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III.
Etnomusicologia
&
Música
popular
303
fazendo com que o público cante junto ao coro. Inspirado derivado do gospel e partilhado entre o soul e o funk”
pelos coros de igrejas, o diálogo entre uma voz principal e um (STEWART, 2000, P.309).
coro também é característica do funk.
K. Zabumba
H. Efeitos Eletroacústicos: Somente na repetição da terceira estrofe da canção, Seção
1) Reco-Reco Eletrônico B, aparece um toque de zabumba anunciando esta estrofe,
uma vez que se inicia em anacruse. Assim como o triângulo
que manteve o toque do baião na Seção A, a zabumba também
marca a presença, ainda que muito sutilmente, do baião, pois é
2) Baixo Drive um dos instrumentos relacionados a esse estilo (mais uma
sinédoque de gênero).
L. Bebop no Samba
Toda vez que o coro aparece, é acompanhado do som de
dois instrumentos modificados por efeitos eletroacústicos: um
reco-reco de metal e um baixo. Na linha de eventos musicais o
reco-reco com muito delay aparece como ‘sampler’, enquanto
que o baixo de timbre mais encorpado é o ‘baixo drive’. “O
delay é um dos efeitos mais simples, podendo dar vida a uma Na Seção C, na quarta estrofe da canção, Lenine
mixagem desinteressante, incrementar o som de seu reinterpreta “Chiclete com Banana” (Gordurinha e Almira
instrumento, e até mesmo permitir você solar sobre você Castilho, 1959), transformando a linha melódica deste samba
mesmo” (ORFANIDIS, 1996, p.127). O desenvolvimento em um bebop embolado, ou seja, os pequenos intervalos em
técnico dos estúdios ocorreu nos anos 60, mas os efeitos tempo rápido junto à linha diatônica de um baixo de bebop,
eletroacústicos ainda conferem certo ar de modernidade às “encarregado de garantir a continuidade do tempo e da
gravações, ampliando a textura sonora com distorções e tonalidade de base, aliando duas qualidades – força e leveza –
ruídos. para produzir um elemento característico do jazz: o swing”
(GUILLON, 1999, p.11). Enquanto Jackson afirma na letra da
I. Cantiga do Sapo canção “só ponho o bebop no meu samba quando o Tio Sam
tocar o tamborim”, Lenine incorpora o bebop e o funk na sua
canção sem qualquer receio, numa atitude de ‘canibalismo
cultural’ (conceito dos anos 30 que ganhou uma releitura nos
anos 60 pelo Tropicalismo), ou seja, assimilar a música
Na Seção A, o refrão do baião “Cantiga do Sapo” (Jackson estrangeira e reinterpretá-la na cena musical brasileira.
do Pandeiro e Buco do Pandeiro, 1959) é citado por Lenine
com o acompanhamento funk do violão, baixo e bateria, junto M. Voz Onomatopéica
ao som do sampler (reco-reco eletrônico) e de um triângulo,
único a manter a levada de baião da canção original (outra
sinédoque de gênero). Na Seção B há uma colagem da versão
original de Jackson, mas editada em outra seqüência, pois a
voz de Jackson, que chega como primeira informação nesse
trecho da canção de Lenine, é um extrato do meio da canção No Coro da Seção C, Lenine transforma o coro de “O
original, enquanto que as frases subseqüentes (do clarinete e Canto da Ema” (de Alventino Cavalcante, Ayres Viana e João
do acordeom) são a introdução da gravação original. do Vale, gravada por Jackson em 1956) em seu próprio Coro
Final, modificando os intervalos originais da melodia. Além
J. Vocal em Terças disso, ele canta à la James Brown, o grande intérprete do funk,
gemendo, gritando, fazendo pequenos glissandos e sons
onomatopéicos. Através dessas onomatopéias, revemos
também as peripécias rítmicas dos improvisos de Jackson.
IV. CONCLUSÃO
Jackson do Pandeiro foi um visionário quando falava em
samba rock, pois na sua própria época essa mistura de estilos
era considerada uma afronta ao conceito de brasilidade. Alceu
Na Seção B, na repetição da terceira estrofe da canção, um Valença foi um dos primeiros artistas a mesclar ritmos do
vocal é adicionado à voz principal, sempre no intervalo de nordeste brasileiro ao rock e ao blues norte-americanos nos
uma terça maior acima. O vocal construído uma terça acima anos 80, e nos anos 90 vários grupos deram corpo ao
da melodia é uma característica presente em diversos estilos movimento Mangue Beat, após mudanças políticas e
tanto da música popular brasileira, como música sertaneja, sócio-econômicas realizadas no Brasil, como a estabilização
baião, coco e embolada, quanto da música popular da economia e a abertura do mercado nacional para a
norte-americana, neste caso sendo “um estilo de cantar importação. “O uso de um idioma musical estrangeiro neste
caso quebra o estigma de ‘atraso’ associado a certos estilos
REFERÊNCIAS
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& Montreal: The Mass Media Music Scholar’s Press, 2003.
GUILLON, Rolland. Le Hard Be Bop – un style de jazz. Paris :
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JACKSON DO PANDEIRO. Cantiga do Sapo. Jackson do Pandeiro.
LP LPCB37056. Columbia, 1959.
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Copacabana, 1960.
LENINE. Jack Soul Brasileiro. Na Pressão. CD BMG71076-2.
Sony&BMG, 1999.
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samba, bossa nova et musique populaire brésilienne. Paris:
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PINTO, Tiago de Oliveira. ‘Musical difference, competition, and
conflict: the maracatu groups in the Pernambuco carnival, Brazil.’
Latin American Music Review, 17/2: 97-119,1996.
STEWART, Alexander. ‘‘Funky Drummer’: New Orleans, James
Brown and the rhythmic transformation of American popular
music’. Popular Music, 19/3: 293-315, 2000.
desejariam os idealistas, mas devido à produtividade material “moderno” descobrir as preferências do público. Bastante
do coletivo, cujos índices são insistentemente buscados pela sintomáticos neste sentido são os álbuns Samba esquema novo,
indústria como um todo para orientar suas freqüentemente de Jorge Ben (Ben, 1963), e Ellis Regina, de Elis Regina
fracassadas tentativas de construção de sucessos. (Regina, 1963), ambos lançados no mesmo ano de 1963.
Com certeza, muito foi dito sobre a opção preferencial dos O álbum de Ben evidencia a busca de uma alternativa
compositores da MPB por gêneros brasileiros. Isto foi artístico-comercial à bossa nova desde seu título, que
freqüentemente explicado como uma estratégia populista. Ao propunha um novo esquema de samba. Neste sentido, pode
utilizar gêneros nacionais, o artista engajado no projeto ser visto como um diálogo/conflito com a BN, incorporando
nacional-popular estaria supostamente buscando uma alguns de seus elementos enquanto rejeita outros. Um
aproximação em relação ao “povo”. Tais diretrizes foram “esquema novo” para o samba e também para a comunidade
inicialmente lançadas no documento do PCB, a Declaração do samba, uma outra narrativa provocadora de curto-circuito
sobre a política do PCB, de março de 1958. Naquele momento, nas relações já desgastadas entre ambos pela apropriação
o PCB visava promover uma aliança entre as lideranças de branca do samba via bossa nova. De maneira geral, neste
esquerda, as “massas” e os setores tidos como “progressistas” diálogo, o álbum apresenta-se como expressivamente mais
da burguesia nacional. Com o Manifesto do Centro Popular de rítmico, mais dançável, menos delicado, menos lírico e menos
Cultura da União Nacional dos Estudantes (lançado em rico em suas letras, menos rico harmonicamente, mais
outubro de 1962), os ideólogos do CPC davam continuidade à “popular” do que a bossa nova, ao menos segundo os
Declaração no sentido de disciplinar a criação dos músicos parâmetros do período em que se insere.
impondo-lhes o caminho do folclore. Isto porque, no entender Entre as características dessa proposta de Ben figurava com
desses ideólogos, para que fosse possível desenvolver uma destaque um retorno a um gênero “folclórico”, o maracatu.
consciência popular (condição necessária à libertação das Fortemente rítmico, este gênero era então bastante ligado a
“massas”), seria necessário que o artista abdicasse de seus suas fontes populares, pois, ao contrário do samba, que desde
prazeres estéticos “burgueses” e de sua auto-expressão os anos 20 já havia sido apropriado pelas classes médias, o
individualista e se voltasse para o folclore, produto da maracatu era virtualmente ignorado pelos setores dominantes
“verdadeira alma popular”. da sociedade. Tanto a proposta artística quanto a comercial
Esta seria a explicação hegemônica para o uso de gêneros foram plenamente alcançadas, figurando hoje o álbum como o
nacionais pela MPB dos anos 1960. No entanto, seja este uso primeiro em que a MPB já se configurava como tal (Neder,
devido à influência dos ideólogos do CPC ou dos 2007). Este primeiro LP representou um fato novo na época, e,
compositores, o painel oferecido por essas versões é o de uma dois meses após seu lançamento, havia vendido 100 mil
independência quase total desses produtores ou formuladores cópias, estabelecendo uma marca de popularidade. Desta
de políticas em relação ao universo de compradores de discos maneira, o coletivo anônimo respondia decisivamente a uma
e participantes, de maneira geral, no processo de produção pergunta do artista sobre que caminho deveria seguir a
discursiva de um quadro histórico-musical. O que essas nascente MPB, indicando rumos para outros compositores e
análises implicitamente sugerem é um poder de determinação intérpretes.
acentuado para os ideólogos ou compositores, pois não chama Por outro lado, tendo lançado seu primeiro LP em 1961,
a atenção nenhum relato que considerasse a sobrevivência Elis Regina dedicava-se até 1963 exclusivamente a gêneros
material de uma política cultural. Ao contrário, parece haver como o teeny-bop (rockabilly para garotas adolescentes) e o
um consenso de que bastava que se decidissem por uma linha samba-canção de corte antigo, abolerado ou não, passando
política ou estilística para que ela se afirmasse pela música romântica, infanto-juvenil, balada pop e ritmos
comercialmente. Ou melhor, a palavra comércio não se coloca, caribenhos. Ellis Regina conteria aquele que seria o primeiro
e a única coisa que parece em disputa é o grau de poder trabalho de Elis no estilo de samba mais balançado que se
político suficiente para fazer prevalecer uma linha tornaria, anos depois, uma de suas marcas mais intensas, por
artístico-ideológica. Mesmo quando surgem gravações de sua criatividade e virtuosidade. Trata-se de “Silêncio”, música
gêneros e estilos mais populares – que são tradicionalmente de Tulio Paiva.
descritas como obedecendo à “estética do CPC” – isso seria Este é o primeiro samba marcado a ser gravado pela
devido, mais uma vez, exclusivamente às intenções soberanas cantora. Em sua cronologia de gravações, é nesta que ela
da elite cultural, suficientes para impor seus desejos aos começa a encontrar sua voz individual. Elis ousa sair da
grandes conjuntos sociais, invisíveis no processo. marcação cométrica das músicas românticas e juvenis –
Contrapondo-se a esta visão, é meu argumento que a atividade cometricidade que, neste caso, significa recato, restrição
do coletivo anônimo foi determinante para o processo sexual, seguindo um código cultural firmemente implantado.
histórico que viria a constituir a MPB. Trata-se portanto de um estereótipo, criado em grande parte
Um exame das primeiras experiências da MPB, já em pela exploração comercial do “exótico”, reificando
desenvolvimento como tal mas ainda não nomeada (o que foi construções como “o negro sensual”, mas, não obstante,
estudado com detalhe em Neder, 2007), oferece indicações fortemente influente, atuando na codificação de trilhas
nesse sentido. Por volta de 1963, a bossa nova entrava em sonoras e outras situações em que se espera uma comunicação
declínio de popularidade no Brasil apesar de continuar sendo conceitual com a platéia, tais como as apresentações ao vivo
fundamental para artistas e intelectuais, uma referência para a para uma faixa etária adolescente vigiada por uma estrita
atualização da “linguagem” musical (Castro, 1990, p. 370; moral. Não era permitido às mocinhas “de família” que se
Napolitano, 2001, p. 40). Os artistas passam então a retomar dessem a tais ousadias, de cantar com suíngue, a marca de
algo da tradição musical brasileira anterior à bossa nova, cantoras como Elza Soares, por exemplo. Elza estava no pólo
buscando com experiências de síntese entre o “antigo” e o oposto representado por estes dois eixos, o da cometricidade/
contrametricidade, e o do recato/ erotismo. Ao se deslocar ao resultados intuídos a priori por subjetividades colocadas
longo destes eixos em direção ao ponto em que cruzavam-se acima do processo histórico – sejam de compositores, grupos
contrametricidade e erotismo, Elis foi dizendo adeus a toda ideológicos ou agentes da indústria cultural. Esta identidade
uma imagem comercial/artística, e entrando em uma outra, sonora coletiva é o traço produtivo do coletivo anônimo,
ambas mutuamente excludentes. E esta imagem, mais uma constatação incômoda que parte expressiva dos estudos de
vez, era indicada por seu público, cujo traço (cf. Derrida, música popular vêm buscando recalcar.
1976, p. 65) podemos perceber na performance.
Isto porque esta nova imagem não era exatamente a mesma
já disponibilizada pelo imaginário marginal do samba a que
pertencia Elza Soares, e que não era a única imagem
NOTAS
1
procurada pelo público da nascente MPB. Buscava-se uma MPB should not be understood as a genre or style, but rather as a
nova posição – para artistas como Elis e para sua audiência – sociocultural category of music initially produced and consumed
que comunicasse a sensualidade e o ritmo, mas também o primarily by urban, university-educated middle-class types who were,
in general, committed to the defense of "authentic" Brazilian music
estar no mundo nacional e internacional nos anos 60, com
and who opposed military rule.
tudo o que estava ocorrendo nele, musicalmente e na vida tout 2
From the first . . . music hall pieces, popular music has always been
court. Dessa maneira, buscando agradar seu público, Elis
concerned, not so much with reflecting social reality, as with offering
contribuiu para a formação da MPB, ao pesquisar e colaborar ways in which people could enjoy and valorize identities they
para produzir novas posições identitárias ainda não existentes. yearned for or believed themselves to possess.
A 2’0” de “Silêncio” já se começam a notar seus jogos
rítmicos, com “Atenção” entrando bastante depois do tempo. REFERÊNCIAS
Logo a seguir ela inicia um de seus famosos diálogos com a
CASTRO, R. Chega de saudade: a história e as histórias da bossa
banda, em que ela tematiza vocalmente, com improvisos meio nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
cantados, meio falados, os próprios instrumentos ou o ritmo. DERRIDA, J. Of grammatology, trad. G. Spivak, Baltimore: John
Aqui ela explicitamente chama a atenção do ouvinte para o Hopkins University Press, 1976.
ritmo, brincando com ambos: “O samba já tem outra DUNN, C. Resenha de: Araújo, Paulo César de. "Eu não sou
marcação/ E essa é a nova marcação/ Olha só”. Explicita-se cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar”. In:
assim a busca de um novo caminho artístico-comercial para o Luso-Brazilian Review, v. 40. n. 2, pp. 148-50, 2003.
samba, uma procura de atingir os desejos do público. FELD, S. Sound and sentiment: birds, weeping, poetics, and song in
Como vimos, 1963, o ano do lançamento deste álbum, era o Kaluli expression. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,
2a ed., 1990.
ano que Jorge Ben lançava seu Samba esquema novo, e
MCCLARY, S. Feminine endings: music, gender, sexuality.
pode-se pensar aí numa disputa pela posse das novas Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991.
significações musicais do samba; ou seja, uma disputa por NAPOLITANO, M. Seguindo a canção: engajamento político e
quem consegue impor um estilo pessoal que se torne um indústria cultural na MPB – 1959/1969. São Paulo: Anna
gênero. Neste sentido é importante notar a “bossa” Blume/FAPESP, 2001.
Sabababatemtem, muito semelhante ao Sacundingundém de NEDER, Á. O enigma da MPB e a trama das vozes: identidade e
Ben. No entanto, enquanto Ben realmente tinha algo novo a intertextualidade no discurso musical dos anos 60. 2007. 487f.
propor, a “nova marcação” de Elis se resume a um retorno ao Tese (Doutorado) - Departamento de Letras, Pontifícia
velho samba, inclusive em termos de instrumentação. O que Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
SMALL, C. “El musicar: un ritual en el Espacio Social”. In:
ambos álbuns têm em comum, no entanto, é seu visível apelo
Transcultural Music Review 4. Disponível em:
e subordinação às expectativas do público quanto às imagens <http://www.sibetrans.com/trans/trans4/small.htm> [Data de
sonoras nas quais desejava ver-se refletido. acesso: 04/05/2007], 1999.
Certamente não se pode falar aqui de um projeto ______. Music of the common tongue: survival and celebration in
nacional-popular, pois todos estes álbuns iniciais são afro-american music. Nova York: Riverrun, 1987.
inteiramente alheios a discussões políticas ou ideológicas. O
que emerge da audição desses discos antigos é simplesmente a
disputa pelo sucesso e popularidade – que, evidentemente, GRAVAÇÕES
sempre estão ligados a questões identitárias e de significação.
Eles tornam evidente que, apesar das discussões importantes BEN, J. Samba esquema novo. [LP] Philips P 632.161, 1963.
para a cultura nacional que se desenvolviam paralelamente no REGINA, E. Ellis Regina. [LP] CBS 37257, 1963.
âmbito dos CPCs, grandes contingentes da população,
inclusive de classe média (pois havia outros intérpretes de
corte mais popular que Elis na época) desejavam ver-se
representados em gêneros musicais diferentes da BN, e seria
este dado o que determinaria os limites da futura MPB que,
concede-se desde sempre, seriam difusos e imprecisos. Como
ninguém sabia exatamente onde queria chegar, da soma
dessas experiências e dos debates gerados por elas é que foi se
criando a MPB. A história da MPB, assim, reveste-se do
caráter de uma experimentação constante, constituindo um
processo complexo de tentativa e erro de descoberta dos
desejos por identidades sonoras coletivas ao invés de
intensidade fisiológica do som musical, a segunda quer a elementos dependem da atuação física e mental, seja para
inteligibilidade e a imediata intensidade psicológica da estabelecer os limites vocais de cada pessoa, ou para explorar
palavra oral. esses limites através do treino e da experimentação.
Neste sentido, podemos compreender que a voz cantada se
vale dos elementos da fala, mas transcende o objetivo de B. Aspectos relacionados à formação musical
comunicar, chegando à condição primordial da música, que é Estudiosos no campo da educação musical e da
alcançar instâncias cognitivas mais profundas, que atingem etnomusicologia tem enfatizado a importância dos processos
necessariamente a nossa psique pelo dinamismo que nos de transmissão para a configuração das mais diversas
desperta no corpo. manifestações musicais. Para compreender as especificidades
A fim de apresentar uma reflexão sistemática acerca de da música de determinado contexto sociocultural, é
aspectos definidores da estética vocal no canto popular, imprescindível que se investigue as formas particulares de
categorizamos esses parâmetros em quatro pilares principais: ensino e aprendizagem dessa manifestação (NETTL, 1992).
Aspectos fisiológicos; A formação musical do artista; As “Dessa maneira, cada expressão possui características
interferências tecnológicas; Aspectos histórico-culturais. próprias em relação às estratégias, às situações e aos contextos
Vale salientar que as características contidas em cada uma de aprendizagem, constituindo cada um desses elementos de
dessas categorias se configuram a partir do diálogo entre si, acordo com os seus ideais e valores” (FIGUEIRÊDO;
pois estamos tratando da voz, do canto, de música e de cultura, QUEIROZ, 2006).
elementos dinâmicos e que possuem fronteiras permeáveis. É A diversidade dos tipos de canto existentes estabelece
preciso também considerar que existem outros aspectos formas variadas de transmissão de técnicas e estratégias de
importantes a serem considerados na constituição estética da emissão vocal. Considerando as disparidades entre as formas
forma de cantar de um intérprete, como aspectos semiológicos, de cantar de uma nação para outra, até as diferenças
fonéticos, lingüísticos, psicológicos, cognitivos, etc., mas não identificadas dentro de um mesmo país, como no caso da
seria possível de serem apresentados neste artigo. Portanto, cultura brasileira, que numa mesma região apresenta distintos
restringimos as reflexões aqui apresentadas nesses quatro sotaques musicais, a formação musical do intérprete mostra-se
pilares em destaque, que saltam aos olhos nas análises da como fator determinante na configuração da estética vocal
estética vocal. desse artista.
