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Texto 1│Enquadramento da psicologia do desenvolvimento

Como é que as crianças fazem amigos? Perdemos capacidade de aprendizagem à


medida que envelhecemos? Como aprende um bebé a falar? É inevitável uma crise da
meia-idade? O que caracteriza um jovem adulto? Todos os adolescentes são rebeldes?
Por que é que os bebés levam os objetos à boca? O processo de desenvolvimento é igual
para todos?

Um bebé sorri para a mãe, uma criança de três anos compreende uma
conversa, uma outra, de seis anos, brinca com os amigos e inventa as regras
do jogo, as crianças de oito e de dez anos são capazes de memorizar a mesma

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lista de palavras, um adolescente consegue resolver uma equação matemáti-
ca, um adulto de trinta anos faz opções em termos da sua carreira profissional,
outro, de quarenta e dois resolve um problema emocional, outr0 ainda, de
sessenta e dois, decide quando se vai reformar. Estes são exemplos de com-
portamentos que observamos no quotidiano e que nos dizem o que as pessoas
são, ou não, capazes de fazer. A psicologia do desenvolvimento analisa estas
situações e os processos e estratégias que usamos para lidar com elas.
A psicologia do desenvolvimento estuda a forma como nos desenvol-
vemos ao longo do ciclo de vida, da fecundação à morte. Durante muito tem-
po considerou-se que o desenvolvimento terminava na idade adulta. O perío-
do da infância, em especial, foi uma área privilegiada de estudo, da qual surgi-
ram muitas teorias a explicar o que é que acontece nesta fase da vida. Isto
deu-se, provavelmente, porque na infância ocorrem mudanças muito visíveis e
acentuadas.

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Hoje em dia, a idade adulta ou a velhice são alvos de tanta curiosidade
como a infância ou a adolescência. As pessoas não param de se desenvolver
quando atingem a idade adulta. Progressivamente, foi-se abandonando a
ideia de imutabilidade dos adultos. As alterações das condições de vida nas
sociedades ocidentais reforçaram este fato. Pensemos, por exemplo, que os
jovens são inseridos cada vez mais tarde no mundo do trabalho, na precarie-
dade do estatuto profissional, no aumento de divórcios, nos casamentos pos-
teriores. Quer dizer que surgem continuamente novas necessidades de adap-
tação que requerem o desempenho de novos papéis sociais. Mudamos mesmo
depois de crescidos e diferentes fases da vida implicam diferentes exigências
biológicas, sociais, e também psicológicas que é importante conhecer. Por
isso, muitas investigações se preocupam com estas exigências e com a forma
como respondemos a elas.
Também as ideias sobre os mais velhos têm mudado, distanciando-se
de conceções associadas ao declínio. Fatores como o aumento do tempo de
vida, a deterioração de algumas capacidades e a evolução de outras, o entrar
na reforma quando se está apto para um conjunto de tarefas e de relações,
permitem às pessoas adaptar-se a novas situações e estarem abertas à
mudança e ao desenvolvimento. Sabemos hoje que o envelhecimento começa
com a vida. Por exemplo, a densidade dos neurónios corticais começa a dimi-
nuir desde o nascimento, tal como a acuidade percetiva que começamos a
perder muito cedo. Por tudo isto, é fácil perceber que nos desenvolvemos ao
longo de toda a nossa existência. O corpo e as capacidades físicas evoluem, a
vida afetiva transforma-se, o estatuto social muda.
A psicologia do desenvolvimento centra-se nas mudanças ao longo da
vida. Neste sentido, mudança significa alterações quantitativas e qualitativas,
do gatinhar ao andar, do balbuciar ao falar, do raciocínio ilógico ao lógico, da
infância à adolescência, à maturidade, à velhice, do nascimento à morte. Por

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isso, parece importante estudar a forma como o comportamento, os proces-
sos mentais e emocionais mudam ao longo da vida, tendo em conta fatores
físicos e biológicos, cognitivos, afetivos e sociais que influenciam as diversas
fases de crescimento e de desenvolvimento. Como estes fatores não atuam
isoladamente, surgem questões relativas à interação entre eles e ao papel que
cada um desempenha no processo global.
Vamos agora analisar extratos de duas obras que nos dão algumas
ideias sobre o objeto de estudo da psicologia do desenvolvimento.

