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MODELOS DE LETRAMENTO LITERÁRIO E ENSINO DA LITERATURA: PROBLEMAS

E PERSPECTIVAS

LITERARY MODELS OF LITERACY AND EDUCATION LITERATURE: PROBLEMS AND PROSPECTS

Mirian Hisae Yaegashi Zappone1

Resumo
Este artigo discute conceitos de letramento, a saber, os modelos autônomo e ideológico de letramento,
compreendidos como práticas sociais que usam a escrita, relacionando-os ao uso da escrita literária. Assim,
propõe a apropriação dos referidos conceitos a fim de que se possa compreender o ensino da literatura. Como
conclusões da aplicação teórica desse refencial, o texto apresenta um quadro geral do ensino da literatura no
Brasil, observando práticas de letramento literário verificadas por meio de história, ainda que panorâmica, do
ensino de literatura em nosso país.
Palavras-chave: Ensino de literatura, letramento literário, leitura, escola.

Abstract
This article discusses concepts of literacy, namely standalone templates and ideological literacy, understood as
social practices that use the writing, the use of literary writing. Thus proposes ownership… of these concepts in
order to understand the teaching of literature. Theoretical conclusions that application implementation, the text
presents a general framework of teaching literature in Brazil, observing practices verified literary literacy through
history, albeit overview of teaching literature in our country.
Key words: teaching literature, literary reading literacy, school.

MODELOS DE LETRAMENTO exemplo, como a leitura acontecia, sobre os


LITERÁRIO E ENSINO DA processos cognitivos que as pessoas efetuavam
LITERATURA: PROBLEMAS E quando liam, sobre as habilidades necessárias para
PERSPECTIVAS realizar leitura ou escrita e outros, situando sempre
as questões da escrita e sua leitura no âmbito
individual.
Trilhando conceitos: letramento e modelos de Como tais estudos se pautavam em questões
letramento individuais, eles acabavam não se preocupando com
um aspecto importante relativo aos efeitos que os
Durante muito tempo, teóricos da área da usos da leitura e da escrita poderiam acarretar não
lingüística bem como da educação estiveram só em indivíduos, mas em grupos de pessoas. Ou
preocupados com a questão da alfabetização, seja, havia uma lacuna nos estudos sobre escrita e
entendendo-a como uma competência individual leitura que vieram a ser preenchidos com os estudos
relativa ao uso da escrita e da leitura. Eles se do que se chamou letramento. Assim, tais estudos
preocupavam com as habilidades que as pessoas expandiram o foco de atenção sobre a leitura e
desenvolviam quando liam ou escreviam e assim escrita do âmbito individual para o social. Algumas
surgiram muitos estudos explicativos sobre, por
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Universidade Estadual de Maringá - Departamento de Letras

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áreas de interesse desses estudos preocupam-se com O conceito apresentado refere-se a letramento
questões tais como: 1) o desenvolvimento social como um conjunto de práticas sociais. Como
que acompanhou os usos da escrita a partir do práticas sociais, podemos compreender todas as
século 17; as mudanças sociais, políticas, ações que fazemos em grupo, ações como, por
econômicas relacionadas aos usos da escrita; 3) os exemplo, fazer compras, participar de uma missa ou
efeitos das práticas de letramento em grupos sociais culto, ir a uma reunião de escola de filhos etc.
específicos. (KLEIMAN, 2004). Entretanto, as práticas sociais recebem, no conceito
Como a própria gênese dos estudos de de Kleiman, uma restrição semântica, pois as
letramento evidencia, a distinção letramento e práticas das quais fala a autora não abarcam todas
alfabetização é importante para que se possa as práticas sociais, mas apenas algumas, a saber, as
compreender melhor o conceito de letramento. que usam a escrita. Logo, o campo de compreensão
Segundo alguns pesquisadores (Kleiman, 2004, da expressão “práticas sociais” torna-se mais
Soares, 1998), a alfabetização está relacionada a especializado. Envolve as práticas sociais que usam
uma tecnologia que se adquire para efetuar-se a escrita, tais como assistir a um filme legendado,
leitura e escrita. Ela envolve, por exemplo, o treino conversar sobre como escrever uma carta para
de habilidades motoras para o uso de instrumentos reclamar de algum produto defeituoso a um
para a escrita (lápis ou caneta) para escrever, o fabricante, ler um trecho da bíblia em culto
modo de associar letras e palavras ao ler, o religioso etc. As práticas sociais que usam a escrita,
aprendizado dos elementos gráficos da escrita tais portanto, referem-se a que ações que são realizadas
como a noção de paragrafação, de linhas, da leitura em nossa interação social e que envolvem, de algum
como um movimento dos olhos que se dá da modo, a escrita.
esquerda para a direita e de cima para baixo, a O conceito apresentado por Kleiman (2004)
percepção de que letras representam sons e que apresenta, também, uma outra especialização: além
alguns sons são representados por mais de uma letra de abarcar práticas sociais que usam a escrita, essa
etc. Enfim, a alfabetização envolve os processos de escrita é usada enquanto tecnologia (no sentido de
aquisição da escrita e da leitura. Portanto, alfabetização do qual se falou anteriormente) e
alfabetizar alguém significa torná-lo capaz de enquanto sistema simbólico, ou seja, esta escrita é
desenvolver essa tecnologia da escrita (codificação usada como forma de significar coisas, idéias, fatos
de uma língua) e da leitura (descodificação). etc. E, finalmente, a última parte da conceituação:
Como se trata de uma tecnologia, os processos essas práticas sociais que usam a escrita são
de alfabetização podem ser diferentes dependo do praticadas em contextos específicos, em situações
suporte do texto. Escrever em um papel implica demarcadas e para objetivos específicos, o que
uma tecnologia de escrita ao passo que escrever em significa que são inúmeras as funções ou objetivos
um teclado de computador envolve, certamente, para os quais se podem usar a escrita em nossa
outra tecnologia. sociedade.
Retornando à distinção letramento e Observando o conceito de letramento
alfabetização, observamos que a palavra letramento, apresentado por Kleiman (2004), podemos notar
por sua vez, abarca a idéia de ação devido à que, efetivamente, ele envolve muitos tipos de usos
presença do sufixo mento em sua composição. Ao da escrita, já que há inúmeras práticas sociais que
mesmo tempo, tem-se o prefixo letra, que vem do usam a escrita e há inúmeros objetivos para os quais
latim – littera, como indica Soares (1998). Assim, essas práticas podem ser efetuadas nos mais
letramento indica a ação de letrar-se, de tornar-se diversos contextos. Logo, podemos inferir que o
letrado. Kleiman (2004) define o termo como se vê letramento é um fenômeno muito amplo e que não
abaixo: está restrito apenas ao circuito escolar, ao espaço da
escola.
Podemos definir hoje o letramento como A escola é, certamente, um lugar privilegiado
um conjunto de práticas sociais que usam a onde se efetuam práticas de letramento, mas tais
escrita, enquanto sistema simbólico e práticas estão muito ligadas a um tipo de
enquanto tecnologia, em contextos letramento, a alfabetização. Se observarmos
específicos, para objetivos específicos.
algumas atividades escolares com leitura e escrita,
(Kleiman, 2004, p.19)
veremos que elas se voltam, mais especificamente,
para o processo de aquisição de códigos (sejam
numéricos ou alfabéticos). A escola tem como uma

