You are on page 1of 3

Introdução

Este texto busca discutir a aprendizagem como forma de sabedoria, mais do que
algo apenas técnico, como seria o domínio de habilidades metodológicas. Quando
se fala de saber pensar e aprender a aprender, muitos logo dizem tratar-se de
propostas do tempo da Escola-Nova e, em grande parte, têm razão (Gadotti,
1993). Primeiro, a qualidade total esmerou-se, embora usando linguagem
aparentemente comprometida com o ser humano, na qualidade formal, ou seja, na
face técnica do conhecimento, porque é esta que é usada no mercado produtivo
(AEC, 1994). A outra – qualidade política –, não se destinando à produção de
mercadorias, perde interesse quando não é ostensivamente reprimida. Segundo,
saber pensar pode restringir-se a comportamentos funcionais de teor apenas
técnico, como é memorizar matemática, decorar regras lógicas e fichar livros. Muito
embora sempre se possa aludir ao fato de que, se fazemos apenas isso, não
sabemos pensar, pois não vamos além do processamento cumulativo linear de
informação – na prática, a escola facilmente se reduz a isso.

A aprendizagem precisa da técnica como instrumento, mas é, no âmago, expressão


política. A competência humana fundamental não é técnica, mas política, ou seja,
muito mais relevante do que dominar tecnicamente a natureza é saber o que fazer
da vida. Ainda que não se chegue aos fins sem os meios, são os fins que trazem
sentido aos meios, não o contrário. Por isso, aprender, quando correlacionado com
saber pensar, desborda expressivamente os paradigmas escola-novistas de cariz
tecnicista, até porque, na discussão atual em torno do assunto, prepondera a busca
de novos paradigmas, em particular, paradigmas da inovação que implicam
permanente mudança de paradigma. Como toda auto-referência, pode parecer
contraditória e está enredada em círculo vicioso. Todavia, a aprendizagem é
marcada profundamente por esta virtude: trabalha os limites em nome dos desafios
e os desafios dentro de limites. Seu paradigma é da passagem, da inovação, da
provisoriedade (Moraes, 1997). Tem como objetivo a formação do sujeito capaz de
história própria, mas não é de sua instrumentação que provém o olhar ético sobre a
história. Esta se origina no mundo dos valores e é nesse mundo que a educação,
fundamentalmente, se aninha.

A sociologia mostrou à sociedade o quanto a educação pode ser funcionalmente


reprodutiva (Althusser, 1999), restringindo-se a simples instrumento a serviço do
status quo. Mas isso denota, à revelia, que, tendo parentesco tão evidente com o
poder, a educação é, na essência, algo político, não apenas técnico. Toda
pedagogia que nega tal parentesco está mentindo porque encobre sua face
ideológica. Também a pedagogia crítica namora o poder, mas o faz com consciência
crítica. Assumindo tal fato com maturidade, pode controlar melhor suas injunções
ideológicas, sem jamais pretender livrar-se delas totalmente. A pedagogia crítica é
aquela que, primeiro, se submete menos ao poder e, segundo, sabe que também
se submete ao poder. A maneira mais inteligente – e pedagógica – de controlar a
subserviência ao poder não é escamoteando as coisas, mas olhando-as de frente.
Tudo isso revela, de modo evidente, que educação é substancialmente fenômeno
político. Quanto mais se nega essa relação, mais a educação se perde nela,
tornando-se tanto mais subserviente. Tal politicidade – como dizia Freire e, hoje,
declarada com veemência por Torres (1998) – pode ser facilmente mal-entendida,
sobretudo quando se abandona a preocupação técnica, mas constitui, de todos os
modos, o centro da educação e da aprendizagem.