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Sobre a Psicologia do Desenvolvimento

A psicologia do desenvolvimento, ou estudo da génese e evolução dos


processos psicológicos, é vulgarmente associada ao estudo da infância e da
adolescência. Com efeito, desde os finais do século XIX que se constata uma
preocupação em estudar a evolução da criança desde que nasce até que atin-
ge a adolescência. Mas, se a infância tem sido o período da vida mais estudado
pelos psicólogos, nos últimos anos tem-se verificado uma mudança de perspe-
tiva, ao considerar-se como pertinente o estudo evolutivo do indivíduo desde
o período de vida intra-uterino até ao final da sua vida.
Hoje em dia, com uma organização familiar centrada na criança, com
informações e debates constantes sobre problemáticas ligadas à infância e à
adolescência, não só provenientes de círculos científicos como dos media, é
difícil imaginar que nem sempre foi assim. O interesse pela infância e a curio-
sidade sobre o desenvolvimento infantil é extremamente recente.
Ao longo da história, a infância e a adolescência não tiveram o estatuto
que têm nos nossos dias. Crianças e adolescentes são uma invenção sociocul-
tural relativamente recente (Ariés, 1973). Durante séculos, as crianças foram
consideradas adultos em miniatura, embora mais pequenos, frágeis e menos
inteligentes. A partir do momento em que podiam sobreviver sem os cuidados
das mães, integravam a grande comunidade e partilhavam o dia-a-dia dos
adultos. É possível constatarmos a existência desta conceção nas obras de
arte. Por exemplo, até ao século XIII são raras as representações da criança,
transparecendo a ideia de que a imagem da infância não tinha interesse ou
não constituía parte da realidade. Apesar disso, quando as crianças são repre-
sentadas, vestem roupas e assumem atitudes e tarefas tipicamente adultas.
É durante os séculos XVII e XVIII (séculos de grandes transformações
políticas, económicas e religiosas), que a infância e a adolescência começam a
ser descobertas e consideradas etapas diferenciadas. Esta nova visão transpa- © Universidade Aberta │Psicologia do Desenvolvimento 1│Texto 1│2013
rece por exemplo na pintura: a criança torna-se o centro da composição, assis-
tindo-se a uma proliferação de cenas familiares e de retratos de família, onde
a criança apresenta traços de uma certa doçura e graciosidade. Evidenciam-
se, assim, sinais de que se começa a dar atenção à educação centrada na
criança. Na verdade, este fenómeno constitui o reflexo de movimentos cultu-
rais e religiosos, que tendem a substituir uma conceção fatalista e pré-
determinada da vida humana, por uma conceção em que se acredita que é
possível modificar o curso da vida (Ariés, 1973).
Estas conceções diferenciam-se e diferentes filosofias educativas alte-
ram profundamente as mentalidades sobre a criança e o desenvolvimento
(Hopkins, 1989). Exemplos são as posições do empirista John Locke (1632-
1704) e as do filósofo francês Jean Jacques Rousseau (1712-1778).
John Locke considerava que, no momento do nascimento, a mente
humana poderia ser comparada a um quadro em branco (tabula rasa), sendo a

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experiência e a estimulação que a criança recebia através dos seus sentidos,
que determinaria os conteúdos do psiquismo. A criança era como que um
adulto imperfeito que requeria uma educação rigorosa e disciplina firme, mas
indulgente, da parte dos pais, de forma a desenvolver hábitos saudáveis de
corpo e espírito.
Por sua vez, Jean Jacques Rousseau torna públicas as suas ideias sobre a
educação no seu célebre livro Emile ou de l’Education (1762). Nesta visão, a
criança tem caraterísticas específicas em cada idade e, sendo naturalmente
boa, as suas potencialidades são infinitamente boas. O desenvolvimento esta-
ria pré-determinado, mas a sua atualização seria resultante de uma interação
entre a atividade da criança e as solicitações do meio. Na sua perspetiva, a
atuação da família e da escola, organizadas em torno da criança, deveria ser
permissiva e orientar as tendências naturais de desenvolvimento da criança.
As ideias de Rousseau atualizaram-se e corporalizaram-se em modelos
educativos, tais como os de Pestalozzi (1746-1827), Froebel (1782-1852) e de
Montessori (1870-1952), que postulavam que o grande objetivo da ação edu-
cativa seria proporcionar condições para um desenvolvimento harmonioso,
defendendo a atividade espontânea e o jogo como fontes de aprendizagem e
de desenvolvimento.
Durante o século XIX, o interesse pela criança e pelo seu desenvolvi-
mento é crescente. Na sequência da Revolução Industrial, a Europa e os Esta-
dos Unidos da América sofrem grandes alterações sociais. Aparecem as gran-
des cidades, verificam-se alterações nos modos de sobrevivência das popula-
ções e, consequentemente, mudanças na educação das crianças. Até aqui,
estas viviam com os familiares numa comunidade alargada, participando nas
atividades e em pequenos trabalhos. Ao reduzir-se o horário de trabalho das
crianças, ao libertá-las da realização de trabalhos pesados, e em virtude da
indisponibilidade dos pais foi necessário criar espaços adequados, as escolas,
que assumissem a sua educação. Dá-se assim um avanço fundamental na con- © Universidade Aberta │Psicologia do Desenvolvimento 1│Texto 1│2013
sideração da infância como idade especial, começando a família a organizar-se
em redor das crianças e a atribuir-lhes importância (Candeias, 1987,1994, 1995).
Outro marco de grande importância foi a obra de Charles Darwin (1809-
1882), nomeadamente, a publicação em 1895 de The Origin of Species. As
teses de Darwin conduziram a uma alteração fundamental no pensamento
científico relativamente à infância. Segundo esta perspetiva, os seres huma-
nos tinham evoluído de espécies primitivas. Neste quadro, as crianças passam
a ter interesse científico, já que a sua observação e estudo poderiam contribuir
para esclarecer questões relacionadas com a evolução das espécies e eviden-
ciar a origem das caraterísticas psicológicas dos adultos.
Neste contexto, surge em 1890, nos EUA, a primeira associação dedica-
da ao estudo da criança (Child-Study Association) fundada por Stanley Hall
(1846-1924) e a primeira publicação dedicada à vulgarização de conhecimen-
tos na área do desenvolvimento Pedagogical Seminary.