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de suas metas principais o desenvolvimento de uma autonomia em relação à palavra falada, já que
capacidades individuais relacionadas ao codificar e tem uma significação que emerge dele próprio e que
descodificar da língua e não volta sua atenção para se põe em relação a outras enunciações. Assim, a
os modos como essas práticas podem fazer sentido escrita deve ser entendida em seu plano enunciativo
na vida de seus alunos, o que transformaria a leitura ou discursivo e “não apenas a partir de sua
e a escrita em atividades muito mais significativas materialidade gráfica” (p.54). Balizando sua
para os estudantes. discussão sobre escrita e oralidade sob esse viés,
Um aspecto importante que se pode apontar Rojo (2006) mostra que ambas se diferenciam
com relação ao letramento existente na escola é que basicamente pela “relação que o sujeito enunciador
ele possui uma característica particular: tal modelo estabelece com os parâmetros da situação social e
enfatiza sobremodo o texto escrito, considerando-o material de produção enunciativa (lugar de
uma forma autônoma, pois a escrita é entendida enunciação, interlocutores, temas, finalidade da
como produto completo em si mesmo, e cujos enunciação)” (p.55), sendo que, na fala, tal relação é
significados independem de seu contexto de de implicação do locutor na situação de produção e
produção, já que o funcionamento lógico da escrita, de conjunção de mundos de referência, ao passo
o modo como as palavras se articulam são que, na escrita, há uma autonomia do locutor em
considerados aspectos suficientes para que as relação à situação de produção e de disjunção entre
pessoas interpretem o escrito. Por isso, o letramento os mundos de referência da situação de produção e
escolar foi caracterizado por pesquisadores como do texto ou discurso. Entendendo a escrita e a
um modelo autônomo de letramento, já que todas as oralidade (língua falada) por uma perspectiva
atividades com a escrita propostas neste ambiente enunciativa, Rojo compreende que há inúmeras
são feitas com base no texto, de modo que esse é relações entre oralidade e escrita:
considerado suficiente para produzir um significado
que está nele presente e corporificado. Nessa perspectiva enunciativa, de que
Embora tal concepção tenha se construído ao “língua falada” e da apropriação de que
longo do tempo em que a escrita ganhou “escrita” ou letramento estamos falando?
proeminência nas sociedades letradas, certamente, Abre-se aqui, de imediato, uma
multiplicidade enorme de relações entre os
tal concepção de texto foi corroborada e difundida
orais e os escritos, pensados estes
mais enfaticamente a partir do estruturalismo cuja discursivamente e não mais na
concepção de língua ancorava-se na imanência do simplicidade de suas materialidade básicas
texto e em sua funcionalidade como aspectos (som e grafia). Falar, então, da escrita seria
suficientes para a produção de sentido, centrando falar da multiplicidade de escritos que
suas análises na língua enquanto produto acabado e circulam em esferas privadas e públicas e
estático, distanciada, portanto, das situações reais de que mantêm relações complexas com os
seu uso. orais que também circulam nestas esferas,
Outro dado fundamental que decorre da ênfase em diferentes situações. (ROJO, 2006,
a essa característica da autonomia é que, vista dessa p.56)
forma, a escrita é concebida como um tipo de
comunicação, muito diferente, por exemplo, da Observando, portanto, que oralidade e escrita se
linguagem oral. Na oralidade, o(s) sentido(s) que aproximam, a autora mostra que parecem
criamos para a linguagem depende das identidades infundadas as posições que separam radicalmente o
dos falantes, das relações que esses falantes têm uns oral e a escrita, pois discursivamente, entre ambas
com os outros, relações que vão sendo construídas e há “relações complexas de hibridização de gêneros
reconstruídas durante o processo de comunicação. e de modalidades” (p.68).
Na fala, os sentidos vão sendo “negociados” entre Como se pode notar, a interação via oralidade
os envolvidos na interação. ou a comunicação oral é realizada de forma muito
Para discutir de forma mais enfática essas diferente da interação proposta ou subjacente na
relações entre oralidade e escrita, podemos nos interação que acontece por meio da escrita tal como
reportar à distinção entre “escrito” e “escrita”, observada no modelo autônomo de letramento que
proposta por Rojo (2006), que compreende o se apresentou. Na verdade, no modelo autônomo, a
primeiro como a grafia ou materialização da palavra forma de interação com o texto proposta para o
falada, ao passo que a escrita relaciona-se à noção estudante acaba se contraponto e até se chocando
de texto, ou seja, trata-se de um escrito que possui com o modelo de interação vivenciado comumente