Na música erudita é muito mais claro definir qual escola de
A. Aspectos fisiológicos canto que o intérprete desenvolveu sua prática, haja vista que
A qualidade vocal (timbre) pode ser considerada a unidade existem as características próprias de cada período da música,
primária de reconhecimento vocal de um indivíduo. Segundo ou escolas de canto, pois, já estão estabelecidos os “padrões”
Marsola e Baê (2001, p. 41) o timbre é determinado por vocais do canto lírico, obviamente, com as devidas
fatores complexos, ligados aos mecanismos fisiológicos dos adequações. Assim, sendo a técnica vocal única para cada
aparelhos fonador e ressonador, como “as estruturas escola fica muito mais fácil descrever as características vocais
anatômicas dos órgãos fonadores, as capacidades de de um cantor especialista em música barroca, em música
ressonância, o número de ressonância dos harmônicos que renascentista, etc. do que enquadrar as características de um
acompanham os sons e que são determinados pelas dimensões cantor de música popular. (PICCOLO, 2006).
das pregas vocais”. A definição da formação musical do intérprete/cantor da
Porém, no processo de construção da estética vocal, outros música popular não é tão previsível e tradicional como no
fatores atuam na qualidade vocal, dando-lhe atributos que são canto lírico. Geralmente o canto popular é associado à
sobrepostos aos aspectos fisiológicos. Compreende-se essas espontaneidade, ao talento, dom, ou instinto natural. Muitos
características como os artifícios que cada intérprete utiliza desses cantores são autodidatas, ou foram influenciados por
para enfatizar sua identidade vocal, elementos que surgem da familiares. Porém, existe outra categoria de intérpretes da
interação das condições e limites fisiológicos com os aspectos música popular que associam essa espontaneidade com o
culturais que, ao longo da carreira do(a) cantor(a), vão sendo estudo da técnica vocal, geralmente a técnica tradicional
incorporados à sua estética vocal. voltada ao canto lírico, adequando e adaptando-a ao canto
Um artista, ao consolidar-se no cenário musical de um popular.
determinado contexto (seja uma cidade, um estado, uma Segundo Abreu (2008 p. 124) os preparadores
região, um país etc.), constrói em torno de sua imagem um especializados na técnica vocal e interpretativa do canto
universo particular repleto de informações, de valores, de popular começaram a surgir na segunda metade do século XX,
simbolismos e de representações, que o caracteriza e o define. primordialmente pela busca do próprio intérprete em
Aspectos que misturam a música com questões diversas aperfeiçoar sua técnica e, consequentemente, fortalecer sua
relacionadas ao que diz respeito à sua personalidade, aos performance em geral. Além disso, as exigências
hábitos, às características pessoais psicológicas e físicas, à mercadológicas e os diferentes parâmetros valorados na
religiosidade, ao posicionamento político e ideológico, aos prática do canto foram fundamentais para a definição de
costumes culturais, a um determinado lugar, entre tantos conceitos e aspectos técnicos e interpretativos voltados para a
outros (BLACKING, 1995, LANDA, 2004; MERRIAM, 1964; prática do canto popular
MYERS, 1992; NETTL, 1983). Todavia, mesmo com alguns aspectos estabelecidos e
Atrelados à qualidade vocal estão inúmeros aspectos definidos para a formação do intérprete da música popular, a
musicais relacionados com as questões fisiológicas, entre eles, grande maioria dos cantores estabelece a sua técnica e
entonação, altura, tessitura, extensão, intensidade, impostação, estratégia de interpretação a partir de uma vivência cultural
respiração, apoio, articulação, dicção, etc. Todos esses ampla, em que as experiências, influências musicais, entre
outros parâmetros, servem de base para a constituição de sua da maneira de falar do contexto em que o intérprete está
identidade vocal. inserido. Elementos do sotaque, como impostações,
entonações, nasalidade, guturalidade, acentuações, dicções,
C. Aspectos relacionados ao universo tecnológico da inflexões, entre outros, são incorporados no canto, entretanto,
prática do cantor esses elementos, geralmente, aparecem na voz cantada de
Junto com as inovações oferecidas pelos novos formatos forma mais sutil que na fala, pois é preciso que o cantor
de gravação em estúdio vieram também as novas respeite a forma e a estrutura da música, principalmente em
possibilidades oferecidas pela edição de áudio, que visam a relação à melodia e ao ritmo. Assim, os aspectos fisiológicos
correção dos possíveis “erros” cometidos pelos intérpretes. são ajustados pelas referências sonoras da fala e do canto,
Essas ferramentas, que têm como objetivo aproximar o que foi próprios de um lugar3.
gravado de certa “perfeição”, dentro dos parâmetros adotados De acordo com os princípios etnomusicológicos, o contexto
pelo estúdio, tem sido cada vez mais explorado, tanto que, em em que é realizada uma manifestação musical interfere
alguns casos, a voz gravada pode se distanciar bastante da diretamente no resultado sonoro obtido, da mesma forma que
ouvida em uma apresentação ao vivo. Os recursos utilizados a cultura sofre a influencia direta da música (MERRIAM,
vão desde a incorporação de efeitos na voz até a correção de 1964). Ainda mais quando tratamos de performance vocal,
desafinações. pois os fatores extrínsecos à música interferem nas reações
Situando-nos no âmbito da música brasileira popular atual emocionais de quem canta, conseqüentemente, a qualidade
(com o foco na música vocal), nesse início do século XXI vocal se apresentará de formas diferentes em cada lugar ou
outras novidades são experimentadas pelos situação.
intérpretes/cantores e por grupos musicais que buscam novas As diversas maneiras de cantar, bem como os distintos
sonoridades: é crescente a presença dos computadores nos perfis dos intérpretes são traçados primordialmente pelas
palcos; dos samplers utilizados nas gravações e nos shows; os escolhas conscientes e/ou intuitivas do cantor em relação à
DJs estão cada vez mais fazendo parte dos grupos musicais; sua carreira. Essas escolhas estão relacionadas com a
efeitos adicionados à voz, obtidos em equipamentos formação musical do, que por sua vez, é determinada pelo
semelhantes aos da guitarra, dispondo de uma infinidade de contexto sociocultural em que ele faz parte. O convívio
alterações no timbre e que são acionados muitas vezes pelos familiar, considerando o nível de aproximação com universo
próprios intérpretes; vários microfones para apenas uma voz, musical, o contexto escolar, o contato com o ensino formal, a
sendo que cada um desempenha um papel diferente (timbres e formação a partir da própria prática, etc., todas essas
efeitos diferentes); entre outros recursos, apresentam-se como condições dependem da interferência cultural.
indicadores para novas transformações da estética vocal na Outro fator que é também importante para a determinação
música popular (ABREU, 2001, p. 109) das características estéticas, é o momento histórico em que
Deve ser levada em consideração para a compreensão está inserido o intérprete. Numa análise breve da música
dessa estética vocal contemporânea que ainda se delineia, a popular brasileira do século XX, e nos atendo especificamente
globalização que interage diretamente com os recursos à estética vocal do samba, percebemos que a forma de cantar
tecnológicos, por meio da internet principalmente. Estamos do período de surgimento do samba (1917/1940) possui
vivenciando um momento de profundas transformações no elementos distintos da estética do período de renovação do
mundo da música, o fácil acesso aos mais diversos tipos de samba (1950/60). O primeiro privilegiava as vozes masculinas,
música do mundo nos proporciona uma ampliação do e exigia desses intérpretes que a voz fosse emitida com grande
conhecimento estético, influencia compositores, intérpretes, potência, geralmente, em regiões agudas de sua tessitura.
estilos musicais se fundem, re-significando, assim, os valores Também era comum, um exagero na pronúncia de fonemas
que envolvem todos os setores ligados à música. com a letra “R”, o uso de portamentos, uso da impostação
pomposa e eloqüente, entre outros elementos.
D. Aspectos histórico-culturais
Já no samba que se estabelece posteriormente, as
As outras três categorias apresentadas neste artigo, como características acompanham as transformações da própria
fundamentais para a constituição da estética vocal de um forma de falar, de articular, adotando também umas das
intérprete, são influenciados diretamente pelos aspectos características marcantes desse período do samba, conhecido
histórico-culturais, ou seja, todos os elementos constituintes como samba de Estácio (SANDRONI, 2001). Este elemento é
da estética vocal são definidos a partir de suas inter-relações a “malandragem”, que está contida tanto na forma
com a cultura. composicional e na performance do intérprete como também,
O canto popular brasileiro possui como uma de suas na estética vocal. Esse aspecto tem sido analisado por muitos
maiores características a aproximação com a voz falada, estudiosos, dentre eles a autora Cláudia Neiva de Matos (2001)
tomando como referência, as qualidades vocais da que chama esse elemento tão característico do samba como
comunicação verbal, próprias de uma determinada cultura. dicções malandras do samba, ou seja, ela afirma que essas as
Isto seria o que Tatit (1996) chama de co-relação entre letra e características da fala e do próprio comportamento do
melodia, causando um efeito de naturalidade, verdade sambista são incorporados pela estética vocal.
enunciativa que repousa na aproximação entre a fala e o canto, Boa parte das transformações ocorridas na constituição da
ou seja, a articulação lingüística e a continuidade melódica estética do canto popular, deu-se também, pelas inovações
são neutralizadas pelo gesto oral do cancionista. tecnológicas, que ao longo do tempo proporcionou novas
Essa aproximação do canto com a fala faz com que possibilidades ao cantor. Tomando novamente, a música do
elementos próprios do gesto oral sejam transpostos para a voz início do século XX como exemplo, e retomando a condição
cantada, evidenciando assim, algumas características próprias dos intérpretes, que cantavam utilizando grande potência
vocal, explorando sua voz em registros agudos de sua tessitura, Musical, 2006, João Pessoa. Transmissão musical no contexto
podemos apontar como causa dessa exigência, as condições urbano de João Pessoa, 2006.
do aparato tecnológico das gravações de áudio da época, que LIMA, Sônia Albano (Org.). Performance e interpretação musical:
eram precárias e que, se a voz do cantor não incorporasse uma prática interdisciplinar. São Paulo: Musa Editora, 2006.
LANDA, Henrique Cámara. Etnomusicologia. Madri: ICCMU, 2004.
essas exigências, corria-se o risco de não obter sucesso nas (Colección Música Hispana).
gravações, pois, para que a captação fosse realizada, era MARSOLA, Mônica; BAÊ, Tutti. Canto uma expressão: princípios
necessário, certo “esforço” vocal por parte do intérprete. básicos da técnica vocal. São Paulo: Irmãos Vitale, 2001.
Com o passar dos anos, com as novas tecnologias de áudio MATOS, Cláudia Neiva de. Dicções malandras do samba. In:
sendo capaz de captar os sons cada vez mais sutis, como MATOS, Cláudia Neiva de; TRAVASSOS, Elizabeth;
sussurros, respirações, e a voz com o mínimo possível de MEDEIROS, Fernanda T. de. (Org.). Ao encontro da palavra
intensidade, a estética vocal brasileira transforma-se cantada: poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.
gradativamente, possibilitando que a voz do intérprete seja p.61-76.
MERRIAM, Alan P. The anthropology of music. Evanston:
ouvida com qualidade, assim, ele passa a incorporar novos
Northwester University Press, 1964.
elementos à sua interpretação. MYERS, Helen (Ed.). Ethnomusicology: an introduction. New York:
W.W. Norton e Company, 1992.
IV. CONCLUSÃO NETTL, Bruno. The study of ethnomusicology: twenty-nine issues
and concepts. Urbana, Illinois: University of Illinois Press, 1983.
A partir das reflexões e das discussões realizadas ao longo NETTL, Bruno. Ethnomusicology and the teaching of world music.
do texto foi possível concluir que ao expressar-se através do In: LEES, Heath. Music education: sharing musics of the world.
canto, o intérprete revela uma série de características Seoul: ISME, 1992.
intrínsecas à sua personalidade musical. Características que se PICCOLO, Adriana Noronha. O canto popular brasileiro: uma
constituem ao longo do tempo pelo entrelaçamento de análise acústica e interpretativa. Dissertação de Mestrado
experiências vividas no campo musical e fora dele. [Universidade Federal do Rio de Janeiro – Centro de Letras e Artes.
Escola de Música]. 2006.
As impressões sonoras resultantes desse entrelaçamento
TAGG, Philip. Analysing popular music: theory, method and practice,
apresentam-se como aspectos indicadores para a percepção de popular music, 2, Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
um estilo vocal próprio, ou seja, o cantor(a) ao interpretar
diversas músicas utiliza alguns recursos vocais recorrentes,
resultando em um conjunto de elementos interpretativos
fundamentais para a configuração de sua estética vocal.
Ao mesclar aspectos fisiológicos, com a formação musical,
o universo tecnológico atual e as dimensões culturais e
históricas que marcam a sua trajetória de vida, o cantor
estabelece os parâmetros fundamentais que definem a sua
performance e, consequentemente, a sua identidade musical.
Assim, trabalhar e compreender os parâmetros relacionados
aos quatro eixos mencionados anteriormente, adequando-os as
diferentes realidades interpretativas que constituem a música
popular, pode possibilitar ao interprete entender e definir os
aspectos fundamentais que caracterizam a sua prática como
cantor e naturalmente a sua identidade vocal nesse universo
musical.
REFERÊNCIAS
ABREU, Felipe. A questão da técnica vocal: ou a busca da harmonia
entre música e palavra. In: MATOS, Cláudia Neiva de;
MEDEIROS, Fernanda de; TRAVASSOS, Elizabeth (Org.). Ao
encontro da palavra cantada. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.
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of Washington Press, 1995.
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Janeiro: Enelivros, 2001.
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Instituto Nacional do Livro, 1975.
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Cláudia Neiva de; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS,
Fernanda Teixeira (Org.). Ao encontro da palavra cantada. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2001. p. 207-216.
FIGUEIRÊDO, Anne Raelly P. ; QUEIROZ, Luis Ricardo S.
Transmissão musical no contexto urbano de João Pessoa. In: XV
Encontro Anual da ABEM - Associação Brasileira de Educação
nombre de Dios comienzo/ Porque es bueno trabajar/ en el Sem invocar-se um conceito de tradição nostálgica
nombre de María/ sin pecado original / Panalivio malivio estagnada, nem se valer de forças da criatividade que
san… A música e a letra, que no vídeo aparece em andamento descontextualizem práticas culturais que dão sentido social à
de festejo13, foi divulgada pela cantora peruana Eva Ayllón vida em comunidade, desde uma dialética histórico-
(AYLLÓN, 2004)14. materialista pode se perceber diversos processos
Numa primeira análise, achamos a canção como uma socioculturais em interação. Ao falar da estruturação dos
releitura desistoricizada de uma das danças que compõem a espetáculos de música “negra”, Vásquez (1982) aponta quatro
Danza de negritos de El Carmen, cidade situada na costa aspectos: o imperativo da autenticidade no discurso do
central peruana, aproximadamente a quatro horas da capital15. nacionalismo burguês por meio do folclore como método para
Esta prática artístico-religiosa encontrada em diversas regiões divulgar a cultura do bom selvagem21; o processo arbitrário
do Perú (não é exclusividade dos afro-peruanos) é uma (por cada pessoa uma versão) de reconstruções de um passado
espécie de suíte composta por vinte danças16. Rosa Elena musical baseado na tradição oral; o impulso das necessidades
Vásquez (1982), autora da investigação, detalha também a de mercado e as necessidades de criação (individual ou
existência de uma ordem para cada peça, sendo En nombre de coletiva) diferenciando as sínteses (produções baseadas no
Dios comienzo a primeira delas. Compilada em 1976, a conhecimento crítico das práticas culturais) das
Danza... se dá no contexto das festividades natalinas e a pseudo-sínteses (baseadas no conhecimento acrítico e
coreografia, o percurso, os instrumentos e o figurino estão alienadas por influências estrangeiras); a recuperação de
detalhados, especificados e regulamentados (Idem : p.70-75). instrumentos da época (associados à população
A letra inteira da música contém outros excertos que afro-descendente) e a incorporação de outros instrumentos
também pertencem à Danza de negritos, como o panalivio e o pertencentes às africanidades continentais influentes (leia-se
zancudito (Idem :p.105, 118). Dessa maneira, a releitura de Brasil e Cuba).
Eva Ayllón nos parece corresponder mais ao tipo das formas Paul Gilroy (2001), na sua proposta de dupla consciência
potpourris, medley ou fantasia17, que reminiscências musicais para entender a diáspora africana nas idas e vindas dos navios
de uma prática cultural devocional. do Atlântico, adverte sobre duas variedades de essencialismo
No trabalho de Heidi Feldman, no capítulo dedicado ao da cultura expressiva, em particular na música: uma
grupo Perú Negro e sua análise sobre o festejo e o landó18, ontológica (caracterizada por um pan-africanismo bruto que
como arquétipos da música afro-peruana, se levantam duas anatematiza o mundo profano da cultura popular negra) e
questões: “What factors molded the group’s re-Africanized – outra estratégica (que substitui a anterior noção por uma
yet still criollo – performances of Black Peruvian identity? alternativa libertária onde todas as expressões culturais negras
How did Peru Negro earn the ability to dictate folcloric canon constituem a principal consideração estética).
of Afro-peruvian repertoire and style?”19 (FELDMAN, No caso que exemplificou nossa abordagem (o vídeo
2007 :p.131). institucional de Peru Negro) e em particular na letra da música
Ambas as perguntas visam entender como um contexto Jolgorio de Eva, parece apresentar-se o essencialismo
político determinado (no Peru, a ditadura militar de esquerda, estratégico em sua forma homogeneizadora, dissolvendo
em 1968) teria favorecido econômica e politicamente ao geografias, etnias, processos históricos, sociais, econômicos,
grupo fazendo dele uma espécie de legitimador das músicas e políticos, tornando a cronologia horizontal num instante
as coreografias afro-peruanas, e estendendo seu “reinado” até revivificado de negritude “natural”:
início da década de 1990. Profissionalmente trabalhando nos “O poder da música no desenvolvimento das lutas negras
Estados Unidos, hoje estes cultural ambassadors of black pela comunicação de informações, organização da consciência
Peru20 continuam desde patamares internacionais e teste ou articulação das formas de subjetividade exigidas
representando uma estética afro-peruana fundamentada em pela atuação política, seja individual ou coletiva, defensiva ou
critérios coreográficos e musicais ao estilo dos music hall e os transformadora, exige atenção tanto aos atributos formais
variety show. dessa cultura expressiva como à sua base moral distintiva.”
É provável que tais critérios coreográficos tenham se (GILROY, 2001: p.93-94).
originado no momento em que as populações com Nesse sentido, o vídeo institucional de Perú Negro
manifestações afro-peruanas espontâneas experimentavam a descreve o caráter expressivo da cultura afro-peruana ou
aparição da comunicação massiva (rádio e tv). Nessa fase, a estamos falando de um estilo cultural afro-peruano? A
partir de escassos agentes culturais que ainda pudessem diferença entre representação e significação contrai sentido
“recriar” certo estilo dito afro-peruano, sistematizaram-se pleno quando tentamos desdobrar a questão acima levantada.
numa ótica performática cujo palco agora era as casas Em primeiro lugar, representar diz respeito a uma
discográficas e as emissoras de rádio (LLORÉNS, 1983; interpretação passiva em termos de finalidade (seja estética,
VASQUEZ, 1982; LEON, 2003). política etc.). Já significar compreende uma relação
Hoje parece impossível entender algum aspecto da nossa interdependente cuja interpretação não pode ser passiva pelo
cultura sem considerar a importância dos meios de próprio contexto do sentido. Ambos os planos da performance
comunicação e seu papel no manejo dos conteúdos envolvem eficazmente aspectos formais musicais,
informativos, culturais e de entretenimento, adquirindo um coreográficos e dramatúrgicos, sendo a linha divisória tênue.
peso significativo, “pois constituem uma esfera pública de Fora das particularidades das tradições diaspóricas, a
consensos, de sentimentos e de gosto comum. [...] Estamos cultura popular de massa, como tal, é uma arena
numa sociedade onde a estetização passou a definir nossas profundamente mítica onde jogamos com as identificações de
relações com a realidade” (HERMANN, 2005 :p.49) nós mesmos. “A maneira de compreender o significante
flutuante na cultura negra popular é hoje, conseqüentemente, 6. Refere-se ao poeta, filósofo, e político senegalês, Leopold Senghor
insatisfatória” (HALL, 2004, p.261). (1906-2001). Criou – junto a Aimé Césaire e Léon Damas– o
conceito de Négritude, movimento intelectual que procurou afirmar e
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS valorizar o que eles acreditavam distintivo da África: seus valores,
suas características e sua estética. Cf. SENGHOR, 1961.
