
arte contemporânea mostra-
nos, hoje, que o fazer artístico é
diverso, tantas quantas forem
as necessidades expressivas de
seus artistas

no balé é uma base para o aprendizado de qualquer outra


técnica de dança, como se a estética do balé, centrada na
harmonia e na simetria de formas, pudesse se adequar a
qualquer contexto ou necessidade expressiva.
A crítica realizada à primazia da estética clássica, des-
de o início do século XX, pelo movimento da arte moder-
na, por exemplo, como também a ampliação do acesso à
informação que temos na atualidade ajudam-nos a refletir
que o aprendizado do balé é uma dentre tantas outras ex-
periências em dança e que essas experiências não se trans-
põem necessariamente. Embora o balé tenha formado
excelentes bailarinos, e para o nosso prazer estético conti-
nuará formando, faz-se necessário compreendê-lo frente
a outras produções em dança na atualidade e reconhecer
que os modos que marcaram seu ensino e produção ar-
tística devem ser relativizados perante a multiplicidade
de produções culturais a que temos acesso hoje. Men-
Embora o balé tenha cionando um exemplo bem simples, podemos dizer que
formado excelentes
o aprendizado de uma dança cuja estética se caracterize
bailarinos, faz-se
necessário compreendê-lo pela soltura do quadril, pelo contato com o chão ou com
frente a outras produções o parceiro pouco se beneficiará de uma aula de balé, cujos
em dança na atualidade
movimentos não se caracterizam por essas referências.

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Dança contemporânea

Insistir nesse modo de pensar que coloca numa hie- das condições que lhe são possíveis em determinado tem-
rarquia de valor modelos de beleza e formas de ensinar po e espaço. Como reafirmou Edgar Morin, ao lembrar
dança como sendo mais importantes ou que podem subs- Montaigne, “mais vale uma cabeça bem feita do que bem
tituir outras sem considerar os contextos nos quais estão cheia”. Mais vale uma educação que possa levar o indiví-
situados pode constituir uma visão discriminatória ou duo a relacionar conhecimentos e lhes dar sentido, do que
ingênua nos dias atuais. No entanto, fazemos isso mes- aquela que o considera um acumulador de conhecimento,
mo quando não ensinamos o balé, mas quando mante- sem que seja reconhecido seu significado e sua aplicabili-
mos o pensamento sobre dança que o perpetuou, uma dade em contextos diversos.
visão objetivista da arte que está presente, por exemplo, Tomemos então a ideia de compreendermos a pro-
na organização hierárquica do espaço da aula e da cena, dução de estéticas múltiplas em suas possíveis relações,
na distribuição das ações coreográficas fundadas no me- tantas quantas forem as poéticas pessoais, a exemplo da
lhor desempenho de seus participantes (entenda-se como dança contemporânea.
melhor desempenho o que atende melhor aos modelos
previamente exigidos), no aprendizado do movimento A dança de quem dança
de dança como previamente definido pelo professor, na A obra de Laurence Louppe, Poética da Dança Contem-
ideia de adequação do corpo a medidas estipuladas, den- porânea (2012), é significativa para pensarmos a dança a
tre outros. Provavelmente, já vimos inadvertidamente, no partir dos aspectos mencionados anteriormente, tendo o
contexto escolar, a produção em dança que desconsidera corpo como poética, como foco principal das pluralidades
os aspectos dos espaços físicos existentes e somente se de produção e apreciação. As preocupações com o corpo,
realiza na organização do espaço que tem a frontalida- no contexto da história da dança no Ocidente, não são re-

A crítica à primazia da estética clássica e a ampliação do


acesso à informação ajudam a refletir que o aprendizado do balé
é uma dentre tantas outras experiências em dança

de do público para a sua apreciação, que coloca em des- centes, basta lembrarmos algumas figuras emblemáticas
taque as alunas consideradas melhores tecnicamente ou do início do século XX, como Isadora Duncan, Rudolf La-
as que atendem ao padrão de corpo magro e alongado ban ou Mary Wigmam, que passaram a perceber no corpo
ou que deixa fora de cena ou fora das aulas de dança os de quem dança (e não mais na obra por si mesma ou no
alunos considerados menos aptos para a dança. O empre- modelo de beleza previamente dado) a fonte expressiva ca-
endimento na valorização de modelos únicos de ensinar paz de gerar modos de dançar diversos e ainda a descobrir.
dança, dançar e apreciar essa forma de expressão nas ins- A ideia pronunciada por Isadora Duncan de que “uma mes-
tituições educativas faz gerar uma atitude que restringe ma dança não pode pertencer a duas pessoas” é emblemá-
o acesso às várias produções de dança que marcam nossa tica até hoje por nos trazer a possibilidade de compreender
cultura, como também as próprias experiências dos alu- a dança como criação de poéticas a partir da relação do
nos, marcadas por essas produções por vezes tão signifi- artista com seu entorno, com sua própria história de vida
cativas em suas histórias de vida e as de seus familiares. ancorada em experiências culturais compartilhadas. Pen-
Diante desse quadro, um dos grandes desafios do en- samentos como esse geraram e continuam gerando uma
sino da dança na escola é o de fazer valer as múltiplas re- verdadeira revolução na dança. Por mais que tenhamos ex-
ferências estéticas a que temos acesso hoje pelos meios periências com a dança numa mesma escola de dança, por
de comunicação, tendo o discernimento de que não é exemplo, e aprendamos os mesmos movimentos, a forma
possível abarcar a pluralidade de estéticas existentes, mas de expressá-los será sempre diferente. Nesse aspecto a dan-
formar um indivíduo capaz de reconhecer no artista, a ça não está somente no aprendizado de certos movimentos
exemplo de si mesmo, alguém que se sensibilize com o previamente organizados, mas no modo como o artista os
mundo, que é capaz de expressar essa experiência dentro recruta para a criação de uma poética própria.
74 • 75

A discussão sobre a dança contemporânea realizada


por Laurence Louppe enfoca esse olhar para o corpo como
poética, que nasce ainda nos fins do século XIX e início
do século XX, e requer uma abertura para o diálogo com
uma multiplicidade de referências estéticas, uma vez que
Crianças dançando não se trata apenas de uma mudança de vocabulário ou de
uma coreografia
do francês Boris códigos gestuais, mas da possibilidade de pensar a dança
Charmatz. Um dos a partir de quem dança, do artista que se lança ao mundo
grandes desafios do
ensino da dança na como protagonista de seu próprio movimento marcado
escola é o de fazer pela cultura. Louppe refere-se à poética como sendo aqui-
valer as múltiplas
lo que numa obra de arte pode nos tocar, aquilo que dá
referências estéticas
a que temos acesso sentido à obra, que permite sensibilizar simultaneamen-
hoje pelos meios de te o artista e seu público. A dança do início do século XX
comunicação.
começa a semear a ideia de que dançar não é manipular
certos movimentos dados previamente, mas criar e saber
justificar uma linguagem própria, uma poética.
Cabe aqui lembrar o pensamento do filósofo Merleau-
-Ponty, na obra A Prosa do Mundo (2002), para quem a arte
das primeiras décadas do século XX reinstaura a relação
sensível do indivíduo com o mundo, passa a considerar a
expressão criadora, ou seja, a possibilidade de criar e re-
criar-se, reconhecer a arte não como evidência, mas como
fenômeno que, não se preocupando em negar os misté-
rios do mundo, percorre caminhos ainda desconhecidos.
Hoje, no século XXI, com a ampliação do acesso à in-
formação e a permeabilidade das fronteiras, o desafio do
artista da dança é estar aberto para transitar e partilhar
uma infinidade de referências estéticas, sem, no entanto,
perder de vista seu lugar no mundo como criador de seu
próprio vocabulário. Assim, é possível conceber as produ-
ções da dança contemporânea muito mais pelo projeto
estético de cada artista no contexto em que está situado,
do que pela atuação do bailarino numa técnica específica
e seu bom desempenho artístico diante desse modelo.
O acesso à diversidade de técnicas e estéticas mostra-se
como uma situação ímpar na contemporaneidade, possibi-
litando aos artistas enriquecerem seu repertório gestual, se-
rem capazes de ampliar suas possibilidades expressivas, suas
formas de conceber as espacialidades e as temporalidades
©www.borischarmatz.org/savoir/piece/enfant. Reprodução

de sua maneira de dançar sem perder de vista o diálogo com


outras danças. As autoras Isabelle Launay e Isabelle Ginot
mostram-nos que os modos pelos quais os artistas compre-
endem o corpo e suas sensações são constituídos cultural-
mente e que experimentar maneiras de fruir próprias de
referências estéticas excluídas até então da própria experi-
ência pode implicar uma abertura para o questionamento
contínuo dos hábitos corporais já aprendidos, para a criação
de novas configurações estéticas e para uma mudança do

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Dança contemporânea

olhar, necessário tanto ao artista quanto ao público. dade cultural na escola a partir da experiência dos artistas.
Essa permeabilidade de fronteiras culturais na produ- Mas estarão nossas escolas preparadas para essa partilha,
ção da arte pelo artista contemporâneo leva-nos a pensar tal qual é vivida por muitos artistas? Os desafios estão na
também numa permeabilidade entre as várias formas de primeira esquina. A experiência dos artistas contemporâ-
fazer arte se considerarmos sua experiência como foco neos e os modos emergentes de pensar a dança, advindos
de referência. A experiência do artista destitui fronteiras de seus projetos estéticos, convidam a educação institucio-
entre os modos de expressão artística (dança, música, tea- nalizada a arriscar-se, a repensar seus temas e lançar mão
tro etc.), ultrapassa essas categorias, não se organiza pela de outros. É preciso ouvir o convite, permitir-se a apreciar
disjunção, mas pela flexibilidade adaptativa. o desconhecido, encontrar novas pistas, descobrir novas
Dessa forma a dança transita por configurações di- formas de mobilidade nos espaços já conhecidos.
versas, para partilhar com elas novos rearranjos para sua Portanto, se pensarmos o ensino da arte, e mais especi-
criação. Essa atitude é marcada como possibilidade não ficamente da dança na escola, a exemplo da dança contem-
somente de renovação artística, mas também política. As- porânea, não cabe supervalorizarmos ou desqualificarmos
sim, a dança deixa de ser uma prática elitista, fragmentada algumas estéticas em detrimento de outras, mas pensá-las
e classificatória, para estabelecer diálogos com referências de modo que possam tomar sentido na experiência de
estéticas até então excluídas de certos universos de valor. quem dança. Nesse contexto, o valor estético de uma pro-
Dessa forma talvez possamos pensar em discutir a plurali- dução artística não pode ser considerado como externo a
© Reprodução

Cena do filme de Wim Wenders sobre a


bailarina Pina Bausch. A dança do início do
século XX começa a semear a ideia de que
dançar não é manipular certos movimentos
dados previamente, mas criar e saber justificar
uma linguagem própria, uma poética
76 • 77

Mais vale uma educação que possa levar o indivíduo


a relacionar conhecimentos e lhes dar sentido, do que aquela
que o considera um acumulador de conhecimento

quem a produz, como algo a ser adquirido por meio da re- das obras dos novos artistas, a pesquisa de movimento, o
produção de um modelo, tampouco uma questão de gosto trânsito por espaços ainda não explorados.
pessoal, mas emerge da relação do sujeito com o mundo, Para que possamos lançar mão desses desafios, faz-se
daquilo que faz sentido e amplifica sua experiência, seus necessário também dar bons créditos à formação estética
modos de mobilização para a dança e suas oportunidades dos professores. Estar aberto a apreciar a arte que se faz hoje,
de articulação. Esse modo de pensar implica também pro- compartilhar os arrebatamentos estéticos que essa arte pro-
jetos de ensino mais ousados na escola, que rompam com voca e ser capaz de produzir os próprios projetos estéticos
o modelo de ensino centrado no professor e com a ideia de são ações necessárias também a quem ensina arte e impres-
conhecimento como algo que pode ser transmitido. Nesse cindíveis para que possamos ter na escola uma ruptura dos
sentido, cabe vislumbrarmos ações que fomentem a parti- modos de pensar centrados nos excessos de hierarquias e
lha estética, a criação coletiva e colaborativa, a apreciação modelos absolutos. A discussão sobre a pluralidade cultural
na educação institucionalizada, e em especial no ensino de
arte, não pode se eximir de considerar a porosidade do alu-
no e do professor frente às produções culturais que os mo-
bilizam e os alimentam para a criação de novos projetos de
vida, sejam elas majoritárias, sejam minoritárias, sejam elas
um ponto comum, sejam um mistério a desvendar.

