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Deslizando o social: pluralismos e transformações na sociologia da arte

Daniela Félix C. Martins


Doutoranda em ciências sociais PPGCS/UFBA

A sociologia pode ser caracterizada como o último desenvolvimento de um longo


processo histórico, a “normatividade moderna”. Em linhas gerais, podemos identificar o início
desse processo no século XVI e seu apogeu nos finais do século XIX com a fundação da
sociologia como campo científico autônomo, consolidando-se como ciência na primeira
metade século XX. Como aspectos desse processo podemos destacar: a) a separação entre
ciência e não ciência, apontando o conhecimento científico como um sistema independente.
Isto é, o desenvolvimento de um conhecimento objetivo da realidade com base em
descobertas empíricas em oposição às especulações, e capaz de neutralizar os interesses
políticos e éticos (um conhecimento sem “viés”); b) a distinção entre ciência social e
filosofia; ciência social e religião. Estas distinções são marcadas pelo objetivo de fazer
emergir um conhecimento do social a partir de uma exigência normativa, ou seja, que as
informações sejam passíveis de serem verificadas, refutadas ou discutidas em relação ao
mundo empírico.
O mundo empírico, por sua vez, foi compreendido como um mundo dotado de
“enredo próprio”, caberia ao sociólogo estabelecer suas leis de constituição e
desenvolvimento. As coisas ou fatos sociais eram exemplificações de normas gerais que
reinavam em toda ordem natural. Apreender algo sociologicamente significou estabelecer uma
“ordem das coisas” ou “senso de ordem” num dado domínio - a sociedade.
Consequentemente, a ciência do social produziu um novo idioma para compreender a
sociedade, o idioma causal. Esse encerra a ideia de que, numa estrutura previamente dada, não
acessível de imediato, encontram-se estabelecidos todos os atores sociais e seus papéis/
posições enquanto fatores determinantes dos fenômenos. Esse idioma causal reivindicou um
estatuto explicativo, cuja busca de razões últimas para os fenômenos teve como característica
a necessidade de um tipo de imaginação sociológica que fizesse surgir regularidades,
encadeamentos lógicos inatos, intrísecos aos fatos sociais. Como resultado desse processo
encontramos a negação de uma dignidade ontológica aos fenômenos, em outras palavras, os
fenômenos foram reduzidos a epifenômenos, ilustrações de normas sociais que posicionadas
numa dimensão transcendente aos fenômenos operava como fonte única de determinação.
Desse modo, a sociologia do social objetivava uma “ desmestificação” dos fenômenos.
Nos estudos das artes, essa perspectiva reduziu o fenômeno artístico a mero reflexo de
estruturas sociais ou instâncias de legitimação das relações de dominação. A arte como
reflexo de estruturas, forças ou grupos sociais (ideologia) teve como fundamento a tradição
marxista (Lukacs; Goldmann; Hauser). Essa perspectiva apresentou o artístico como referente
imediato e direto a algo externo ao estético ou à própria arte. Assim, influenciados pelo afã
novecentista de delinear o social como um campo autônomo, através de um método
controlável - normatividade moderna - a arte era apenas um meio para atingir um
conhecimento sobre a sociedade. A sociologia da arte (sob o marco da relação de
exterioridade arte e sociedade) reconheceu em seu objeto, sobretudo, uma representação mais
ou menos fiel do social. Nesse ponto de vista, a arte revelaria uma estrutura ou um conjunto
de interesses de determinados grupos. Em suma, uma forma-espelho na qual o social se
transfiguraria.
Na sociologia da dominação (Bourdieu), não muito distante do estatuto explicativo da
perspectiva reflexionista, a produção artística não é mais considerada como reflexo de uma
classe/grupo/força social, mas como ocupante de uma certa posição no campo de produção
restrita. O campo concebido como um parâmetro coletivo tinha como correspondente uma
equivalência no nível individual, o habitus; sendo este resultante de condições sociais pelo
ajustamento entre estruturas da atividade e disposições incorporadas. Ao retomar o conceito
de legimitidade da sociologia werberiana, pelo qual os valores dominantes se impõem aos
dominados; Bourdieu voltou sua análise para o desvelamento das hierarquias que estruturam o
campo a fim de alcançar uma desmistificação das illusio mantidas pelos atores na sua relação
com a arte, produzindo uma sociologia do social numa versão crítica. Em outras palavras,
além da desautorização prévia dos atores num mundo social, no sentido de não permitir aos
atores a compreensão dessas hierarquizações, o sociólogo produziu um efeito de
culpabilização imediata: toda pessoa dotada de notoriedade torna-se, como dominante, o
fomentador ou o cúmplice de um exercício - ilegítimo aos olhos do sociólogo- de legitimação.
Tanto a abordagem reflexionista, quanto a sociologia da dominação tem a
normatividade moderna como escopo. Pois, em ambos os casos a sociedade foi compreendida
como um domínio indepentente e superior aos demais fenômenos e ao mesmo tempo fonte de