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pelo aluno na sua prática com a língua, pois, via de Ao entender o conceito de letramento como o
regra, os alunos ao chegarem à escola estão mais conjunto de práticas sociais que usam a escrita
acostumados a falar do que a ler. como um sistema simbólico, e que a usam dentro de
Fora do espaço escolar, entretanto, podemos padrões tecnológicos para finalidades específicas e
observar outras formas de letramento, ou seja, em contextos específicos, a apropriação do conceito
outros usos da escrita em contexto diversos como os ao campo dos estudos literários pode ser pertinente,
da família, de comunidades religiosas, do ambiente se operarmos uma modulação fundamental:
de trabalho das pessoas, de associações ou clubes, trabalhar com a escrita mencionada no conceito,
das relações sociais etc. Observando esses mas compreendida dentro das especificidades
diferentes modos de letramento, Street (1984) concernentes aos textos literários. Se considerarmos
procurou mostrar que todas as práticas de a literatura como um tipo de escrita que se
letramento são conseqüências da cultura e das especifica e se distingue de outros tipos de escrita, o
estruturas de poder de uma sociedade onde o conceito de letramento mostra-se bastante produtivo
indivíduo se situa. Por isso, as práticas de para o entendimento de alguns aspectos que tangem
letramento mudam segundo o contexto em que se os modos de produção, recepção e circulação da
desenvolvem. Assim, ao descrever ou caracterizar literatura e conseqüentemente, seu ensino.
essas outras práticas de letramento, Street (1984) as Já que uma condição para apropriação do
nomeou de modelo ideológico de letramento. Ele conceito é estabelecer a especificidadea da escrita a
assim o fez, pois considerou que os significados que que nos referimos quando falamos em letramento
escrita assume para os grupos sociais dependem do literário, e o terreno das definições e conceituações
contexto e das instituições onde a escrita foi são sempre movediços, acata-se, nesta sitaução, a
adquirida. Para ele, o(s) sentido(s) de um texto não sugestão de Hansen (2005) que sugere compreender
estão “grudados” em sua forma, no modo de a literatura a partir de um traço fundamental: o seu
organização de suas palavras, dos parágrafos e de caráter de ficcionalidade, já que antes de outras
outros elementos de textualidade, mas dependem especificidades apontadas pela crítica ao longo da
dos contextos e das instituições em que a escrita é história, o literário está presente num texto quando é
adquirida e praticada. Portanto, as práticas de possível lê-lo como sendo o resultado de um ato de
letramento são aspectos da cultura e das estruturas fingir (Hansen, 2004, p.16). Ao mesmo tempo, é
de poder. importante ressaltar, este texto que operacionaliza
Como se pode notar, o modelo ideológico este fingimento do possível é, também, imotivado,
proposto por Street (1984) acaba se contrapondo ao pois:
modelo autônomo existente na escola, que
considera os significados dos textos como uma (...) suas asserções [do discurso literário]
mera função do modo de organização interna que os não implicam a identidade entre o discurso
textos possuem. e a materialidade das coisas e dos estados
Apresentada a distinção entre os dois modelos de coisas figurados nele. A materialidade
das coisas é posicionada, situada,
de letramento, chegamos à questão que
perspectivada ou dramatizada: o texto
pretendemos discutir: por meio da descrição dos efetua uma materialidade auto-referencial
dois modelos de letramento, notamos que a escola ou pseudo-referencial, pois a existência
desenvolveu um modelo de letramento, ou seja, um real das coisas ou eventos representado
uso ou certas práticas de uso da escrita que a nele não é pertinente para sua significação.
transformaram em uma forma autônoma, no sentido (Hansen, 2005, p.19)
já discutido, e que esse modelo de letramento se
choca com outros modelos de letramento presentes Demarcando, mesmo que sumariamente, os
em outros espaços sociais diferentes da escola. contornos do tipo de escrita que interessa aos
Discutir de que modo tais conceitos e distinções estudos literários, a saber, a escrita imotivada,
podem ser pensados no caso da escrita literária e do gratuita, cuja marca fundamental seria a
ensino da literatura auxiliam a compreensão e ficcionalidade que se opera por diversas formas
problematização do ensino da literatura na escola figuração mimética (dramática, lírica, narrativa,
brasileira. épica), podem ser feitas algumas colocações sobre
letramento literário. Um primeira observação refere-
Letramento literário e suas relações com o se ao fato de que, considerando a origem dos
ensino de literatura estudos de letramento e suas articulações teóricas, o

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letramento literário não pode ser considerado história de leitura de textos produzida por críticos
apenas como o estudo das práticas sociais de leitura ou pela academia, 3) pela leitura de textos não
do texto literário ou, como tem se tornado ponto canônicos sobre as quais pouco se sabe ainda hoje
comum, os usos sociais ou públicos de leitura da (leitura de romances cor-de-rosa, por exemplo,
escrita literária. É preciso matizar melhor tais leitura de best-sellers e outros textos ficcionais que
conceitos. Uma primeira sugestão nesse sentido, são estão à margem do letramento literário escolar
seria pensar o conceito de letramento aplicado aos etc), mas que já começam a ser estudadas com mais
estudos literários. Assim, diante da concepção de ênfase por historiadores da leitura e do livro, 4) a
letramento já exposta, teríamos as seguintes apropriação de textos não produzidos inicialmente
proposições para a compreensão de letramento como textos ficcionais, mas que funcionam como
literário: tal diante de certos públicos que deles se apropriam
1 - O Letramento literário pode ser numa atitude de gratuidade, estabelecendo com eles
compreendido como o conjunto de práticas sociais uma relação de ficcionalidade e de gratuidade, tais
que usam a escrita literária, compreendida como como matérias jornalísticas, depoimentos etc.
aquela cuja especificidade maior seria seu traço de Por meio dessas diferentes práticas, podem-se
ficcionalidade. Isso equivale a dizer que, embora o observar finalidades e contextos distintos do
conceito de literatura sido construído no seio da letramento literário bastantes diferentes do
cultura burguesa, particularmente por classes letramento escolar. Na escola, a leitura literária
abastadas que, por meio tanto da produção quanto serve, precipuamente, para o atendimento de tarefas
do consumo de certos textos, produziram um certo escolares solicitadas pelo professor (preencher
gosto e sensibilidade relativos aos textos, não são fichas de leitura, fazer resumos da história, fazer
apenas os textos que pertencem a essa tradição – provas de leitura etc). Entretanto, as práticas de
ocidental, eurocêntrica, masculina, branca – que leitura e mesmo de produção de textos literários
podem figurar como suportes para literário. É certo podem estar ligadas a outros objetivos como o
que esses textos, arrolados nas histórias da literatur prazer, o conhecimento, a aquisição de um status de
e dos quais se ocupa a crítica literária representam o leitor diante de um grupo, já que a leitura constitui,
corpus mais utilizado no espaço escolar, onde são, para algumas classes sociais um critério de
efetivamente, legitimados pela autoridade distinção cultural, evasão etc.
concedida a instituição escolar. 3 - Como as práticas de letramento e,
Entretanto, esses textos não são únicos suportes conseqüentemente, as práticas de letramento
para o literário. Se o letramento literário pressupõe literário são “enformadas”, padronizadas ou
práticas que usam a escrita literária, pensada como determinadas pelas instituições sociais e pelas
um gênero de discurso que pressupõe a relações de poder, nota-se que há formas de
ficcionalidade como traço principal, é possível letramento mais dominantes, mais valorizadas e
observar letramento literário em inúmeros outros influentes do que outras. No caso da literatura, é
espaços que não apenas a escola. Assim, constituem evidente que as práticas de letramento literário
práticas de letramento literário a audiência de realizadas no espaço escolar são as mais visíveis e
novelas, séries, filmes televisivos, o próprio cinema, valorizadas. Sobre tal questão, os modelos de
em alguns casos a internet, a contação de histórias letramento apresentados (autônomo e ideológico)
populares, de anedotas etc. podem ser muito operacionais para se compreender
2 - Como o letramento implica usos sociais da formas de letramento literário;
escrita, saindo da esfera estritamente individual, 4 - O letramento e o letramento literário são
infere-se que o letramento literário está associado a historicamente situados. Quando se observa na
diferentes domínios da vida (o letramento implica conceituação de letramento que os usos da escrita
usos da escrita literária para objetivos específicos são práticas sociais, deduz-se que tais práticas são
em contextos específicos) e, nesse sentido, seria efetuadas ou realizadas por indivíduos ou grupos
interessante pensar em quais contextos ou espaços que se constituem como identidades sociais
sociais podem ser observadas essas práticas de distintas, específicas. Por isso, como tais práticas
letramento literário que são plurais. Assim, alguns são realizadas por identidades diferentes, os modos
usos sociais poderiam ser assinalados por: 1) de fazer uso da escrita literária e sua leitura também
adaptações de textos literários para a televisão, são diferenciados, pois são construídos
teatro, cinema, 2) por leituras não canônicas, ou historicamente. Isso pode ser facilmente observado,
seja, leituras não necessariamente ancoradas na por exemplo, em comunidades minoritárias onde a