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Os avanços no processo de industrialização, bem como todo um com-
plexo conjunto de transformações políticas, económicas, sociais e culturais,
vão obrigar à definição de uma estratégia educativa estatal e à massificação
do ensino elementar que, posteriormente, se torna obrigatório. Todos estes
acontecimentos conferiram à criança um estatuto novo, que terminava com a
chegada à puberdade e o ingresso do jovem na vida dos adultos.
No século XX, assistimos à consideração definitiva da infância como um
período claramente diferenciado e ao aparecimento do conceito de adoles-
cência. A aceitação, na nossa cultura, da adolescência como uma etapa dife-
rente da infância e da idade adulta, explica-se por uma conjugação de fatores,
tais como: a diminuição da mortalidade infantil, o prolongamento da vida, o
alargamento do ensino obrigatório, a difusão do ensino universitário e o
excesso de mão-de-obra adulta para trabalhos que requerem cada vez mais
especialização (Candeias, 1987, 1994, 1995).
A infância e a adolescência, marcadas por grandes alterações biológicas
e psicológicas, permaneceram durante muito tempo como os únicos grupos
de estudo na psicologia do desenvolvimento.
Progressivamente, verifica-se o abandono da ideia da imutabilidade
associada à idade adulta. Reconhece-se a importância do estudo das adapta-
ções necessárias às grandes transformações psicossociais a que o indivíduo
está sujeito durante esta fase de vida, tais como o acesso ao mundo do traba-
lho, a progressão na carreira profissional, a adaptação a novos instrumentos e
tecnologias, a construção de relações afetivas diferenciadas (e.g. casal), que
requerem o desempenho de novos papéis sociais estáveis (e.g. ser mãe).
Também as conceções de velhice se têm vindo a distanciar das conce-
ções tradicionais, associadas a uma degradação de funções psicobiológicas.
Esta mudança prende-se com um conjunto de fatores, nomeadamente, o pro-
longamento do tempo de vida, a grande variabilidade individual, o equilíbrio
entre a deterioração de algumas capacidades cognitivas e a evolução de © Universidade Aberta │Psicologia do Desenvolvimento 1│Texto 1│2013

outras e, finalmente, porque o tempo da reforma chega quando as pessoas


estão ainda perfeitamente aptas. Assim, enquanto o indivíduo mantiver a sua
capacidade de adaptação a novas situações estará aberto à mudança e ao
desenvolvimento.
Do mesmo modo, a evolução nos conhecimentos relacionados com o
desenvolvimento físico dos bebés e, sobretudo, o reconhecimento da existên-
cia de uma vida psicológica extremamente rica nos primeiros tempos de vida,
assim como da necessidade de contactos com o meio físico e social (para além
da satisfação de necessidades biológicas), contribuiu para que os trabalhos
pioneiros de autores como Gesell (1880-1961) e Piaget (1896-1980) tivessem
uma expansão em investigações sobre competências e comportamentos pre-
coces, de tal forma que, atualmente, mesmo antes do nascimento, o bebé seja
objeto de estudo.