Um caminho possível para entender melhor as discussões 7. Titulo do livro escrito por Santa Cruz em 1973, que teve ampla
que permeiam este gênero musical (como tradição versus repercussão no Peru.
modernidade, valor comercial versus valor artístico) seria 8. Com novas linguagens nos referimos principalmente às
colocá-lo no lugar das potencialidades, das possibilidades, por instrumentações fora dos conjuntos típicos com violão, cajón, e
meio de uma lógica de junção. queixada de burro (percutida). No disco Tarimba Negra, Casaverde
Talvez isto seja possível transcendendo certos interpreta o violão sob orquestração quase sinfônica de Ricardo
monotematismos22 que favoreçam uma poiésis23 desprovida de Miralles.
arcabouços ideológicos tais como a denominação ambígua de 9. Relativo ao negro. Semelhante à relação entre as palavras
música negra. Ou então falar-se-ia de uma poiésis da cultura “branco” e “branquelo”.
afro-peruana entendida nas características (individuais e 10. Irmã de Nicomedes Santa Cruz. Sua preocupação contribuiu
grupais) que permeiem um jeito do fazer artístico. principalmente para o campo da coreografia da música afro-peruana.
Sem entrar em definições sobre gênero musical, nem 11. Vásquez faz menção (mais de vinte anos atrás) a danças
colocando camisas de força com estilos de interpretação pseudo-rituais onde se nota a influência dos balés de Senegal, Guiné
definitivos, a música afro-peruana parece prosseguir ou Cuba. Cf. 1982: p.46.
paralelamente à cultura massiva (em termos adornianos) e, 12. Se fossemos resumir os conceitos extraídos da encenação numa
recentemente, dentro de mercados globais apresentados como dicotomia simplista, esta ficaria entre o negro oprimido e o negro
feliz.
não massivos. Tal é o caso da world music24, onde as
influências interculturais dificilmente se ouvem: ora porque 13. Ritmo afro-peruano. Embora não exista uma única definição,
podemos dizer que o festejo tem geralmente a justaposição de
são tecnologicamente misturadas, ora porque são
compassos de 2/4 e 6/8 (semínima=110 bpm) e é utilizado como
abafadas-homogeneizadas. manifestação de alegria exuberante.
Na retórica aristotélica se designava pelo termo ethos a
14. A artista parece inspirada pelas pesquisas acadêmicas. Além da
construção de uma imagem de si, aos traços de caráter música comentada, sua mais recente produção leva o nome de
destinados a garantir o sucesso de um discurso. Ao falar de Quimba, fá, malambo, ñeque, o mesmo que o livro do prolífico
música afro-peruana hoje nos referimos tanto a práticas lingüista em temas afro-descendentes no Perú, Fernando Romero,
culturais ancestrais ou tradicionais como também às escrito em 1988.
reconstruções ou reminiscências que assinalam um jeito 15. Desde seu nascimento, El Carmen possui uma considerável
“distinto” de cantar, dançar, falar ou tocar um instrumento. população negra.
Neste ethos podemos achar razões históricas, como também 16. Sendo que o número destas danças varia entre as regiões que a
motivos para redefinir constantemente nossa noção do praticam.
afro-peruano. 17. Arranjos que juntam na mesma música diversas peças
Cabe finalmente perguntar se quando o modernismo deu o amplamente conhecidas.
pontapé inicial à revivificação da afro-peruanidade, o 18. Ritmo afro-peruano. Podemos dizer que o landó decorre em
pós-modernismo se encarregou de codificá-lo e transmiti-lo compassos de 6/8 ou 12/8 (semínima=60 bpm) e é sinônimo de
em informação de entretenimento. Dessa forma, dos quase sensualidade.
apagados ecos musicais de uma paisagem sonora perdida no 19. “Que fatores moldaram as re-africanizadas –ainda crioulas–
trânsito entre a economia feudal e a de mercado, hoje a performances ¬do grupo de identidade negra peruana? Como fez o
música afro-peruana soa a todo volume e cotiza bem no grupo Peru Negro para ganhar a habilidade de ditar o cânone
folclórico do repertório e estilo afro-peruano?”. Tradução livre.
mercado de especiarias exóticas.
Nem sempre acontece que as culturas expressivas 20. Título que acompanha ao nome do grupo no sítio oficial na
Internet. Embaixadores culturais do Peru Negro (Tradução livre).
difundidas do Peru negro sejam as mesmas culturas
expressivas do negro do Peru. 21. Idealização bucólica e naïf dos indígenas americanos que
coincidiu com o período das grandes cruzadas colonizadoras do séc.
XVI.
NOTAS
22. Grande parte da produção discográfica de música afro-peruana se
1. Disponível em: reduz à exposição de dois ou três ritmos. A diferença é mais clara
<http://www.youtube.com/watch?v=YXe8JiarpXU> Acesso em: ainda ao comparar qualquer disco de Nicomedes Santa Cruz com as
25/06/2009; <http://www.youtube.com/watch?v=zzr1ZbcyKfE> produções recentes (com poucas exceções). O fenômeno tem muitas
Acesso em: 25/06/2009 leituras: ora simplificação/priorização (baseado em critérios
2. As tradições musicais dos negros da costa do Peru. Tradução livre. mercadológicos), ora entendido como esquecimento, ou até morte
3. No artigo utilizamos o termo do espanhol criollo, segundo o espontânea nos berços da cultura afro-peruana. Cf. VASQUEZ,
Diccionario de la R.A.E., “dicho de un hijo y, en general, de un 1982 :p.9-11.
descendiente de padres europeos: Nacido en los antiguos territorios 23. Termos da estética aristotélica, que discutiam a poesia em suas
españoles de América y en algunas colonias europeas de dicho relações com a dança, a música e artes visuais principalmente.
continente.” Nessas comparações, Aristóteles procurava identificar uma forma
4. “Se aplaude e exibe ao Peru negro mas se nega e marginaliza artística comum na produção e na criação das artes. Assim, entendia
racialmente ao negro do Peru”. Tradução livre. a poética como a técnica de criar ¬– lógica e racionalmente – objetos
5. (1925-1992) Poeta, músico e jornalista. Um dos maiores cuja existência depende do seu criador (pois é um produto). Já
estudiosos e divulgadores da tradição afro-peruana. Cf. LOPES, 2004 poiésis seria uma espécie de ação que através da poética se fabrica
(torna-se evidente, expressa). Cf. HALLIWELL, 1998.
24. O termo apareceu em meados de 1950, nos primórdios da González Paraíso; Juan Luis Dammert E. Lima: Pontificia
Etnomusicologia, em oposição à tendência nos centros de ensino Universidad Católica del Perú, 2006. No prelo
musical de assumir como sinônimo de música a arte musical VÁSQUEZ RODRÍGUEZ, Rosa Elena. A 25 años de una pregunta
européia ocidental. Assim, surgiu o interesse por músicas vindas impertinente. In: Casa de las Américas, Boletín Música, #19-20.
principalmente da tradição oral de países africanos e sul-americanos, La Habana: 2007,p. 15-25
entre outros. Já fora dos muros da academia, no mundo do comércio, ______________________________. La práctica musical de la
esta noção de resgate musical em países do “terceiro mundo” foi población negra en Perú: la danza de los negritos de El Carmen.
capitalizada rapidamente, resultando num negócio em parte La Habana: Casa de las Américas, 1982.
legitimado por pesquisas acadêmicas. Surgiram então os sons
primitivos, exóticos, tribais, étnicos, folclóricos, tradicionais e
internacionais. Cf. FELD, 2000.
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por la identidad: Resistencia cultural afroperuana. México: Ed.
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janeiro, 2009.
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FELD, Steven. A Sweet Lullaby for World Music. Public Culture -
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FELDMAN, Heidi C. Black Rhythms of Peru: Reviving African
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HALLIWELL, Stephen. Aristotle’s poetics. University of Chicago
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LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São
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TOMPKINS, William David. Las tradiciones musicales de los
negros de la costa del Perú. Tradução para o espanhol Raquel
em que o pesquisador tem experiência êmica intensa, estando vantajoso. Em ambos os casos, as informações essenciais são
muito familiarizado com seu objeto, especialmente quando se idade e sexo. Solicitar dados como nacionalidade,
trata de um artista ou um gênero musical específico. A naturalidade e classe social pode ser um complicador. Caso
familiaridade com o material é benéfica, por um lado, por estes dados sejam necessários, deve haver uma seleção prévia
permitir a elaboração de questões com maior grau de de voluntários que se encaixem no perfil da pesquisa. Este foi
detalhamento e sutileza, mas, por outro, naturaliza o o procedimento adotado em relação aos não fãs de black metal.
estranhamento em relação às práticas relativas ao objeto de Para que suas respostas tivessem relevância, este grupo teria
análise, eliminando a possibilidade de questionamentos sobre que pertencer às mesmas camadas sociais dos fãs de black
aspectos que o pesquisador pode considerar “óbvios”. metal no Rio de Janeiro, com o mesmo nível de escolaridade,
Segundo o musicólogo norte-americano Robert Walser (2003), de modo que as codificações provenientes das práticas sociais
julgamentos sobre música nunca podem ser desprezados como mais amplas fossem razoavelmente compartilhadas entre os
subjetivos, nem celebrados como objetivos, uma vez que dois grupos. A grande maioria de fãs de black metal do Rio
todos os sujeitos dentro de uma cultura e toda compreensão de Janeiro concentra-se nas camadas médias da sociedade,
têm natureza intersubjetiva. Do mesmo modo, não há residindo nas zonas norte e oeste da cidade e na Baixada
objetividade absoluta. Assim, é necessário que se trabalhe o Fluminense, com ensino médio completo ou nível
tempo todo com interpretações, com o auxílio do senso crítico, universitário (completo ou incompleto).
informação prévia e abertura cultural (WALSER, 2003, p.
23).O teste de recepção realizado constituiu-se de itens do III. ANÁLISE DAS RESPOSTAS DOS
código musical de peças e trechos de peças compostas e TESTES DE RECEPÇÃO
executadas por bandas de black metal do Rio de Janeiro e da
Através dos supracitados testes, verificou-se que o campo
Noruega. Ao todo, os trechos somaram 20 minutos de música,
de associação paramusical revelado por fãs de black metal era
com intervalo entre cada um. Não havia identificação (título
similar àquele dos não fãs quando os trechos musicais
de música, nome do CD ou artista) de modo que a audição
apresentados continham estruturas musicais como andamento
acontecesse com o mínimo possível de expectativas anteriores.
rápido, mudanças abruptas de seções contrastantes, guitarras
O ideal de um teste é que seja feito por um grande número de
distorcidas em alto volume, vocal gutural nos registros médio
pessoas, anônima e concomitantemente, em um ambiente sem
e agudo, percussão com função textural, blast beats e
ruídos externos e excelente acústica interna. Entretanto, não
mixagem desafiadora das relações figura/fundo,
foi possível agrupar vários fãs de black metal em um mesmo
frequentemente referidas através de expressões relacionadas
ambiente, ao mesmo tempo, assim, o método empregado
com agressividade, desconforto e tensão. Estas estruturas
diferiu um pouco do aplicado por Tagg, conforme descrito
podem ser entendidas como codificadas a partir do que o
acima. Foram realizados dois testes-piloto: no primeiro, seis
musicólogo Gino Stefani (1987) denomina de códigos gerais,
não fãs realizaram o teste em um mesmo ambiente; no
sendo compartilhados entre os dois grupos. Este nível de
segundo, um único fã realizou o teste na presença do
códigos refere-se às associações produzidas a partir da
pesquisador. O grupo de não fãs respondeu o que havia sido
constituição biológica e parâmetros desenvolvidos através da
pedido; o fã solitário, entretanto, pareceu pouco confortável e
experiência da vida na Terra, isto é, aos processos
não cumpriu as solicitações. Deste modo, esta abordagem foi
neurológicos que seres humanos realizam simplesmente
abandonada, assim como a possibilidade de deixar o teste
porque são humanos, partindo da experiência cotidiana, tanto
disponível na internet, uma vez que nem todos os voluntários
natural quanto cultural (STEFANI, 1987, p. 11). Tagg (1999,
tinham acesso à banda larga. Considerando as limitações
p. 17) designa-os referenciais “bio-acústicos”.
apresentadas, optou-se por uma audição não controlada:
Por outro lado, o teste com a peça que continha estruturas
voluntários receberam um CD com o teste de recepção e
musicais codificadas mais especificamente dentro do sistema
ficaram livres para ouvir de acordo com sua disponibilidade.
semântico do black metal, revelou tanto recorrências quanto
Foi solicitado que os voluntários anotassem qualquer coisa
diferenças nas associações. Houve concordância, entre a
que lhes viesse à mente, sem que fosse mencionado “filme ou
maior parte dos voluntários dos dois grupos, a respeito de as
TV”, como sugere Tagg. Muitas vezes, houve possibilidade
estruturas musicais referirem-se a contextos “não urbanos” e
de fazer perguntas mais diretas sobre associações específicas,
“não contemporâneos”: timbres acústicos, modalismo com
mas depois que as primeiras impressões já haviam sido
alusão ao frígio, anáfonas sonoras1 de vento e vozes, seção
registradas. Esta mostrou ser uma estratégia interessante, uma
contrastante binária composta (que pareceu ter uma
vez que não influencia a natureza das associações espontâneas
codificação específica entre fãs) e andamento médio. A
e, ao mesmo tempo, permite que outras associações que o
diferença de percepção entre fãs e não fãs deu-se,
pesquisador deseje averiguar, também o possam ser. Muitos
principalmente, em relação ao cenário. Enquanto não fãs
dos participantes escreveram especificamente sobre cenários e
tenderam a fazer associações com contextos mediterrâneos ou
épocas, enquanto outros mencionaram apenas estados
árabes, praia e areia, o campo de associação paramusical
emocionais. Entretanto, quando consultados, em um segundo
formado a partir da audição dos fãs foi totalmente derivado do
momento, sobre “onde” e “quando”, tinham uma associação
campo semântico intertextual do black metal, com o qual são
pronta, sem demora na resposta, apesar de não lhes ter
muito familiarizados: Idade Média, frio, neve, gelo e, ainda
ocorrido colocá-la no papel. Deste modo, é possível pensar
referências a estados afetivos que fazem parte etos do gênero.
que a realização de testes de recepção com abordagens
Isto é, fãs e não fãs pertencentes às mesmas faixas sociais,
quantitativas (número maior de pessoas respondendo
com níveis similares de escolaridade e na mesma cidade,
anonimamente) e qualitativas (possibilidade de estender o
fizeram associações praticamente opostas no que diz respeito
teste, quase como uma rápida entrevista) é um procedimento
a um cenário hipotético, ao ouvirem a mesma peça musical.
Em relação à audição dos voluntários não fãs, é importante pareceram mais afetados pelos conceitos e pela sonoridade
notar que alguns pareceram ouvir a sequência de faixas como geral.
um todo, o que não era a intenção original. Mesmo havendo
intervalo entre as faixas, alguns participantes fizeram IV. CONCLUSÕES
referências comparativas entre elas, ou trataram-nas como se É importante que gêneros musicais sejam abordados
fosse um contínuo. Na verdade, quando faixas e trechos de através de estratégias que, em algum momento, incluam o
faixas foram retirados de seus contextos para o teste, foram, contato com seus adeptos e mesmo com não simpatizantes. O
também, rearranjados, constituindo uma nova unidade. Para pesquisador deve ouvir o que têm a dizer, observar como seus
os não familiarizados com o gênero, a experiência pode ter corpos respondem à música.
sido a de ouvir um CD inteiro de música desconhecida, assim, Após a experiência da realização de testes de recepção
é compreensível que tenha havido uma audição interligada. com fãs e não fãs de black metal no Rio de Janeiro, é possível
Sua ordenação pode ter funcionado como sintagma e não é dizer que quando se trata de um gênero musical ou um artista
possível determinar até que ponto isto influenciou as respostas, específico, é vantajoso realizar testes com grupos de não fãs,
como mostram as seguintes anotações de uma voluntária não com as mesmas características sócio-culturais dos fãs,
fã de black metal de 39 anos, nível superior completo, do Rio especialmente no caso de o pesquisador ser muito
de Janeiro. Para ela, “o problema principal é a voz” e tudo familiarizado com o objeto analisado, ou seja, um pesquisador
parecia ser envolto em “tensão e suspense”. Os trechos fã com grande vivência êmica. A obtenção de respostas a
grifados mostram onde pareceu haver um tipo de sintagma: partir de abordagens quantitativas e qualitativas apresenta
Faixa 01 – Parecia que eu tinha sido transportada para outra vantagens por permitir um detalhamento das associações
dimensão, para um local nefasto, escuto; faixa 02 – Perseguida gerais; o melhor rendimento se dá quando a abordagem
por vozes. Parecia que estava num labirinto e não conseguia qualitativa é feita numa segunda etapa. É mais produtivo que
sair; faixa 03 – Senti um alívio. Achei o trecho mais suave; seja testado um objeto de análise por vez. É necessário que se
faixa 04 – Já estava tentando conviver com as vozes. Tudo certifique a respeito da possibilidade de acesso dos indivíduos
bem; faixa 05 – Senti só fúria total das vozes, não consegui
testados aos meios tecnológicos; se o objeto de análise for
sequer saber do que se tratava; faixa 06 – Batida o tempo todo!
Pensei que estava sendo castigada!; faixa 07 – Início até deixado on line, seu acesso deve ser fácil, caso contrário,
agradável. Mostra que pode ser agradável; faixa 08 – Momento corre-se o risco de o voluntário desistir de colaborar. Não
exibicionista, um abuso das vozes e barulho sem necessidade; controlar a audição do voluntário, fornecendo a ele o objeto
faixa 09 – A nona é uma libertação. Voltei para o meu mundo. de análise em um suporte material de fácil manuseio, como
Parte instrumental boa, me senti como num ambiente aberto, CDs ou arquivos de som, pareceu uma solução interessante
como uma praia. para a dificuldade de agrupar fãs em um mesmo lugar, ao
Outro voluntário do Rio de Janeiro, 63 anos, nível superior mesmo tempo.
completo e sem familiaridade alguma com black metal,
respondeu à mesma sequência deste modo: NOTAS
Faixa 01 – Conjunto de rock do Luiz. faixa 02 – Parece ser a 1 Anáfona é um neologismo utilizado por Tagg (1999) para referir-se
mesma música do número 1. Também lembra abertura (trilha às associações paramusicais baseadas em semelhança, neste caso,
sonora) de filme de terror. Desculpe, Luiz!; faixa 03 – Mesmo sonora.
ritmo. Estamos ouvindo um CD do Sepultura?; faixa 04 –
Mesmo som. Não agrada pelo barulho. Penso que não serve REFERÊNCIAS
nem para dançar; faixa 05 – Mesmo som. Espero nunca estar
AZEVEDO, Cláudia Souza Nunes de. “É para ser escuro!” –
no local com isso. Tem alguém passando mal; faixa 06 – Meu
Codificações do black metal como gênero audiovisual. 2009. 239fl.
Deus! O que é isto?; faixa 07 – Não gosto. Acho que eles
Tese (Doutorado em Música) – Programa de Pós-Graduação em
tocam de improviso. Como será a cara do cantor cantando?;
Música (PPGM), Universidade Federal do Estado do Rio de
faixa 08 – Repetitivo. Não ia agüentar ouvir um CD ou um
Janeiro (UNIRIO).
show; faixa 09 – O violão estava bom. É só.