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orientação de letramento é bastante diferente de literários. Evidentemente, este aspecto também é


grupos majoritários. Para certa comunidade, a extremamente pertinente, ou seja, contam na leitura
leitura de textos poéticos pode não fazer sentido e, do texto literário, todos os elementos propriamente
por isso, nem serem conhecidos textos poéticos, ao textuais, mas, além deles, são de importância
passo que os modelos ficcionais veiculados pela capital, os códigos relativos aos gêneros literários
televisão podem constituir grande fonte de evasão. (da poesia, da epopéia, da narrativa de ficção, da
Significativo para a compreensão dos diferentes crônica, do romance etc), as convenções da escrita
letramentos seria verificar os elementos, situações e literária que são particulares de tempos e de espaços
contextos que os determinam, tais como nível de específicos (as convenções de escrita do romance
escolaridade dos indivíduos, formas de exposição brasileiro no séc.19, as convenções da escrita
ao escrito, valorização do escrito, enfim, um dramática na Inglaterra do séc. 16, as convenções de
conhecimento das orientações de letramento de escrita do modernismo, por exemplo, e inúmeras
diferentes grupos sociais que podem se distinguir outras). Além destas convenções, há outro elemento
por relações culturais, econômicas, étnicas, de fundamental para a leitura do texto literário na
gênero etc. escola que é a voz ou posição da crítica.
Como se nota, o conceito de letramento, Mesclando-se com os elementos já abordados, o
aplicado ao estudo da literatura mostra-se bastante texto literário só tem seu sentido descortinado por
fértil, pois permite uma compreensão do literário meio da chave de compreensão dada pela crítica ou
situada para fora dos domínios estritamente ligados pelas vozes da crítica. São essas vozes que
ao texto e abrem perspectivas para o estudo de organizam tanto as convenções quanto os códigos
variados aspectos relacionados ao modo como se pertinentes aos textos, conduzindo a leitura do
constroem os padrões sociais de letramento literário professor e do aluno por meio, inicialmente, da
que levam à efetuação de diferentes práticas em crítica, da historiografia, cujas idéias e valores
diferentes contextos. Conhecer as práticas de reverberam no livro didático.
letramento literário presentes na escola bem como Não se trata aqui de discutir a pertinência desse
as práticas de letramento literários presentes em modelo de letramento literário, pois, certamente,
diferentes âmbitos sociais podem contribuir para esses elementos são importantes para a leitura do
que se possa pensar nas relações entre essas duas texto literário. O que deve ser questionado é a forma
esferas, escola e vida social, fazendo-as convergir como tal modelo aparece ou se concretiza na vida
para formação de indivíduos com graus de do aluno e, nesse caso, o que se observa, é que não
letramento e de letramento literário cada vez há uma explicitação das regras do jogo. Professor e
maiores. alunos trabalham com a escrita literária apenas
Para tal, a distinção dos modelos autônomo e aceitando os sentidos já construídos criados ou
ideológico de letramento parecem ser bastante propostos para os textos literários sem compreender
significativos e operacionais. Uma primeira as razões porque eles são pertinentes.
observação refere-se ao fato de o letramento Nesse sentido, para que o modelo autônomo
literário ser mais visivelmente observado no espaço alcance, no mínimo, uma coerência, seria preciso
escolar, uma vez que a leitura de textos literários explicitar para o aluno o tipo de leitura pretendida e
fora da escola é bem menos visível. Afinal, quem e oferecer a ele condições para que se apropriasse dos
como se lê ficção no Brasil? A pergunta matiza um modelos, convenções e códigos fundamentais para a
importante campo de pesquisa certamente. Assim, compreensão da escrita literária. Ainda nesta
vemos que as práticas de leitura do texto literário a direção, poderíamos pensar se a escola, com a
que temos maior acesso são aquelas realizadas pela estrutura atual, teria condições de oferecer ao seu
escola e que estas, também, podem ser emolduradas aluno todo esse embasamento quando isto parece
no modelo autônomo de letramento, pois ser difícil de ser feito até mesmo com textos
consideram a autonomia do escrito como fonte referenciais. Sem o conhecimento dessas regras ou
suficiente para a produção de sentidos do texto. convenções, entretanto, a leitura literária fica sendo
No caso da escrita literária, o aspecto da um grande faz-de-conta, pois os alunos raramente
autonomia torna-se ainda mais evidente do que em compreendem o texto, raramente produzem para ele
outros tipos de escrita, pois esta autonomia de sentidos pertinentes e terminam por acatar as vozes
sentido está relacionada a outros fatores não (do professor, da crítica, do livro didático) que
diretamente relacionados à fatura do texto ou a seu dizem que o texto significa isto ou aquilo, pois lhes
modo de organização, como no caso dos textos não- faltam as chaves de compreensão. Assim, é mais