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Nos nossos dias, o interesse pela temática do desenvolvimento, educa-
ção e aprendizagem continua a crescer (Lautrey, 1994). As publicações cientí-
ficas e de divulgação são inúmeras, são constantes os debates e as informa-
ções sobre dados empíricos veiculados através dos media, contribuindo para
consolidar a ideia de que a construção de um mundo melhor passa por um
melhor desenvolvimento das pessoas (Young, 1990, p. 17).
Se o conceito de desenvolvimento se foi tornando cada vez mais amplo
e flexível, também pode afirmar-se que a psicologia do desenvolvimento atual
é caracterizada pela existência de um pluralismo conceptual, em que coexis-
tem pontos de vista oriundos de diferentes quadros teóricos e uma diversida-
de de informações empíricas, que se esforçam por tornar cada vez mais inteli-
gível o processo de desenvolvimento.
O trabalho empírico em psicologia do desenvolvimento é fundamental,
embora a interpretação dos dados só seja possível pela referência a quadros
teóricos. O enquadramento teórico permite obter uma explicação para os
comportamentos observados e a compreensão das dinâmicas evolutivas.
Na investigação sobre o desenvolvimento é possível recorrer a uma
variedade de recursos metodológicos de que dispõem outras áreas da psicolo-
gia, embora a utilização de determinado método ou técnica seja determinada
pela sua adequação ou sensibilidade a mudanças desenvolvimentais.
Pode recorrer-se ao estudo de acontecimentos do passado e tentar
compreendê-los e explicá-los (investigação histórica). Mas se se estuda o pre-
sente, pode utilizar-se uma grande variedade de métodos e de técnicas.
Podem realizar-se estudos dentro de uma mesma cultura ou comparar cultu-
ras diferentes (estudos transculturais). Assim, podem realizar-se estudos des-
critivos, onde se tenta perceber determinado fenómeno através de observa-
ções, questionários, entrevistas, etc., descrevendo-o. Nos estudos compara-
tivos, o investigador tenta encontrar relações entre variáveis pré-existentes
ao estudo, em diferentes grupos, e que não são diretamente manipuladas. A © Universidade Aberta │Psicologia do Desenvolvimento 1│Texto 1│2013

investigação experimental já envolve a manipulação de variáveis e o estudo


dos efeitos dependentes desta manipulação ativa.
Distinguem-se dois grandes tipos de estudos em psicologia do desen-
volvimento, os estudos longitudinais e os estudos transversais.
Nos primeiros, as mesmas pessoas são estudadas durante um período
de tempo mais ou menos longo (meses ou anos). O objetivo deste tipo de
estudos é aprofundar aspetos evolutivos de caraterísticas, funções e compor-
tamentos psicológicos como, por exemplo, o desenvolvimento da linguagem
ou das competências sociais.
Nos segundos, seleciona-se e estuda-se, em determinado momento,
um ou vários grupos de pessoas de cada idade considerada. Assim, é possível,
em pouco tempo, recolher uma série de dados.

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Ambas as metodologias têm vantagens e inconvenientes, dependendo
o seu uso dos objetivos da investigação. Na verdade, o que se pensava na
geração dos nossos avós sobre o desenvolvimento e a educação é diferente do
que se pensa hoje e, certamente, do que se pensará na geração dos nossos
filhos. O que hoje se exige de uma criança ou de um adolescente, a forma
como se olha para eles ou os parâmetros de desenvolvimento a que se está
atento são diferentes dos de outras gerações.
Os autores do chamado ciclo vital (lifespan), sensíveis à importância da
evolução histórica, propuseram ainda outro tipo de estudos chamados estu-
dos sequenciais. O mesmo estudo é realizado em grupos idênticos, mas de
gerações diferentes de modo a poder-se comparar os reflexos, ao nível do
desenvolvimento, de mudanças de ordem sociocultural.

Adaptado de Matta, I. (2001). Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem.