STEFANI, G. A Theory of Musical Competence. Semiotica, 66 – 1/3,
O exposto acima parece indicar que o voluntário desejou pp.7-22, 1987.
deixar claro que não gostou, não quis ou não conseguiu lidar TAGG, Philip & CLARIDA, Bob. Ten Little Title Tunes – Towards
com a música. Neste primeiro contato, o material sonoro a Musicology of the Mass Media. New York & Montreal: The
pareceu-lhe indiscriminado, como sugere a quantidade de Mass Media Music Scholars’ Press Inc., 2003.
TAGG, Philip. Analisando a música popular: teoria, método e prática.
vezes que a palavra “mesmo” foi utilizada. No final, “É só”,
Em Pauta – v.14 – n. 23, dezembro de 2003; trad.: Martha
não tinha nada mais a dizer. Apenas algumas das respostas, Tupinambá de Ulhôa.
como as relativas às faixas 02 (“abertura de filme de terror”) e _________Introductory notes to the Semiotics of Music – version 3.
05 (“Tem alguém passando mal”) fazem alguma associação Liverpool/Brisbane, July 1999. Disponível em:
paramusical. <http://tagg.org/xpdfs/semiotug.pdf> Acesso em: 02 maio 2009.
Com fãs de black metal, nenhuma destas situações ocorreu, WALSER, Robert. Popular Music Analysis: ten apothems and four
já que são indivíduos familiarizados com o tipo de música, instances In: MOORE, A. (ed) Analysing Popular Music,
muitas vezes, conhecendo a faixa ou, pelo menos, Cambridge University Press, 2003, pp.16-38.
reconhecendo a banda. Os fãs músicos demonstraram uma
grande capacidade de discernimento estilístico, enfatizando
aspectos técnicos em detrimento das associações paramusicais.
Especialmente com este tipo de voluntário, é útil a realização
de rápidas entrevistas após a primeira audição. Os demais fãs
Banda Black Rio: fusões de gêneros na música popular brasileira dos anos 70
Eloá Gabriele Gonçalves
Instituto de Artes – Departamento de Música, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
eloaggoncalves@yahoo.com.br
Palavras-Chave
Música Popular, Indústria Fonográfica, Banda Black Rio, Soul, Fusão de gêneros
Através das transcrições dos grooves – jargão muito utilizado Além da bateria, aparece também exercendo importante
na música popular com o sentido de “levada”, ou seja, padrão função nas fusões de gêneros a guitarra, que, além de
ou frase de caráter rítmico, repetido ao longo da música – apresentar figuras rítmicas sincopadas consideradas como
executados pela seção rítmica em Maria Fumaça, notam-se “clichês” dos gêneros de soul e funk, é, por si própria, um
algumas características que demonstram o processo pelo qual instrumento típico da música pop norte-americana da época,
o hibridismo do “nacional” com o “internacional” foi bem como fundamental nos gêneros de soul e de funk.
alcançado.
Com os instrumentos de percussão como o pandeiro, a cuíca e
o triângulo, utilizados respectivamente em gêneros brasileiros
como o samba e o baião, executando padrões rítmicos Groove 1: Samba-Funk. Groove 2: Funk.
presentes nos citados gêneros, fundem-se os demais
Figura 5. Principais “levadas” utilizadas pela Guitarra.
instrumentos apresentados, sendo que cada um deles apresenta
um importante papel nesta “mistura” de gêneros.
O contrabaixo elétrico, por sua vez, executa tanto grooves de
Abaixo estão exemplificadas algumas figuras rítmicas
samba quanto de funk e soul, porém, ao invés de concordar
principais executadas por instrumentos de percussão que
sempre com os grooves de bateria (já que em música popular,
compõem a seção rítmica utilizada pela banda:
principalmente no sentido de música pop produzida para o
consumo, é bastante usual que as figuras rítmicas do
contrabaixo estejam sempre ou quase sempre juntas, isto é,
em uníssono das figuras do bumbo da bateria, possibilitando
uma maior fluidez para o ritmo, e tornando-o mais dançante e
Figura 1. “Levada” do Pandeiro em Maria Fumaça (Samba). de fácil audição) apresenta variações como a execução de um
Obs: Os acentos indicam as notas mais agudas do pandeiro. groove de samba enquanto a bateria executa um groove de
samba-funk, demonstrando assim mais uma das características
híbridas da banda.
sonoridade do jazz (big bands) bem como das orquestras de intervalos “pequenos”) e de notas longas, fazendo assim, com
gafieira. que o naipe assuma um caráter mais harmônico do que
Isto se deve, primeiramente, pela própria escolha dos rítmico.
instrumentos que compõem o naipe (sax tenor – praticamente No segundo fragmento pode ser observada a exposição do
um símbolo da sonoridade do jazz; trompete – também tema “A” pelo trompete e trombone, utilizando-se de
amplamente utilizados nas big bands norte-americanas; e sucessões de figuras rítmicas sincopadas como a das figuras
trombone – este por sua vez, dando um caráter um tanto mais de semicolcheia – colcheia – semicolcheia (uma das figuras
“abrasileirado”, pelo seu timbre e forte utilização nas mais comumente encontradas no samba). Assim, tanto o naipe
orquestras de gafieira), como também pelas técnicas de de sopros quanto a seção rítmica são capazes de demonstrar as
abertura ou voicings utilizados no arranjo para o naipe. fusões e influências dos gêneros dos quais se utiliza para
Veja abaixo alguns exemplos extraídos da música Maria alcançar sua “fusão”.
Fumaça com relação ao naipe de sopros da BBR: E, no último fragmento apresentado, extraído da parte “B”
de Maria Fumaça, a melodia é novamente exposta pelo
trombone que, desta vez, funde-se ao sax tenor em uníssono.
É interessante notar que exatamente nesta parte do arranjo, em
que a seção rítmica é transferida do samba-funk para o funk
(que, por estar acompanhado do triângulo – vide figura III –
ganha um caráter mais uma vez híbrido, já que a figura tocada
pelo triângulo é facilmente identificada com o gênero de baião,
além do próprio instrumento em si ser um dos principais
componentes da instrumentação do referido gênero),
observa-se o naipe de sopros em uníssono, o que é bastante
característico do repertório de soul e funk. Desta maneira, é
Fragmento extraído da introdução de Maria Fumaça. Exposição em possível dizer que os arranjos propostos apresentam-se de
“som real”.
maneira bastante coesa, e, portanto, são talvez os maiores
responsáveis pela identificação das “misturas” realizadas pela
banda.
É importante ressaltar que todos os grooves ou “levadas”
exemplificadas acima não são necessariamente o exato
representante dos gêneros a eles associados, mas sim aquele
escolhido pela banda para representá-los, assim como o caso
das técnicas de arranjo ou disposição das vozes (voicings) que
aparecem no naipe de sopros.
É importante notar que as fusões de gêneros propostas pela
banda só podem ser analisadas no contexto geral da
composição, o que quer dizer que todas as breves análises
musicais feitas acima, somente puderam ser constatadas
quando comparadas e/ou levando-se em consideração o
contexto do arranjo e da composição como um todo. Da
mesma maneira que na análise musical, que só pode ser
entendida em um contexto, digamos, “geral” da música,
Fragmento extraído do tema “A” de Maria Fumaça, executado pelo veremos a seguir que o papel da banda Black Rio e o sentido
naipe. “Som real”. das fusões não podem ser entendidos fora do contexto cultural
da década de 1970, que envolve a questão da expansão e
integração das indústrias culturais, de uma nova demanda
jovem que surgia após o auge do chamado “Fenômeno Black
Rio” e da busca de uma nova identidade étnica (em sua
maioria afro-descendente, pertencente à segmentos sociais
populares).
Assim, ao objeto deste estudo surge uma questão pertinente:
qual a relação ou que significado estas fusões encontradas no
repertório da BBR podem ter com o cenário cultural e musical
da década de 1970?
Fragmento extraído da parte “B” de Maria Fumaça.
Fusões desse tipo, que aparecem na maior parte do
Figura 7. Fragmentos de frases presentes no naipe de sopros. repertório presente nos três LPs da banda, estão na base do
Através dos três fragmentos anteriormente apresentados é chamado soul brasileiro, um estilo que começou a se
possível observar algumas das características e influências configurar no contexto pós-tropicalista dos anos 70.
responsáveis pela sonoridade híbrida obtida pela banda. Pode-se afirmar que essas misturas resultaram do impacto
No primeiro fragmento, referente à introdução, o naipe da experiência da Tropicália que contribuiu para romper as
encontra-se disposto em um voicing “fechado” (ou seja, os barreiras ideológicas que reproduziam a polaridade entre o
intervalos entre as vozes são de 3ª ou 4ª, considerados nacional e o internacional na música brasileira dos anos de
1960. Além disso, a expansão do mercado de bens culturais e VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Editora
a internacionalização da economia brasileira nos anos 70 Jorge Zahar, 1988.
também contribuíram para a emergência de estilos híbridos TATIT, Luiz. O Século da Canção. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004.
desse tipo (TATIT, 2004, p. 227).
Somando-se a isto, os anos 70 foram marcados por novos
processos identitários. A eclosão do movimento “Black Rio”,
que mobilizou ampla parcela de jovens afro-descendentes de
classe baixa, sobretudo no Rio de Janeiro, foi um bom
exemplo disso. Buscando a redefinição da “identidade negra”,
estes jovens encontraram no soul e no funk – “matéria-prima”
da qual se utilizou a BBR – gêneros fortemente associados a
grupos negros norte-americanos que tinham obtido notáveis
conquistas na luta contra o racismo e pela afirmação étnica,
características que atendiam aos seus anseios.
De certo modo, a indústria fonográfica soube responder às
novas demandas simbólicas que emergiram desse movimento,
e a experiência da Banda Black Rio foi um bom exemplo.
CONCLUSÃO
De uma maneira geral, pode-se dizer que a sonoridade e a
experiência de fundir gêneros nacionais e internacionais,
práticas que marcaram a produção da banda Black Rio, estão
intimamente ligadas tanto ao contexto sócio-político e cultural
da época como à consolidação do mercado de bens simbólicos
no País.
No que se refere à experiência musical realizada pela Black
Rio, é notável a capacidade tida para atender os anseios da
indústria fonográfica da época, mesmo seus discos tendo sido
um fracasso de vendas nacionais.
Por outro lado, “ignorando” o fator mercadológico, a
eclosão do “Fenômeno Black Rio” e a experiência de bandas
como a BBR foram responsáveis pelo início de um segmento
musical e cultural que sobrevive (aliás, por que não dizer que
cresce cada vez mais) até hoje: a chamada “cultura black”,
que se desenvolveu tanto em termos musicais quanto nas artes
visuais (grafite), no vestuário e na dança (street dance,break),
bem como o já citado soul brasileiro, que também tem se
mostrado muito presente no mercado de música popular atual.
Quanto à influência que a BBR exerce até hoje, basta
observar e citar o grande segmento de artistas e bandas de
soul brasileiro existentes atualmente como Seu Jorge, Farofa
Carioca, Funk Como Le Gusta, Clube do Balanço,
Berimbrown, Paula Lima, Wilson Simoninha, Max de Castro,
o já consagrado Jorge Ben, a nova formação da banda Black
Rio (retomada por Wyllian Magalhães, filho do saxofonista
integrante da primeira formação da BBR, Oberdan
Magalhães), e até mesmo a sua vertente ou sub-gênero mais
periférico, que tem atingido um espantoso sucesso dentre o
público de classe mais baixa, sobretudo carioca: o conhecido
funk carioca, que provavelmente possui suas raízes no soul da
década de 70 e nas experiências musicais e até extra-musicais
da chamada “cultura Black”.
REFERÊNCIAS
BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes – MPB nos anos 70.
Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1980.
FENERICK, José Adriano. In “A ditadura, a indústria fonográfica e
os independentes de São Paulo nos anos 1970 e 1980”.
NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação
(1950-1980). SP: Contexto, 2001.
A crítica musical dos anos 50 imortaliza os músicos dos Mesmo com o alto custo de produção de um LP nos anos
anos 30, criando os conceitos de Época de Ouro e Velha 80, fato agravado por duas crises de matéria prima (petróleo)
Guarda, usados até hoje. Os compositores populares da época na década anterior, alguns artistas investiram em produzir um
têm um reconhecimento menor e nomes como Pixinguinha e LP de maneira independente, o que foi o ponto de partida da
Noel Rosa, expoentes musicais de duas décadas anteriores, Música Independente. A possibilidade de sucesso dos artistas
entre outros, eram valorizados na música brasileira. Isso independentes foi encarada com receio pelas gravadoras
porque, impulsionadas pela grande massificação do rádio após multinacionais, que resolveram fechar as portas para a música
a Segunda Guerra Mundial, as canções dos anos 50 eram brasileira trazendo com mais intensidade o pop internacional
consideradas popularescas. As camadas menos privilegiadas das matrizes estrangeiras. Essas empresas ficaram conhecidas
podiam, então, comprar um rádio, e o bolero mexicano, muito pelo termo major como uma referência à grande parte do
difundido na época, se torna uma grande influência popular, o mercado fonográfico que elas passaram a controlar.
que era mal visto pela crítica musical. Os grandes intérpretes A partir dos anos 90, com o advento da música digital,
dos anos 30 estavam em decadência, e o entre-lugar, como é houve uma alteração no panorama musical. Aos poucos os
conhecido os anos 50, foi marcado pela forte interpretação e custos foram ficando cada vez menores e as grandes
pelas músicas com temáticas mais depressivas. gravadoras começaram a entrar em crise e, ao mesmo tempo,
Junto com a Bossa Nova, como um Movimento, nos anos artistas fora desse eixo estavam tendo cada vez mais sucesso e
60, surge uma idéia de modernidade, funcionalidade, síntese e retorno com sua produção própria. O chamado Cenário
despojamento, o que é amplamente reconhecido pela crítica e Independente tomava força e começava a figurar como uma
pelo público. João Gilberto desenvolve uma nova maneira de nova alternativa para a produção cultural brasileira, não só na
tocar violão e tira o exagero da interpretação vocal. A Bossa música.
Nova foi a trilha sonora do sentimento desenvolvimentista e Em contrapartida, as gravadoras não só determinavam o
modernizador iniciado nos anos 50 com Juscelino Kubitchek. que o público ouviria, mas determinavam, também, alterações
Em 1962 chega aos Estados Unidos, levando uma imagem na música brasileira em geral (MOURA, 2002). Os outros
cultural do Brasil para o exterior. estilos populares que vigoravam nos Estados Unidos (rock,
Os festivais da canção, a partir de 1965, refletiram todo pop, reggae, rap, funk) invadiam as rádios, influenciavam os
espaço que a música brasileira ganhou nas décadas anteriores. compositores pertencentes à chamada MPB. Por conseqüência,
Vários festivais em diferentes emissoras de TV são ritmos como baião, frevo e outras manifestações populares
amplamente difundidos e acompanhados pelo povo brasileiro. sumiram da grande mídia, o que foi mudado somente no final
Entre os principais estão o Festival de MPB e o Festival da década com o compositor pernambucano Chico Science.
Internacional da Canção. Em 1968, chega a ocorrer nove
festivais com acompanhamento das emissoras de TV, III. SURGIMENTO DA MÚSICA
trazendo uma mídia intensa para a música brasileira. Após o INDEPENDENTE
AI5, com a censura ferrenha, os festivais pouco a pouco
A maneira independente de produção, ao contrário do que
perderam sua força (NAPOLITANO, 2001).
se possa imaginar, não é algo recente. Na década de 50, as
Na seqüência, o Tropicalismo promove a entrada definitiva
“(...) gravadoras pequenas foram fundamentais para o
do rock no Brasil, com forte influência inglesa e americana.
nascimento de um novo gênero musical, rompendo com o
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Maria Bethânia, entre
padrão musical conservador vigente naquela época” (LOPES,
outros, passaram a valorizar a imagem e o comportamento do
2004). Este novo gênero era o rock’n’roll.
artista, e a sua crítica, percebida nas canções e na atitude, era
Entretanto, é de se imaginar que esse início de produção
voltada mais para a cultura do que para a política. O
independente era mesmo somente um começo, mesmo porque
movimento tinha a intenção de mostrar que os elementos
a indústria fonográfica, mesmo a americana, não tinha toda
estranhos ao gosto popular da época também pertenciam à
estrutura e funcionamento que tem atualmente.
música brasileira, e não somente Bossa Nova e samba.
Em 1977, Antônio Adolfo lança o disco Feito em Casa, que
Mas foi a partir do Milagre Brasileiro e do AI5 que se deu
muitos especialistas consideram a primeira produção
o primeiro grande impulso da indústria fonográfica no Brasil
independente brasileira. Porém, é importante citar trabalhos
(MORELLI, 1991). Nos anos 60 e 70 as grandes gravadoras
como os de Sérgio Cabral com seu projeto Disco de Bolso, de
criaram um catálogo da música brasileira, envolvendo artistas
1972, e a gravadora Discos Marcus Pereira criada em 1974,
carismáticos e populares como Chico Buarque, Caetano
dedicada a regravar gêneros praticamente ignorados pela
Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento. Com a exceção
indústria fonográfica.
destes artistas de catálogo, como eram conhecidos na
Além disso, Chiquinha Gonzaga foi responsável pelo
linguagem das gravadoras, um novo artista a ingressar no
lançamento de diversos artistas importantes na década de 20,
mercado musical dependia da decisão exclusiva destas
de maneira autônoma (CAZES, 1998). Entretanto, a rigor,
empresas. Por conseqüência, este novo artista só chegaria ao
devemos considerar Cornélio Pires como o primeiro produtor
amplo conhecimento popular por intermédio delas. Ficou
independente Ele atuou no cenário da música sertaneja
praticamente impossível qualquer músico alcançar o grande
representada principalmente pela gravadora independente
público de uma maneira diferente. Todas as etapas da
Chantecler, adquirida mais tarde pela Odeon (MUGNAINI,
produção artística tinham um valor muito alto e poucas
2001). Outras manifestações independentes também merecem
empresas podiam arcar com esse custo. Portanto, somente o
destaque, como, por exemplo, as gravadoras independentes
que vendia interessava as gravadoras que, na verdade, não
Elenco e Forma, que eram voltadas para a Bossa Nova. Os
estavam muito preocupados com a cultura.
dois selos foram posteriormente adquiridos pela Polygram
(hoje Universal Music) depois de iniciarem seus trabalhos de
maneira independente na década de 60 (CASTRO, 1990). No alternativas do que é oferecido, muitas vezes de maneira
entanto, estas e outras iniciativas existentes são produções vulgar, pela grande indústria cultural. A maioria dos meios de
autônomas, e não necessariamente independentes, no sentido comunicação está atrelada a essas grandes empresas, restando
de configurar um contraponto à grande indústria cultural: um espaço ínfimo para o que é produzido fora desta indústria.