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fácil decorar que Clarice Lispector produz uma falta de um instrumental adequado que deveria ser
prosa intimista do que ler seus textos e descobrir oferecido pela escola.
neles o intimismo.
Outro aspecto importante a ressaltar com O ensino da literatura no Brasil e a prevalência
relação a este modelo autônomo é que ele pressupõe do modelo autônomo de letramento literário
um leitor plenamente situado no mundo da escrita Certamente, há muitos modos de ler literatura,
como um leitor já iniciado. Não considera de como se observou anteriormente se considerarmos a
maneira alguma as orientações de letramento dos perspectiva do modelo ideológico de letramento
escolares. Em tal modelo, os estudantes são vistos literário. Pode-se lê-la apenas como forma de
como um grupo heterogêneo, com a mesma memória e recitação em festejos escolares e outros,
orientação de letramento, na qual a leitura e o como exercício ou treino para os olhos do leitor, de
contato com livros fosse uma condição “natural” a forma que se consiga maior rapidez na
todos eles. Ignora que muitos têm dificuldades, decodificação das palavras, consistindo, portanto,
inclusive, com a própria decodificação dos textos um exercício mecânico de leitura. Pode-se, ainda,
(principalmente nos estágios iniciais de indagar-se sobre o sentido dos textos literários,
escolarização) e trabalha textos literários como se utilizá-los como forma de evasão, como motes de
esses fizessem parte da vida de todos os estudantes vida; pode-se, simplesmente, apreciar um poema,
quando grande parte deles não está familiarizada por exemplo, pela forma sonora e rítmica que
com a escrita ficcional, seja ela poética, dramática, possui ou até utilizá-los como forma de
narrativa etc. Assim, muitas vezes, a leitura torna-se ornamentação de um discurso. São essas diferentes
uma atividade completamente sem sentido, já que se práticas de letramento literário que podemos
somam vários aspectos contrários a uma encontrar em nossa sociedade.
apropriação crítica dos textos: a) uma orientação de Ao refletir sobre a leitura da literatura na
letramento que não valoriza formas ficcionais, b) a escola, espaço privilegiado para o desenvolvimento
ausência, no espaço escolar, de uma formação de práticas letradas, entre elas, a leitura dos textos
adequada do estudante de literatura que não literários, esta seção tem o objetivo de discutir
favorece o acesso às convenções de leitura alguns aspectos de leitura escolar de textos literários
necessárias à leitura do texto literário, c) a efetuados ao longo da história, no Brasil, e que
valorização excessiva da autonomia do texto acabaram por constituir, segundo a reflexão teórica
literário cujos sentidos são previamente deste texto, o modelo autônomo de letramento
estabelecidos pela crítica e pela historiografia literário. Tais aspectos abarcam algumas práticas ou
literária e corroborados pelos livros didáticos ou imagens da literatura que se geraram negativos
mesmo pelo professor, d) completa reflexos sobre ensino de literatura atual.
desconsideração, por parte da escola, de outras Na escola de hoje, a leitura da literatura, como
formas de letramento literário vivenciados pelo se viu anteriormente, tem sido relegada a um
aluno fora do ambiente escolar (telenovelas, segundo plano, já que os textos referenciais
anedotas, livros prescritos da tradição escolar tais constituem o material preferencial de leitura. Seja
como best-sellers, romances de mocinha, ficções de em função dos Parâmetros Curriculares ou mesmo
revistas de variedade, ficção erótica, quadrinhos etc) das diretrizes educacionais, o que se observa nos
que compõem um universo de leituras ficcionais já livros didáticos é uma profusão de textos como
acessadas e valorizadas pelos estudantes. bulas, cartas, receitas, cartazes e outros já que o
No caso de alunos com mais tempo de objetivo é aproximar, cada vez mais, as práticas de
escolarização, a desconsideração da orientação de leitura da escola das práticas de leitura efetuadas
letramento dos alunos leva a supor que todos têm fora da escola, propósito absolutamente pertinente.
acesso aos textos literários, por isso, o livro didático Segundo pesquisa realizada com professores de
de literatura apresenta apenas excertos de textos, várias regiões do Brasil, na qual se objetivou
pressupondo que o aluno possa chegar ao texto mapear, por meio de depoimentos de professores, as
integral. Ora, se essa não é a realidade de muitos práticas de leitura escolar, observou-se que os textos
alunos e, desse modo, o texto literário torna-se um literários ocupam pequeno espaço no rol de textos,
objeto inacessível por duas vias: seja pela sua sendo as narrativas infanto-juvenis mais presentes,
ausência material na vida do aluno, seja pela em detrimento de outros gêneros literários.
impossibilidade de acessar sentidos para ele pela (ZAPPONE, 2001).

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Modelos de letramento literário e ensino da literatura: problemas e perspectivas 56