Tendemos, por isso, a relacionar estreitamente aprendizagem de teor reconstrutivo


político com educação por entendermos que temos aí uma das melhores definições
do que seria educação. Afastamo-nos de termos como instrução, ensino,

1
treinamento, não porque sejam procedimentos apenas técnicos, mas porque, por
trás da face técnica, escondem interferência política prepotente, não visam à
autonomia do sujeito, pois querem a subalternidade. Nada é mais político – em
sentido negativo – do que produzir a subalternidade, lançando mão de toda
instrumentação técnica disponível, desde meras aulas reprodutivas, abuso dos
meios de comunicação, manuseio estereotipado da inteligência artificial, submissão
a livros didáticos e a currículos vindos de fora, e artimanhas instrucionistas
imbecilizantes. Aprender é, profundamente, a competência de desenhar o destino
próprio, de inventar um sujeito crítico e criativo, dentro das circunstâncias dadas e
sempre com sentido solidário.

Não se faz isso sem a adequada instrumentação. O lado técnico da educação


também conta. Quando olhamos hoje para a sociedade do conhecimento, podemos
vislumbrar nela o senso forte pela instrumentação que mais garante vantagens
comparativas: o conhecimento. As crianças precisam manejar conhecimento,
aquele que permite enfrentar os adversários de igual para igual, o melhor possível.
É loucura reduzir a escola a uma mera transmissão de conhecimento copiado
porque fabricamos um povo subalterno, conservando-o como massa de manobra
nas mãos do neoliberalismo; entretanto, o acesso ao conhecimento, sobretudo
saber manejar conhecimento, é o meio. O que define esse desafio é sua tessitura
política, visualizada facilmente na necessidade de inventar cidadania capaz de
mudar a história. Manejando bem o conhecimento, podemos mais facilmente mudar
a história; contudo, o centro do problema é mudar a história.

A postura instrucionista na educação encontra grande amparo entre os professores,


porque é ela que lhes garante poder: poder reprovar, decidir o currículo, exigir
desempenho, impor disciplina, posar de autoridade e mandar na escola. Quando se
critica a aula meramente expositiva, que continua sendo a didática típica da nossa
escola, o professor defende-a com todas as forças; em parte, porque não saberia o
que fazer da vida sem aula, mas também porque se sente impotente sem tal
instrumento. Por trás disso, está a expectativa clássica da autoridade indiscutível:
aparece com fórmulas prontas – que copia dos outros –, restando ao aluno a tarefa
de escutar com atenção, copiar e reproduzir na prova. Também quando os
professores insistem em permitir perguntas, isso vai até certo ponto, e é um ponto
bem certo: a autoridade do professor. Ao contrário do que as teorias pós-modernas
apontam em termos da falibilidade típica do conhecimento (Demo, 1999), o
professor comparece com conhecimento tão respeitável que merece ser copiado! É
difícil para ele aceitar que está no mesmo barco que o aluno, nadando nas mesmas
águas da dúvida. Aprender não é – de modo nenhum – manejar certezas, mas
trabalhar com inteligência as incertezas, porquanto, sendo função vital, tão vital
que se confunde com a vida, não poderia fantasiar propostas contraditórias com a
criatividade e com a fragilidade da vida. Alguns professores vão ao extremo de
garimpar no termo tons proféticos – professar estaria na base do conceito de
professor –, evocando os mesmos laivos do profeta que fala em nome de Deus e
que, por isso, não poderia ser contestado.

Em muitos ambientes, essa realidade já é passado. Professores e alunos fazem


parte de um grupo de estudos; aqueles dotados da autoridade de quem já andou
um caminho mais longo e estes estimulados e com vontade de aprender. O
professor não dá aula, no sentido tradicional, porque repassar conhecimento que
todo o mundo pode encontrar em qualquer canto é algo pouco inteligente, mas
orienta os alunos, na função de facilitador. Não perde a autoridade, no bom
sentido, aquela que advém da competência reconhecida, mas deixa de ser
autoritário. Começa a prevalecer o argumento bem construído sobre a instrução. É
certo que, em alguns ambientes particularmente atrasados, a aula pode ser a única

2
fonte de informação. Mesmo assim, não serve como defesa da aula, pois estamos
defendendo o atraso; sobretudo para os alunos, isso não consola. Para quem
trabalha o dia todo, chega cansado à universidade e não tem tempo para
pesquisar, a aula nada substitui, pois só completa o enterro. Melhor que ficar
ouvindo aulas meramente reprodutivas é elaborar e pesquisar a partir do que está
disponível. A aula reprodutiva continua defendida pelo professor e pelo aluno que
não querem estudar ou aprender.