Lisboa: Universidade Aberta. [pp.27-37]

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O Estudo do Desenvolvimento Humano

Ao folhear o álbum de fotografias da sua família, não fica a pensar sobre


as pessoas cujas imagens estão ali como que congeladas no tempo? Quando
vê aquela fotografia da sua mãe com a primeira bicicleta, imagina se ela teve
dificuldades em aprender a andar de bicicleta? Se caiu muitas vezes? E por que
razão está a sorrir timidamente naquela fotografia do primeiro dia de aulas?
Estaria ansiosa para conhecer a professora? Ali está ela com o seu pai no dia
do casamento. As vidas deles tomaram o rumo que elas esperavam? Ali está a
sua mãe consigo, um bebé, nos braços. Como é que aquela menina da bicicle-
ta se tornou uma mulher com um bebé nos braços? Como é que você se tor-
nou na pessoa que é hoje? E como vai tornar-se na pessoa que será amanhã?
As fotografias dizem-nos pouco sobre os processos de mudança, inte-
rior e exterior, que constituem a vida humana. Mesmo uma série de filmes e
de vídeos caseiros, que podem acompanhar a pessoa em todos os momentos
do seu crescimento, não são capazes de capturar uma progressão de mudan-
ças tão subtis, as quais, muitas vezes, não conseguimos detetar até terem
ocorrido. Os processos que produzem essas mudanças, os processos pelos
quais os seres humanos se desenvolvem através do tempo, constituem o obje-
to de estudo da psicologia do desenvolvimento.

Desenvolvimento humano: um fascinante campo em evolução

O desenvolvimento dos seres humanos tem sido foco de estudo científi-


co há mais de um século. Tal investigação é um empreendimento sempre em
evolução. As perguntas a que os cientistas do desenvolvimento tentam res-
ponder, os métodos que utilizam e as explicações que propõem não são hoje
as mesmas que eram sequer há 20 anos. Essas mudanças refletem o progresso © Universidade Aberta │Psicologia do Desenvolvimento 1│Texto 1│2013
do conhecimento nesta área à medida que novas investigações desenvolvem
ou contestam as anteriores. Elas também refletem as transformações que
ocorrem no contexto cultural e tecnológico, as quais influenciam metas, atitu-
des e ferramentas que os cientistas utilizam no seu trabalho.
Os avanços nas neurociências e nas técnicas de imagiologia cerebral
têm tornado possível olhar de outra forma para os mistérios da mente huma-
na. Câmaras e computadores permitem que os investigadores analisem em
detalhe as expressões faciais dos bebés para detetar os primeiros indícios de
emoção ou analisar como mães e bebés comunicam. Instrumentos sensíveis
que medem os movimentos dos olhos, a frequência cardíaca, a pressão arte-
rial, a tensão dos músculos, revelam relações intrigantes entre funções bioló-
gicas e funções psicológicas ou sociais, entre a atenção visual do bebé e a inte-
ligência na primeira infância ou entre os padrões das ondas cerebrais e o apa-
recimento do pensamento lógico. Outros instrumentos oferecem-nos uma

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imagem do cérebro que envelhece normalmente por comparação com o cére-
bro com doença de Alzheimer. À medida que o estudo do desenvolvimento
humano foi progredindo, surgiram alguns consensos sobre diversos temas
fundamentais:
1. Todos os domínios do desenvolvimento estão inter-relacionados.
Embora muitas vezes os investigadores estudem separadamente os
diferentes aspetos do desenvolvimento, cada um deles influencia o
outro. Por exemplo, o aumento da mobilidade física ajuda um bebé a
aprender sobre o mundo. As mudanças hormonais e físicas da puberda-
de influenciam o desenvolvimento emocional. Os hábitos de sono e a
nutrição na idade adulta podem influenciar a memória. Os aspetos
motores, cognitivos, emocionais, sociais estão interligados.

2. O desenvolvimento normal inclui uma vasta gama de diferenças indi-


viduais. Cada pessoa é um indivíduo distinto. Uma é sociável, outra
tímida. Uma é ágil, outra desajeitada. Como é que estas e uma infinida-
de de outras diferenças acontecem? Esta é uma das fascinantes pergun-
tas a que a psicologia do desenvolvimento procura responder. Algumas
influências sobre as diferenças individuais são inatas. Outras são oriun-
das da experiência. As caraterísticas familiares, os efeitos de género,
classe social, etnia ou a presença ou ausência de incapacidade física,
mental ou emocional, são variáveis que influenciam o modo como a
pessoa se desenvolve.

3. As pessoas ajudam a moldar o seu próprio desenvolvimento e influen-


ciam o comportamento dos outros em relação a elas. Desde o início,
através das respostas que desencadeiam nos outros, os bebés influen-
ciam o seu meio ambiente e depois reagem ao ambiente que ajudaram
a criar. A influência é bidirecional. Quando os bebés balbuciam, os adul-
tos respondem, incentivando o bebé a «falar» mais. O modo de viver a © Universidade Aberta │Psicologia do Desenvolvimento 1│Texto 1│2013
sexualidade na adolescência pode ser um sinal de que estão a crescer.
As reações dos pais, por sua vez, podem influenciar o modo como os
adolescentes respondem às mudanças que estão a viver. Os adultos
mais velhos moldam o seu próprio desenvolvimento quando decidem
reformar-se.