Karenine de Oliveira Porpino é mestre e doutora em Educação,


artista da dança, e professora da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Suas pesquisas abordam as relações entre corpo
e estética, dança e educação.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curricula-
res nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. Secretaria de
Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997.
FAVARETTO. Celso. É isso Arte? Disponível em: <www.youtube.
com/watch?v=-XG-71wqwUI>. Acesso em 28/07/2014.
LAUNAY, Isabelle; GINOT, Isabelle. “Uma Fábrica de anticorpos?
| Une fabrique d’anticorps?” Disponível em: <http://idanca.net/
uma-fabrica-de-anti-corpos/>. Acesso em: 28/07/2014.
LAUNAY, Isabelle; GINOT, Isabelle. “Ser bailarino apesar da escola
| Devenir danseur malgré l’école”. Disponível em: <http://idanca.
net/ser-bailarino-apesar-da-escola/>. Acesso em 28/07/2014.
LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Lisboa: Or-
feu Negro, 2012.
MERLEAU-PONTY, M. A Prosa do Mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-feita: repensar a reforma, reformar o pen-
samento. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

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Educação musical
78 • 79

MÚSICA
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NA ESCOLA:
OS SABERES DO
PROFESSOR
O equilíbrio entre o que é proposto pelo
professor e o que surge ocasionalmente dos
alunos é uma boa forma de manter o
ensino como um sistema interessante,
desafiador e propulsor de novos saberes
por Marili Macruz e Pedro Paulo Salles

O
ensino de qualquer área depende de um certo
número de saberes sistematizados pelo profes-
sor, os quais, durante o processo de ensino e
aprendizagem, devem dialogar com os saberes dos alunos,
adquiridos na experiência de vida. No caso da música, não
é diferente. Tendo como base os princípios definidos pelas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica,
discutiremos aqui exatamente essa questão, trazendo à
luz saberes importantes no campo do ensino de música
dirigido à Educação Básica, assim como os modos de arti-
culação destes com os saberes dos alunos.
Como disciplina curricular e área do conhecimento, a
música esteve praticamente ausente das salas de aula – sobre-
tudo nas escolas públicas – por quase 40 anos. Agora, desde
2011, com a Lei 11.769/08, ela se tornou conteúdo obrigató-
rio, embora não exclusivo, do componente curricular “Arte”
Afinal, como da Educação Básica. A chegada dessa lei também marca uma
tornar possível
a inserção da múltipla rede de reações: a euforia de alguns, a desconfiança
música nas de outros, discussões e muitas dúvidas. Essas inquietações e
escolas? A
quem compete expectativas têm ocupado o cenário da educação brasileira,
ministrar esses fazendo-se oportuno, agora, refletir sobre ações que possam
ensinamentos?
promover um bom encaminhamento e aproveitamento da
O que se deve
ensinar? Por música no âmbito escolar, considerando suas características
que ensinar? intrínsecas, seu lugar como área do conhecimento e lingua-
Como ensinar?
gem artística e seu papel social e cultural.

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Educação musical

Durante a roda de conversa “A educação com música”, educação atenta à aquisição de conhecimentos voltados à
que integrou o projeto do livro A Música na Escola (2012), interação e à interpretação crítica da realidade.
Pedro Paulo Salles compara a chegada da música na escola Dessa forma, pretende-se que crianças e adolescentes
com a entrada de uma pessoa nova em um grupo constituí- conquistem novas experiências e maior consciência, para
do há tempos e com a consequente desestabilização que tal que possam tomar decisões e agir diante dos desafios que
acontecimento pode gerar frente ao rompimento de uma es- lhes forem atribuídos e tenham condições para desfrutar
trutura aparentemente sedimentada. Diante disso, torna-se de outros patrimônios culturais, além daqueles disponíveis
propício indagar sobre as razões que sustentam o ensino da normalmente em seu dia a dia. A estrutura curricular deve
música e, também, a respeito das concepções educacionais se valer, sob esse prisma, de práticas docentes que consi-
que vigoram em nossa sociedade e nossas instituições. deram a diversidade sociocultural do público escolar e as
Afinal, como tornar possível essa inserção? A quem diferenças quanto aos interesses e às necessidades singula-
compete ministrar esses ensinamentos? O que se deve en- res dos alunos deflagradas nos processos de aprendizagem.
sinar? Por que ensinar? Como ensinar? Conclui-se daí que o trabalho compartilhado e o
compromisso com o aprendizado consciente dos alunos
As Diretrizes Curriculares e o ensino de música devem ser tomados pelos professores e demais profissio-
As Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a nais das instituições como sendo de grande importân-
Educação Básica, de 2013, ao sugerirem perspectivas que cia. Ambientes de ensino bem organizados, com o bom
devem nortear as propostas curriculares nas escolas bra- aproveitamento dos materiais e espaços da escola e do
sileiras, adotam princípios socioculturais que preveem a entorno e, sobretudo, o olhar e o diálogo abertos à comu-
diversidade de culturas e pressupostos democráticos rela- nidade e às famílias devem ser cultivados.
tivos às oportunidades de escolarização. Esses princípios Levando em conta esses pressupostos, as diretrizes
expressam o anseio de dar aos estudantes o direito a uma traçam determinado perfil dos alunos, marcado pela plu-

É possível observar garotos e garotas reunidos em turmas, compartilhando

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modos de vida semelhantes, padronizados, por exemplo, de acordo com a
linguagem, maneiras de se vestir, modos de ver o mundo
80 • 81

Cabe ao professor (de música ou não) entrar em sintonia


com as diferentes formas de expressão das culturas
juvenis, buscando entender e dialogar com elas

ralidade, enfatizando os interesses e modos de vida pró- mas de interação entre educadores e alunos. Seu projeto
prios e a multiplicidade de experiências sociais e culturais político-pedagógico deve atender a essas perspectivas e
vividas por crianças e adolescentes. Destacam, ainda, na demandas no que diz respeito à formação continuada
fase que corresponde ao ensino fundamental II, as des- dos professores e viabilizar ações escolares e extraesco-
cobertas e transformações que caracterizam a passagem lares que facilitem o acesso a diferentes formas de ações
para a adolescência, nos campos social, afetivo, psicológi- culturais. Nesse cenário, os recursos digitais da atualida-
co e cognitivo, as quais contribuem para a construção da de devem ser aplicados de forma a favorecer o desenvol-
autonomia, dos valores éticos e morais, do sentimento de vimento aprofundado dos processos de investigação e de
alteridade, e, consequentemente, para a constituição da aprendizagem de todos que participam do espaço esco-
identidade, tanto individual como coletiva. lar, principalmente alunos e professores.
Nesse processo, heterogêneo e descontínuo, há ten-
dências a situações de isolamento e retraimento, como Escola: encontro entre culturas
também a busca pelo fortalecimento, através das for- São mais que desejáveis o diálogo, as trocas de experi-
mações de grupos. É possível observar garotos e garotas ências e as transposições de fronteiras entre as diferentes
reunidos em turmas, compartilhando modos de vida se- disciplinas dentro da escola, e desta com os mundos que
melhantes, padronizados, por exemplo, de acordo com a se apresentam em seu exterior. Além do mais, o encon-
linguagem, maneiras de se vestir, modos de ver o mundo. tro entre culturas dentro do espaço escolar é inevitável
Em conformidade com suas escolhas e adesões, anun- e deve ser aproveitado como forma de interpretar e de
ciam e desfrutam de suas mais novas descobertas ante a atribuir significado aos aprendizados de todos que nele
variedade de novidades tecnológicas e culturais que des- convivem − vide o conceito de cultura experiencial, con-
pontam a cada instante. E a música participa ativamente cernente tanto a alunos, na visão de Angel Pérez Gómez,
desse panorama. Vêm à tona os “achados” mais incríveis em seu livro A Cultura Escolar na Sociedade Neoliberal
dos sons do passado, as discordâncias sobre as músicas vei- (2001), como a professores, na visão de Maurice Tardif,
culadas pelos diferentes meios de comunicação, e aquilo na obra Saberes Docentes e Formação Profissional (2002).
que parece ser a grande inovação musical que antecipa ou, Na dissertação O papel da escuta construída cultural-
até mesmo, “transcende” o futuro. O calor das discussões, mente nos processos de aprendizado e desenvolvimento mu-
o desdém de uns e a intensidade de outros marcam as pre- sical da criança (2011), Marili Macruz da Silva trata dessa
ferências e, certamente, a construção do gosto musical e do interpenetração entre diferentes formas de cultura que cir-
pensamento estético desses indivíduos e grupos. culam pela escola, por meio da realização de uma pesquisa
Em determinadas comunidades, dotadas de manifestações etnográfica. Nessa dissertação analisaram-se situações de
culturais próprias ou influenciadas por intervenções de insti- construção de conhecimentos e de práticas musicais em
tuições como ONGs, essas interações ganham feições bem par- sala de aula, considerando a contribuição dos variados re-
ticulares, mas também tendem a ser compartilhadas. Diante pertórios sonoros e culturais dos alunos como um referen-
desse quadro marcado pela diversidade, cabe, portanto, ao pro- cial importante para a atuação e intervenções do docente.
fessor (de música ou não) entrar em sintonia com as diferentes Os estudos realizados apontaram para a compreensão da
formas de expressão das culturas juvenis, buscando entender e diversidade de pensamentos e dos comportamentos dos
dialogar com elas constantemente, além, é claro, de incentivar alunos e para o papel do docente frente às situações apre-
essa ebulição de opiniões e de ideias, de forma a promover o sentadas, validando-se, assim, as experiências individuais e
dinamismo do pensamento e das ações desses grupos. interpessoais em situações acadêmicas e no dia a dia.
Ao mesmo tempo, é preciso que a escola se instru- Tal exemplo ratifica, portanto, as propostas das Dire-
mentalize e compreenda maneiras de favorecer essas for- trizes Curriculares já descritas anteriormente, abalizadas

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Educação musical

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O pensamento sobre música e a partir
da música deveria ser constantemente
provocado e, ao mesmo tempo, nutrido

por princípios socioculturais que preveem a interpretação Nesse documento, aprovado em dezembro de 2013, mas
e a interação crítica entre diferentes realidades. ainda em fase de homologação, pode ser conferido o históri-
co de todo o processo, com argumentações a favor da imple-
Conselho Nacional de Educação: Parecer mentação do ensino de música nas escolas, os papéis de cada
sobre o Ensino de Música nas Escolas setor educacional e a busca pela definição dos profissionais
A obrigatoriedade do ensino de conteúdos de música aptos para ministrar tais conteúdos. Conforme o inciso IV,
nas aulas de arte gerou muitas discussões, principalmente parágrafo 1º, artigo 1º, dessa publicação, compete à escola:
quanto à clareza do texto da lei 11.769/08, e à sua viabiliza- “organizar seus quadros de profissionais da educação com
ção. Foram formadas comissões e realizados diversos even- professores licenciados em Música, incorporando a contri-
tos e audiências públicas, envolvendo músicos, educadores buição dos mestres de saberes musicais, bem como de outros
musicais, entidades de classe, profissionais e dirigentes da profissionais vocacionados à prática de ensino”. Embora essa
área educacional, políticos, representantes governamentais resolução dê margem a diferentes interpretações, nesse e em
de diferentes esferas, e demais envolvidos, tanto dos cená- outros pontos aqui não explicitados, é possível começar a de-
rios da Educação Básica como dos meios universitários. linear possíveis perfis dos docentes que devem atuar nas es-
Esses encontros mobilizaram milhares de pessoas, vá- colas e os saberes a eles pertinentes em sua atuação profissio-
rias universidades e algumas entidades de classe (como a nal. Não devemos nos esquecer de que, mesmo sem o apoio
Associação Brasileira de Educação Musical, que teve um de alguma lei, a música não deixou de estar presente em al-
papel fundamental nesse processo), as quais contribuíram gumas instituições privadas, ONGs, ou mesmo em ações li-
enormemente para a elaboração de um documento oficial gadas aos programas de estágios dos cursos de licenciaturas,
(Parecer CNE/CEB nº12/2013), por parte do Conselho Na- de certas universidades, e, mais raro, em algumas iniciativas
cional de Educação, do Ministério da Educação, que prevê curriculares mesmo, graças a algum diretor empenhado ou a
a operacionalização do ensino de música nas escolas. algum professor que se sentiu seguro ou qualificado.
82 • 83

PROFESSORES EM AÇÃO

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Em nossa experiência docente como escuta, pesquisa de sons,
e atividade de pesquisa, tanto apreciação, criação, improvisação,
com crianças e adolescentes, como interpretação, notação, construção
na interação com universitários, de instrumentos, práticas
e, ainda, em cursos voltados instrumentais, idas a concertos
à formação continuada de e outros eventos relacionados,
educadores, temos nos deparado contato com músicos e artistas,
com a forte participação da música dentre outras possibilidades — às
no cotidiano e na vida social e reflexões sobre essas mesmas
cultural das pessoas, bem como experiências faz-se necessário
com as dúvidas que pairam no ar e se constitui em um saber cujos
a respeito da formação e atuação desígnios são a (re)construção
dos profissionais responsáveis por e sistematização de conceitos,
ministrar aulas de música teorias e ideias de música. Cabe
Diversas são as abordagens ao professor perceber e orientar
em educação musical que tentam o emprego dos conhecimentos
enfatizar e privilegiar, cada uma latentes e a construção de novos
com suas razões e percepções, conhecimentos, cultivando o prazer
aspectos que consideram relevantes, e a consistência em direção ao
como cognição, sensibilidade, aprendizado musical.
técnica, prática, teoria, contextos Em relação aos dilemas
socioculturais e ainda a velha inevitáveis provocados pelo uso das
dicotomia, teoria e prática. novas tecnologias, assunto tão em
Diante do amplo espectro voga na atualidade, é importante
de propostas e, por outro lado, comentar que há softwares e auditivo, os quais poderiam ser
de incertezas que marcam nossos aplicativos interessantes para uma ferramenta aliada à captação
dias, após diálogos e experiências serem utilizados, tanto como de sons que, hoje em dia, pode ser
com estudantes e profissionais ferramentas para o ensino de feita até por meio do celular.
preocupados em se aprimorar, e em música quanto como meio de Isso remete à infraestrutura da
função do contato com diferentes incitar novas pesquisas sonoras escola em termos de equipamentos,
pesquisas sobre o assunto, o mais por parte dos alunos, provocando- a qual deve dar condições para que
indicado seria estabelecer o foco no os a pensar sobre as sonoridades o professor e seus alunos possam
ensino da música e por meio de suas que os cercam e a superar os desenvolver apropriadamente tais
próprias práticas. universos sonoros delimitados pela ações, o que inclui a aquisição de um
Sem desconsiderar a própria mídia e indústria cultural. número suficiente de instrumentos
contribuição de outras áreas para Citemos, por exemplo, desde musicais de uso acessível, sem o
o conhecimento musical, o que softwares que permitem a edição que as atividades musicais ficam
se busca é intensificar e ganhar de gravações feitas por alunos limitadas. O professor da área
espaço nos ambientes escolares (cortes, montagens, sobreposições, de música deve lutar por essas
através dos conhecimentos musicais alterações sonoras de intensidade, condições e, por outro lado, criar
desenvolvidos em aula. Conectar de timbre, de velocidade e muitos formas de compensar ou mesmo
repertórios e práticas — em outros efeitos) até os de criação superar as limitações que possam,
diferentes âmbitos musicais, tais de partituras e de treinamento porventura, persistir.