Pior ainda faz o pedagogo que imagina ser a aula reprodutiva o centro do assim
dito contato pedagógico. Estar junto com o aluno ainda não é pedagogia suficiente;
conversar fiado sobre qualquer coisa ainda não é ciência da educação. Se
direcionarmos a pedagogia para o horizonte educativo aqui proposto, o contato
pedagógico típico é aquele em que o professor assume o papel de facilitador que
bem aprende, e o aluno, de aprendiz, de quem bem aprende. O sentido da
formação da competência humana para a autonomia solidária precisa ser
inequívoco. Não se obtém esse resultado somente com aula. Melhor dizendo, a aula
como tal já é expediente secundário e, sendo a aula meramente expositiva, mata a
autonomia. Nesta, nada aparece que indique a autonomia, pois é fundada na cópia
subalterna. Para falar de contato pedagógico, é mister definir o que se entende por
pedagogia e por contato. Se exigirmos alguma definição com fundamento adequado
na teoria e na prática, não podemos aceitar como fenômeno satisfatório o que
ocorre como regra na sala de aula. No mínimo, é necessário distinguir de que
desafio se trata. Em certo nível, todo contato pode ser tido como pedagógico,
porque alguém influencia alguém. Entretanto, esse tipo de influência ainda não é
aquele exigido para gestar a autonomia do sujeito. Na escola, é mister ocorrer
aquele estilo de aprendizagem dotado de suficiente qualidade formal e política para
podermos falar em formação da cidadania mais específica desse tipo de processo.
Muitas são as cidadanias que a sociedade possibilita: da família, da vizinhança, do
sindicato, da Igreja. A cidadania gestada na escola tem como objetivo específico
fundar-se, em termos instrumentais, no manejo crítico e criativo do conhecimento
e, em termos de valores e ética, na construção de sociedades alternativas. Não
será qualquer contato que irá proporcionar tamanho resultado histórico, e muito
menos qualquer aula.

Neste texto, pretendemos discutir mais de perto algumas polêmicas pós-modernas,


também oriundas das ciências naturais, que se inclinam a ver, na aprendizagem, a
sabedoria dos desafios e dos limites, mais do que a obtenção de conhecimentos já
feitos e definitivos. Embora o pós-modernismo tenha abusado da fragmentação do
conhecimento, relativizando-o em excesso, também proporciona aportes
pertinentes para entendermos melhor a aprendizagem como formação da
competência humana para vivência em ambientes abertos, desenhando futuros que
não se completam. É fundamental aprendermos a conviver com os limites para
transformá-los em desafios, e enfrentarmos os desafios para podermos superar os
limites, como apontam epistemologias mais recentes. É preciso que aprendamos a
viver perigosamente, porque esse é o preço da autonomia. A inovação provém de
quem sabe valorizar as incertezas, se superar nos erros, saltar barreiras para
recomeçar tudo de novo. Não fosse facilmente mero jogo de palavras, buscamos o
paradigma que não se subordine a nenhum paradigma ou o paradigma da rebeldia.
A educação precisa formar rebeldes (Sulloway, 1997; Hooks, 1994). É deles que
precisamos para mudar a sociedade.

Fonte
DEMO, Pedro. Introdução. In: ______. Conhecer e aprender: sabedoria dos limites
e desafios. Porto Alegre: ArtMed, 2000. p. 9-12.

You might also like