4. Os contextos histórico e cultural influenciam fortemente o desenvol-


vimento. Cada pessoa desenvolve-se dentro de um ambiente ou con-
texto específico, limitado por um tempo e um lugar. Eventos históricos
importantes como guerras, depressões económicas, escassez de ali-
mentos influenciam o desenvolvimento de gerações inteiras. Isso tam-
bém acontece com as novas tecnologias. Nas sociedades ocidentais, os
avanços na medicina, bem como as melhorias na nutrição e no sanea-
mento reduziram substancialmente a mortalidade infantil e os óbitos da
mulher durante o parto. Mudanças sociais, como o número cada vez

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maior de mães que trabalham fora de casa, alteraram profundamente a
vida familiar. Ao estudar os seres humanos, precisamos de ter em con-
sideração os padrões de contexto que são específicos de determinada
cultura. Por exemplo, no povo Efe do Zaire, os bebés têm até cinco pes-
soas a cuidarem deles desde o nascimento e são amamentados por
outras mulheres que não as suas mães. Os Gusii do Quénia não têm
uma etapa de vida reconhecida comparável à meia-idade.

5. A experiência inicial é importante, mas as pessoas podem ser resilien-


tes. Uma experiência traumática ou uma infância com muitas privações
podem ter consequências emocionais graves, mas as histórias de vida
de inúmeras pessoas mostram que os efeitos de uma experiência dolo-
rosa, como crescer na miséria ou a morte de um progenitor, podem ser
superadas.

6. O desenvolvimento desenrola-se por toda a vida. Até há pouco tempo,


acreditava-se que o crescimento e o desenvolvimento terminavam na
adolescência. Hoje, os cientistas do desenvolvimento concordam que as
pessoas têm potencial para mudar durante toda a sua vida. As mudan-
ças nos primeiros anos de vida são especialmente visíveis e notáveis, um
recém-nascido frágil e dependente torna-se numa criança exploradora e
competente. Mas a mudança na idade adulta também pode ser notável.
Até pessoas muito velhas podem mostrar crescimento, e a experiência
de morrer pode ser uma tentativa final de se reconciliar com a própria
vida, em suma, de se desenvolver.

O estudo científico do desenvolvimento humano baseia-se na crença de


que o conhecimento é útil. A clássica distinção entre investigação básica, reali-
zada exclusivamente com o objetivo de pesquisa intelectual, e a investigação
aplicada, a qual aborda um problema prático, está a perder o significado. Cada © Universidade Aberta │Psicologia do Desenvolvimento 1│Texto 1│2013
vez mais as descobertas da investigação têm aplicação direta na educação das
crianças, na escola, na saúde e nas políticas sociais. Por exemplo, as investiga-
ções sobre memória podem ajudar a determinar o valor a ser dado ao teste-
munho de crianças em tribunal. As investigações sobre os fatores que aumen-
tam os riscos de comportamentos anti-sociais podem sugerir modos de os
prevenir. As investigações sobre a compreensão da morte durante os diferen-
tes períodos de vida podem permitir que os profissionais ajudem crianças e
adultos a lidar com a perda.
Em última análise, é você que vai aplicar o que aprendeu nesta área. As
pessoas reais não são abstrações. São seres humanos que vivem, trabalham,
brincam, amam, riem, choram, fazem perguntas e tomam decisões. Observe
as pessoas à sua volta. Preste atenção ao modo como lidam com os desafios
da vida quotidiana. Pense nas suas próprias experiências e no modo como elas
se relacionam com aquilo que está a aprender. Com o conhecimento da psico-

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logia do desenvolvimento, vai poder olhar para si mesmo e para as outras pes-
soas de outro modo.