O que mais destaca a atitude autônoma dos anos de 1920 é a Do ponto de vista musical esse monopólio é garantido
ausência do discurso sobre independência fonográfica através da prática do jabá nas rádios e TVs, principalmente. Já
característica de um contexto posterior àquela data. Tanto para a exposição na vitrine de algumas livrarias ou o destaque
Chiquinha quanto Cornélio faziam parte do crescimento do em seu site, é cobrado um valor fixo pelo tempo de exposição.
mercado fonográfico brasileiro e – como possivelmente outros Por esse motivo que não é o indivíduo que realiza a escolha
empreendedores no resto do país – iniciaram suas próprias por uma música porque, segundo Adorno (1985), não há mais
companhias. Portanto, não havia um discurso estabelecido o individuo; é uma pseudo-escolha.
sobre produção nacional que marcaria os independentes de
A música brasileira está diante de uma mudança de
décadas posteriores. (De Marchi, 2005)
paradigma. Novas alternativas de produção surgem,
A estréia do Teatro Lira Paulistana, em 1979, foi um fato proporcionando vários caminhos diferentes para os músicos
fundamental para a história e também para a consolidação da que não dependem mais, exclusivamente, de uma gravadora
Música Independente como um contraponto às grandes para realizar seu trabalho.
gravadoras (majors). Lira Paulistana foi a tão ansiada As novas tendências musicais no Brasil, assim como de
convergência para a demanda e explosão criativa da época que outros países, estão imersas na globalização de informações.
estava sufocada fora da grande indústria fonográfica devido à Uma das características da música é ser um agente que é
expansão econômica do setor, que já tinha o conhecimento do capaz de interligar regiões ou grupos. Ela é chave de acesso à
que gerava lucro e, dessa forma, se fechou para novidades cultura, reflexo sociológico, marcador histórico das nações,
(LOPES, 2004). Direta ou indiretamente, se envolveram no possibilitando análises internas e externas de um povo. Os
projeto Lira Paulistana os músicos e grupos: Arrigo Barnabé, artistas que não estão vinculados a nenhuma grande gravadora
Itamar Assumpção, Premeditando o Breque, Rumo e Língua são desencadeadores de um processo “não-especialista” de
de Trapo (VAZ, 1988), sendo conhecidos mais tarde como produção cultural. Essa mudança de paradigma na produção
Vanguarda Paulistana. musical brasileira, que é um campo bastante amplo para
Poucos anos depois, o selo Barato Afins começou a ganhar pesquisas em diversas áreas, merece o nosso olhar mais atento
destaque, e era mantido pela loja de mesmo nome. As vendas e ouvidos abertos.
de discos eram, principalmente, para um público fiel e
seletivo, basicamente o do rock, e a atitude crítica da loja AGRADECIMENTOS
perante o mercado fonográfico passou, aos poucos, a ser um
Agradecemos a Indioney Rodrigues pela Orientação deste
diferencial. Assim, a Baratos Afins ganhou espaço
trabalho e a Daniella Gramani pela co-orientação. Agradece-
principalmente por seus títulos raros e alternativos.
mos também a Daniel Quaranta pela orientação no mestrado
Paralelamente à loja, o selo lançou nomes como Arnaldo
da pesquisa decorrente desta.
Batista e vários grupos independentes, assim como re-edições
de artistas como Tom Zé, Mutantes e também Itamar REFERÊNCIAS
Assumpção, da vanguarda paulistana. Provavelmente, por
conta dessa simbiose o selo sobreviveu e se consolidou na ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do
Esclarecimento. Rio de Janeiro: J.Z.E., 1985.
Cena Independente (LOPES, 2004).
ALEXANDRE, R. Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos Anos 80. São
Paulo: DBA, 2002.
IV. CONCLUSÃO CASTRO, R. Chega de Saudade: a História e as Histórias da Bossa.
O que chega aos jornais, rádios e nos meios de CIDADE: Nova Companhia das Letras, 1990
comunicação em geral são, historicamente, produtos das CAZES, Henrique. Choro: do Quintal ao Municipal. São Paulo: Ed.
grandes gravadoras e editoras, o que criou a falsa impressão 34, 1998.
DE MARCHI, L. Indústria Fonográfica Independente Brasileira:
de que os bons artistas são aqueles vinculados à indústria
Debatendo um Conceito. Resumos do V Encontro dos Núcleos de
deixando-se de lado a variedade e a riqueza que estão fora do Pesquisa da Intercom. Anais. Rio de Janeiro: Intercom, ANO. P
circuito (MOURA, 2002). A arte brasileira é fruto da nossa xx-xx. Universidade Federal Fluminense. Trabalho apresentado
identidade cultural, e é importante estar atento a ela e às ao NP 13 – Comunicação e Cultura de Minorias, do.
mudanças e tendências que a afetam, tanto no âmbito DIAS, M. T. Os Donos da Voz: Indústria Fonográfica Brasileira e
estético-musical quanto mercadológico e de produção, como Mundialização da Cultura. São Paulo: Boitempo, 2000.
propõem os artistas independentes profissionais. Hoje o artista JAMBEIRO, O. Canção de Massa: As Condições da Produção. São
desenvolve uma noção geral de todas as etapas da produção Paulo: Pioneira, 1975.
de sua obra, da criação a divulgação e distribuição. Diante dos KRAUSCHE, V. Música Popular Brasileira da Cultura de Roda à
Música de Massa. São Paulo: Brasiliense, 1983.
avanços digitais e sua democratização, o grande obstáculo
LOPES, A. M. V. A. A Cena Musical Paulistana dos Anos 80 e o
enfrentado pelo artista independente continua sendo a Selo Independente Baratos Afins. 2004. 66f. Monografia (Curso
distribuição e a divulgação de seus produtos. A conquista de de Especialização em Fundamentos da Música Popular Brasileira)
um público é a busca de todo artista, mas para o artista – Faculdade de Artes do Paraná.
independente é um desafio. Como acontece com os estilos MÁRIO, C. Como Fazer um Disco Independente. Petrópolis: Vozes,
musicais e literários, no qual cada um tem um público mais ou 1986.
menos definido, esses artistas buscam um público interessado MORELLI, R. C. L. Indústria Fonográfica: Um Estudo
principalmente em novidades, que também procura Antropológico. Campinas: Unicamp, 1991.
Em suas análises sobre o conceito de hibridismo, Kern que eu tinha aprendido na bossa nova. E a minha música
(2004), conclui que muitos teóricos contemporâneos, “[...] começou a se desenvolver dessa maneira. Acho que foi uma
ainda que muitas vezes seus discursos procurem negar o fato, saída para ter uma assinatura, para ter uma característica
própria” (LOBO, 1999, s/p.).
acabam por aceitar a idéia de que as culturas, mais do que
fechadas, são incompatíveis e, quando forçadas a se unir, As principais fontes que influenciaram neste processo do
resultam compósitos instáveis” (p.66). Kern (2004) também lado bossanovista foram nomes como: Vinícius de Moraes,
apresenta duas possibilidades que permeiam a concepção dos Tom Jobim e Baden Pawel. E do lado nordestino foram as
teóricos ao tratar politicamente o termo hibridismo: o vivências de férias que passou em Recife, da infância até os
colonizado resistindo o colonizador através do hibridismo ou 18 anos de idade. No entanto, um dos impulsionadores desta
o colonizador dominando através do hibridismo. junção foi o contato com as letras do seu parceiro
composicional Ruy Guerra,
II. O HIBRIDISMO MUSICAL
(...) minha música começou a procurar caminhos mais afros,
Numa abordagem mais estética, temos os trabalhos de começou a ser mais enraizada, mais preocupada com o folclore,
Herom Vargas (2007b), que trata especificamente das mais sem ser aquela linha radical de só o que é folclore é
hibridações musicais brasileiras e latino-americanas, nacional. (LOBO in MELLO, 1976, p.125).
focalizando em como se deu o desenvolvimento destas formas Ou seja, Edu Lobo desterritorializou e reterritorializou 4 a
musicais híbridas, mas sem deixar de apresentar os conflitos e música nordestina, roformulando-a a partir da junção com a
contradições geradas pelas mesmas, como no caso do grupo bossa nova.
“Chico Science e Nação Zumbi”. Segundo Napolitano (2001), Edu Lobo era “[...]
Segundo Vargas (2007a) para se abordar a complexidade considerado a grande esperança – estética, comercial e
do hibridismo na cultura, arte e comunicação são necessários ideológica – de renovação da MPB5 (sobretudo entre 1965 e
enfoques múltiplos e móveis, os quais devem ser conduzidos 1967) (p.143)”. É importante lembrar que em meados de 1966,
sem reduzir-se a padrões teóricos unidirecionais e a grande preocupação dos músicos da linha engajada e
evolucionistas. nacionalista era o avanço comercial da jovem guarda, que
Sendo a América-Latina um local onde se encontra gerou um impasse sobre que caminhos deveriam seguir. Esta
simultaneamente a tradição, a modernidade e a decisão deveria contemplar os seguintes aspectos: “[...]
pós-modernidade, como nos mostra Canclini (2006), surge o constituir as diretrizes para a veiculação de uma mensagem
hibridismo como instrumento de análise destas relações nacionalista e engajada e ao mesmo tempo ampliar o público
complexas e justapostas, para além dos padrões teóricos consumidor de MPB.” (NAPOLITANO, 2001, p.123).
unidirecionais, e com o intuito de não reduzir-se aos “[...] Portanto, os dilemas da MPB do período citado
limites estreitos e, ao mesmo tempo, porosos das fronteiras desenvolviam-se em torno de uma estética (híbrida), que
nacionais, e, ainda, na busca de suplantar o entendimento abrangia uma ideologia (político-social), a qual era divulgada
adorniano da indústria cultural como fenômeno castrador da dentro da indústria cultural. Aqui observa-se um intrincado
percepção e da criatividade na música popular” (VARGAS, processo em que a utilização da música híbrida corresponde
2007a). às várias problemáticas que giram em torno deste conceito,
Em muitas hibridações musicais da América Latina como foi apresentado anteriormente: mistura estética,
observa-se a permanência dos elementos dos “primitivos” representação e resistência social , mercado e consumo.
justapostos aos dos “civilizados”, sendo “[...] as músicas Um momento interessante da obra de Edu Lobo é a
mestiças, produto de peculiares hibridações, que conseguiram composição de “Memórias de Marta Saré”, elaborada em
enviesar – e não simplesmente apagar - o centro da música parceria com Giafrancesco Guarnieri (letra) para a peça teatral
ocidental”. (VARGAS, 2007a, p.69). “Marta Sare”, de autoria deste último. Edu Lobo elabora um
Historicamente observa-se que durante o desenvolvimento arranjo para esta canção e participa do IV Festival da TV
das hibridações brasileiras surgiram questões em torno dos Record de 1968, conquistando o segundo lugar e o prêmio de
caminhos desta música e a reprodução da música européia, a melhor arranjo6. Poder-se-ia ter frisado aqui outras obras em
dicotomia entre popular e erudito, nacional e cosmopolita. que Edu Lobo se destacou em festivais, como “Arrastão” e
Estas concepções geraram temas de debates em torno do “Ponteio”, no entanto é em “Memórias de Marta de Saré”
modernismo, da vanguarda dodecafônica, da bossa nova, do (Edu Lobo e Gianfracesco Guarnieri) que Edu Lobo evidencia
tropicalismo e da canção de protesto. (TRAVASSOS3, 2000, de forma mais intensa a influência da música erudita, ou seja,
p.7 e 8). Ou seja, em geral as ideologias formadas sobre as além da bossa nova e das sonoridades nordestinas, a música
hibridações musicais brasileiras ocorrem de forma conflituosa erudita aparece com mais força gerando uma nova hibridação.
ou polêmica. Após esta canção a obra deste compositor vai tomando outro
III. OS HIBRIDISMOS DE EDU LOBO NOS rumo, que depois dos seus estudos orquestrais em Los
Angeles (1969-1971) desencadeou em uma nova fase
ANOS DE 1960
composicional nos anos de 1970, seguindo nessa hibridação
Edu Lobo (1943-), carioca, filho de pernambucanos, de bossa nova, sonoridades nordestinas e música erudita.
desenvolveu nos anos de 1960, a hibridação da bossa nova
com as sonoridades nordestinas. Segundo este compositor isto IV. MEMÓRIAS DE MARTA SARÉ
ocorreu pela busca de uma “assinatura”: A letra desta canção refere-se às memórias de uma
[...] uma maneira de eu fazer alguma coisa que não fosse prostituta nordestina, apresentando os bons momentos com
repetir o que estava sendo feito, foi misturar essa informação seu primeiro amor (Moço Severino), a raiva desse amor
que eu tinha de música nordestina com toda a escola harmônica
Figura 3.
manifestações da cultura popular do estado de Minas Gerais, musical do Terno de Catopês Nossa Senhora do Rosário da
“mesclando tradições africanas com elementos de bailado e Mestra Lucélia através de uma análise sistemática de seus
representações populares luso-espanholas e indígenas” elementos estético-estruturais e das suas performances nos
(QUEIROZ, 2002, p. 24). Há um significativo festejos de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário,
desenvolvimento da bibliografia etnomusicológica no que diz realizados na cidade de Bocaiúva-MG. Como objetivos
respeito ao Congado, destacando-se aqui os trabalhos de específicos, propomo-nos: identificar os principais aspectos
Queiroz (2005), Mendes (2004), Arroyo (1999) e Lucas históricos e estruturais do grupo, bem como dos festejos a
(2002). Nossa Senhora do Rosário e São Benedito; identificar e
O Congado é uma manifestação nascida da relação do analisar teorias, valores, normas e comportamentos ligados à
sistema escravista condicionado pelos colonizadores música; analisar as características musicais do Terno de
portugueses no Brasil. Apesar de não haver consenso em Catopês Nossa Senhora do Rosário, buscando identificar seus
relação aos aspectos históricos e caracterizadores do Congado, padrões estético-estruturais; analisar sistematicamente os
Queiroz (2005) chegou à conclusão de que é uma aspectos construtores da identidade musical do grupo.
manifestação que de fato teve sua origem no Brasil. Ele ainda Utilizaremos como ferramentas metodológicas: pesquisa
identifica as Irmandades como fator importante para a bibliográfica geral e específica em etnomusicologia,
caracterização do Congado no país. Para Tinhorão (1972), as musicologia, antropologia e outras áreas afins; pesquisa
Irmandades permitiam aos negros a realização de seus festejos documental com coleta de registros em áudio, vídeo e textos
e a devoção a Nossa Senhora do Rosário e aos santos pretos. sobre o Congado no estado de Minas Gerais e na cidade de
Para Carvalho (2000), as irmandades representam um pacto Bocaiúva; observação participante durante os ensaios e
colonial entre os negros e os brancos. A partir das diversas apresentações através de uma abordagem metodológica de
relações coloniais entre as culturas negras e brancas etnografia da música, observando suas relações com os
configurou-se o Congado que, para Carvalho (1993), diversos conteúdos culturais presentes na manifestação dos
representa uma “conciliação entre o responsável social, o Catopês; entrevistas semi-estruturadas com os integrantes do
homem branco, e o devoto, geralmente, humildes grupo, a fim de se obter dados relevantes e necessários à
descendentes de escravos e mulatos” (CARVALHO, 1993, p. caracterização do grupo e dos festejos; entrevistas
5, tradução nossa). semi-estruturadas com membros da sociedade, para observar a
Minas Gerais está entre os estados com maior número de visão externa e conhecimento sobre os Catopês; entrevistas
manifestações congadeiras, cuja constituição está ligada ao semi-estruturadas com estudiosos do Congado norte - mineiro;
tráfico de escravos para as minas de ouro. Queiroz (2002) gravações em áudio, vídeo e fotografias dos festejos, ensaios e
apresenta oito grupos ou guardas: o Candombe, o Congo, o instrumentos para análise das performances, caracterização do
Moçambique, o Vilão, os Catopês, os Marujos, Caboclos e a grupo e ilustração do trabalho.
Cavalhada. Ele afirma que o Catopê, guarda na qual se Para a organização e análise dos dados realizaremos:
encontra o Terno Nossa Senhora do Rosário da mestra Lucélia, transcrição e análise das entrevistas; transcrição das músicas a
pode ser considerado “uma das guardas com maiores partir de áudio e vídeo; descrição dos aspectos constituintes
influências africanas, utilizando em sua música somente da performance nos festejos e rituais; caracterização
instrumentos de percussão e apresentando particularidades contextual dos principais aspectos da identidade musical do
rítmicas que o diferem das demais guardas” (QUEIROZ, 2002 Terno de Catopês Nossa Senhora do Rosário.
p.123). Por fim, acreditamos que o Terno de Catopês Nossa
Senhora do Rosário apresente diversas e relevantes
III. BUSCANDO COMPREENDER A peculiaridades locais que conferem grande importância a este
IDENTIDADE MUSICAL trabalho. Buscaremos identificá-las e estudá-las a fim de que
sejam mais bem compreendidas e de que, assim, se perceba a
Entendemos que, pelo espaço e tempo contemporâneo
complexidade das manifestações que formam a cultura
ocupados, o Terno se caracteriza como o sujeito pós –
nacional e suas necessidades de incentivos sociais, financeiros
moderno conceituado por Hall (2005), cuja identidade
e estruturais.
torna-se uma “celebração móvel”, formada e transformada
continuamente. A comunicação e interação entre as mudanças
REFERÊNCIAS
conseqüentes da modernidade e a tradição herdada pelos
sujeitos culturais do Terno nos fazem querer buscar o ARROYO, Margarete. Representações sociais sobre práticas de
ensino e aprendizagem musical: um estudo etnográfico entre
entendimento e descrição dos diferentes agentes e
congadeiros, professores e estudantes de música. Tese de
agrupamentos etnomusicais presentes nas performances desse
doutorado em Música. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio
grupo. Acreditando que o Terno de Catopês Nossa Senhora do Grande do Sul, 1999.
Rosário apresenta diversas peculiaridades que o difere de BLACKING, John. How musical is man? Londres: Faber and Faber,
outros grupos da cultura popular e que sua identidade “não 1976.
pode ser compreendida fora dos sistemas de significação nos BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana
quais adquire sentido” (SILVA, 2000, p. 79), elaboramos o Lourenço de Lima reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo
seguinte problema de pesquisa: Quais são os principais Horizonte: Ed. UFMG, 1998. 395 p. Coleção Humanistas.
aspectos estético-estruturais que configuram a identidade CARVALHO, José Jorge de. Um panorama da música afro-brasileira:
musical do Terno de Catopês Nossa Senhora do Rosário da Parte 1. Dos gêneros tradicionais aos primórdios do Samba. Série
antropologia, n. 275. Brasília: Universidade de Brasília, 2000.
mestra Lucélia, de Bocaiúva-MG? ______. Black Music of all colors: The construction of Black
Buscamos então, como objetivo geral do trabalho, ethnicity in ritual and popular genres of Afro-Brazilian Music.
identificar os principais aspectos constituintes da identidade
músicos inseridos na indústria cultural e na mídia, enquanto as timbre, altura e intensidade, por exemplo. A relação de
práticas religiosas afro-brasileiras ainda sofrem bastante afinação entre os três berimbaus não é pautada em intervalos
preconceito e os poucos grupos de Samba de Roda que fixos. Algumas vezes a intensidade sonora conta mais. Os
eventualmente recebem remuneração por apresentações não intervalos harmônicos resultantes variam também com o
desfrutam ganhos financeiros sequer comparáveis a tais tamanho da mão de cada tocador, que pode tirar um intervalo
músicos profissionais. melódico do berimbau que oscila em torno de um tom entre os
A pesquisa etnomusicológica sobre expressões culturais sons “presos” ou “soltos” do “arame” (corda do instrumento).
afro-brasileiras, da escolha do tema à apresentação final, pode É necessário levar em conta as próprias formulações
ser construída em parceria entre pesquisador e comunidade teóricas e filosóficas tradicionais sobre música para
pesquisada. A tentativa de inserção de suas expressões estabelecer uma interface entre perspectivas ética e êmica
culturais em programas de apoio à cultura apresenta-se (NETTL, 2005, p. 228).Do contrário, descrições e transcrições
atualmente como possibilidade de retorno mais imediato que o etnomusicológicas correm o risco de não passarem de
registro de suas expressões culturais para futura elaboração de tentativas de tradução de saberes musicais das expressões
políticas públicas e utilização em processos educacionais. culturais pesquisadas para a música ocidental européia.
Este retorno mais imediato seria o empenho do pesquisador
na inserção dos grupos e comunidades pesquisadas em editais III. TRÂNSITO DE ELEMENTOS MUSICAIS
públicos para tombamento de práticas culturais como ENTRE EXPRESSÕES CULTURAIS
patrimônio imaterial, para realização de registros sonoros, AFRO-BRASILEIRAS
áudio-visuais e escritos de sua memória, para ações
educativas que envolvam comunidade e escola, para prêmios, A música na Capoeira, no Culto ao Caboclo e no Samba de
e assim por diante. Infelizmente, a socialização dos resultados Roda só pode ser abordada de forma holística, já que nestes
com a comunidade envolvida não depende só da vontade do contextos rituais é apenas mais uma possibilidade “ligada à
pesquisador e esbarra muitas vezes na falta de recursos e no corrente infinita de domínios da sociabilidade” (BASTOS,
seu direcionamento desigual e tendencioso tanto entre as 2005. p.92). As três expressões da cultura afro-brasileira
regiões brasileiras como entre formas de expressão e artistas. compartilham, além de aspectos da musicalidade, também
A decisão sobre o que, na cultura, é ou não merecedor de estruturas rituais, hierárquicas, aspectos gestuais e
investimento público (impostos), fica muitas vezes por conta coreográficos, língua e, comumente, seus próprios agentes
do setor privado. culturais.