determinação. Compreender sociologicamente a arte seria então um procedimento de
contextualização. Entretanto, a noção de contexto correspondeu à busca desse “senso de
ordem”. O contexto do fenômeno artístico era exterior à experiência artística, pois ele
precisava ser mais amplo e menos específico, isto é, deveria proceder uma universalização
ilimitada negligenciando as singularidades das experiências. Ele deveria equivaler a uma
realidade social, e, para tanto, o contexto não poderia estar no mesmo marco da própria
experiência. O contexto foi compreendido como uma exterioridade transcendente; da qual a
arte simboliza, reflete e representa. Desse modo, a arte não cria concretamente, a arte não age,
a obra não opera.
Uma proposta diferente tem sido esboçada através da influência do pragmatismo na
sociologia e na retomada de formulações sociológicas que até pouco tempo repousavam num
silencioso ostracismo, como o caso da sociologia associativa de Gabriel Tarde. Em linhas
gerais, essas perspectivas abrem espaço para um pluralismo metodológico, ao se oporem à
redução dos fenômenos a um princípio único e normativo, como também à separação
profunda entre ciência e não ciência.
Uma das principais concepções de arte no pragmatismo pode ser encontrada na obra
de John Dewey: as artes não são apenas sinais de uma vida coletiva unificada, mas procedem
uma criação dessa vida. O desenvolvimento dessa perspectiva na sociologia da arte tem como
autor principal Howard Becker. Para esse autor as descrições das interações no mundo da arte
deveria ser a principal preocupação de uma sociologia da arte. Isto é, uma investigação sobre
a arte a partir de uma descrição das ações e interações de que as obras de arte resultam, e não
pela identificação individualizante dos criadores ou caracterização de suas posições numa
estrutura hierarquizada e transcendente à experiência. Em suas descrições o sociólogo norte-
americano colocou em evidência a cooperação das ações nos mundos artísticos
essencialmente múltiplos, tanto a multiplicidade das atividades envolvidas (produção,
execução, recepção), as diversas competências e práticas profissionais e os diferentes tipos
sociais de produtores. Desse modo, Becker distanciou-se da abordagem reflexionista e da
sociologia da dominação, pois não se tratava de desvelar a verdade social por trás das
atividades dos atores, mas destacar as lógicas próprias à formação e à estabilização dos
mundos organizacionais das artes, aproximando a pesquisa sociológica da antropologia, ou
melhor, do trabalho etnográfico.
Outra contribuição de Becker foi sua tentativa de evitar o monopólio explicativo da
arte por uma dada teoria, ou seja, evitar uma atitude metodológica proselitista que
reivindicaria uma “maneira exata” de abordar o fenômeno. Nesse sentido, tomando de
empréstimo o termo deleuziano, o pensamento de Becker é um pensamento par le milieu, no
duplo significado de milieu em francês , tanto o meio e o ambiente, assim como hábitos. Um
pensamento par le milieu tem um primeiro sentido na expressão “através do meio” que
significaria sem definições fundamentais ou sem horizonte ideal. E um segundo sentido “com
o meio”, significando que nenhuma teoria tem o poder de separar algo de seu ambiente.
Pensar é sempre pensar com, pensar através, em outras palavras, pensar não é retirar um
fenômeno do fluxo de sua experiência para fazê-lo refletir uma exterioridade, inversamente,
trata-se de somar-se às singularidades das experiências. Ou como diria John Dewey, a
experiência não é apenas um objeto para a reflexão teórica, mas sim um método, pois todas as
coisas são aquilo que são experienciadas como sendo, o real é aquilo que é imediatamente
experimentado, não há reflexão teórica fora da experiência. Assim, não faz sentido uma
separação entre ciência e não-ciência, o conhecimento científico não é um sistema
independente, antes é mais uma entre tantas outras formas de organização e consumação das
experiências.
A sociologia associativa de Gabriel Tarde se opõe a normatividade do social como
domínio especial da realidade. Para o autor, não haveria motivo para separar o social de outras
associações como os organismos biológicos, átomos ou inovações tecnológicas e artísticas,
pois o social é um príncipio de conexão, isto é, associação e não um domínio. Desse modo, a
questão é saber como a sociedade é mantida, em lugar de usar a sociedade para justificar outra
coisa como apenas sua representação. Para os estudos das artes, seguindo a intuição tardiana
poderíamos dizer que a questão deixa de ser o que é arte ou o que a arte representa
socialmente para tomarmos um caminho alternativo: O que arte faz fazer? Como a arte faz
sociedade? Essas questões serão desenvolvidas a partir dos resultados de pesquisa recente
sobre a realização e permanência da arte da performance.
Palavras-chaves: sociologia associativa; pluralismo metodológico; pragmatismo; sociologia
da arte; arte da performance
Palabras clave: sociología asociativa; pluralismo metodológico; pragmatismo; sociología del
arte; arte de la performance

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