Como já se destacou, esse apagamento da História da literatura em geral e


literatura na escola deve-se, em parte, ao caráter especialmente da Portuguesa e Nacional,
utilitarista da sociedade burguesa de moldes composição de discursos e narrações,
capitalistas da qual a escola faz parte, mas também declamação. (Razzini, 2000, 251)
é conseqüência dos modos de ler poesia praticados
na escola brasileira ao longo dos anos. Em pesquisa A partir do ano de 1881, observa-se, nas aulas
sobre o ensino de literatura e língua no Brasil, a de Português, a inclusão de autores brasileiros
partir do levantamento e análise dos programas de contemporâneos (do séc. XIX) como modelos para
ensino do Colégio Pedro II, escola secundária da escrita: “Leitura e recitação de trechos de
elite brasileira, Razzini (2000) evidencia que a prosadores e poetas brasileiros do século atual:
leitura de textos literários seguiu, durante décadas, exercícios ortográficos, gramática e composição.”
um princípio pragmático: lia-se com a intenção de (Razzoni, 2000, p.256). Para as aulas de literatura,
aprender com os autores consagrados a escrita, a no mesmo ano, registram-se:
gramática e, em alguns momentos, civismo,
Retórica, Poética e Literatura Nacional:
geografia e regras de convívio social. estilo, teoria e histórico dos diferentes
Razzini (2000) faz um levantamento dos gêneros de prosa e de poesia, análise de
programas do Colégio Pedro II durante os anos de estilo, composição, declamação.
1838, ainda no período colonial, até o ano de 1971 e
observa quanto foi duradoura a manutenção da
disciplina Retórica e Poética e tardia a introdução Português e história literária: traços gerais
da literatura nacional nos programas do referido e lingüística e principais períodos literários
colégio, passando a ser estudada apenas em 1857. das línguas vivas e mortas. (Idem, ibidem).
Esse olhar histórico sobre o ensino da literatura
permite observar o quanto o apagamento da A partir de 1891, ficam evidentes as atividades
literatura nos programas educacionais relaciona-se de leitura e recitação de trechos de prosadores e
com a historia de sua leitura na escola brasileira, já poetas brasileiros, a partir dos quais se estudava
que o Colégio Pedro II pode ser compreendido gramática e se propunham exercícios de
como uma espécie de “espelho da nação”, como composição como se vê em no programa de
enfatiza Razzini (2000), pois era uma instituição português desse ano:
modelar, cujos programas e práticas de ensino eram
reproduzidos em outras instituições de ensino do Leitura e recitação de trechos de
prosadores e poetas brasileiros e
país.
portugueses, exercícios ortográficos,
Sendo assim, interessa verificar quais eram os revisão da gramática, composição.
modos de leitura efetuados nessa escola modelo no
vasto período de 135 anos, o que abarca,
praticamente, quase um terço de nossa história. No Leitura e recitação de trechos de
período entre 1838 a 1857, são apenas anotadas prosadores e poetas brasileiros e
aulas de “Retórica, Poética e Literatura Nacional”. portugueses, exercícios cacográficos,
A partir de 1858, é possível notar a ênfase em revisão da gramática, composição.
algumas atividades de leitura tais como a produção (RAZZINI, 2000, p.257)
de composições a partir da leitura de autores
clássicos, da literatura nacional e da literatura
portuguesa, além da freqüente atividade de A partir dessas indicações dos programas do
declamação de poetas e prosadores, como sumariza Colégio Pedro II, a leitura literária era reduzida a
Razzini (2000) na apresentação do programa do ano uma estratégia de ensino de língua (gramática), e
de 1870: como modelo de escrita. As principais práticas de
leitura dos textos literários observadas eram a
Retórica e Poética – leitura e apreciação leitura de excertos, entendendo-se por leitura a
literária dos clássicos, estilo. oralização dos textos, com vistas a uma boa
recitação dos mesmos, do que se pode depreender a
preocupação com uma leitura mecânica, que visava
a reprodução ou decodificação do código, sem se
importar com o sentido do mesmo. Assim,

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evidencia-se a prevalência de um modelo de Estes apelos ao heroísmo e ao patriotismo,


letramento e de letramento literário autônomo, pois à devoção e ao sentimento filial se fazem,
centrado na autonomia do texto, considerando sua geralmente, em meio a uma evocação da
compreensão ou a construção de seus sentidos como natureza que tem sublinhados seus
aspectos de riqueza, beleza e opulência.
uma simples conseqüência da descodificação das
(ZILBERMAN; LAJOLO, 1985, p.39)
palavras do texto.
Como se viu anteriormente, no modelo Um aspecto importante da produção literária
autônomo de letramento literário, os sentidos dos para a infância que circulou nas escolas brasileiras e
textos estão, praticamente, determinados pelo modo que condicionou, certamente, modos de leitura, foi
de organização textual, desconsiderando sua ênfase no caráter modelar da língua nacional,
completamente a situação e os contextos da leitura, como uma espécie de extensão do projeto
bem como as identidades e histórias de leitura dos ideológico ufanista . Desde cedo, incutiu-se no
leitores. Na concepção ideológica do letramento ensino da literatura a preocupação com o estudo da
literário, pressupõe-se que esses aspectos devem língua, cujos exemplos vinham, invariavelmente,
ser, opostamente à concepção autônoma, dos textos literários:
considerados enfaticamente para que os sentidos
possam ser construídos, já que o letramento é O caráter de modelo exemplar que se
historicamente construído e moldado pelas examinou no plano temático manifesta-se,
instituições sociais onde se realizam as práticas de também, no plano da linguagem. Não por
letramento. coincidência, data desse mesmo fim do
Embora tal forma de leitura da literatura século XIX uma séria preocupação com a
enfatize o caráter apenas mecânico da leitura correção de linguagem, presente na
associada a uma abordagem historicista do ensino produção literária em geral, tornando-a,
da literatura, já que tematizava os períodos de conseqüentemente, um modelo a ser
seguido pelos estudantes. (ZILBERMAN;
“evolução” literária, bem ao gosto determinista do
LAJOLO, 1985, p. 41)
século dezenove, ele predominou, sem grandes
alterações, do final do século XIX até as primeiras
Esse modelo é facilmente encampado pelas
décadas do século XX, propondo também objetivos
instituições de ensino e também pelos próprios
civilistas e patrióticos, com ênfase ufanista na
autores, sobretudo aqueles que se propunham a
paisagem brasileira. Como assinalam Lajolo e
escrever para a infância, como foi o caso de tantos:
Zilberman, tais textos tinham como inspiração
Coelho Neto, Olavo Bilac, Júlia Lopes de Almeida,
similares europeus, cujas fórmulas literárias foram
Francisca Júlia, Carlos Jansen, Figueiredo Pimentel,
absorvidas por escritores nacionais:
Zalina Rolim e muitos outros. (LAJOLO;
Como se disse antes, a produção e
ZILBERMAN, 1985)
circulação no Brasil desta literatura infantil Como se pode notar, o projeto ideológico
patriótica e ufanista se inspira em obras ufanista, civilista e pedagogizante encampando
similares européias. Vale a pena observar, pela escola e efetuado por meio dos textos literários
por outro lado, que o programa nacional de destinados à infância e juventude perduraram longo
uma literatura infantil a serviço de um tempo no ensino de literatura no Brasil, podendo
determinado fim ideológico é bastante ser observado, inclusive, em projetos de ensino
marcado por um dos traços mais constantes mais recentes como a reforma do ensino proposta
da literatura brasileira não-infantil: a por Gustavo Capanema em 1942:
presença e exaltação da natureza e da
paisagem que, desde o romantismo (ou Leitura ( Far-se-á em trechos, em prosa e
retroagindo, desde o período colonial), em verso, que tenham por assunto principal
permanece como um dos símbolos mais a família, a escola e a terra natal.
difundidos da nacionalidade. Gramática e outros exercícios
(vocabulário, ortografia e redação)

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Modelos de letramento literário e ensino da literatura: problemas e perspectivas 58