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Educação musical

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Em meio ao mar de
referências sonoras
diárias, é preciso
propor situações
de “provocação da
escuta” para encantar
ou para intensificar o
interesse e o desejo
por mais saberes nas
salas de aula
84 • 85

Quanto a essa presença, no en- A questão


tanto, há ressalvas a serem feitas em é agir de
modo a
relação a determinadas concepções permitir que
atribuídas à música em função de os estudantes
aproveitem
seu aspecto sedutor e encantatório, ao máximo
como lembra Salles em seu artigo o que está à
disposição,
“Música de Fundo, Música de Frente” e investigar
(2012). Há situações em que a música as práticas
docentes
é usada de maneira “rasa” como um que podem
instrumento para tornar menos ári- favorecer o
dos os conhecimentos de outras dis- aprendizado
dos alunos
ciplinas ou para “enfeitar” a imagem
da escola frente aos pais (a clientela),
geralmente com pouca profundidade
em termos de experiência pedagógica
e em termos de conhecimento. Esta se torna, então, um
sedativo, uma espécie de remédio, com pouco valor em
si mesma e com pouco valor pedagógico. Para que essa
“música de fundo” se torne “música de frente”, ou seja, as-
suma seu verdadeiro papel na escola — o papel de área do
conhecimento, e que pode, sim, se articular com outras
áreas do conhecimento —, é necessária uma mudança na

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maneira com que a música é vista e ouvida pela Escola.
Já seria um grande avanço deixar de vê-la somente como
área de entretenimento, de ouvi-la como objeto de distração.

Práticas musicais nas escolas deve ser ensinado, bem fundada em necessidades reais
O fato de o ensino de música ter sido afastado das es- e simbólicas dos alunos, levando-se em conta o contex-
colas brasileiras desde o início da década de 1960 (LDB to cultural e os saberes que envolvem a escola ou que
4.024/1961) não provocou, como se disse, o distanciamen- já estão nela. Mas uma questão anterior e primordial é
to das pessoas em relação à escuta e às práticas musicais implementarem-se ações que permitam que a música as-
presentes no dia a dia. A música é uma das formas de suma sua condição de área do conhecimento, sem o que,
expressão mais presentes na vida das pessoas, seja como seguiremos girando em círculos.
forma de expressão artística e de conhecimento, seja no Provavelmente, esses questionamentos já deflagram
mundo do consumo e do entretenimento. Ela está por alguns dos saberes que competem ao professor, como o
toda a parte, inundando nossos ouvidos, mesmo quando planejamento de suas ações didáticas que implicam es-
não estamos tão dispostos a apreciá-la. colher o que, como e por que ensinar, muitas vezes em
É inegável sua relevância social e cultural, assim decorrência de observação e mapeamento das referências
como os significados que vai adquirindo nas manifesta- trazidas pelos alunos para a sala de aula e da escuta dos
ções individuais e coletivas. Para alguns, este seria, tal- eventos musicais que circulam nos espaços públicos.
vez, um dos motivos que poderia levá-la de volta a tomar Não se trata, porém, de simplesmente reproduzir o que
parte nos contextos educacionais. Ou será que o fato de é veiculado. Em meio ao mar de referências sonoras diá-
ela estar tão presente no dia a dia das pessoas a torna tão rias, que marcam a vida das crianças e adolescentes desde
trivial que não merece atenção no currículo das escolas? seu nascimento, é preciso destacar aquelas significativas,
Os acontecimentos musicais extraescolares por si sós já e enriquecê-las através do contato com novas referências,
não seriam o bastante? Diante disso, a questão, aqui, é incluindo o conhecimento e o reconhecimento de suas pró-
definirem-se ferramentas conceituais e curriculares que prias práticas e das músicas e sons de outras culturas e épo-
favoreçam, por exemplo, uma seleção criteriosa do que cas, propondo situações de “provocação da escuta”, por um

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A questão é agir de modo a permitir que os estudantes aproveitem ao máximo o que está à
disposição, e investigar as práticas docentes que podem favorecer o aprendizado dos alunos

lado, de encantamento, por outro, tendo em vista intensifi- to sobre música e a partir da música deveria ser constan-
car o interesse e o desejo por mais saberes nas salas de aula. temente provocado e, ao mesmo tempo, nutrido. Para
Por outro lado, transformar comportamentos e criar tanto, o posicionamento do professor deveria ser o de
novos espaços propícios à aprendizagem, exercitar a aber- fomentador da prática musical de forma criativa em seus
tura da escuta e do olhar para outras dimensões culturais alunos, cuidando, ainda, de proporcionar situações de
podem se constituir em maneiras de possibilitar situações aprimoramento da escuta e das ações musicais.
de interação e produção coletiva do conhecimento, trans-
por aquelas contingências que geram todo tipo de pre- Articulação de saberes
conceito e buscar propostas que viabilizem relações sau- Alguns princípios considerados importantes já foram,
dáveis, o encontro das diferenças, afinidades, incertezas e de certa forma, expostos aqui. Como forma de organizar
visões de mundo, que marcam os encontros previstos ou o que foi proposto, confrontamos nossas ideias com o es-
inesperados entre os diversos âmbitos do humano. tudo de competências proposto por Pep Alsina, com base
Além dos conteúdos musicais, o importante é ofe- em Giráldez, no livro Música: investigación, innovación y
recer experiências favoráveis ao alargamento estético e buenas prácticas. De modo geral, os saberes selecionados
musical e desenvolver ações que permitam desvendar, referem-se à articulação conceitual, prática, metodológi-
articular, significar e ressignificar elementos e práticas ca e técnica entre os conhecimentos didáticos, artísticos
sonoro-musicais. A aproximação entre diferentes con- e musicais; ao uso de diferentes tecnologias de informa-
textos e modos de fazer música e a conexão dessa lingua- ção e comunicação; à mobilização das relações sociais,
gem com outras áreas artísticas e outras áreas do conhe- culturais, cognitivas, psicológicas e afetivas como fato-
cimento são chaves importantes para isso. res motivadores do aprendizado; ao aprimoramento e à
A organização das aulas já deveria ser tratada como construção de atitudes voltadas à pesquisa, às ações ime-
uma forma de elaboração estética e artística; o pensamen- diatas, às tomadas de decisões, à construção do olhar e da
86 • 87

Além de dominar e atualizar sistência frente às tomadas de decisões, as propostas vol-


tadas a transformações, bem como à ampliação e ao apro-
continuamente os saberes da fundamento de conhecimentos são instrumentos e ações

área musical, o educador pode indispensáveis para a composição dos saberes a serem co-
locados em prática pelo professor responsável pelo ensino
buscar o aprofundamento nas de música, e, certamente, por todo o corpo docente.

questões didáticas
Pedro Paulo Salles é graduado em Música pela Escola de Comunica-
ções e Artes (ECA) e doutor em Educação pela Faculdade de Educação
escuta para a ação e a reflexão, ao diálogo e à abertura à da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor do Departamen-
diversidade e a novas propostas. to de Música da ECA-USP, atuando na graduação e na pós-graduação,
Assim, além de dominar e atualizar continuamente nos campos da educação musical e da etnomusicologia.
os saberes específicos da área musical, o educador pode Marili Macruz Ferreira da Silva é mestre em Musicologia pela Es-
buscar também o aprofundamento nas questões didá- cola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP),
ticas e metodológicas, mapeando, selecionando e orga- com pesquisa voltada à área de Educação Musical. É professora de
nizando os conteúdos, de acordo com objetivos claros e música na Escola Italiana Eugenio Montale e educadora musical do
definidos. Deve considerar, ainda, que novas situações e Centro de Estudos Psicopedagógicos Pró-Saber, atuando também
oportunidades de aprendizagem podem surgir em fun- na formação de professores.
ção dos diálogos e trocas de experiências.
Nesses momentos, a sensibilidade, os conhecimentos
específicos e de outras áreas, os conhecimentos de mun- REFERÊNCIAS
do, assim como a improvisação, a criação e a proposição BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.
de novas situações podem e devem emergir, tornando o Parecer nº 12/2013: Diretrizes Nacionais para a Operacionalização
processo de aprendizagem ainda mais dinâmico e signifi- do Ensino de Música na Educação Básica. Disponível em: <http://
cativo. O equilíbrio entre o que é proposto pelo professor portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=articl
e o que surge ocasionalmente dos alunos é uma boa forma e&id=18449&Itemid=866>. Acesso em 06/08/2014.
de manter o ensino como um sistema interessante, desa- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Di-
fiador e propulsor de novos saberes discentes e docentes. retrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília:
Nesse ponto, a elaboração de atividades, currículos, pla- MEC, SEB, DICEI, 2013.
nejamentos e projetos, segundo uma perspectiva mais aberta GIRÁLDEZ, Andrea (coord.). Música: investigación, innovación y bue-
e reflexiva, que permita o entrecruzamento entre diferentes nas prácticas. Barcelona: Graó, 2010.
disciplinas, contribui muito para a construção do exercício PÉREZ-GÓMEZ, Angel I. A cultura escolar na sociedade neoliberal.
docente. Vale comentar, ainda, que tudo o que for incorpo- Trad. Ernani Rosa. Porto Alegre: ArtMed, 2001.
rado à prática pedagógica deve estar em sintonia com aquilo PERRENOUD, Philippe. Dez novas competências para ensinar. Trad.
que o professor considera como sua própria forma de pensar Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
e de agir. É fundamental haver coerência entre o que ele SALLES, Pedro Paulo. “Música de Fundo, Música de Frente”. In: JOR-
realmente considera importante e o que é colocado em prá- DÃO, Gisele et al. (coord.). A música na escola. São Paulo: Allucci
tica com seus alunos. Por outro lado, isso não implica que & Associados Comunicações, 2012. Disponível em: <http://www.
o professor deva se fechar para outros modos de pensar, ao amusicanaescola.com.br/o-projeto.html>. Acesso em 06/08/2014.
contrário, o obriga justamente a se manter em constante re- SILVA, Marili Macruz F. da. O papel da escuta construída cultural-
visão e almejando ultrapassar a cristalização de suas concep- mente nos processos de aprendizado e desenvolvimento musical da
ções. Seus gostos, suas preferências, ou aquilo que considera criança. 2011. Dissertação (Mestrado em Musicologia) – Escola
sejam as preferências de seus alunos não devem nunca per- de Comunicações e Artes (USP), São Paulo, 2011. Disponível
manecer estáticos ou passíveis de dúvida, mas em constante em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27157/tde-
movimento de busca, atualização e transformação. 14122011-224042/>. Acesso em 06/08/2014.
Assim, o olhar, a escuta, a reflexão, a atitude criadora, TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. Petrópo-
o diálogo, a observação do entorno, a sensibilidade e con- lis: Vozes, 2002.

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EDUCAÇÃO
MUSICAL, CULTURA
E CURRÍCULO
A área de música precisa se redefinir sempre a partir de múltiplos
diálogos com a cultura contemporânea. Seus objetivos, conteúdos
e metodologias de ensino devem convergir, a fim de estabelecer
caminhos sólidos para a formação escolar na área
por Luis Ricardo Silva Queiroz

De maneira sintética, cultura é o conjunto de saberes,


conceitos, comportamentos e habilidades adquiridos
pelos sujeitos nas interações com a sociedade
88 • 89

A
s inter-relações entre música e cultura têm ganha-
do destaque nas abordagens da educação musical
contemporânea, principalmente, a partir da déca-
da de 1990. Os estudos e reflexões que concebem a for-
mação em música como um fenômeno intrinsecamente
relacionado às definições culturais de cada sociedade têm
apontado para a necessidade de pensarmos em propostas
de ensino e aprendizagem da música que se relacionem,
interajam e transformem o universo cultural do estudan-
te, do contexto de ensino e da comunidade em geral.
Com base nessa perspectiva, este artigo traz reflexões
acerca do ensino e aprendizagem de música na educação
básica, considerando, sobretudo, a realidade das escolas
brasileiras. De maneira mais específica, serão abordadas as
intersecções entre educação musical, cultura e escola, en-
fatizando desafios para o ensino de música nesse contexto
a partir de determinismos socioculturais que permeiam
definições curriculares da educação básica do Brasil.