Victor, o menino selvagem de Aveyron


A 8 de Janeiro de 1800, um menino nu, com o rosto e o pescoço cober-
tos de cicatrizes, apareceu nos arredores da aldeia de Saint-Sernin, na provín-
cia de Aveyron, no sul da França. O menino, que tinha apenas um metro e trin-
ta e sete de altura, mas que aparentava ter 12 anos de idade, tinha sido visto
várias vezes durante os últimos dois anos, escalando árvores, correndo sobre
os quatro membros, bebendo água em ribeiros e recolhendo raízes e frutos.
Quando o menino de olhos escuros chegou a Saint-Sernin, não falava
nem respondia à fala. Como um animal acostumado a viver solto, rejeitava
alimentos cozinhados e arrancava as roupas que lhe tentavam vestir. Parecia
claro que tinha perdido os pais, ou tinha sido abandonado por eles, mas era
impossível saber há quanto tempo isso tinha acontecido.
O menino apareceu numa época de efervescência intelectual e social,
quando uma nova perspetiva científica começava a substituir a especulação
mística. Os filósofos discutiam questões sobre a natureza dos seres humanos,
questões que se tornariam fundamentais para o estudo do desenvolvimento
humano. São inatas ou adquiridas as capacidades, o comportamento e as
ideias que definem o ser humano? Qual a importância da relação com os
outros durante os primeiros anos de vida? A ausência de contactos humanos
pode ser superada? O estudo de uma criança que tinha crescido isoladamente
poderia ajudar a explicar o impacto relativo da natureza (as caraterísticas ina-
tas de uma criança) e da experiência (a educação e outras influências sociais).
O menino, que se veio a chamar Victor, foi enviado para uma escola de
surdos-mudos em Paris, onde ficou sob os cuidados de Jean Itard, um jovem
de 26 anos praticante da emergente «medicina mental» ou psiquiatria. Itard © Universidade Aberta │Psicologia do Desenvolvimento 1│Texto 1│2013
acreditava que o desenvolvimento de Victor tinha sido limitado pelo isolamen-
to e que ele precisava apenas de aprender a fazer o que as crianças normal-
mente aprendem.
Itard levou Victor para sua casa e tentou socializá-lo, durante os cinco
anos seguintes. Em primeiro lugar, tentou desenvolver a capacidade do meni-
no de discriminar estímulos sensoriais através de banhos quentes e de fricções
corporais, passando, depois, para um treino progressivo das respostas emo-
cionais e dos comportamentos moral e social, linguagem e pensamento. Os
métodos utilizados por Itard estavam muito à frente do seu tempo, tendo sido
ele o inventor de muitos dispositivos de ensino utilizados ainda hoje com
crianças com necessidades especiais de educação.
No entanto, a educação de Victor (que foi dramatizada no filme de
François Truffault O Menino Selvagem) não foi um sucesso absoluto. O menino
fez muitos progressos, aprendeu os nomes de muitos objetos e sabia ler e

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escrever frases simples. Era capaz de expressar desejos, obedecer a instruções
e trocar ideias. Demonstrava afeto, especialmente pela empregada de Itard, a
senhora Guérin, bem como emoções de orgulho, vergonha, remorso e desejo
de agradar. Entretanto, além da vocalização de alguns sons de vogais e de
consoantes, Victor nunca aprendeu a falar. Quando o estudo terminou, Victor,
agora incapaz de cuidar de si mesmo como fazia quando vivia ao ar livre, foi
viver com a senhora Guérin até morrer, em 1828, com pouco mais de 40 anos.
Por que razão Victor não conseguiu tornar-se um jovem normalmente
adaptado? Sugeriu-se que a criança teria um dano cerebral (autismo, por
exemplo, que envolve dificuldades na relação social) ou ainda que teria sofrido
graves maltratos nos primeiros anos de vida. Os métodos de instrução de
Itard, ainda que avançados, podem ter sido inadequados. O próprio Itard veio
a acreditar que os efeitos do longo isolamento não poderiam ser totalmente
superados e que Victor talvez fosse demasiado crescido, especialmente para a
aprendizagem da linguagem.
Embora a história de Victor não dê respostas definitivas para as pergun-
tas que Itard se propôs investigar, ela é importante porque foi uma das primei-
ras tentativas sistemáticas de estudar o desenvolvimento humano. Desde essa
época, aprendemos muito sobre o modo como as pessoas se desenvolvem,
mas os cientistas do desenvolvimento procuram ainda respostas sobre ques-
tões fundamentais, como a importância relativa da natureza e da experiência.
A história de Victor dramatiza os desafios e as complexidades do estudo cien-
tífico do desenvolvimento humano.