Leitura (Far-se-á por assunto principal a a ensinar literatura. Deve-se mencionar que o
paisagem e a vida em cada uma das regiões conhecimento da historiografia sempre foi
naturais do Brasil. Gramática e Outros valorizado no ensino da literatura, de forma que
Exercícios (vocabulário, ortografia, grande parte dos materiais de leitura para aulas de
redação e versificação)
literatura constitui-se de antologias de textos
literários nos quais são arrolados textos e biografias
Leitura (Far-se-á que, sempre subordinados de autores consagrados da literatura brasileira que
à idéia geral de amor ao Brasil, tenham por respeitam um cânone estabelecido desde os
assunto principal a conquista da terra, o primeiros historiadores da literatura, sendo esse rol
melhoramento dela e a atualidade de textos e autores acrescidos com o
brasileira. desenvolvimento das nossas letras, como comprova
o estudo de Zilberman e Moreira sobre as principais
histórias da literatura brasileira. (ZILBERMAN;
Leitura (Far-se-á, por já aspirar a constituir MOREIRA, 1998)
uma iniciação literária, em excertos da Com a reforma de ensino proposta pela Lei
literatura brasileira e portuguesa, 5.692/71, criaram-se as “Diretrizes e Bases” da
distribuídos em três classes: cartas, prosa
educação nacional, transformando as etapas do
literária e poesia. (Razzini, 2000, p.264)
ensino primário e colegial em ensino fundamental e
o ensino secundário em 2o Grau . É neste momento
Também nas décadas seguintes, durante os anos
que aparece, nos programas do Pedro II, a disciplina
de 1951 a 1971, nota-se um prolongamento desse
de Comunicação e Expressão. A modernização dos
modelo de ensino de literatura associado ao ensino
nomes não implicou, entretanto, grandes mudanças
de língua, nesse momento, com ênfase no
nos modos de se ler literatura na escola, pois como
conhecimento historicista dos períodos literários.
se evidencia até mesmo por meio de uma consulta
Entretanto, nota-se que se os textos literários não
breve de livros didáticos desta década e da década
são mais lidos apenas como exercícios de recitação,
seguinte (anos de 1980), os modos de ler literatura
depreendendo-se uma nova orientação para a leitura
ainda se baseiam num modelo historiográfico,
da literatura: existe uma tentativa de lê-los de
muitas atividades de leitura propostas voltam-se
maneira diferenciada, como se pode inferir pelo
para aspectos gramaticais dos textos e muito ainda
registro das atividades de “interpretação” e “análise
se pode encontrar do aspecto pedagogizante,
literária”:
encontrado nos programas de décadas anteriores.
Curso Ginasial - Leitura e interpretação de Esta sumária história da educação literária no
excertos breves e fáceis de prosadores e Brasil, focalizada por meio da análise dos principais
poetas brasileiros dos dois últimos séculos, conteúdos ministrados no Colégio Pedro II, objetiva
Redação, Gramática. mostrar que, longe de trabalhar o aspecto lúdico,
ficcional, promoveu-se, ao longo do tempo, um
processo de escolarização do texto literário que
Curso Colegial – Leitura, interpretação, acabou por constituir certas práticas de letramento
análise literária, comentário gramatical e muito particulares.
estudo filológico de textos de autores Dentre as características observadas na presente
brasileiros e portugueses. Composição discussão, destacam-se: 1) a prevalência da
(prosa e verso), Gêneros literários,
autonomia do texto, ou seja, a concepção de leitura
Literatura Portuguesa (fases clássicas,
romantismo, realismo e naturalismo, que subjaz a essa prática é a de que as palavras
parnasianismo e simbolismo, fase contém, por si só, um conteúdo, um sentido
contemporânea). (RAZZINI, 2000, p.266). independentemente do contexto, dos objetivos e dos
sujeitos que caracterizam a situação comunicacional
Como se pode notar pela citação, nesse estabelecida no momento da leitura do texto
momento, o ensino de literatura passa a enfatizar a literário. Basta, por isso, descodificar o texto para
aquisição por parte do aluno, de conhecimentos ter acesso aos seus sentidos. É por essa razão que,
relativos à literatura tais como a questão dos tanto professores de literatura quanto os textos
gêneros, a análise literária, a periodização dos didáticos têm dificuldades em desenvolver
estilos de composição, conteúdos até hoje atividades de leitura que levem a uma boa interação
contemplados pelos textos didáticos que se propõem entre textos literários e leitores. 2) em virtude da