Educação musical: do acesso à


transformação da cultura
O conceito de cultura é fundamental para entender-
mos a função da escola na sociedade e para analisarmos
as orientações e práticas que norteiam o processo de for-
mação na educação básica. Em sua vertente antropológi-
ca, a ideia de cultura foi concebida desde o final do século
XIX, por Edward Burnett Tylor (1871), em Primitive culture,
como uma lente interpretativa para a compreensão do ser
humano por meio das suas relações com a sociedade, con-
sigo mesmo e com a natureza. Os estudos e discussões que
abordam o conceito evidenciaram ao longo dos anos que
cultura, como fenômeno humano e social, é construída a
partir da aprendizagem. Portanto, cultura não é algo ina-
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to relacionado a potencialidades genéticas, físicas ou geo-


gráficas do indivíduo, mas sim um conjunto de elementos
apreendidos e incorporados pelos sujeitos a partir de suas
relações com as pessoas e com o mundo em que vivem.

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texto social define como fundamental para a formação do


cidadão. Ou seja, a escola é uma criação da cultura para
a sobrevivência da própria cultura, pois caso o indivíduo
não seja “enculturado” na escola ele deixará de aprender
elementos fundamentais para sua inserção cultural. “En-
culturar” significa agregar, juntar, somar, integrar, fundir
elementos culturais e é isso que se faz em qualquer pro-
cesso de formação. No caso da formação escolar, junta-
mos, somamos e fundimos saberes definidos curricular-
mente como necessários para o ser humano conviver na
sociedade a saberes construídos na trajetória social de
cada indivíduo, esperando que essa conjuntura resulte na
formação de um cidadão crítico e ético, capaz de conhecer
o mundo e também de transformá-lo.
No que tange à educação musical escolar, o professor
que medeia qualquer processo de formação em músi-
ca precisa ter a consciência de que um dos seus grandes
desafios é propiciar o acesso ao rico patrimônio cultural
imaterial da comunidade, do país e do mundo. Dialogan-
do com a cultura musical viva, o professor poderá traba-
lhar sonoridades, texturas, padrões estruturais (harmonia,
afinação, ritmo, melodia, timbres, entre outros aspectos),
relações simbólicas definidoras de valores e significados
da música na vida dos sujeitos e na cultura em geral. Essa
forma de enculturar o sujeito possibilita o acesso a conhe-
cimentos fundamentais, ampliando os seus saberes, suas
visões de mundo, sua compreensão das culturas musicais
© Ana Teixeira. Reprodução

existentes e que, portanto, configuram importantes cami-


nhos para a educação escolar.
Grafite em uma rua de Paris. A cultura musical Mas há também outro grande desafio para o educa-
não tem raízes, é algo mais dinâmico, móvel. dor musical: transcender a aquisição dos saberes exis-
A música soa, anda, voa, se move, se transforma
tentes, propiciando, no processo de enculturação do
aluno, estratégias de transformação e ressignificação
da cultura musical do estudante, da escola, da socieda-
De maneira sintética, cultura é o conjunto de sabe- de. Esse segundo desafio é demasiadamente difícil de
res, conceitos, comportamentos e habilidades adquiri- ser superado, considerando que exige, de certa forma,
dos pelos sujeitos nas interações com a sociedade. Esse a transgressão de determinismos culturais que estabe-
conjunto de elementos adquiridos é determinante do lecem bases curriculares para as escolas, que concebem
que pensamos, de como agimos, do que valorizamos e conteúdos a serem ensinados e que orientam práticas
do que selecionamos como fundamental para a nossa vi- pedagógicas a serem trabalhadas.
vência e inserção social. Tendo o papel de atuar na mediação e assimilação
As definições culturais que regem a sociedade nos dos conhecimentos existentes, devemos ter consciência
levaram ao entendimento de que é preciso estabelecer de que todos nós que fazemos a educação musical não
espaços com a função de propiciar ao individuo acesso a somos, de certa forma, completamente autônomos. En-
conhecimentos, saberes e comportamentos fundamen- sinamos o que nos foi passado culturalmente, por nossos
tais para sua vida social. Com esse fim, criamos a escola. A antepassados ou contemporâneos. Assim, estamos presos
escola é, portanto, um lugar concebido socialmente para a padrões sonoros (tonalismo, afinação, pulso, timbres,
“ensinar” cultura, a partir do que a cultura de cada con- tessituras etc.) e a formas de transmissão de conhecimen-
90 • 91

Os determinismos culturais que marcam a concepção de


currículo vigente na escola reservaram à música, muitas vezes
e em muitos lugares, um papel secundário no currículo

to que permeiam nosso processo de formação e inserção pectiva de currículo há duas dimensões importantes a
social. Para aprofundarmos essa reflexão no âmbito da serem consideradas. A primeira implica a inserção real
educação musical escolar, tomo de empréstimo as pala- da música na escola, como componente curricular, o que
vras de Edgar Morin, em O Método 4: As ideias, ao afirmar pressupõe a conquista política e cultural de um espaço
que: “É verdade que todo conhecimento, inclusive o cien- ainda não devidamente consolidado para a área nos cur-
tífico, está enraizado e dependente de um contexto cultu- rículos das escolas brasileiras. Ou seja, os determinismos
ral, social, histórico. Mas, o problema consiste em saber culturais que marcam a concepção de currículo vigente
quais são essas inscrições, enraizamentos, dependências, na escola reservaram à música, muitas vezes e em muitos
e de perguntar-se se pode aí haver, e em que condições, lugares, um papel secundário no currículo. Secundário
certa autonomização e uma relativa emancipação do co- no sentido de que não ocupa um espaço acessível a to-
nhecimento e da ideia”. dos os alunos, não sendo, dessa forma, considerada como
Essa concepção do autor evidencia que existem for- fundamental para o processo de formação de todos os
mas de redefinição e transformação dos padrões sociais sujeitos contemplados pela educação básica.
e culturais, inclusive no que diz respeito ao universo Essa definição é cultural e está pautada em determi-
da música. Tal fato me faz discordar de Morin quando nismos que conceberam a escola como lugar de discipli-
utiliza termos como “enraizado” e “enraizamentos”, que nas e saberes direcionados, sobretudo, para o pragmatis-
podem nos levar à ideia de que há conhecimentos, sabe- mo da sociedade contemporânea. Tal fato exige de nós,
res e práticas culturais, como a música, fincados em um educadores musicais, uma ação coletiva que se vincula
local fixo, pois essa perspectiva pouco se aplica à ideia à ideia de que precisamos não só levar a música para a
contemporânea de cultura. cultura escolar existente, mas, sobretudo, necessitamos
As chamadas “raízes culturais” não são fixas o sufi- transformar a cultura escolar dominante para, de fato,
ciente para serem consideradas estáticas, portanto não elevar a música à condição de área fundamental no pro-
são como raízes de vegetais. Qualquer cultura sempre cesso de formação dos cidadãos brasileiros.
estará aberta e sujeita às mudanças. Mudanças sem as Antônio Flávio Barbosa Moreira, em Indagações so-
quais a cultura não se (re)define e, portanto, não sobrevi- bre o currículo: currículo, conhecimento e cultura, destaca
ve. Por esse ponto de vista, tenho afirmado que a cultu- que “é por meio do currículo que certos grupos sociais,
ra musical não tem raízes, mas sim algo mais dinâmico, especialmente os dominantes, expressam sua visão de
móvel, sendo mais adequado considerar que a música mundo, seu projeto social, sua ‘verdade’”. Na sua visão,
tem “pés”, “patas” ou “asas”, pois o fenômeno musical não o currículo expressa “práticas que propiciam a produção,
está preso, mas, ao contrário, em pleno movimento, por a circulação e o consumo de significados no espaço so-
isso a música soa, anda, voa, se move, se transforma! cial e que contribuem, intensamente, para a construção
de identidades sociais e culturais”. Se acreditamos que
Currículo e ensino de música: a música tem um papel importante na formação do ser
diálogos da contemporaneidade humano, e nossos estudos têm mostrado que sim, preci-
A escola, como espaço social com uma função especí- samos realinhar a concepção e construção dos currículos
fica na sociedade, tem sua atuação delineada a partir de vigentes nas escolas do país.
diretrizes e ações que compõem o seu currículo. O cur- Ainda nessa perspectiva de currículo, a segunda di-
rículo compreende, portanto, o conjunto de concepções mensão que emerge para pensarmos e concebermos a
e práticas que dinamizam a ação social da escola, sendo educação musical escolar está vinculada à concepção
definido a partir de conceitos e valores da cultura. de um currículo específico para a formação musical na
Pensando a educação musical a partir dessa pers- escola. Na mesma direção do que refletimos anterior-

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COMO ENSINAR MÚSICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA

A Lei de Diretrizes e Bases da Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais sonoro-musical, considerando


Educação Nacional, Lei 9.394/96, ao para a Educação Básica, das Diretrizes corpo, voz, elementos
especificar a finalidade da educação Curriculares Nacionais para o Ensino naturais, materiais reciclados,
básica, nos fornece importantes Médio e das Diretrizes Curriculares instrumentos tradicionais,
parâmetros para traçarmos o objetivo Nacionais para a Educação Infantil, tecnologias contemporâneas,
do ensino de música na escola. é possível pensar em orientações entre outros aspectos;
Assim, parafraseando o artigo abrangentes que, grosso modo, podem o desenvolvimento da acuidade
22 da mencionada Lei, é possível nortear a concepção e definição de auditiva e da percepção sonoro-
afirmar que o objetivo do ensino conteúdos para o ensino de música na musical, a fim de identificar e
de música na educação básica é escola. De tal maneira, os professores compreender diferentes formas
desenvolver o educando no campo podem pensar em uma ação de expressão da música;
musical, assegurando-lhe a formação pedagógica que trabalhe aspectos a organização composicional,
indispensável para o exercício da fundamentais da música como: a partir de dimensões melódicas,
cidadania e fornecendo-lhe meios para harmônicas e rítmicas que
que, a seu critério, possa progredir o som e seus parâmetros compõem a pluralidade musical
no âmbito da música em estudos como matéria-prima para a local, nacional e internacional;
posteriores e, inclusive, utilizá-la como experimentação, estruturação a criação de músicas que utilizem
um dos caminhos para sua qualificação e expressão musical, novos parâmetros estéticos e
profissional e para o trabalho. contemplando dimensões técnicas, novos recursos estilísticos inspirados
Com base no objetivo apresentado estéticas e simbólicas; na composição contemporânea;
acima, concebido a partir da LDB a exploração e prática de a percepção e a prática de ritmos
vigente, e considerando definições das recursos diversos para a produção (métricos e assimétricos) a partir de
diferentes formas de organização
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desse elemento em distintas


expressões da cultura musical;
o desenvolvimento de habilidades
de execução musical, considerando
fontes variadas de produção de
som, bem como múltiplas estéticas
musicais do Brasil e do mundo;
o uso, a exploração e o
desenvolvimento da estética
vocal, considerando os múltiplos
padrões de uso da voz nas culturas
musicais (timbre, guturalidade,
dicção, entonação, impostação,
entre outros aspectos);
a audição, o reconhecimento
e a análise (estrutural, estética e
simbólica) de músicas de variadas
culturas, incluindo a música da
Os professores podem pensar em uma ação
cultura do aluno e da cultura escolar;
pedagógica que trabalhe aspectos fundamentais
da música como o uso de instrumentos o desenvolvimento de
tradicionais, tecnologias contemporâneas, corpo,
voz, elementos naturais, materiais reciclados etc.
92 • 93

As definições de ensino
parâmetros fundamentais para de música por vezes
a expressão musical em nossa
cultura como: afinação, pulso,
estão embasadas em
domínio e coordenação determinismos culturais que
rítmico-musical, entre outros.
A análise das já citadas Diretrizes
privilegiam padrões estéticos
Nacionais, bem como de outros concebidos como ideais
documentos que regem a educação
básica nacional, permite conceber
bases metodológicas para o ensino de
música que podem orientar de forma mente, as definições de ensino de música por vezes estão
plural a ação docente no contexto embasadas em determinismos culturais que privilegiam
escolar. Assim, sinteticamente, o processos, padrões estéticos, estilos e gêneros musicais
professor de música pode desenvolver concebidos como ideais, em detrimento de outros, sem a
metodologias que contemplem: devida reflexão e análise das implicações de perspectivas
práticas coletivas e individuais via e práticas dessa natureza no contexto da escola.
apreciação, interpretação e Nesse sentido, corremos o risco de deixar de fora da
criação, considerando as diversas ação educativo-musical na escola, por exemplo, o reper-
formas de vivenciar e de fazer tório dos alunos, por entender que segundo determina-
música e os diferentes papéis que dos padrões “valorativos” as músicas que compõem o
cada estudante pode desempenhar mundo musical do estudante não são dignas de serem
nesse processo; recursos distintos para trabalhadas na sala de aula. Por outro lado, também cor-
a produção musical, possibilitando remos o risco de – ao olhar intensamente para o universo
a experimentação de diferentes musical do estudante – cairmos no equívoco da pedago-
estratégias de geração do som e sua gia musical do agrado, limitando a ação educativa a um
organização como expressão musical; universo restrito da cultura e não possibilitando, de tal
músicas variadas, abrangendo forma, que o estudante transgrida as barreiras daquilo
repertórios da cidade, do estado, que já lhe é conhecido.
da região e do país, bem como Para não cair em nenhum dos extremos, fica eviden-
expressões musicais de diferentes te que o caminho para o ensino de música na escola dos
culturas do planeta; tecnologias dias atuais é o caminho da pluralidade. Pluralidade de
contemporâneas que possibilitem o repertórios, metodologias, conceitos, concepções e valo-
acesso, a criação e a execução de res. Pluralidade que pensa a diversidade não como uma
variadas formas de expressão perspectiva para formar iguais, mas como caminhos
das músicas do mundo; práticas para a igualdade de direitos, visando formar os sujeitos
de ensino que trabalhem aspectos para viverem as suas diferenças.
sonoros, mas também significados, Nessa perspectiva, concordo com Boaventura Santos
valores e demais elementos que de que esse é um grande desafio para a sociedade contem-
configuram a música como expressão porânea e, sem dúvida, um grande desafio para pensar,
da cultura; avaliações periódicas, com conceber e praticar o ensino de música nas escolas. No
vistas a identificar os avanços texto Uma concepção multicultural de direitos humanos, ele
e os limites da proposta educacional afirma que “as pessoas e os grupos sociais têm o direito a
musical realizada. ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a
ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.”