Como o estudo do desenvolvimento humano evoluiu


O desenvolvimento humano estuda cientificamente o modo como as
pessoas mudam, bem como as caraterísticas que permanecem razoavelmente
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estáveis durante toda a vida. Esta área de estudo é relativamente recente.
Desde o início do século XIX, quando Itard estudou Victor, os esforços para
compreender o desenvolvimento das crianças foi-se alargando gradualmente
para todo o ciclo vital.
No final do século XIX, diversas tendências estavam a preparar o cami-
nho para o estudo científico do desenvolvimento infantil. Os cientistas tinham
desvendado o mistério da conceção e debatiam agora a dicotomia «natureza
versus cultura», ou seja, a importância relativa das caraterísticas inatas e das
influências externas. A descoberta dos germes e da imunidade fez com que
cada vez mais crianças sobrevivessem. A abundância de mão-de-obra barata
diminui a necessidade do trabalho infantil. Havia agora leis que as protegiam
dos longos dias de trabalho. E pais e professores começaram a preocupar-se
em identificar e responder às necessidades de desenvolvimento das crianças.
A nova ciência da psicologia dizia que se podia entender melhor as pessoas
quando se sabia o que as tinha influenciado na infância.

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A ideia de que o desenvolvimento continua depois da infância é relati-
vamente recente. A adolescência não era considerada um período específico
de desenvolvimento até ao início do século XX, quando Stanley Hall, pioneiro
no estudo de crianças, publicou Adolescence, obra que se tornou muito popu-
lar. Hall também foi um dos primeiros psicólogos que se interessou sobre o
envelhecimento. Em 1922, com 78 anos de idade, publicou Senescence: The
Last Half of Life. Seis anos depois, a Universidade de Stanford inaugurou a
primeira equipa de investigação sobre o envelhecimento. Mas o estudo do
envelhecimento teve de esperar mais de uma geração para começar a ter visi-
bilidade. Desde o final da década de 30, do século passado, diversos estudos
importantes debruçaram-se sobre o desenvolvimento na idade adulta e velhice.
À medida que os estudos do desenvolvimento se alargavam à vida adul-
ta, os cientistas começaram a interessar-se sobre como determinadas expe-
riências, vinculadas ao tempo e ao lugar, influenciavam a vida das pessoas. Por
exemplo, durante a Grande Depressão, nos Estados Unidos, durante a Segun-
da Guerra Mundial ou nos anos 50, no boom do pós-guerra. O que significava
ser uma criança em cada um destes períodos? Ser um adolescente? Tornar-se
um adulto?
Hoje, todos os investigadores reconhecem que o desenvolvimento ocor-
re durante toda a vida. Paul Baltes (1998), líder no estudo da psicologia do
desenvolvimento ao longo do ciclo de vida, identifica os princípios fundamen-
tais desta abordagem:
 O desenvolvimento é vitalício. Cada período do tempo de vida é
influenciado pelo que aconteceu antes e irá influenciar o que está por
vir. Cada período tem as suas próprias caraterísticas e um valor sem
igual. Nenhum é mais ou menos importante do que qualquer outro.

 O desenvolvimento depende da história e do contexto. Cada pessoa


desenvolve-se dentro de um conjunto específico de circunstâncias ou de © Universidade Aberta │Psicologia do Desenvolvimento 1│Texto 1│2013
condições definidas pelo tempo e pelo lugar. Os seres humanos influen-
ciam o seu contexto histórico e social e são influenciados por eles. As
pessoas não respondem apenas aos seus ambientes físicos e sociais,
mas também interagem com eles e mudam-nos.

 O desenvolvimento é multidimensional e multidirecional. O desenvol-


vimento durante toda a vida envolve um equilíbrio entre crescimento e
declínio. Quando as pessoas ganham num aspeto, podem perder nou-
tro, e em taxas variáveis. As crianças crescem sobretudo numa direção,
para cima, tanto em tamanho como em competências. Na idade adulta,
o equilíbrio muda gradualmente. Algumas competências como, por
exemplo, o vocabulário, continuam a aumentar. Outras, como a compe-
tência para resolver problemas desconhecidos, podem diminuir. Algu-
mas novas podem surgir. As pessoas procuram maximizar ganhos e
minimizar perdas aprendendo a geri-las ou a compensá-las.

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 O desenvolvimento é flexível ou plástico. A plasticidade significa que as
pessoas têm capacidade para mudar o seu comportamento. Muitas
capacidades como a memória, a força ou persistência, podem ser signi-
ficativamente aperfeiçoadas com treino e prática, mesmo em idade
avançada. No entanto, como aprendeu Itard, nem mesmo as crianças
são infinitamente flexíveis, o potencial para mudar tem limites.

O desenvolvimento humano é muito complexo e, por isso, o seu estudo


exige uma parceria entre estudiosos de muitas disciplinas como a sociologia,
antropologia, biologia, genética, educação, história, filosofia ou medicina.

Adaptado de Papalia, D., Olds, S. & Feldman, R. (2001). Desenvolvimento Humano.


Porto Alegre: ARTMED. [pp.38-50]

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