No processo de trânsito, compartilhamento e adaptação dos
II. SABERES MUSICAIS NA PERSPECTIVA elementos musicais da Capoeira Angola, do Samba de Roda e
do Culto ao Caboclo, versos, quadras e cantigas inteiras,
DA CAPOEIRA ANGOLA
instrumentos, timbres, ritmos e melodias vêem sendo
Propor a investigação de sobreposições, paralelos, adaptados de uma expressão para outra, sendo que os próprios
correspondências e diferenças de significado entre elementos agentes destas expressões culturais nem sempre conseguem
musicais de expressões culturais de matriz afro-brasileira identificar em qual delas os elementos musicais foram
implica, primeiramente, na definição de música pelos agentes primeiramente utilizados.
destas expressões e no reconhecimento dos termos utilizados A adaptação de cantigas de Candomblé - principalmente de
por eles para os aspectos de sua música, numa perspectiva Nação Angola - e de variações rítmicas nos berimbaus -
êmica. Nettl (2005, p. 26 e 228), abordando rapidamente a baseadas também em ritmos do candomblé - à Capoeira
interface entre abordagens êmicas ou éticas, ressalta o uso Angola, podem ser vistas como instrumento de constante
dessa designação na década de 1970 para perspectivas reconstrução e reinvenção da identidade afro-brasileira pelos
diferentes de um fenômeno pesquisado: a do pesquisador e a membros desta expressão, num exercício de afirmação da
do agente do fenômeno pesquisado. correspondência de sua prática a uma mesma matriz cultural
Na Capoeira, por exemplo, o grupo instrumental é afro-brasileira, fragmentada por diversas investidas do
denominado “bateria”; cantar também pode ser “puxar”; colonialismo e do pós-colonialismo como, por exemplo, a
cantigas são “corridos” e “ladainhas”; o bom desempenho dos expectativa da formação de uma identidade nacional
instrumentos em termos de intensidade, criatividade na homogênea a partir da “desafricanização” ou
improvisação rítmica e expressividade podem ser descritos “branqueamento” da cultura brasileira (REIS, 1996, p. 41).
pelos verbos “chorar” ou “falar”. Até aqui não estamos Alguns grupos de Capoeira Angola trabalham como
falando outra língua, desde que estes não são termos estranhos núcleos de pesquisa para reconstrução da identidade
para nós brasileiros, à medida que as escolas de samba afro-brasileira, buscando reatar elos perdidos no tempo e no
cariocas e outros estilos de samba amplamente divulgados espaço. O grupo Nzinga de Capoeira Angola, com núcleos em
pela mídia também os utilizam. Salvador e em São Paulo, por exemplo, aborda vários
Mas quando se trata dos termos para designar critério de aspectos da cultura do grupo lingüístico banto, composto por
afinação dos berimbaus na Capoeira, por exemplo, entramos escravos africanos que chegaram ao Brasil primeiramente e
num campo pouco íntimo mesmo para a maioria dos músicos em maior quantidade, das regiões do Congo, Angola e
brasileiros. A afinação dos berimbaus varia de grupo para Moçambique.
grupo, assim como os termos usados para conceituá-la. Para isso, às Rodas de Capoeira Angola são adaptadas
A partir de minha vivência como “angoleira”, entendo que Cantigas de Caboclos e de Candomblé de Nação Angola. A
termos como som “seco”, “curto”, “rouco”, “violado”, realização de Samba de Roda após as Rodas de Capoeira
“frouxo”, “rachado”, “casado”, “chiado”, entre outros, para os também é eventualmente promovida com o mesmo intuito de
berimbaus, definem um critério de afinação que combina
estabelecer novos paralelos, ou mesmo de explicitar os já do arame do berimbau, particularidade de cada jogador,
existentes. andamento da música -, é fato que os praticantes de capoeira
De qualquer forma, mesmo quando a proposta de explicitar angola iniciados no Candomblé e os que não tomam parte na
tais paralelos ou promover troca simbólica - através do religião compartilham signos e símbolos, mas até que ponto
compartilhamento de elementos musicais, rituais, entre outros decodificam-nos da mesma forma?
- não está colocada abertamente, os membros dos grupos de As pessoas relacionam a música com outras formas de
Capoeira Angola, Samba de Roda e Culto ao Caboclo lidam atividade social através de “...classificações, metáforas,
com a simbologia já diluída nestes saberes. São timbres de metonímias, analogias, e outros meios que usam para
voz, posturas corporais, gestos, melodias, textos, ritmos, incorporá-la na textura de seu ‘padrão particular de vida’...”¹
contextos sócio-econômicos e códigos de comunicação (BLACKING, 1995, p. 229)
permeando tais expressões da cultura afro-brasileira e Uma investigação na questão de atribuição de significados
redesenhando uma identidade. aos aspectos sonoros nas expressões culturais afro-brasileiras
No entanto, na pós-modernidade os membros de tais banto pode encontrar respostas apontando para situações
expressões culturais vivem numa sociedade complexa, diversas, para o maior e o menor grau de correspondência
exercendo papéis sociais diversos, tendo crescido em entre estas interpretações. Este grau de correspondência pode
seguimentos sociais que se articulam econômica e ampliar-se à medida que as relações entre indivíduos e grupos
culturalmente de forma variada e que se relacionam intensificam-se e amadurecem.
hierarquicamente no que diz respeito às origens étnicas que Como muitos mestres de Capoeira Angola foram
por processos históricos vieram compô-las. distanciando-se das comunidades que poderiam ser
A Capoeira Angola é atualmente um ambiente de convívio classificadas afro-brasileiras por seus aspectos
para onde converge grande número de jovens universitários, sócio-econômicos, culturais e étnicos, vem surgindo assim a
inclusive estrangeiros, que buscam entender o sistema simbólico necessidade de ações sociais no sentido contrário – no sentido
do universo afro-brasileiro como forma de conhecimento para o da re-apropriação das práticas e significados do universo
aprofundamento da arte. No Culto ao Caboclo a grande maioria cultural afro-brasileiro por estas comunidades, pois “...o uso
dos indivíduos que fazem com que a religião funcione dos símbolos musicais ajudam a fabricar, assim como a
cotidianamente é de comunidades pouco favorecidas, a refletir, padrões da sociedade e da cultura.”² (BLACKING,
despeito da adesão de alguns membros de outros segmentos 1995, p. 232).
sociais à religião. Muitos grupos de Samba de Roda Considerando que interpretações diferentes e ambíguas dos
inserem-se atualmente na dinâmica de cidades pequenas do signos musicais possam ser a própria origem de inovação e
Recôncavo Baiano, sendo o Samba de Roda praticado por mudança musical (Blacking, 1995, p. 229), o trânsito e o
comunidades locais. Porém, as mudanças decorrentes do compartilhamento de elementos, estruturas e sistemas
tombamento pela UNESCO trouxeram certa visibilidade e musicais entre a Capoeira Angola, o Culto ao Caboclo e o
articulação para os grupos para além de suas comunidades. Samba de Roda, ao gerar tais ambigüidade interpretativas e ao
É pertinente, neste ponto, tocar na discussão proposta por acomodá-las, são fontes inesgotáveis de re-inscrição destas
Ribeiro (2007) sobre grupos “párafolclóricos” trabalhando em expressões culturais, dando força e unidade a um universo
certo nível de profissionalização e ocupando o mercado cultural afro-brasileiro e sua cosmologia.
cultural com representações da cultura afro-brasileira e
popular no lugar das próprias comunidades que deveriam IV. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
deter a propriedade intelectual das mesmas. Esta avaliação – Dentro de uma ordem sócio-econômica e cultural
do que seja ou não “párafolclórico” entre as práticas da estabelecida são inúmeras as limitações que podem interferir
Capoeira Angola e do Samba de Roda, por exemplo – torna-se em uma pesquisa etnomusicológica sobre expressões culturais
extremamente complexa no atual contexto urbano, afro-brasileiras como a Capoeira, o Culto ao Caboclo e o
cosmopolita, multicultural. Samba de Roda. Para romper barreiras entre etnomusicólogos
Então, como é atribuído sentido aos elementos comuns da - como herdeiros de perspectivas científicas e saberes
musicalidade nos contextos das três expressões culturais em musicais ocidentais europeus - e as expressões culturais
questão, por indivíduos com variados backgrounds afro-brasileiras no pós-colonialismo, uma das possibilidades é
sócio-culturais? fazer da admiração e do desejo em conhecer e vivenciar tais
Como se dá a negociação dos significados atribuídos expressões, em seus próprios termos, a motivação principal
individualmente na “fronteira cultural” (BLACKING, 1995, p. para a pesquisa.
229) para a construção de um sentido público dos elementos Teorias e metodologias podem ser adotadas gradativamente,
musicais como símbolos e signos compartilhados à medida que se identificam problemas relevantes para ambos,
(BLACKING, 1995, p. 226)? Blacking propõe que a pesquisador e pesquisado. Assim, a pesquisa toma o caráter de
interpretação que os indivíduos fazem da música é ambígua, troca de saberes e os resultados podem vir a ser socializados
variando com as experiências em diferentes sistemas culturais de forma mais eficaz. No entendimento dos códigos e do
e personalidades individuais (BLACKING, 1995, p. 229). trânsito que ocorrem nestas expressões culturais, o
Considerando alguns elementos expressivos, estruturais e etnomusicólogo pode colocar-se mais como aprendiz do que
dinâmicos numa roda de Capoeira Angola - textos das como tradutor intercultural.
cantigas de capoeira, variações de ginga, interjeições inseridas A constante re-inscrição das tradições musicais
pelo cantador, posturas corporais, variações de toques, afro-brasileiras no tempo e no espaço parece ter como forte
presença e função do atabaque e do agogô, condução do ritual, aliado o trânsito de elementos musicais decorrente da
hierarquia entre mestres e discípulos, rompimento acidental circulação dos membros de suas expressões culturais e de
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Música da
UFBA, à CAPES, aos grupos de Capoeira Angola Zimba e
Nzinga e ao grupo Samba da Murixaba do Egbé Axé Omô Opô
Aganju.
NOTAS
1. ...the classifications, metaphors, similes, metonyms, analogies, and
other means that they use to incorporate it into the texture of their
‘particular pattern of life’...
2. …the use of musical symbols helps to make, as well as to reflect,
patterns of society and culture.
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No culto de caboclos este processo foi observado por Sonia A improvisação, a adaptação de melodia e texto e a criação
Garcia (2001, p. 109-110). de paródias, no Samba de Roda, enriquecem melódica, rítmica
Outra abordagem interessante para esta pesquisa é a e poeticamente os sambas (SANDRONI, 2006, p. 128-130;
“semântica musical”, como definida por Nattiez (2004, p.7). DÖRING, p. 74). Os processos do Samba de Roda e do Culto
Os elementos da música, como significantes, acumulam ao Caboclo, portanto, guardam várias semelhanças nas
funções signaléticas, indiciária, denotativas e conotativas e estratégias de criação e recriação musical. Mas permanecem
remetem a redes de interpretantes que se articulam nas algumas diferenças no âmbito conceitual, como por exemplo,
dimensões física, afetiva, emotiva, religiosa, identitária, o fato de que no Culto ao Caboclo não são os indivíduos que
ideológica, filosófica, entre outras (NATTIEZ, 2004, p.12-14). criam e adaptam, mas os próprios Caboclos, ligados ao
Estes elementos fazem referência tanto às formas e estruturas sobrenatural.
da música em si quanto ao mundo extra-musical. O executante A Capoeira sempre esteve ligada às religiões
ou o ouvinte da música da capoeira, do Samba de Roda e do afro-brasileiras. Muitos capoeiristas do tempo de Rego eram
Culto ao Caboclo nas suas remissões “ao mundo” (NATTIEZ, iaôs, ogãs, equedes, ialorixás, babalorixás (1968, p. 38-42), o
2004, p.7), parte da integridade da cosmovisão afro-brasileira, que ocorre ainda hoje. Alguns dos representantes da Capoeira
assim como de conceitos específicos a cada uma destas Angola baiana, dos grupos N’zinga e Zimba, são iniciados no
formas de expressão separadamente ao interpretar os signos e Culto aos Orixás ou Inquices. O renomado Mestre Moraes, do
símbolos musicais. GCAP (Grupo de Capoeira Angola Pelourinho) – liderança de
Ainda, é importante pensar que os significados musicais um importante movimento de re-valorização da Capoeira
veiculados pela música são flutuantes, vagos, sugeridos, isto é, Angola que tomou força a partir da década de 1980 –, é
são pré-verbais e, para conceituá-los, o uso de uma também membro de religião afro-brasileira e vem inserindo de
metalinguagem - verbalização ou linguagem natural - é um forma sistemática palavras e cantigas de procedência banto
instrumento disponível e indicado para traduzi-los (NATTIEZ, nos corridos e ladainhas de Capoeira, além de variações
2004, p. 10-11). rítmicas nos berimbaus identificadas com ritmos específicos
do Candomblé.
III. CULTO AO CABOCLO, CAPOEIRA Também algumas semelhanças da música do Candomblé
ANGOLA E SAMBA DE RODA de Nação Angola e do Culto ao Caboclo, como toques de
congo, barravento e samba, além da presença de alguns
Os traços bantos da Capoeira já foram destacados por Rego
instrumentos – três atabaques e gã – foram percebidas por
(1968, p. 30-32). Garcia (2001) aponta para o Culto ao
Sonia Garcia (2001, p. 119). O Samba de Roda é, muitas
Caboclo como tendo muito em comum com os Candomblés
vezes, realizado com o instrumental do Candomblé, acrescido
de Nação Angola, também de raízes banto. Considerando que
ou não de outros instrumentos (SANDRONI, p. 42-45). A
os sambas tocados para os Caboclos no Culto ao Caboclo
utilização dos atabaques consagrados aos Inquices e Orixás e
muito emprestam ao Samba de Roda (MACHADO, 2007),
incorporação eventual de Caboclos contribuem para o limite
temos aí três expressões culturais que, além de afro-brasileiras,
tênue entre sagrado e profano no Samba de Roda: “...o
fazem referências a uma cultura de matriz banto. Os africanos
atabaque, por ser sagrado, o samba pode causar uma espécie
do grupo lingüístico banto chegaram primeiramente e em
de transe, que na verdade seria o transe da sua felicidade...”
maior quantidade ao Brasil escravista, das atuais regiões de
(MACHADO, 2007). O padrão rítmico do Samba de Roda é
Angola, Congo e Moçambique.
bastante semelhante ao do ritmo Cabula, de Nação Angola:
Os Caboclos, cultuados em quase todas as religiões
afro-brasileiras, substituem os Inquices dos bantos ligados à
Cabula: (• x . • • x . • • x . • • x . •)
terra “cuja mobilidade geográfica não faz sentido” (PRANDI, Samba de roda: (• x . x • . . • • . . x • . . •)³
2004, p. 120-121). Cultuam-se, então, o índio, o caboclo, mas
também o boiadeiro, o turco, o marinheiro, o marujo. Os No Candomblé de Nação Angola onde predominam rituais
encantados foram pessoas que não morreram – encantaram-se e língua bantos e onde o Samba de Caboclo é muito presente,
em elementos da natureza, em animais, etc. O caboclo é um a palavra “Samba” tem conotação sagrada (MACHADO,
ancestral divinizado, um encantado - é filho do orixá dono da 2007):
casa e liga-se ao orixá de cabeça do filho-de-santo que o
...pra vocês [pesquisadores]... o samba deriva do semba. E pra
incorpora –, e hoje é cultuado em quase todos os terreiros na
nós semba é uma coisa e samba é outra. Tem pessoas que se
Bahia (SHAPANAN, 2004, 318-319). chamam samba. Eu mesmo tenho um filho que se chama
A invenção, as adaptações e improvisos de elementos Samba Narewá que quer dizer a dança da beleza. Semba pra
musicais são características marcantes no Culto ao Caboclo. nós é o ato de você encostar um umbigo no outro. Oxum é
Lody (1977, p. 4) destaca a personalidade inventiva dos também chamada de Samba. Ela é chamada de Kisimbe, é
caboclos na dança. Sonia Garcia (2001, p. 119) também chamada de Dandalunda e é chamada de Samba.”
abordou a inventividade musical dos caboclos, vista pela (MACHADO, 2007).
comunidade de Candomblé de uma perspectiva A textura instrumental da Capoeira Angola incorporou um
mágico-religiosa e não como composições e criações de dos atabaques das religiões afro-brasileiras. O trio composto
indivíduos. Kota Tinkici Cida de Ogum, de uma das casas por três berimbaus - gunga, médio e viola – em sua
mais antigas de nação angola em Curitiba, e Seu Gentil, funcionalidade ritual, guarda relação com o trio de atabaques
também membro do Candomblé, têm esta perspectiva rum, rumpi e lê do Candomblé. O agogô também foi
mágico-religiosa sobre a origem, a criação e a transmissão das incorporado à bateria, assim como a noção de que os
cantigas de Caboclo, Samba de Roda e espíritos de Umbanda
(SILVA; GENTIL, 2007).
instrumentos guardam um poder ritual e, portanto, devem ser louvação. Depois vem o corrido, cantiga de caráter
tratados de forma especial e reverencial. responsorial e repetitivo, na qual versos são improvisados e
A ligação da Capoeira com o Samba vem de longa data. O adaptados pelo puxador, para que se jogue a capoeira. Rego
Samba de Roda já encobertava a proibida prática da Capoeira (1968) traz no capítulo VIII, muitos exemplos de cantigas de
no fim do século XIX e início do XX. Quando a polícia capoeira e outros, relacionados a ela.
chegava, as baianas mostravam o samba no pé, escondendo Esta estrutura de ladainha seguida por corrido na Roda de
nas anáguas as navalhas dos companheiros - daí os nomes Capoeira Angola é parecidíssima com a das salvas, através
“batucada-braba” e “samba pesado (duro)”, referindo-se ao das quais o Caboclo se apresenta, partindo depois para um
estilo carioca de se jogar Capoeira ou de se sambar lutando – canto responsorial acompanhado pelos atabaques, propondo,
a ‘pernada carioca’ (MUNIZ JÚNIOR, 1976, p. 84). muitas vezes, desafios na dança e no improviso de versos.
Características dos textos e da textura coral no Culto ao Para citar apenas uma diferença, o Caboclo canta ajoelhado ao
Caboclo, como a língua portuguesa e a metrificação popular, pé dos atabaques, e o capoeirista acocorado ao pé dos
(GARCIA, 2001, p. 116), também aparecem no Samba de berimbaus.
Roda e no Culto ao Caboclo: “Cantos estróficos e silábicos As figuras 1, 2 e 3 são exemplos de melodia e texto²
em língua portuguesa, de caráter responsorial e repetitivo” demonstrando paralelos entre o Culto ao Caboclo, o Samba de
(SANDRONI, p. 23). As cantigas do Samba de Roda são Roda e a Capoeira. A primeira cantiga é cantada tanto na
escolhidas de um repertório consagrado entre os sambadores Capoeira quanto no Samba de Roda; a segunda faz alusão ao
(Ibid., p. 34-39 e 50-52) – este repertório é, em grande parte, Caboclo. A última cantiga de samba de roda pede para que as
também consagrado entre capoeiristas e membros do Culto ao Mães Ancestrais, simbolizadas pelos pássaros sagrados, levem
Caboclo. embora as energias ruins, e tem parte dela cantada também no
A seguinte cantiga, da qual apresento apenas o texto, tem candomblé, demonstrando o limite tênue entre sagrado e
mesma melodia e texto, apresentando apenas variação de profano (MACHADO, 2007).
andamento quando cantada no Samba de Roda ou na Capoeira Uma das características de timbre da voz que pode ser
Angola. Ela foi cantada pelo grupo Samba Chula Filhos do prontamente identificada como presente nas expressões
Caquende em Cachoeira BA, em apresentação no palco musicais das três manifestações afro-brasileiras, aqui
oficial da festa de São João no dia 24 de junho de 2009, e - abordadas, é a que possibilita que a voz seja ouvida em meio a
para citar apenas dois grupos de Capoeira Angola que a diversos instrumentos de percussão: um timbre estridente,
utilizam corriqueiramente nas rodas como corrido – é cantada privilegiando harmônicos agudos, projetada na parte superior
nos grupos Zimba e Nzinga, em Salvador: da face e um tanto nasal. Em relação à tessitura vocal, o mais
comum é que as regiões utilizadas por solistas e pelo coro
Quando a maré baixar correspondam ou à média, próxima à voz falada, ou à média
Vou ver Juliana ê aguda.