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Música para a diversidade


Ao conceber a educação musical como cultura fica
evidente que o ensino de música na escola tem uma du-
pla dimensão social, fundamental para o processo de for-
mação do ser humano. Nessa ótica, a formação musical
escolar deve possibilitar o acesso e a descoberta do patri-
mônio cultural musical produzido pela sociedade, mas
deve, também, transgredir os padrões existentes, estabe-
lecendo transformações que levem os indivíduos a novos
caminhos para a produção, a prática e a ressignificação
da música no seu meio cultural.
A escola como agente da cultura está marcada por
uma série de determinismos sociais que têm definido
as bases curriculares que orientam o seu processo de
formação. Nesse universo, a música ainda precisa con-
Instalação sonora da
quistar um lugar consistente no currículo, rompendo artista Janet Cardiff, em
com definições preconcebidas culturalmente que têm Inhotim, MG. É possível
conceber uma educação
estabelecido o papel dos componentes curriculares na
musical que transgrida a
educação básica e, por vezes, concedido à área um lugar norma e leve os alunos
secundário na formação do ser humano. a estabelecer novos
caminhos para a música
Tendo a música como componente curricular, a área
precisa se reavaliar e se redefinir constantemente a par-
tir de múltiplos diálogos com a cultura contemporânea.
Assim, é preciso rever objetivos, reestruturar conteúdos caminhos sólidos e significativos para a formação musical
e repensar metodologias de ensino, a fim de estabelecer escolar. De tal forma, será possível pensar em uma edu-
cação musical escolar real, significativa, contextualizada
com vida, a experiência e expectativa dos estudantes e da
O caminho instituição escolar. Mas será possível, também, conceber
para o ensino uma educação musical que transgrida a norma, que ex-
de música na
escola dos perimente, que (re)descubra, que leve os alunos a ampliar
dias atuais é seu universo estético e simbólico e a estabelecer novos ca-
o caminho da
pluralidade minhos para a música na cultura contemporânea.
de repertórios,
metodologias,
conceitos,
concepções e
valores
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.
Câmara de Educação Básica. Resolução nº 2, de 30 de janeiro de
2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio. Brasília, 2012. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/
index.php?option=com_content&view=article&id=17417&Item
id=866>. Acesso em 30/07/2014.
© www.freeimages.com .Reprodução

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.


Câmara de Educação Básica. Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010.
Define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação
Básica. Brasília, 2010b. Disponível em: <http://portal.mec.gov.
br/index.php?option=com_content&view=article&id=12992>.
Acesso em 30/07/2014.
94 • 95

© Janet Cardiff, Forty Part Motet. Foto: Tiberio França. Reprodução


A formação musical escolar deve possibilitar o acesso e a
descoberta do patrimônio cultural musical produzido pela
sociedade, mas deve, também, transgredir os padrões existentes

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educa- BRASIL. Presidência da República. Lei nº 11.769, de 18 de agosto
ção. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 5, de 17 de de- de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei
zembro de 2009. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre a obriga-
a Educação Infantil. Brasília, 2009. Disponível em: <http:// toriedade do ensino da música na educação básica. Brasília,
portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_ 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
download&gid=2298&Itemid>. Acesso em 30/07/2014. ato2007-2010/2008/lei/l11769.htm>. acesso em 30/07/2014.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa. Indagações sobre currículo:
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BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília, 1998. Ensfund/indag3.pdf>. Acesso em 20/07/2014.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e MORIN, Edgar. O método 4: as ideias: habitat, vida, costumes, organização.
Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Trad. Juremir Machado da Silva. 5ª. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.
Brasília, 1999. (Edição em volume único, incluindo a Lei n o
SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos
9.394/96 e DCNEM). humanos, Lua Nova, n. 39, p. 105-124, 1997. Disponível em: <http://
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de www.scielo.br/pdf/ln/n39/a07n39.pdf>. Acesso em 15/05/2013.
1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Bra- TYLOR, Edward Burnett. Primitive culture: researches into the deve-
sília, 1996. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legisla- lopment of mythology, philosophy, religion, language, art, andcus-
cao/ListaPublicacoes.action?id=102480>. Acesso em 30/07/2014. tom. Londres: John Murray, 1871 (vol. 1).

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Arte e inclusão

ACESSIBILIDADE
CULTURAL:
INCLUSÃO
DE PÚBLICOS
ESCOLARES COM
DEFICIÊNCIAS
Os novos paradigmas propostos pelo
conceito de inclusão de alunos e públicos com
deficiência em escolas e museus trouxeram
mudanças que muito contribuem para
uma maior flexibilidade e ampliação dos
instrumentos e métodos de aprendizagem
por Amanda Pinto da Fonseca Tojal
© Reprodução
96 • 97

M
uita coisa mudou em relação ao acesso de de- me transferi para a Pinacoteca do Estado de São Paulo,
ficientes à educação formal e não formal desde para implantar um novo programa, o PEPE – Programa
que comecei a trabalhar em museus no fim dos Educativo para Públicos Especiais – muito atuante e re-
anos 1980. Ouvia-se e trabalhava-se na época com o con- conhecido até os dias de hoje.
ceito de integração, hoje sabemos que a inclusão é o mo- Finalmente, após todos esses anos de experiência,
delo seguido por todos. O leitor encontrará aqui o relato pude realizar um projeto curatorial e educativo seguin-
dessa trajetória, desde as minhas primeiras ações educa- do os padrões de acessibilidade universal: a exposição
tivas em museus de arte paulistas dirigidas a alunos com itinerante Sentir prá ver: gêneros da pintura na Pinacoteca
deficiências, do início da década de 90, até os dias de hoje. de São Paulo, síntese de todas as pesquisas e trabalhos
Tudo começou no Museu de Arte Contemporânea até então desenvolvidos por mim nessa área.
da Universidade de São Paulo, que nos últimos anos da Esses três programas – e as reflexões e experiências
década de 1980 era referência no Brasil em ações edu- por eles fomentadas – serão referências para o desenvol-
cativas. Abrigava projetos socioeducativos inovadores, vimento deste artigo, cujo foco é a inclusão de alunos
cujas parcerias com as redes municipais e estaduais, des- com deficiências no ensino da arte e em espaços museo-
de o ensino fundamental ao médio, trouxeram grandes lógicos de nosso país.
contribuições para a melhoria na qualidade do ensino
da arte, tanto na educação formal como não formal. O Da integração à inclusão
MAC-USP era visto também como um importante celei- Quando iniciei o meu trabalho de ação educativa
ro de pesquisa e reunião de especialistas nessa área, fato com pessoas com deficiências, em princípios de 1990, de-
devido ao empenho e à vitalidade de Ana Mae Barbosa, parei-me com um momento muito importante de tran-
arte-educadora e diretora do museu. sição do movimento da inclusão escolar, em substituição
Foi nesse ambiente, palco de grandes mudanças, en- ao conceito da integração, o que, consequentemente, re-
volvendo novas metodologias de ensino da arte, aplicá- fletia um aumento gradativo de alunos com deficiência
veis tanto no âmbito escolar como no museológico, que em sala de aula, alterando sensivelmente a dinâmica dos
tive o privilégio de atuar como educadora e pesquisadora, trabalhos educativos, tanto das escolas como nas ações
promovendo ações educativas dirigidas aos públicos com educativas das instituições culturais.
deficiência, pessoas até então muito pouco reconhecidas Por outro lado, se o conceito de integração visava o
pela sua relevância como visitantes nessas instituições. princípio da “normalização”, em que o aluno com Neces-
Esse trabalho não teria, entretanto, sido posto em práti- sidades Educacionais Especiais (NEE) necessitava se adap-
ca se, no início da década de 1990, um importante fator não tar ao sistema escolar regular, o conceito de inclusão, ao
tivesse provocado o meu interesse de pesquisar outros per- contrário, busca a criação de condições que garantam o
fis de públicos e a sua inclusão sociocultural: o nascimento acesso pleno do aluno ao ensino regular, por meio de su-
de minha sobrinha com deficiência intelectual e as trans- portes físicos, psicológicos, sociais e instrumentais, o que,
formações pessoais que decorrem quando uma pessoa com por decorrência, passa a exigir mudanças que vão muito
deficiência passa a fazer parte do núcleo familiar. Acrescen- além das adaptações físicas desses locais, perpassando pe-
tou-se também a isso o apoio incondicional que obtive para las mudanças pedagógicas, metodológicas e atitudinais,
a implantação desse projeto no MAC-USP, como também isto é, uma mudança significativa dos paradigmas propos-
a orientação acadêmica que recebi da professora Ana Mae tos por um ensino mais padronizado e competitivopara
Barbosa, que me autorizou a estagiar em instituições espe- um ensino mais humanizado, que leve em consideração a
cializadas e de ensino formal que atendiam pessoas com diversidade dos alunos e consequentemente uma dinâmi-
deficiências visuais, auditivas e neuromotoras. ca mais cooperativa do ambiente da sala de aula.
Esses contatos e as parcerias com essas instituições Na prática, a inclusão é um processo gradual, pois, ao
tornaram possíveis a realização do primeiro programa pressupor uma redefinição do modelo educacional, de-
permanente envolvendo ações educativas para públicos mandará um longo período de adaptações e avaliações
com deficiências em museus de arte implantadas naque- baseadas, sobretudo, nas concepções existentes anterior-
la década e, posteriormente, em outros museus no Esta- mente e implementadas principalmente nas escolas es-
do de São Paulo – o Programa Museu e Público Especial pecializadas. Estas deverão passar também por mudan-
do MAC-USP – que perdurou de 1991 até 2003, quando ças e adaptações como parcerias com outras instituições

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Arte e inclusão

educativas, incluindo atendimentos complementares e irresponsável”. Não é admissível, segundo ele, ver crianças
especializados, no caso de pessoas com comprometimen- serem “atiradas” a salas de aula regulares sem apoio algum.
tos mais avançados. É preciso denunciar essas situações, alerta Correa. Muitas
Entretanto, é importante ressaltar que a simples aber- vezes, os responsáveis por nossas escolas chamam de in-
tura da escola para um processo de inclusão e inserção de clusão uma atitude semelhante ao do “despejo”.
alunos com necessidades educacionais especiais (sejam
elas de ordem social, cultural ou por limitações físicas Ações educativas em museus de arte e a inclusão
ou de aprendizagem) não garante nem uma educação de Foi nesse momento da história da educação que, ao
qualidade, nem uma educação inclusiva e, muito menos, iniciar o projeto de ação educativa para pessoas com defi-
uma sociedade inclusiva. ciência em museus de arte, me vi diante de duas realidades:
Essas questões, tão complexas e inquietantes, têm sido a primeira foi o total despreparo tanto dos profissionais
exaustivamente debatidas na atualidade por professores, educadores como de outros profissionais daquela institui-
educadores e pedagogos e contribuído para uma extensa ção para receber de forma adequada e sem preconceitos as
produção científica. O importante, porém, é que possam pessoas com deficiência que visitavam o museu. A segunda
ser levadas em consideração ações engajadas com mudan- foi grande falta de preparo dos professores das instituições
ças estruturais e pedagógicas, mas, sobretudo, mudanças de ensino regular para incluir de forma satisfatória os alu-
que respeitem, antes de tudo, o ser humano. nos com deficiência na sala de aula, tendo nesse caso, como
Desse modo, tomando por referência alunos com de- referência, as aulas de artes do ensino formal.
ficiências, público-alvo desta reflexão, fica evidente que Essa situação, que, a princípio, poderia aparentar um
medidas radicais que incluam a simples suspensão de grande empecilho, passou, ao contrário, a ser um fator de
serviços, de profissionais e instituições especializadas no estímulo, um desafio que abriu caminhos para novas pes-
âmbito educacional, sem priorizar medidas que incluam quisas pedagógicas e tecnológicas, contatos com profis-
a aplicação de recursos de infraestrutura escolar e peda- sionais e ações educativas fundamentadas no conceito da
gógica, bem como as formações profissionais necessárias, inclusão, desenvolvidas em instituições culturais e de en-
terão como consequência uma reação denominada “in- sino e, principalmente, a aproximação com a realidade das
clusão irresponsável”, que só trará danos a todos, profes- pessoas com deficiência, seu potencial e suas necessidades.
sores, pais, alunos e, principalmente, à sociedade. Para ampliar o conhecimento sobre esse assunto, fo-
Neste ponto, em “O Sistema Educativo Português e as ram elaborados trabalhos acadêmicos (veja bibliografia
Necessidades Educativas Especiais ou Quando Inclusão no final do artigo), com o objetivo de desenvolver novas
Quer Dizer Exclusão”, Luiz Correa de Miranda é bem en- propostas para o ensino da arte na educação inclusiva.
fático: “Quando a criança com NEE é meramente colocada Aliadas às práticas das ações desenvolvidas nos museus
na classe regular sem os serviços de apoio de que necessita para esse público-alvo, tais propostas passaram também
e/ou quando se espera que o professor do ensino regular a fundamentar o planejamento de cursos de formação, mi-
responda a todas as necessidades dessa mesma criança sem nistrados tanto para profissionais de museus e de outras
o apoio de especialistas, isto não é inclusão, nem é edu- áreas da educação não formal, como também para pro-
cação especial ou ensino regular apropriado – é educação fissionais da educação formal, pertencentes às redes de
ensino pública e privada, conscientes das carências e das
novas demandas que a inclusão dessas pessoas exigia.
Com o propósito de subsidiar o planejamento de cur-
A simples abertura da sos e programas de arte para públicos e alunos com de-
ficiências, tanto nas escolas como nos museus e espaços
escola para um processo culturais, ressaltando a grande contribuição do estabele-
de inclusão de alunos com cimento de parcerias entre essas instituições, os cursos
de formação têm por fundamentação teórica e prática o
deficiências não garante desenvolvimento de cinco conteúdos:

educação de qualidade 1. o conhecimento das especificidades das deficiências


com as quais esses profissionais irão trabalhar; 2. a adap-
nem educação inclusiva tação da comunicação visual, oral e escrita, a fim de per-
98 • 99

mitir o diálogo e a mediação dos conteúdos de artes aos rência desses materiais nos museus de arte de São Paulo,
alunos ou públicos com deficiência; 3. a aplicação de mé- passei a buscar referências de recursos de apoio multis-
todos pedagógicos que viabilizem a exploração, o reco- sensoriais em outras áreas do conhecimento, como as
nhecimento e o aprendizado da arte de forma não somen- pesquisas em andamento no Laboratório de Cartogra-
te visual, mas também multissensorial dos conteúdos, fia Tátil da Universidade de São Paulo, instituições es-
abrangendo os sentidos do tato, audição, paladar e olfato; pecializadas em pessoas com deficiências (Instituto de
4. a produção de recursos multissensoriais, como forma Cegos Padre Chico, LARAMARA, ADEFAV/Associação
de apoio e mediação na exploração e no reconhecimento para Deficientes da Audiovisão e AACD/Associação de
dos conteúdos artísticos, históricos e ambientais; 5. orien- Assistência à Criança Deficiente) e também nos museus
tações sobre o estabelecimento de parcerias com institui- de ciências, nacionais e internacionais, cuja vocação já os
ções formais, não formais e especializadas em pessoas predispõe à exploração e à interatividade do público com
com deficiências, incluindo a participação de pessoas com os conteúdos e objetos apresentados.
deficiências (profissionais, artistas ou convidados) em Foi a partir dessas pesquisas, da aplicação das experiên-
consultorias, palestras, cursos e encontros promovidos cias oriundas de outras áreas do conhecimento e das im-
por essas instituições. portantes avaliações realizadas por alunos e pessoas com
deficiência, em cursos de artes ou em visitas educativas em
museus de arte, que se tornou possível elaborar e justificar a
importância da utilização dos recursos de apoio multissen-
Conhecimento soriais (objetos, réplicas, reproduções em relevo, maquetes,
Adaptação
das especificidades
da Comunicação jogos interativos, extratos sonoros, entre outros), instru-
das deficiências
Visual, Oral
e Escrita mentos fundamentais de mediação, com o objetivo de am-
pliar o uso dos canais de percepção, em favor do conheci-
mento e da apreciação da arte, de forma não somente verbal
ENSINO (oral e escrita), mas também interativa e experimental.
DA ARTE NA
A relevância da elaboração e utilização desses recur-
Parcerias e EDUCAÇÃO
sos, tanto nas escolas como nos museus e instituições
Consultorias INCLUSIVA Recursos
de apoio culturais, justifica-se pela sua abrangência, ao atingir não
multissensoriais somente os públicos com deficiência, mas também todos
e Tecnologia
Assistiva os públicos, os quais se beneficiam desses instrumentos
Metodologias de mediação aliados aos métodos fundamentados pela
Multissensoriais percepção multissensorial, abordagem que prioriza a in-
e Inclusivas
clusão de todos os canais sensoriais, além do visual, como
os sentidos do tato, da audição, do paladar e do olfato,
como forma de contribuir para a aprendizagem e oconhe-
cimento mais significativo da arte.
Dos cinco itens acima apresentados, destacarei, Para José Alfonso Ballestero, o tato, a audição, a visão,
como forma de exemplificar a minha experiência de o olfato e o paladar são canais de entrada muito valiosos
atendimento a alunos com deficiência em exposições de para aquisição de informações, acrescentando que o de-
arte, um fator fundamental para a realização de ações de senvolvimento da percepção pela via multissensorial pre-
mediação, tendo em vista a especificidade dos públicos dispõe também os indivíduos a uma maior receptividade e
com esse perfi l: a necessidade de adaptação dos conteú- sintonia com o meio ambiente e seus semelhantes.
dos de arte para alunos com deficiências físicas, visuais, As experiências perceptivas desenvolvidas segundo a
auditivas e intelectuais. abordagem multissensorial possibilitam a melhor com-
A adaptação de conteúdos de arte para alunos e públi- preensão da realidade e também das representações hu-
cos com deficiência requer a pesquisa e a produção de ins- manas e do meio ambiente, da mesma forma que exerci-
trumentos de mediação, também denominados recursos tam e estimulam as potencialidades perceptivas de pesso-
de apoio multissensoriais e tecnologias assistivas. as com ou sem deficiências e ampliam as capacidades de
Em princípios da década de 1990, dada a visível ca- reconhecimento e apreensão do mundo.

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Arte e inclusão

Abordagem multissensorial dos conteúdos artísticos


Referência da contribuição da abordagem multissensorial no conhecimento e na percep-
ção de obras de arte e seus conteúdos é a exposição Sentir prá ver: gêneros da pintura na Pina-
coteca de São Paulo, em que se desenvolvem propostas educativas para públicos com e sem
deficiência, aplicáveis tanto em aulas de artes na escola como em espaços expositivos.
Na exposição há catorze reproduções fotográficas de obras de autores brasileiros, do final do
século XIX a meados do século XX, pertencentes ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Os principais temas das artes plásticas estão representados nelas: natureza-morta, retrato, cenas,
marinha, paisagem rural, paisagem urbana, e abstração. Cada tema aparece em duas obras, nas
quais há soluções e tratamentos diferentes para um mesmo motivo, permitindo aos visitantes a
possibilidade de leituras comparativas que enriqueçam o seu repertório artístico e cultural. Vista panorâmica
O projeto curatorial segue os padrões de acessibilidade universal, como forma de permitir da exposição
Sentir prá ver:
tanto o acesso como também traduzir e facilitar a compreensão de obras de arte, principalmente gêneros da pintura
a pessoas com deficiências, contemplando aspectos físicos, comunicacionais e atitudinais. na Pinacoteca de
São Paulo

© Reprodução
Piso tátil para
Aspectos físicos orientação e
Acesso adaptado para a circulação de pessoas em cadeiras de rodas e mobilidade reduzida, segurança de
pessoas com
piso tátil para orientação e segurança de pessoas com deficiências visuais, alcance visual e manual deficiências visuais.
de textos, bases e recursos de apoio para pessoas com e sem deficiência. Alcance visual e
manual de textos
© Reprodução
100 • 101

Aspectos comunicacionais
São maquetes táteis tridimensionais de obras de arte, reproduções em relevo texturizado
e alto contraste de imagens bidimensionais, jogos associativos de obras de arte com poemas,
palavras, extratos sonoros e imagens, objetos referenciais tridimensionais e quebra-cabeças Obra de Pedro
Alexandrino,
imantados. Além disso, há textos investigativos disponibilizados em áudio e dupla leitura (tin- maquetes e
ta com caracteres ampliados e braile). reproduções em
relevo texturizado

© Pedro Alexandrino, Natureza morta, óleo


sobre tela, sem data. Reprodução
© Reprodução
Exploração visual e tátil dos recursos de
acessibilidade. Maquete, jogo de associação
e reprodução em relevo de obra de arte
© Reprodução

A acessibilidade
universal considera
aspectos físicos,
comunicacionais
Jogos de associação e atitudinais
de imagem com
poemas, palavras e
caça-detalhes
para permitir o
acesso e facilitar
a compreensão de
obras de arte
FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Arte e inclusão

Aspectos atitudinais
Consistem nas ações de formação para todas as equipes das instituições envolvidas, princi-
palmente aquelas ligadas ao atendimento do público, por meio de cursos, palestras e oficinas a
professores e educadores, visando a formação desses profissionais para o planejamento de pro-
gramas e cursos de arte para alunos e os mais diversos perfis de públicos, permitindo a todos o
amplo acesso à fruição e apreciação da arte, além de estimular, por meio de todos os sentidos,
as múltiplas leituras e interpretações que os objetos culturais têm a oferecer.
Até o presente momento, Sentir prá ver participou de duas exibições, a primeira na Pina-
coteca do Estado de São Paulo, no período de abril a julho de 2012, e a segunda no Memorial
da Inclusão, Secretaria do Estado da Pessoa com Deficiência de São Paulo, no período de
janeiro a março de 2014.
Observou-se, em ambos os casos, uma excelente receptividade do público à proposta. Por
um lado, pessoas com deficiências foram reconhecidas em suas necessidades especiais, poden-
do acessar conteúdos culturais tradicionalmente inexploráveis por essa população e, por outro,
pessoas sem deficiências experimentaram uma nova forma de apreciação do objeto artístico, Encontro de formação
de educadores e
comprovando-se que iniciativas como essa ampliam a comunicação dos conteúdos presentes oficinas de produção
nos espaços museológicos, que se tornam um real instrumento de inclusão social. de recursos de
acessibilidade

© Reprodução

Quebra-
© Reprodução

cabeça
em relevo
imantado
(à esquerda)
da obra de
Carlos Scliar,
“Sem titulo”
(Natureza-
morta),
Técnica mista,
1983. Acervo
Pinacoteca
do Estado
de São Paulo
(à direita)
102 • 103

tiva Inclusiva em museus e instituições culturais. É curadora e coorde-


nadora pedagógica das ações de acessibilidade da Exposição Itinerante
Sentir prá ver: gêneros da pintura na Pinacoteca de São Paulo, desde 2012.

Referências bibliográficas
ABNT NBR 9050:2004 – Acessibilidade a edificações, mobiliário, es-
paços e equipamentos urbanos. Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT), 2004. Disponível em: <www.abnt.org.br>.

© Reprodução
Acesso em 06/08/2014.
BALLESTERO-ÁLVAREZ, J.A. Multissensorialidade no ensino de dese-
nho a cegos. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comu-
Maurício Nogueira, Composição n° 2, óleo sobre aglomerado,
1952. Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo nicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
Disponível em: <www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/
tde-21032005-213811/>. Acesso em 06/08/2014.
Sob o signo da inclusão e da diversidade CORREIA, Luís de M. O Sistema Educativo Português e as Neces-
Os novos paradigmas propostos pelo conceito de in- sidades Educativas Especiais ou Quando Inclusão Quer Dizer
clusão de alunos e públicos especiais em escolas e museus Exclusão. In: Educação especial e inclusão: quem disser que uma
trouxeram mudanças que muito contribuem para uma sobrevive sem a outra não está no seu perfeito juízo. Porto: LDA,
maior flexibilidade e ampliação dos instrumentos e méto- 2003.
dos de aprendizagem, pois, ao se tomar por referência não GABRILLI, Mara. Manual de Convivência – Pessoas com Deficiência e
mais o padrão de normalidade e sim o da diversidade, pro- Mobilidade Reduzida. SMPED (coordenação): Secretaria Munici-
fessores e educadores se veem diante de um universo maior pal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida da Prefei-
de canais de exploração e apreensão dos conhecimentos, tura da Cidade de São Paulo. Disponível em: <www.institutoma-
canais esses que poderão ser utilizados de acordo com as ragabrilli.org.br>. Acesso em 06/08/2014.
especificidades e potencialidades de cada indivíduo. MATTOS, Edna A. (org.). Educação Inclusiva: reflexões sobre inclusão
Desse modo, as pesquisas e relatos de experiências e inclusão total. In: Inclusão. Área de educação especial. Braga: Ins-
envolvendo ações educativas inclusivas em arte, tendo tituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho, n° 5, 2004.
por alvo principalmente a relação de alunos de escolas MUSEUS E ACESSIBILIDADE. Coleção Temas de Museologia. Lis-
inclusivas, instituições especializadas e exposições de boa: Instituto Português de Museus (IPM), 2004. Disponível em:
arte, são referências que podem auxiliar e estimular <www.ipmuseus.pt>. Acesso em 06/08/2014.
professores e educadores, tanto do ensino formal como SOLER, Miquel A. Martí. Didáctica multisensorial de las ciencias. Bar-
não formal, a enfrentar com mais segurança o grande celona: Paidós, 1999.
desafio que os conceitos de inclusão e diversidade im- TOJAL, Amanda P. da Fonseca. Museu de Arte e Público Especial. São
põem, traduzidos pelas novas e múltiplas respostas a Paulo, ECA-USP (Dissertação de Mestrado), 1999. Disponível
esse vasto e infinito mundo do conhecimento que não em: <www.arteinclusao.com.br/publicacoes/publicacoes.htm>.
se resolve apenas com respostas únicas ou preestabe- Acesso em 06/08/2014.
lecidas, mas que é pautado pelas constantes mudanças TOJAL, Amanda P. da Fonseca. Políticas Públicas de Inclusão Cultural
que a individualidade e a criatividade que cada um de de Públicos Especiais em Museus. São Paulo, ECA-USP (Tese de
nós empreende. Essa é a condição absolutamente neces- Doutorado), 2007. Disponível em: <www.arteinclusao.com.br/
sária para que possamos, profissionais da educação, efe- publicacoes/publicacoes.htm>. Acesso em 06/08/2014.
tivamente contribuir para o desenvolvimento de uma
sociedade mais justa e solidária. Sites
Instituto Mara Gabrilli: www.institutomaragabrilli.org.br
Ver Com Palavras: www.vercompalavras.om.br
Amanda Pinto da Fonseca Tojal é museóloga, mestre e doutora pela Programas de acessibilidade em museus e publicações da au-
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Ministra tora Disponível em: <www.arteinclusao.com.br/publicacoes/
cursos de formação em Acessibilidade Comunicacional e Ação Educa- publicacoes.htm>.