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dificuldade de compreensão do texto literário, a como se viu, o universo do aluno, do leitor quase
escola desenvolveu alguns mecanismos ou sempre é e foi desconsiderada, pois os sentidos pré-
caminhos para faciliar a leitura da literatura, a saber, existem ao ato da leitura e são estabelecidos pelas
a utilização de conhecimentos sobre a historiografia personagens autorizadas a fixar-lhes, a saber, os
literária, o conhecimento da biografia dos autores, críticos, a historiografia, o professor e o livro
do contexto histórico da produção do texto, das didático. Por essa razão, ler um conto, um romance
características estilísticas e estéticas dos textos. ou uma poesia na escola transformou-se em
Grande parte das atividades de leitura propostos por sinônimo de atividade didática quase sempre
materiais didáticos revelam essas práticas. São enfadonha, já que não são explicitados para os
característicos, sobretudo no Ensino Médio, alunos os modos pelos quais os sentidos são
apostilas e livros que desencadeiam o estudo de um atribuídos para os textos e nem eles são convidados
texto apresentando o período histórico de sua a interagir com os textos perscrutando-lhes os
produção, características de seu autor, do período sentidos. Como conseqüência, ao invés de formar
literário em que foi composto a fim de que o aluno leitores que saibam apreciar a literatura, a escola
possa identificar tais dados no texto. Ao fazê-lo, por forma leitores que a depreciam.
meio de várias sugestões dos autores desses
materiais didáticos, pressupõe-se o texto lido. Essas
práticas ratificam a caracterização do letramento CONSIDERAÇÕES FINAIS
literário no espaço escolar como uma prática
demarcada pela autonomia do texto. 3) A utilização Como se nota, o desenvolvimento de certas
de textos literários para finalidades pedagógicas, a práticas de leitura levou à prevalência do modelo
saber, a inculcação de valores ideológicos, ideológico de letramento literário na escola
observada ainda hoje, seja de civismo, de bom brasileira. Como sabemos que as práticas de
comportamento, ou mesmo para o aprendizado da letramento são padronizadas pelas instituições de
língua, como é mais comum em materiais didáticos pelas relações de poder, e que são historicamente
do ensino fundamental nos quais os textos literários situadas, conclui-se que essas práticas foram
aparecem enfaticamente como exemplos de usos moldadas por algumas instituições específicas: a
adequados da língua ou como exemplos de regras escola, a crítica e historiografia literária que
ou aspectos gramáticas que se deseja ensinar. 4) reverberam valores e práticas burguesas de leitura
Foram valorizados nessa história apenas os textos da literatura.
que faziam parte de uma tradição burguesa, letrada, Entretanto, a discussão desenvolvida procurou
cujos valores, gosto e sensibilidade têm como evidenciar que esse modelo de letramento literário
exemplares as “obras” arroladas em suas principais tem falhado no processo de formação de leitores
histórias literárias, deixando de lado, outras formas eficazes dos textos literários. Quase sempre, ao final
de ficção utilizadas ou conhecidas. Assim, a leitura do processo de escolarização, são muitos os
da literatura na escola acontece em um contexto – o estudantes que deixam de ler os textos literários
espaço escolar e com objetivo claramente definido – canônicos, e alguns chegam a demonstrar completo
realizar as tarefas escolares e tornar-se um leitor desprezo pelos mesmos. No diagnóstico dos
literário aquilatado pelo gosto e sensibilidade problemas do ensino de literatura aqui delineado,
burgueses. Ao concluir o Ensino Médio, todo soma-se outro problema: a desconsideração pela
estudante deveria estar apto a ler, compreender e escola de outras práticas de letramento literário.
apreciar as grandes obras da literatura brasileira, dos Como se viu, o letramento patrocinado pela
árcades aos modernos a fim de saber aquilatar os escola é apenas um dentre vários outros
contemporâneos. letramentos. O mesmo se dá com o letramento
Entretanto, não é essa a realidade que literário: os indivíduos podem relacionar-se com o
observamos. ficcional por meio de várias outras práticas, em
Na história do ensino da literatura em nosso contextos diferentes e com objetivos diferentes, tais
país, as práticas de letramento literário construíram- como a internet, as novelas televisivas, as
se segundo uma concepção autônoma, no sentido minisséries, as anedotas, os best-sellers, o cinema, o
aqui apontado. Desse modo, foram colocados de cordel, o rap, o teatro, formas ficcionais de variados
lado ou em segundo plano a leitura do texto em si gêneros com os quais os alunos se relacionam em
mesmo, o que deve pressupor, sempre, a conjunção outros contextos e que são desconsideradas pela
de dois mundos, o do texto e do leitor. Entretanto, escola.

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Modelos de letramento literário e ensino da literatura: problemas e perspectivas 60

Por tratar-se de uma instituição tradicional, Eis algumas considerações iniciais que se
cujas práticas foram moldadas num longo processo podem fazer a propósito da aplicação do termo
histórico e social, é certo que a escola dificilmente letramento aos estudos da literatura. O campo
modificará os valores que subjazem ao ensino da parece fértil e aponta para a necessidade de
literatura. Assim, por constituir um conjunto de verticalização das idéias aqui aventadas..
práticas escolares com a escrita literária, o
letramento literário de orientação autônoma
presente na escola brasileira deve continuar sendo REFERÊNCIAS
praticado.
Entretanto, para que o modelo alcance certa HANSEN, J.A. Reorientações no campo da leitura literária. In:
ABREU, M.; SCHAPOCHNIK, N. Cultura letrada no Brasil:
coerência, é imprescindível que os alunos sejam objetos e práticas. Campinas, SP: mercado de Letras, ALB, São
esclarecidos sobre seu propósito: formar um gosto Paulo : Fapesp, 2005.
literário de molde burguês, formar um leitor capaz KLEIMAN, A. B. Introdução: O que é letramento? Modelos de
de compreender a apreciar a literatura. Contudo, a letramento e as práticas de alfabetização na escola.
aquisição deste gosto não implica, necessariamente, In:_______(org.). Os significados do letramento. São Paulo :
o descarte da leitura ou apreciação de outras formas Mercado de Letras, 2004.
ficcionais, já que o letramento literário está LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira:
histórias e histórias. São Paulo : Ática, 1985.
associado a diferentes domínios da vida e o
letramento escolar é apenas um deles. Além da MOREIRA, M. E.; ZILBERMAN, R. O berço do cânone.
Porto Alegre : Mercado Aberto, 1998.
compreensão sobre os objetivos do ensino de
PAIVA, A et ali (orgs.). Literatura e letramento: espaços,
literatura, é necessário que a escola propicie aos suportes e interfaces – o jogo do livro. Belo Horizonte :
estudantes as habilidades necessárias para atingir Autêntica, 2003.
esse fim, ou seja, que escola patrocine um ensino RAZZINI, M. P. G. O espelho da nação: a Antologia Nacional
das convenções literárias que regem a construção da e ensino do português e de literatura (1838-1971). 2000. 278f.
escrita ficcional, seja nos mais diferentes gêneros Tese (Doutorado) – Instituto de Estudos da Linguagem,
nos quais ela possa se manifestar (lírica, épica, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.
dramática, narrativa etc). Finalmente, propiciar aos ROJO, R. Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de
aula: diferentes modalidades ou gêneros de discurso? In:
alunos estratégias de leitura que possam ao menos SIGNORINI, I (org.). Investigando a relação oral/escrito e as
amenizar o caráter de autonomia do texto, levando- teorias do letramento. Campinas : Mercado de Letras, 2006, p.
os a interagir efetivamente com o texto e produzir 51-74.
para eles sentidos pertinentes que não sejam mera STREET, B.V. Literacy in theory and practice. Cambridge:
reprodução dos sentidos aventados pela crítica e Cambridge University Press, 1984.
pelos autores de livros didáticos. TERZI, S.B. A oralidade e a construção da leitura por crianças
Também importante é o resgate das práticas de de meios iletrados. In: KLEIMAN, A. B. Os significados do
letramento. São Paulo : Mercado de Letras, 2004.
letramento literário efetuadas pelos estudantes em
outros contextos diferentes da escola, que muito ZAPPONE, M. H. Y. Práticas de leitura no Brasil. 2001. 247f.
(Doutorado) – Instituto de Estudos da Linguagem,
podem contribuir para a reflexão sobre o literário, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.
uma vez que, muito embora constituam suportes e
linguagens diversas, podem manter relações
discursivas muito próximas com os textos Recebido: xx/xx/xx
Aceito: xx/xx/xx
canônicos.

Endereço para correspondência: Rua São João, 117 – ap. 1402 - Maringá – Paraná - 87030 -200 – e-mail:
mirianzappone@pop.com.br

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