Vou ver Juliana ê Estes são apenas poucos exemplos, rapidamente descritos,
Vou ver Juliana de vários elementos musicais em trânsito entre a Capoeira
Angola, o Culto ao Caboclo e o Samba de Roda, passíveis de
Na ladainha - canto de entrada, “reza” – o capoeirista narra serem estudados mais aprofundadamente.
histórias e estórias próprias ou do imaginário da Capoeira
através de improvisos, fragmentos de cordel e cantigas de
domínio público ou autorais, as quais terminam em uma
Figura 1. Exemplo musical transcrito por Flávia Diniz a partir de gravação de evento de samba de roda no Grupo de Capoeira Farol
da Bahia no dia 14 de setembro de 2007, em Curitiba.
Figura 2. Exemplo musical de corrido de capoeira transcrito por Flávia Diniz, a partir da observação de sua recorrência em Rodas de
Capoeira Angola freqüentadas pela autora.
Figura 3. Exemplo musical de cantiga de samba de roda transcrito a partir de gravação de evento do Samba da Murixaba, em Curitiba,
no dia 18 de agosto de 2007.
desse gênero muitas vezes acabou acontecendo muito cedo. iniciar a partir da dissecação de todos os aspectos musicais,
Diferentemente do aprendizado formal, o choro tem se sempre extraídos de choros bem representativos. Inicialmente,
constituído uma escola de aprendizado que não determina o a harmonia era analisada com atenção e, a partir dela, eram
espaço em que deve acontecer sua transmissão. Em Mossoró, criados os contracantos7. Essa análise era feita para que os
é realizada em residências familiares e em outros espaços. alunos pudessem conhecer a estrutura dos choros e como
Contudo, o ensino formal no conservatório contribuiu procediam as modulações típicas desse gênero musical. Os
significativamente para o processo de transmissão do choro na contracantos eram compostos no momento dos ensaios, sendo
cidade, pois, nesse espaço de instrução musical, alguns escritos em partitura e outros memorizados pelos
principalmente na prática de conjunto com o choro, foi violonistas. A princípio, os instrumentos solistas eram
possível notar quão híbridos eram os processos de executados pelo próprio Araújo, na flauta, e pelo Maestro
aprendizado dessa música, conforme mostram os discursos Batista, que tocava clarinete e sax. Outro elemento musical
dos integrantes dos grupos estudados. Nesse sentido, a ensinado nesse momento era a levada do choro, também
transmissão do choro em Mossoró envolve todas as maneiras denominada de suingue. Para aprender o molejo da batida
como essa música é ensinada: de uma pessoa a outra, de uma característica dessa música, fomos incentivados a ouvir
geração a outra ou de uma cultura a outra, pela aquisição bastante e a tocar ao mesmo tempo, diante de gravações, nos
informal do conhecimento musical em vários contextos. momentos de estudo individual. No caso específico dos
Porém, na década de 1990, a transmissão escrita (re)definiu alunos de violão, a leitura de cifras era imprescindível, pois os
o procedimento da instrução do choro na cidade de Mossoró, álbuns de choro constituíram o primeiro material escrito a ser
sendo a leitura de partitura um dos aspectos priorizados, utilizado. Esse material estava disponibilizado na escrita
sobretudo pela natureza formal do ambiente escolar2 no qual convencional (notas melódicas), com adição de cifras,
esse processo estava inserido. Para Hikiji, apesar de a facilitando assim a realização rápida da execução por aqueles
partitura garantir a preservação da manifestação musical, ela, alunos que já sabiam ler os códigos cifrados.
por si só, não garante a eficácia do ensino e do aprendizado A leitura da cifras já era o suficiente para iniciá-los no trabalho
musical. prático, até porque os fundamentos para desenvolver a leitura
Nas sociedades com escrita – e falamos aqui da musical -, a de partitura já vinham sendo trabalhados nas disciplinas de
partitura é, sem dúvida, uma garantia de preservação de um Teoria e Solfejo [...] Naquele momento, a escrita musical foi
conhecimento ancestral. No entanto, no processo de determinante até mesmo para que a escola pudesse reconhecer
aprendizagem musical, a leitura é apenas um dos aspectos o choro como disciplina, e posteriormente, para a
relevantes. A observação de aulas de canto ou de instrumentos institucionalização do grupo de chorinho (GRAÇAS, 2008).
de orquestras, seja no Gury, seja em escolas convencionais de Na ótica do professor Araújo, o choro se tornou um
música como conservatórios musicais, mostra que o caráter mecanismo pedagógico a partir de suas atividades práticas, ao
oral (e mimético) da transmissão musical em sociedades sem
contrário da tendência conservatorial, que priorizava a escrita
escrita (musical) está presente também no processo de
aprendizagem de instrumentos de orquestra ou do canto coral. musical, até mesmo em detrimento da prática musical8.
Além disso, o fato de existirem partituras não implica que o Para Araújo, os fundamentos do gênero não poderiam ser
conhecimento musical esteja implícito em notas escritas no aprendidos apenas com a leitura da partitura, mas tinham de
papel. A partitura pode preservar um repertório, mas o ser experimentados na prática, ou seja, com os alunos tocando
conhecimento musical não se limita à notação ou sua leitura juntos, ouvindo, entendendo e reproduzindo para depois
(HIKIJI, 2006, p. 116). fazerem seus próprios arranjos. Assim aconteceu a
No primeiro semestre de 1990, o professor Sebastião transmissão que caracterizou os primeiros passos para a
Araújo3 iniciou um trabalho voltado à prática do choro no consolidação de grupos específicos de choro em Mossoró.
conservatório de música. Para tanto, utilizou diversificadas Bruno Nettl não acredita na possibilidade de se aprender um
ferramentas de aprendizagem musical. “Mesmo trabalhando sistema musical sem ouvi-lo, somente a partir da notação. O
numa escola com fundamentação pedagógica tradicional, aprendizado musical é, em quase toda parte, uma experiência
introduzi, conjuntamente, elementos da transmissão oral, da intensa relação entre estudante e professor. A identidade, o
aural4, escrita e até eletrônica, fruto de outras experiências” papel social e a aproximação do professor de música são
(GRAÇAS, 2008). Como fizemos parte dessa turma em que a importantes componentes de um sistema sociomusical
prática do choro foi introduzida, recordamo-nos também que, (NETTL, 1983).
mesmo nas disciplinas de cunho teórico, o referido professor Durante a década de 1990, a escrita musical foi
trabalhava, em sala de aula, com exercícios de percepção, determinante no sentido de caracterizar tanto a transmissão
utilizando repertório à base de choro e de ritmos nordestinos. musical quanto a maneira como os grupos, principalmente o
Alan Merriam propôs que o som musical deveria ser visto Ingênuo 9 , arranjavam suas músicas. Dentre outras
como “resultado final de um processo dinâmico5” (1964, p. características, o Grupo Ingênuo tocava um repertório apenas
145), no qual os conceitos musicais aprendidos levam a um à base de choros e de maneira tradicional. Esse grupo
comportamento determinado, que resulta em estruturas e mantinha ensaios semanais, para os quais as músicas eram
apresentações musicais. arranjadas e escritas por Maestro Batista.
Mesmo trabalhando numa escola que possuía uma estrutura Segundo Cazes, “a criação de metodologia para o
curricular “engessada”, Sebastião Araújo conseguiu driblar a aprendizado dos instrumentos do choro tem facilitado o
natureza formal da instituição e implantou, na disciplina trânsito de conhecimento e contribuído para uma melhoria
Música de Câmara, a prática de conjunto com o choro. Essa técnica dos instrumentistas que se iniciam na linguagem”
prática priorizou o treinamento específico do repertório (CAZES, 2005, p. 191). Em Mossoró, essa realidade foi
chorístico6. Na prática de conjunto, esse professor costumava possível a partir do momento em que, com o fluxo de bolsistas,
REFERÊNCIAS
III. CONSIDERAÇÕES FINAIS CAZES, Henrique. Choro do quintal ao municipal. 3. ed. São Paulo:
Na presente pesquisa, o recorte histórico-musical Ed. 34, 2005.
estabelecido pode comprovar que o choro tem sido uma FROST, Everett L; HOEBEL, Edward Adamson. Antropologia
música presente na cidade de Mossoró desde outras épocas. cultural e social. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1996.
Nesse estudo, ficou evidente que, em Mossoró, os processos e HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. A música e o risco: Etnografia da
as situações em que o choro foi transmitido ao longo de sua performance de crianças e jovens participantes de um projeto
social do ensino musical. São Paulo: Universidade de São Paulo,
história foram diversificados e, em algumas vezes, até
2006.
modelados na concepção do contexto em que a manifestação MERRIAM, Alan P. The anthropology of music. Evanston:
estava inserida. Portanto, o choro tem sido transmitido em Northwester University Press, 1964.
Mossoró pela enculturação informal; na relação tradicional NETTL, Bruno. The study of ethnomusicology: twenty-nine issues
professor-aluno; pela imitação através das gravações; na and concepts. Urbana, Illinois: University of Illinois, 1983.
observação direta da execução; nas etnopedagogias, inclusive SOUZA, Jusamara. Sobre as múltiplas formas de ler e escrever
do “aprender fazendo”. música. In: NEVES, Iara Conceição Bitencourt; SOUZA,
Jusamara Vieira; SCHÄFFER, Neiva Otero; GUEDES, Paulo
NOTAS Coimbra; KLÜSENER, Renita (orgs.). Ler e escrever:
compromisso de todas as áreas. 2ª ed. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1998. p. 205-216.
1 THE SOUND of Rio: Brasileirinho. Direção de Mika Kaurismaki.
Segundo Cazes, já em 1984, a Divisão de Música RioArte, na
Direção Musical de Marcelo Gonçalves. Rio de Janeiro: Rob
pessoa de Lilian Zaremba, percebendo a existência de uma verba digital LTDA, 2007. 1 DVD (90 min.), legendado.
destinada por lei para a realização de um festival de choro, organizou
o Projeto Música 84, marcando assim a prática das oficinas de choro
nos anos 80 (CAZES, 2005).
2
O conservatório de música D’Alva Stella foi o principal agente
responsável pela transmissão do choro em Mossoró, na década de
1990.
3
Dentre as aquisições de novos professores, Sebastião Araújo Alves
Graças foi um dos principais agentes de transformação e até mesmo
o principal responsável pela inserção do choro e da música popular
na grade curricular, bem como no cotidiano dessa instituição. De
origem mineira, Sebastião Araújo introduziu, na estrutura curricular
do conservatório, a prática de conjunto, denominada oficina de choro,
marcando, dessa forma, o procedimento do ensino-aprendizagem
escolar do choro na cidade de Mossoró.
4
O termo aural é usado aqui em contraponto ao “visual” e “gestual,
como referência direta ao ato de ouvir, à audição, ao auditivo.
Análise auditiva é também a tradução do termo utilizado no idioma
inglês aural analysis. SOUZA (1998. p. 214) afirma que, para as
teorias cognitivas “o ‘termo aural’ refere-se à escuta interna de sons
ou melodias, isto é, à criação de estruturas auditivas internas ou
construção mental do discurso musical”.
5
End result a dynamic process.
6
Nas disciplinas teóricas ministradas por esse professor, era comum,
nas aulas de percepção, o trabalho em que os alunos de flauta, por
exemplo, copiavam a melodia da flauta, os de violão e cavaquinho, a
harmonia, podendo ser escrita na forma de cifras. Assim eram
ensinados os fundamentos teóricos, para os quais o choro era a
matéria prima.
7
Contracanto, expressão muitos utilizada pelo professor Sebastião
Araújo, quer dizer a mesma coisa de contraponto ou “baixaria”.
8
Na primeira estrutura curricular do conservatório, o aluno só
poderia matricular-se num instrumento após ter concluído o primeiro
ano da disciplina de Teoria. A representatividade que a escrita
da manutenção do estado físico do objeto visando sua pelo autor como a reconstituição do contexto sonoro, a partir
perpetuação para o futuro, minimizando ou impedindo que a da origem do fonograma a ser preservado, segundo supostos
degradação causada pela ação do tempo comprometa a critérios de reprodução e escuta da mesma época da gravação
informação portada pelo objeto. A restauração, por sua vez, original. A segunda vertente, denominada de “Tipo II”,
possui caráter de intervenção e reversibilidade, pois busca o apresenta a restauração visando o restabelecimento do som
retorno a um estado anterior ideal do objeto preservado ao intencionado pelo artista, no momento da gravação de sua
considerar que o estado presente do objeto é insatisfatório. execução musical. Para Storm, a função arquivística de
Assim, no caso do som gravado, a restauração em si somente restauração e preservação deve se balancear entre ambas as
pode ocorrer quando a preservação já se encontra assegurada, vertentes, de maneira interdependente. As proposições de
pois a primeira deve ser um procedimento posterior e Storm não são de forma alguma conclusivas, mas alimentaram
complementar a esta última. o debate acadêmico acerca das possibilidades levantadas em
O principal alvo dos esforços de preservação e restauração seu texto, que até hoje permanece como referência teórica
é o combate à degradação física do fonograma, uma vez que a para a preservação e restauração de gravações.
degradação física implica diretamente na degradação do sinal A partir de Storm, Dietrich Schüller (1991) caracteriza duas
sonoro quando o fonograma é reproduzido. Podemos definir a abordagens mais gerais: a primeira de caráter acadêmico,
degradação sonora como “qualquer modificação indesejável objetivando a fidelidade histórica, e a segunda de caráter
ao sinal de áudio que ocorre de forma resultante (ou comercial, que se enquadra como uma tentativa de
subseqüente) ao processo de gravação.” (GODSILL & reinterpretação. Schüller delimita ainda três níveis distintos de
RAYNER, 1998, p.134). intervenção dentro da abordagem que busca a fidelidade
Ao proporcionar abertura para intervenções técnicas, a histórica: 1) A gravação tal como era ouvida em sua época; 2)
restauração de fonogramas esbarra nos delicados limites entre A gravação tal como foi produzida, com correção de erros a
subjetividade e objetividade, que são perpetuados pelas nível de reprodução; 3) A gravação tal como foi produzida,
discussões audiófilas sobre os conceitos de autenticidade e de com correção de erros a nível de reprodução e gravação.
fidelidade entre diferentes versões de um material sonoro Peter Copeland (2008) propõe uma abordagem
original. Para Brock-Nannestad, a autenticidade de um multifacetada de restauração que define como Quadruple
fonograma não deve ser definida de forma conclusiva, mas a Conservation Theory, que pode ser resumida nos seguintes
partir de uma abordagem funcional como sendo “o grau até tópicos: 1) Conservação da fonte original pelo máximo de
onde ele (o fonograma) preserva e entrega a informação tempo possível; 2) Geração de uma cópia o mais próxima
desejada ao tempo em que ela for requerida” e alerta que possível do original em seu estado atual, sem intervenções; 3)
“existe a todo tempo uma contínua perda de informação.” Geração de uma cópia com o som ajustado de acordo com o
(2000, p.10). critério científico, segundo informações objetivas; 4) Geração
Assim como a perda da informação original em um de uma cópia com o som ajustado de acordo com critérios
fonograma pode ocorrer por degradação física ao longo do subjetivos, de caráter experimental.
tempo, a informação também pode ser perdida através de Uma interpretação mais atualizada das propostas anteriores
distorções causadas por uma intervenção inadequada, a partir é apresentada por Sergio Canazza (2007), cuja estrutura é
do momento que o restaurador identifica e corrige uma falsa dividida em cinco pontos de abordagem: a) Abordagem
degradação. Simon Godsill comenta que: “não consideramos Conservativa, que utiliza técnicas para manter a informação
estritamente qualquer ruído presente no ambiente da gravação do objeto original preservado a partir de sua condição atual
tal como o ruído da platéia em uma performance musical pelo maior tempo possível. b) Abordagem Documental, que
como degradação, uma vez que ele é parte da 'performance'.” admite intervenção de restauração apenas no caso de
(1998, p.134). Logo, a restauração deve respeitar a degradação inquestionável do objeto original. c) Abordagem
autenticidade do objeto como limite, segundo a informação Sociológica, que busca uma reconstrução histórica de como o
original contida nele, o que lança a restauração a um nível de fonograma era apreciado em sua própria época. d) Abordagem
debate musicológico: como identificar quais são os Autoral, que visa recriar a sonoridade original intencionada
fragmentos de informação passíveis de intervenção pelos autores do fonograma. e) Abordagem Estética, de
restaurativa no contexto da reprodução de fonogramas propósito comercial, restaurando a informação do fonograma
históricos? de acordo com um padrão aceito pelo mercado atual.