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Interação museu-escola

Educação
para arte na
AMAZÔNIAO Arte Pará figura entre os projetos mais sólidos
e contínuos no cenário nacional, e uma das mais
significativas ações de fomento, acesso e difusão artística
no país, integrando saberes e instituições de ensino
por Vânia Leal Machado
© Tsuyoshi Iwabuchi. Reprodução

Oficina no
Museu do
Estado do Pará
a partir da
obra do artista
Delson Uchoa
Bicho da Seda,
2012
104 • 105

FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN
Interação museu-escola

P
artindo do campo de experimentação de formação de e uma das mais significativas ações de fomento, acesso e
educadores como mediadores culturais e de profes- difusão artística no país, integrando saberes, instituições de
sores da rede estadual e municipal, analiso algumas ensino, estimulando a participação de estudantes na cons-
conjecturas que perpassam os processos de ensino e de trução do conhecimento e viabilizando o acesso à arte a di-
aprendizagem em arte, para circunscrever a análise sobre versas camadas sociais por meio de ações inclusivas.
tais interações, que nos dá um perfil das competências so- Com a atuação dos articuladores político-culturais,
cioculturais e artístico-estéticas de estudantes universitá- essas ações adquiriram visibilidade, ampliando o aces-
rios, professores do ensino fundamental e médio, crianças so à construção do conhecimento compartilhado com
e jovens participantes de exposições de arte. Busco, ainda, os visitantes.De maneira disseminadora, transforma-
verificar como se dá a inserção nos espaços culturais e na ram grande parte dos receptores envolvidos nessas
cidade de Belém, com o propósito de estabelecer proces- ações em agentes do conhecimento, que ganham os
sos de inclusão e desenvolvimento humano, além de uma mais diversos espaços, dos mais populares aos mais es-
conexão sobre o ensino de arte pautado em referências, a pecíficos, como é o caso dos museus.
partir do diálogo entre a arte e a vida contemporânea, com Rompendo as fronteiras regionais, o Arte Pará se con-
o objetivo de travar relações com a produção artística atual. solidou como um evento que concentra anualmente uma
Vale aqui um recorte para especificar a prática artísti- expressiva mostra da produção artística contemporânea
ca de mediação cultural no campo da curadoria educativa no Norte do Brasil. Nos últimos anos, passou a apresen-
que desenvolvo no projeto Arte Pará. Esse projeto teve ori- tar conexões internacionais, ampliando a compreensão
gem no início dos anos 1980, pela iniciativa do jornalista da arte em sua dimensão social e política, contando com
Romulo Maiorana de estimular a produção artística local. convidados especiais. Assim, o local e o global se colocam
Atualmente, rumo à sua 33ª edição, o Arte Pará figura entre em diálogo, revelando, no Pará, as transformações cultu-
os projetos mais sólidos e contínuos no cenário nacional, rais viabilizadas pela arte, esta entendida como expres-
© Reprodução

O Arte Pará
se consolidou
como um evento
que concentra
anualmente
uma expressiva
mostra da arte do
Norte brasileiro
106 • 107

© Tsuyoshi Iwabuchi. Reprodução


Na Edição Arte Pará 2012, conversa da
artista Danielle Fonseca com estudantes
do ensino fundamental, no Museu do
Estado do Pará (acima) e conversa do
artista Guy Veloso com os professores no
Museu de Arte Sacra (ao lado)

são que toma lugar na vida dos indivíduos, na cidade, em


seus espaços de valor simbólico.
Mas aqui problematizaremos a questão dos obstácu-
los aos processos educacionais de mediação cultural no
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Pará, devido à evidente escassez de teorias da arte (e da


cultura em geral) para a forma de organização adminis-
trativa, política e social instituída nesse estado. O Pará
carrega o estigma de ser periférico, tanto no panorama
cultural quanto econômico, em relação aos centros cul-
turais/econômicos do Sudeste do Brasil.
É importante fazer uma apreciação cuidadosa sobre
a apropriação das teorias (geralmente eurocêntricas) do
sistema da arte paraense, que afeta artistas, educadores, do lugar, constituíram procedimentos de mestiçagens
intelectuais, entre outros articuladores da cultura. Essas culturais, que se desenharam entre o contato com o con-
condições periféricas da arte (enquanto conhecimento) tinente europeu e a falta de integração nacional. Diante
em relação a outras áreas da ciência, às condições econô- desse contexto de isolamentos e fluxos, as particularida-
micas e culturais dos centros hegemônicos no país têm des de viver a região manifestam-se de forma particular
gerado reflexões relevantes, que orientam na percepção na experiência estética dos artistas que habitam a Ama-
da nossa condição de educadora na Amazônia. O curador zônia e operam sistemas paralelos de arte”.
Orlando Maneschy reforça esta reflexão no “Catálogo de O que se constata na produção contemporânea para-
artes” (2010): “Belém é fincada na floresta e manteve es- ense, ao verificá-la na perspectiva dos territórios multi-
treita conexão com a Europa, o que garantiu a circulação facetados, é que a arte contemporânea local se estrutura
de bens culturais que, somados à vivência do habitante de uma forma provavelmente única, devido à ausência

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de um mercado de arte consolidado, o que resulta em como objeto de garantia e proteção, por parte do estado,
discussões autorais e práticas artísticas e educacionais na gestão da educação. Entretanto, há carência de conhe-
legitimadas, distintas dos modelos ditados pelos centros cimentos acumulados sobre este tema.
culturais predominantes do Brasil. Atualmente, na Diretoria de Ensino Infantil e Fun-
O atraso do Pará em relação às práticas da arte con- damental (DEINF), da Secretaria de Estado da Educação
temporânea e processos educativos se dá de acordo com (Seduc), está em curso o processo de atualização do cur-
obstáculos econômicos da região – levando-se em conta a rículo de artes para as escolas, e o que se constata é que a
distância geográfica como um dos fatores que dificultam a produção artística no Pará não é dependente da educação
inserção de recursos na educação e na cultura, e impedem formal, apesar de fortalecer e aliar referências com a área.
que a produção artística e educacional se desenvolva num Como a posição de periferia político-econômica des-
ritmo semelhante ao dos grandes centros do país. te estado traz a necessidade de um sistema de educação
Outro problema que enfrentamos é referente à edu- formal voltado para a arte equiparado aos dos centros de-
cação formal, que não tem chamado muito a atenção dos senvolvidos do país, a situação torna-se mais difícil e nos
pesquisadores. Ressaltamos a política educacional como coloca sempre em estado de alerta. Entretanto, as institui-
a mais questionada, certamente por tratar-se de um pro- ções educativas, museus, galerias, meios de comunicação,
cesso sobre o qual é deduzida uma série de intenções, associações de artistas e outras iniciativas de instituições
ações e comportamentos na busca das funções legítimas particulares fomentam um solo cultural no qual a produ-
de governo. É possível afirmar que estudos e investigações ção artística nos indica um caminho de amadurecimento.
têm, em suas perspectivas, o enfoque da educação no Pará Certamente, a troca cultural sempre será dinâmica, no
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Ação da artista Paula Sampaio: Travessia


de estandartes feitos a partir de fotografias
realizadas no Lago do Tucuruí, 2012
108 • 109

As exposições que circulam no âmbito nacional,


quando vêm a Belém, não incluem a formação
de mediadores, contratam-se estudantes que se preparam
apenas para o conteúdo das mostras

entanto a desigualdade persiste. O Pará necessita fortale- ção com o que estamos desenvolvendo no Pará: o combate
cer uma política de arte-educação e mediações culturais. ao discurso da elitização e aos dados quantitativos quanto
A educação não é uma atividade neutra, mas se desen- ao número de visitantes como objetivo pontual. Interessa-
volve no sentido de atender às necessidades de determi- -nos o processo qualitativo no processo educacional.
nados grupos. Por exemplo, as exposições que circulam
no âmbito nacional, quando vêm a Belém, não incluem a A interação entre museus, escolas e a cidade
formação de mediadores; contratam-se estudantes que se Em 2007, a convite de Alexandre Sequeira, artista vi-
preparam apenas para o conteúdo das mostras. Não cabe sual e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA),
mais somente abrir uma exposição renomada nos museus integrei a equipe da Fundação Romulo Maiorana (FRM),
de Belém, atribuindo ao público em geral e às escolas um como coordenadora da Curadoria Educacional do Proje-
mote de democratização, pois assim se entra em contradi- to Arte Pará. Foi um duplo desafio: primeiramente, tive
de preparar estudantes de artes das universidades para a
mediação cultural nos museus, e escrever a edição espe-
cial de O Liberalzinho Arte Pará. Essa função contribuiu e
ampliou a pesquisa sobre arte contemporânea, e resultou
na significativa aceitação do encarte no processo de di-
fusão no período expositivo do projeto. O Liberalzinho é
um encarte especial veiculado no segundo domingo de
outubro, quando se comemora o Círio de Nossa Senhora
de Nazaré, no dia de maior tiragem do jornal O Liberal,
que circula em toda a região amazônica. É direcionado
para o público escolar e distribuído nos espaços expositi-
vos do Arte Pará durante o período expositivo (outubro a
dezembro), como mídia pedagógica de cunho jornalísti-
co. A tiragem extra é de 5 mil exemplares.
Neste contexto, o crítico de arte e curador geral do
Arte Pará, Paulo Herkenhoff, que está no projeto há mais
de uma década e tem observado o contexto da arte no
país, com olhar especial para a região Norte, legitima a
ação educativa e amplia as ações, ao afirmar no Catálo-
go Arte Pará (2007) que “o educativo adotou uma nova
metodologia para as relações entre arte e educação, que
é um modo de garantir e qualificar o direito da cidada-
nia ao acesso à cultura. O salto qualitativo é imenso. No
mundo contemporâneo de escassez e da necessidade de
incorporar crescentemente a população nos benefícios da
educação e da cultura, não é possível pensar exposições
sem a correspondente responsabilidade no processo da
educação. É uma responsabilidade de curadores, diretores
de instituições e produtores de eventos”.

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Ao longo desses anos, o contato com Herkenhoff me observados a partir do processo de seleção. As obras se as-
faz perceber que estou sempre no meio do caminho, em sociam não por classificação de premiação ou pelo reco-
constante processo. Trabalhar em uma plataforma da nhecimento do artista no circuito nacional, mas por apro-
arte contemporânea me fez buscar pontos importantes ximações conceituais e propostas semelhantes ou opostas.
para conhecer as proposições contemporâneas. Fez-se Nesse sentido em uma palestra dada no Arte Pará de
necessário perceber as partes de um todo, porque o edu- 2011, Marisa Mokarzel diz que: “na pluralidade da arte
cativo é um segmento que instaura o debate entre agen- contemporânea, na infinidade de conceitos e técnicas há,
tes, promove diálogos que pressupõem vozes de sujeitos sem dúvida, uma matriz dominante, que mesmo efêmera
que propõem essa plataforma coletivamente. Então, ve- e sujeita a rápidas mudanças, dita uma determinada pos-
nho conduzindo uma ação em que o outro sempre é es- tura, uma determinada tendência. A arte guia-se pela arte
timulado espontaneamente para transcender a si mesmo hegemônica presente em países como Alemanha e Esta-
como um exercício de libertação para penetrar explorar dos Unidos. Mas, sem dúvida, na difusão dessas fontes,
e aventurar-se no jogo da arte. formam-se relações que fogem ao controle da malha in-
Desde as edições anteriores do Arte Pará o intuito sem- formativa, fazendo com que os nós das tramas se conta-
pre foi o de fortalecer as ações educativas, mas foi a partir minem, e as idas e vindas sejam também uma realidade.
da ampliação para a promoção, discussão e formação acer- Apesar de existir uma dominância, é possível interagir
ca da experiência artística contemporânea que se sistema- com o que vem de fora, sem perder determinadas especifi-
tizou um trabalho qualitativo junto aos educadores que fa- cidades. Não há pureza para ser resguardada, é nas mistu-
zem a mediação nos espaços expositivos, por meio de par- ras que se mostra a diferença e se vê a diferença do outro”.

“Desenvolver estratégias para compreender a cultura


visual e ter a compreensão crítica das obras em conexões promove
a aproximação com as imagens de todas as culturas”

cerias com instituições de pesquisa e culturais de Belém, Como vimos, a articulação entre artistas, teóricos,
e na inter-relação e proposições educativas com escolas e educadores, instituições e o público tem o propósito de
professores. Essa dinâmica nos coloca em constante esta- contribuir para a consolidação de um sistema de arte que
do de atenção para promover uma reflexão sobre a educa- vive à margem dos centros culturais hegemônicos. Propo-
ção nesses espaços, e suas diferentes formas de elaboração. sitalmente, Herkenhoff repensou um formato para que o
Em 2005, Paulo Herkenhoff, ao expandir os espaços Arte Pará pudesse ser definido “como um fórum de debate
expositivos para além das salas convencionais do “salão”, e reflexão”. A ideia de “salão” foi mantida como forma de
ocupando as instituições que formam o sistema de arte no proporcionar a entrada de jovens artistas neste circuito.
estado do Pará, fortaleceu o diálogo e a troca interinsti- Remeto-me, em particular, a este histórico e à sua de-
tucional. Assim, o Arte Pará passou a ocorrer no Museu cisão de promover o debate e a reflexão, por comungar
do Estado do Pará, Museu Paraense Emílio Goeldi, Espa- este procedimento que nos envolve com as instituições
ço Cultural Casa das Onze Janelas, Museu de Arte Sacra e culturais e de ensino da cidade nas ações, reforçando uma
também em espaços expositivos não convencionas, como característica do meio cultural local, na união de forças
o Complexo do Ver-o-Peso, o Mercado de Carne, a Ilha do pelo objetivo comum de aliar a mostra competitiva, ciclos
Combu e a própria cidade, pelos aspectos históricos, so- de seminários, palestras, programações de outras insti-
ciais e culturais. Neste contexto, alia o rompimento com tuições, formação de professores e mediadores culturais,
as hierarquias entre os participantes e propõe um grande bate-papos com artistas no espaço expositivo, workshops
espaço de interações entre obras de artistas convidados e com críticos, curadores, artistas, pesquisadores, educa-
inscritos, reforçando os efeitos dos núcleos de discussão dores de Belém e de outros eixos do país, além de confe-
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contexto cultural. Em “Cultura Visual, mudança educa-


tiva e projetos de trabalho”, Fernando Hernandez afirma
que “compreender e comunicar-se vai além da aprendi-
zagem de saberes por meio da memorização. Trata-se
assim da aplicação ou uso de conhecimentos e trabalho
com resolução de problemas. Nesse sentido, desenvol-
ver estratégias para compreender a cultura visual e ter
a compreensão crítica das obras em conexões promove a
aproximação com as imagens de todas as culturas”.
Dessa forma, organizamos projetos de trabalho ressal-
tando as competências, habilidades e valores em articu-
lações, evidenciando o significado social e o sentido das
obras em consonância com a cidade. E foi muito interes-
sante, porque na exposição havia uma instalação de Mar-
coni Moreira (Alcance, 2007-2010), que vive e trabalha em
Marabá, mas participa de diversas exposições pelo país e
no exterior. Sua obra abrange várias linguagens, como pin-
turas, esculturas, vídeos, objetos, fotografias e instalações,
baseada na cultura visual amazônica, utilizando restos de
madeira, velhos barcos e caminhões e isopor – retirado das
geladeiras usadas para transportar peixes, camarões, açaí
© Tsuyoshi Iwabuchi. Reprodução

Edição especial
congelado, e outros alimentos nas viagens pelo estado.
do jornal O A discussão no grupo foi surpreendente, porque a
Liberalzinho Arte maioria dos professores envolvidos rejeitava o trabalho do
Pará, distribuído
no espaço artista, e não entendia como pedaços de madeira podiam
expositivo para estar em uma exposição de arte. Porém, a partir da pesquisa
os estudantes
na orla, acompanharam o processo da pintura nos barcos,
a tipografia e os outros elementos que fazem parte da ma-
rências abertas ao público, visando ampliar as discussões terialidade do artista e estão imbricados na cultura local.
impressas nas mostras, estendendo as ações a quase toda Com a percepção desse movimento na cidade, aliada ao
a cidade, num formato de festival de arte. trabalho do artista, os projetos de trabalho ganharam um
Em sua 27ª edição, em 2008, o Arte Pará estabeleceu forte sentido social, histórico, artístico e crítico. Aliamos o
um sistema de relações ao organizar mostras no interior resultado aos três eixos criados por Hernandez: conheci-
do Estado do Pará. Deslocamo-nos para Santarém, locali- mento para a compreensão de mundo, desenvolvimento
zado no oeste do Pará e para Marabá, no sudeste. físico e desenvolvimento criativo. Para Adainton Junior,
A extensão das ações para esses dois municípios deu professor da rede estadual, o processo de formação para
indicativos para a elaboração de um eixo educativo espe- arte contemporânea contribuiu para a percepção do espa-
cífico e gerou reflexões acerca do fazer artístico, da circu- ço natural ribeirinho, movimento das marés, e o quanto
lação e do papel social da arte, em ciclos de seminários esses ambientes e os objetos do cotidiano na composição
e oficinas, envolvendo universidades e escolas de ensino da cultura visual fazem parte da arte contemporânea.
fundamental e médio. Essas questões atravessam não somente o campo da
Juntamente com o grupo de professores, foram pen- mediação cultural, mas tambémos caminhos da críti-
sadas questões sobre o ensino de artes nas escolas e nas ca das obras, em conexão e aproximação entre todas as
universidades que formam professores e reprodutores culturas. A arte na educação e no processo de ensino e
de uma arte-educação que não coaduna com a realidade aprendizagem de educadores é vital para conceber uma
das escolas e de seus alunos; dos bairros da cidade e de melhor relação com o seu meio, e levá-los à amplitude de
seus moradores. Os saberes universais não devem ficar outros universos, tornando-os mais criativos e críticos
em sala de aula, mas há necessidade de atravessarem o sobre as suas realidades.

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Para muitos professores e alunos que participam do uma interação direta entre eles.
processo de formação no Projeto Arte Pará, o contato com São tantos os caminhos, mas estamos aprendendo a
os museus se dá como uma primeira experiência. Esse fa- lidar com esse fluxo de necessidades e de possiblidades da
tor é significativo a cada edição, pois a relação direta com educação, com objetivo de transformar as ações em pro-
a obra ganha sentido para as famílias dos envolvidos, suas jetos executáveis. Nessa concepção, o construtivismo foi
escolas, comunidades e para a sociedade em geral. eleito como uma das proposições metodológicas, já que
A educação acontece dentro das salas de aula, mas tam- a plataforma contemporânea pressupõe um sistema no
bém fora delas, num constante diálogo entre espaços de qual tudo deve ser acessível à experimentação, aliado aos
educação formal (sala de aula) e não formal (em Belém, nas conhecimentos prévios e à aprendizagem significativa.
suas ilhas, interior do estado, espaços culturais e museus). O Arte Pará, ao longo dos seus 33 anos, instaura um ca-
Temos como premissa a educação como um direito garan- minho de abertura na Amazônia e apresenta um campo a
tido por lei a todos os sujeitos, e convencionado pela Orga- partir do qual falam o artista, o educador, o crítico, o cura-
nização das Nações Unidas (ONU). Comungamos, ainda, dor, o mediador, o aluno e o grande público. Reiteramos, a
com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que es- cada edição, a nossa organização com os agentes, com os
tabelece a responsabilidade do cumprimento desse direito corpos que se relacionam com o pensamento contempo-
à família, à comunidade em geral e ao poder público. râneo, que nos provocam para ficarmos atentos não a um
Aliado a este contexto, existe a necessidade de a edu- quê, mas à maneira como se comportam quando associa-
cação intercorrer ao longo de toda a vida, atravessando dos ao pensar a arte.
as relações das esferas sociais e as instituições que as re- Estamos envoltos num sistema que exige um posi-
presentam, aliando qualitativamente a educação formal e cionamento distinto daquele que prevaleceu até recente-
mente em arte; se até a primeira
metade do século XX conseguía-
Para muitos professores e alunos do mos definir estilos e modalidades

Projeto Arte Pará, o contato com os museus como pintura, desenho, gravura,
escultura, colagem, hoje a arte
se dá como uma primeira experiência contemporânea amplia seu cam-
po de atuação, pois ela não traba-
lha apenas com objetos concretos,
a não formal desses atores sociais. Consideremos, assim, mas principalmente com conceitos e atitudes e realiza um
que o professor ganha autonomia no processo de forma- mix de vários estilos, diversas escolas e técnicas. Não há
ção ao elaborar o seu projeto para desenvolvê-lo com seus uma mera contraposição entre a arte figurativa e a abstra-
alunos nos museus. Ele exerce o papel de curador educa- ta, pois dentro de cada uma destas categorias há inúmeras
cional ao selecionar as obras e o contexto, e passa a ser variantes.
protagonista, juntamente com o mediador cultural, forta- O sistema e o nosso lugar nos dão a percepção de um
lecendo a interação professor-aluno. constante deslocamento na condição de formadores de
Em A Prática Educativa: como ensinar, Antoni Zabala situações não habituais. Estamos sempre beirando a dú-
ressalta o valor das relações que se estabelecem entre os vida, não sendo possível esterilizar um pensamento e nos
professores, alunos e os conteúdos no processo de ensino deter em um único método ou proposta educativa apenas
e aprendizagem. Para ele, essas se sobrepõem às sequên- sob o risco de cairmos no clichê.
cias didáticas, visto que o professor e os alunos têm um Tudo isso pode significar um passo adiante para dire-
grau de participação nesse processo, diferente do ensino cionar a aprendizagem nos espaços da arte, entendendo
tradicional, caracterizado pela transmissão/recepção e que é necessário fazê-lo sem manipular, conforme eluci-
reprodução de conhecimentos. E examina, ainda, dentro dam Paulo Freire e Sérgio Guimarães em Aprendendo com
da concepção construtivista, a natureza dos diferentes a Própria História: “o esforço da leitura da realidade, atra-
conteúdos, o papel dos professores e dos alunos, e a sua vés da codificação que representa um pedaço da realidade,
relação neste processo, visto que o professor necessita di- era uma leitura manipuladora, dirigida. Ora, dirigida sim,
versificar as estratégias, propor desafios, comparar, diri- pois não há educação sem intencionalidade, sem diretivi-
gir e estar atento à diversidade dos alunos, estabelecendo dade. Manipuladora nunca,(...)mas defender uma posição
© Tsuyoshi Iwabuchi. Reprodução
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Trabalho Educativo com os estudantes a


partir da obra do artista Delson Uchoa
Bicho da Seda, na Edição Arte Pará 2012

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Processo de formação de mediadores no Arte Pará

com que se sonha, antes mesmo de chegar ao educando, é de Ensino da Secretaria de Educação e curadora educacional do
absolutamente legítimo”. projeto Arte Pará desde 2007, projeto de Arte Contemporânea
E complemento: em nossa proposição não existem que acontece há 32 anos.
respostas precisas, uma vez que os caminhos são diver-
sos, induzindo-nos a pensar: Onde começo? Onde paro?
Qual o fim? Este fato nos fala acerca de uma relação do Referências bibliográficas
presente, passado e futuro das aprendizagens do público AMAZÔNIA, A ARTE. “Catálogo de Artes”. Curadoria de Orlando
participante, e cria zonas de ações em condições que não Maneschy. Consultoria de Paulo Herkenhoff. Rio de Janeiro:
estão prontas. Na recepção estabelece-se um aqui e agora, Imago, 2010.
mas certamente as bases da arte-educação na contempo- FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Aprendendo com a Própria His-
raneidade estão presentes em seu campo de incertezas, tória. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
permitindo múltiplas propostas de ensino com múltiplas HERNANDEZ, F. “Cultura Visual, mudança educativa e projetos de tra-
linguagens. A arte muda e o público também. A dúvida balho, 2000”. In: IAVELBERG, Rosa. O desenho cultivado da criança:
é inaugurada e promove o conhecimento, e nos assegura prática e formação de educadores. Porto Alegre: Zouk, 2006.
uma das incumbências da arte: fazer-nos pensar,em cons- MOKARZEL, Marisa. “Palestra”. In: Ciclo de Oficinas e Palestras do
tante estado de atenção. Arte Pará 2011. Curadoria Educacional de Arte e Educação de Vâ-
nia Leal. Belém: Fundação Romulo Maiorana, 2011.
ZABALA, Antoni. A Prática Educativa: como ensinar. Porto Alegre:
Vânia Leal Machado é graduada em Artes Plásticas pela Univer- Artes Médicas Sul, 1998.
sidade Federal do Pará, especialista em História e Memória da
Arte pela Universidade da Amazônia; mestre em Comunicação, Sites
Linguagem e Cultura-Universidade da Amazônia, professora da Arte Pará: www.frmaiorana.org.br.
Faculdade de Estudos Avançados do Pará, técnica da Diretoria Obras de Marconi Moreira: http://marconemoreira.blogspot.com.br/.

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