Diante desta questão, o processo de trabalho para a Uma simples comparação das propostas acima revela
restauração de um registro sonoro pode assumir diferentes vários pontos comuns no tratamento de gravações históricas,
caminhos, de acordo com diferentes propósitos e necessidades. especialmente ao diferenciarem as iniciativas de propósito
Embora cada gravação seja um caso único, podemos agrupar documental/histórico daquelas de propósito comercial/estético.
os procedimentos envolvidos em certos grupos de ação de A seguir serão expostos com maior foco alguns dos pontos
acordo com a definição prévia de profissionais e estudiosos iniciais que surgem da abordagem de propósito
oriundos das áreas técnicas. documental/histórico, de interesse mais imediato para acervos
William D. Storm foi o primeiro a apresentar uma e pesquisadores em música.
discussão teórica na busca de critérios objetivos sobre
diferentes abordagens na preservação e restauração de IV. A FIDELIDADE SONORA E O PADRÃO
fonogramas. Segundo Storm (1983), o processo de regravação DE QUALIDADE
de fonogramas históricos para fins de preservação pode ser
Antes que se possa colocar em prática o trabalho de
bifurcado em duas vertentes. A primeira, denominada de
restauração, o pesquisador deve estar consciente de sua
“Tipo I”, busca a preservação do som histórico, idealizado
própria posição enquanto ouvinte inserido em uma realidade
sonora diferente daquela em que o fonograma foi gerado, para sonoro em sua capacidade de imitar o som de uma fonte real,
não se ofuscar diante das expectativas geradas pelo produto que não raras vezes rendiam elogios à fidelidade do aparelho.
final restaurado. Um paralelo deste contexto pode ser (THOMPSON, 1995; COPELAND, 1991).
encontrado na teoria de Cesare Brandi (2004), mencionada Não houve demora para que os fabricantes de
anteriormente. Segundo Brandi, os aspectos históricos, equipamentos reprodutores percebessem o potencial do termo
estéticos e funcionais que regem a obra devem ser fidelidade como uma poderosa ferramenta de propaganda.
considerados dois momentos: o primeiro de acordo com sua Tornou-se comum nas primeiras décadas do século XX a
época e lugar de origem, e o segundo de acordo com a época e ênfase pela fidelidade de cada novo aparelho lançado, que
lugar onde a restauração ocorre. Através deste conceito, ao normalmente tomavam como base a proximidade do som ao
qual Brandi chama de “dúplice polaridade estético-histórica” vivo para legitimar o suposto bom desempenho. Com o passar
(2004, p.32), o restaurador é orientado sobre como reconhecer dos anos, as máquinas forneciam cada vez mais recursos de
e respeitar a distância espaço-temporal que o separa do objeto, controle, conforme os ouvintes se familiarizavam com os
e assim evitar que a obra de arte seja descaracterizada durante meios de reprodução sonora. Aos poucos, a referência de
o processo de restauração. fidelidade “deslocou-se da performance ao vivo para o signo
A história do registro fonográfico revela aspectos desta performance” (VALENTE, 2003, p. 73). Os manuais
interessantes de sua aceitação pela sociedade e das diferentes dos equipamentos começaram a detalhar melhor sua operação
expectativas e critérios que cunharam a noção de fidelidade em torno de uma prática mais apropriada de reprodução e,
sonora como um meio de avaliação de qualidade do som consequentemente, os ouvintes começaram a tomar
gravado. Esta expectativa por um certo nível de qualidade consciência da sonoridade, e a usá-la como referência para a
sofreu importantes mudanças a respeito do que seria o avaliação de fidelidade entre diferentes equipamentos.
aceitável e o desejável em termos de reprodução sonora ao Hoje, mais de um século após a invenção das primeiras
longo dos anos, tanto por razões de capacidade técnica quanto técnicas de registro sonoro, o conceito de fidelidade se
por fatores culturais. Desta forma, a compreensão das nuances encontra muito diluído de seu significado inicial. Estamos
que compõem a noção social de fidelidade sonora é inundados de informações sobre formatos de arquivos de
indispensável para a realização de um trabalho de restauração áudio, equipamentos de reprodução e padrões de qualidade
bem fundamentado. extremamente instáveis. Ainda nos anos 70, Walter Welch
O início do uso do termo fidelidade sonora é tão antigo argumentava que “A indústria de gravação, através de seus
quanto a criação dos primeiros mecanismos de reprodução de meios de propaganda, quer fazer com que todos acreditem que
som. Curiosamente, no entanto, a aplicação do termo ela está no topo da verdadeira alta fidelidade na reprodução de
fidelidade com embasamento técnico só veio a ser realidade som, mas isto simplesmente não se sustenta.” (1972, p. 85).
após a década de 1920, quando foram desenvolvidos os Desta forma, as grandes mudanças tecnológicas nos sistemas
primeiros equipamentos capazes de mensurar os parâmetros de reprodução de som induzem a aceitação de novos padrões
físicos do som de modo a permitir estudos sistemáticos de de escuta, que por sua vez passam a servir como os próprios
comparação entre fontes sonoras (THOMPSON, 1995). Logo, referenciais para a avaliação de uma tecnologia anterior.
as informações acerca da noção de fidelidade sonora oriundas Essa relativização do conceito de fidelidade, onde meios de
das últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do reprodução sonora se encontram distanciados culturalmente,
século XX devem ser interpretadas como sendo de teor temporalmente e tecnologicamente dificulta muito o
altamente qualitativo, uma vez que sua verificação ainda não estabelecimento de um padrão de qualidade fixo para a
poderia ocorrer de maneira objetiva devido à falta de recursos percepção sonora de diferentes épocas, que possa servir como
e ferramentas para tal. uma referência para o restaurador. Dietrich Schüller alerta que
Com relação ao início da história do registro sonoro, a “as novas tecnologias e o novo comportamento auditivo
noção de fidelidade estava vinculada principalmente ao nível sempre irão estimular tentativas de reinterpretar gravações
compreensão da linguagem falada, validando as máquinas antigas por meios técnicos modernos.” (1991, p. 1015). Isto é
como capazes de fornecer um registro confiável para esta um reflexo de que o restaurador está inserido em um ambiente
função. Peter Copeland comenta que “o principal objetivo era sonoro que implica em uma distorção no julgamento da
atingir e manter qualquer inteligibilidade”, pois o próprio qualidade sonora de gravações geradas sob outros contextos.
fonógrafo de Edison foi criado com a intenção inicial de servir
primordialmente como um gravador de voz para escritórios, V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
como um substituto do estenógrafo (1991, p. 7, 71). Relatos Se o trabalho de restauração objetiva a fidelidade histórica
de Graham Bell acerca dos primeiros testes de conversas torna-se necessário, pois, um conhecimento dos hábitos de
telefônicas afirmam que “a articulação era perfeita – e eles escuta do tempo e lugar da gravação a ser restaurada para uma
não possuíam nenhuma dificuldade em entender um ao outro” correta ambientação e definição das expectativas do
(STERNE, 2003, p. 274). restaurador segundo as próprias expectativas do ouvinte
A partir da década de 1890, quando começaram as médio para o qual a gravação foi originalmente destinada, o
primeiras aplicações musicais para o fonógrafo de Edison, o que significa que os critérios utilizados para a restauração que
público já comparava a eficiência de sua invenção em se faz hoje podem não ser os mesmos amanhã. Isto pode ser
registrar sons como sendo “impossíveis de dizer a diferença muito bem-vindo pela indústria fonográfica, mas se torna uma
entre a gravação e o original” (COPELAND, 1991, p. 71). grande armadilha para pesquisadores e arquivistas que muitas
Vários testes auditivos (tone tests) foram realizados com vezes dependem de equipamentos, profissionais e serviços de
ouvintes em diferentes épocas, com diferentes gerações de restauração originalmente voltados para propósitos
equipamentos, a fim de se verificar a eficiência do registro comerciais.
REFERÊNCIAS
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Do mesmo modo, não existem trabalhos aprofundados entrevistados utilizou a terminologia “paráfrase” para definir
sobre o improviso em gêneros musicais brasileiros. Por isso, a essa categoria de improvisação.
definição de improviso a ser utilizada neste trabalho terá Com efeito, o relato a seguir demonstra que a paráfrase é
como referência o The New Grove Dictionary of Jazz tão comum no Choro que se confunde com o próprio modo de
(KERNFELD, 2006). Esse autor define improviso como a tocar e aprender o gênero:
criação espontânea da música ao mesmo tempo em que é LB: o Waldyr (Azevedo) lançou um caderno de partituras com
tocada. Ela pode envolver a composição imediata de toda a todas as músicas dele. Está tudo escrito errado (...) Eu acho que
obra pelos músicos, ou apenas a alteração/variação de o jeito que está escrito é para fins didáticos. Igual eu faço com
estruturas pré-existentes, ou qualquer coisa entre esses dois meus alunos: toca com a partitura em casa, mas daqui um mês
extremos. No jazz, assim como no Choro, não somente o eu não quero essa partitura aqui. Porque eu pego a partitura e
solista, mas todos os músicos em um grupo podem improvisar. não está escrito como a gravação(...)No choro não funciona, é
As baixarias (condução da linha do baixo realizada pelo só uma referencia inicial. Às vezes o cara nem improvisa, mas
mostra a música de um jeito diferente.
violão de 7 cordas) por exemplo, são, em sua maioria,
LP: [dando a definição de baixo obrigatório] baixo obrigatório:
improvisadas; do mesmo modo, o pandeiro e o cavaquinho tem o breque, e abre para o violão fazer. É bom você conhecer
podem criar variações ritmicas ao longo da performance, que, o original, e depois fazer outros também. Com o tempo você
de acordo com a definição de KERNFELD (2006), podem ser vai vendo que tem diversas formas de fazer aquele
consideradas improvisos. encaminhamento ali, aquela ponte, vamos dizer assim.
KERNFELD (2006) identifica, para o Jazz, três categorias DM: A primeira coisa: o balanço, tocar soltinho, no suingue.
de improviso. A paráfrase é definida como sendo a (...). Tem que estar balançando, brincando, e as nuances
ornamentação da melodia do tema ou de alguma parte dela, de rítmicas interpretativas dentro do choro, criatividade. Como o
modo que a melodia permaneça reconhecível. A improvisação cara brinca com esses elementos, se entende o vocabulário. (...)
Agora para tocar bem o choro, o cara (...) tem que tirar as
formulada consiste na construção de um novo material a partir
gravações e tocar coladinho (...) Ele vai ter que tirar varias
de um corpo de idéias fragmentadas. Por fim, a improvisação músicas, aí se ele for esperto, ele vai colar no Jacob, vai ver as
motívica consiste na construção de novo material a partir do soluções que ele arruma, as diferentes interpretações sobre a
desenvolvimento de uma única idéia rítmica. O autor enfatiza mesma coisa, os ornamentos e o ritmo, principalmente, muita
que, na prática, os músicos lançam mão dessas três categorias, coisa tá no ritmo. (...) Tem uma coisa, né, o espírito vadio . (...)
ao mesmo tempo, nas performances que realizam. Eu digo improviso não é como o improviso no Jazz não, você
Os relatos dos Chorões, bem como a análise de gravações e obrigatoriamente tem que fazer os turnarounds, sempre nada a
de registros escritos, mostram que a paráfrase e a ver com o tema. Tem que ser uma brincadeira com o tema,
improvisação formulada são mais comuns no gênero, e a primeiramente rítmica.
ML: Não é improviso de tocar uma parte inteira improvisada, é
motívica é pouco utilizada. Também é muito comum, no
você botar uma nota mais longa do que ela é... O improviso
Choro, outro tipo de improvisação, à qual, neste trabalho, será acho que nasce dessa releitura da partitura. Já é um improviso.
denominada improvisação por cromatismo. A seguir, serão Quando você tem a partitura, o cara toca uma vez a música. Aí,
analisadas as formas como essas categorias de improvisação na segunda vez, ele já vai tocar outra coisa. Você ouve o
estão presentes no Choro. Lamentos e diz: Pô, cadê aquela partitura que você tava
Segundo KERNFELD (2006), a paráfrase pode ser simples, tocando aí? E ninguém escreve os ornamentos. Escreve a
consistindo apenas na introdução de poucos ornamentos, ou melodia. (...)
pode envolver uma reformulação altamente criativa da FC: Tem uma gravação que o cara toca de um jeito, noutra o
melodia da música. Nesta categoria de improvisação, a cara toca de outro. Ainda não é aquela coisa assim: improviso,
como seria chamado hoje, mas é improviso. É um improviso
estrutura harmônica da música permanece inalterada, embora
acanhado.
possam ocorrer pequenas alterações e ornamentações. A
paráfrase é comum e valorizada nas performances do Choro, O relato do bandolinista DM também faz referência ao
conforme mostram os relatos transcritos: suingue e ao balanço do choro, que ele denomina “espírito
ML: Porque quando você vê uma partitura de choro, ela vadio”. Ambos os bandolinistas citados mencionam as
raramente está bem escrita. Raramente, na partitura de choro, o interpretações de Jacob do Bandolim, repletas de paráfrases
cara respeita as figuras. Ele faz quadradinho. (...). Quando eu bem elaboradas; DM afirma ainda ser necessário imitar as
passo a partitura para o aluno ler, eu falo: ó, tá massa, agora paráfrases criadas por Jacob do Bandolim e Pixinguinha para
você pegou as notas. Agora vamos dar um valor diferente para o aprendizado do Choro. Pode-se dizer que a alteração da
elas. Agora você vai mexer. Olha, pode estender essa aqui. Isso duração das notas da melodia é característica universal nas
aqui não vê como semicolcheia, não. Pode ver como colcheia, performances do Choro. Em função disso, muitos músicos
deixa ela durar um pouquinho mais. Puxa essa para trás, joga entendem que ouvir as gravações é o melhor modo de tocar o
essa para frente. Porque isso, de puxar para trás e jogar para a
frente, é que dá mais balanço, dá mais suingue na música, ela
Choro, pois nelas é possível conhecer as paráfrases dos
fica mais viva, né? grandes intérpretes, normalmente ausentes dos registros
escritos.
Observamos que alguns dos chorões não concedem à A improvisação formulada, também muito comum no
paráfrase o status de improviso, como é o caso de DM, LP e Choro, é considerada mais difícil de ser realizada pelos
LB, embora reconheçam que é criação espontânea de cada Chorões entrevistados, porque exige conhecimentos
músico. O bandolinista ML, assim como o violonista FC, aprofundados de harmonia. De acordo com KERNFELD
chamou a paráfrase de improviso, mas fez questão de (2006), a improvisação formulada é aquela em que diversos
diferenciá-la do improviso “de tocar uma parte inteira fragmentos melódicos se entrelaçam e se combinam em uma
improvisada”. Cabe ressaltar, contudo, que nenhum dos melodia contínua. No jargão do jazz, tais fragmentos
melódicos são denominados licks. A improvisação formulada Para isso, você precisa ter conhecimento harmônico, e aí pegar
se baseia no tema da música original; sua estrutura rítmica e repertorio para você tocar. Também tirar o máximo de
harmônica ficam inalteradas em termos de métrica, tamanho gravações possíveis de pessoas que você admire e que sejam
das frases, relações tonais e objetivos harmônicos principais. bons improvisadores. Porque você não pode criar nada se não
conhece o que já foi feito. Então, pega um grande improvisador,
Mas a forma como o tema é tratado é mais livre do que na
vê todos os caminhos que ele faz, e depois acrescenta sua
paráfrase, e as harmonias podem variar por meio do uso de parcela de criatividade. Agora a improvisação tem que ser
acordes alterados e substitutos. Os relatos dos Chorões, muito cuidadosa, pra não descaracterizar a linguagem do choro.
transcritos, demonstram que a improvisação formulada é Aproveitando os arpejos, sabe? Brincando ritmicamente com
presente no Choro, e baseia-se também na combinação de as células. Principalmente isso, os ritmos e os arpejos.
fragmentos melódicos, visando a construção de uma melodia
Pelos relatos, observamos que os Chorões criam um
em cima de um encadeamento harmônico pré-estabelecido:
vocabulário de frases melódicas a partir do estudo das escalas
DM: Mas, para improvisar bem, é preciso construir o e dos arpejos, e realizam combinações no momento da
vocabulário. O repente, por exemplo... Eles inventam na hora, performance improvisada. Concedem grande importância às
mas têm um vocabulário. Quanto maior o vocabulário, mais
variações rítmicas, porque demonstram a criatividade do
fácil brincar com isso. Na verdade, na minha visão, você pode
pensar o improviso como a combinação de vários fragmentos. improvisador. Entendem esses músicos que, quando baseado
Como a gente pega letras, sílabas, frases e brinca com essas em escalas e arpejos, o improviso não descaracteriza a
combinações. E o ritmo faz toda a diferença. Com duas notas, linguagem do Choro. Se for utilizado o jargão do jazz,
se a sua idéia rítmica for boa, dá pra fazer um monte de coisa podemos dizer que os Chorões constroem os licks a partir das
legal. Acho que o ritmo é noventa por cento; depois é que você escalas e dos arpejos.
tem as notas. A principal fonte, de onde os chorões extraem as frases que
ML: porque, para você improvisar bem, vai ter que sacar formam seu acervo, são os próprios choros. Por isso, a
bastante do som, o acorde que está rolando, a harmonia, e as maioria deles afirma ser importante “tirar” muitos choros,
técnicas que você tem que desenvolver. Essa técnica você pode
inclusive os improvisos de outros intérpretes, para que o
malhar sozinho, você pode malhar as escalas, só escala, pode
criar frases em cima da escala, frases em cima do arpejo. Aí músico possa, a partir dessas referências, construir um
você cria esse acervo. Quando você vai tocar, vai usar vocabulário. A partir daí, ele pode começar a criar seus
mecanicamente. próprios improvisos. Os relatos mostram também que o
LP: [explicando como estuda improviso] basicamente arpejo. domínio técnico do instrumento é fundamental, pois, sem ele,
Os violões de 7 cordas usam muito arpejo, escalas e os não há como improvisar. Com efeito, a publicação
intervalos. Basicamente isso. Começar os estudos pela onda do “Vocabulário do Choro”, editada pelo saxofonista Mário Sève
arpejo. Tocar primeiro as notas dos acordes. Vai colocando as (1999), é composta de exercícios de escalas e arpejos
escalas, depois vai fazendo a ligação de uma escala para outra, extraídos de choros. Segundo o autor da publicação, os
de um acorde para outro, e assim, vão surgindo os baixos. (...)
exercícios mais importantes são os “estudos melódicos”,
Você tem que criar mesmo, ir inventando na hora. Pega um
padrão rítmico, usa uma escala, faz um arpejo. Meio que você compostos em cima de células (ou fragmentos melódicos)
vai fazendo na hora mesmo, porque senão não fica um extraídas de composições de choro e agrupadas dentro de uma
improviso. seqüência harmônica ou melódica escolhida. Por meio da
MM: Sempre fica uma frase ou outra que você usa naquele execução desse tipo de exercício, o músico ganha intimidade
momento, que você acha adequado. A frase é decorada, mas com a linguagem do Choro. A publicação de Mário Sève
você manda outra que está criando na hora, naquele momento. (1999) traz, de forma sistematizada, exercícios que os
A partir dela, você já cria uma outra, sacou? Um fragmento Chorões aprendem a realizar por conta própria, ouvindo
dela, e você já cria uma outra. Então, o bom do improviso é gravações, participando de rodas e conversando com
isso. Você nunca vai tocar a mesma coisa. Depois de um tempo
instrumentistas mais experientes.
que você está praticando isso, depois de um tempo, você pode
tocar as mesmas notas, mas nunca vai ser a mesma coisa. [Ao A improvisação motívica é definida por KERNFELD
dizer] Nunca, eu estou sendo muito radical, mas você sempre (2006) como aquela em que um motivo rítmico é tomado
vai fazer alguma coisa diferente. Depois de ter uma certa como base, e repetido inúmeras vezes com variações de
habilidade com o improviso, você vai administrando bem ornamentação, com transposições, acréscimo ou diminuição
melhor isso. de notas, entre outras. Nas entrevistas realizadas, os chorões
MM: Sempre fica uma frase ou outra que você usa naquele não citaram seu uso nos improvisos. Embora não seja comum
momento, que você acha adequado. A frase é decorada, mas em improvisos, esse recurso é bastante utilizado nas
você manda outra que está criando na hora, naquele momento. composições.
A partir dela, você já cria uma outra, sacou? Um fragmento
Recurso muito utilizado no Choro, tanto em composições
dela, e você já cria uma outra. Então, o bom do improviso é
isso. Você nunca vai tocar a mesma coisa. Depois de um tempo quanto nos improvisos, é o uso da escala cromática. Não há
que você está praticando isso, depois de um tempo, você pode improvisos totalmente baseados em escalas cromáticas, mas,
tocar as mesmas notas, mas nunca vai ser a mesma coisa. [Ao em geral, os chorões inserem frases cromáticas no decorrer de
dizer] Nunca, eu estou sendo muito radical, mas você sempre improvisos baseados em escalas e arpejos maiores e menores.
vai fazer alguma coisa diferente. Depois de ter uma certa Relatos fazem referência ao cromatismo:
habilidade com o improviso, você vai administrando bem
ML: Mas o choro tem a onda do cromatismo, que nada mais é
melhor isso.
do que qualquer nota. Todas as notas. Quando você faz uma
HN: [Improviso] foi uma das primeiras coisas que eu estudei.
escala cromática, você fez todas as notas da escala. A questão
Então, a primeira fase é aquela da ralação, do estudo, do suor.
é: quais são as notas importantes de todas essas? Assim como
Chata para caramba, que é você decorar as escalas, destrinchar
num texto, que tem as palavras que são importantes, e outras
o braço todo. Depois você aprende a aplicação das escalas. (...).
que são de junção. Mas tem palavras-chave. Assim como na
frase musical. Tem notas que são mais importantes. Mas, na que ele está... Ele não sai da música. (...) Tudo o que o Jacob
verdade, você pode botar qualquer nota. faz... isso é um talento que aquele cara tinha. Todos os
LB [explicando a característica do fraseado do Choro]: improvisos do Jacob são maravilhosos. Ele não gasta nota em
semicolcheias e arpejos. Basicamente semicolcheias. Rítmica é nada. É gastar nota! Esse é o argumento. Bom improvisador é o
isso, consonantes maiores, com sexta, com nona. Existe o que não fica gastando nota. Ele não fica tocando qualquer nota
cromatismo também. porque está fora do tema. Não!!!! Ele quer aquele som ali. Ele
RA: Porque o choro usa muita escala menor harmônica, usa quer aquelas notas ali.
muito a escala melódica, muito a escala cromática.
Além do domínio das técnicas (paráfrase, improviso
Para os chorões entrevistados, realizar um improviso formulado e cromatismo), o improviso no Choro submete-se a
compreende um risco e uma prova, pois a afirmação de sua julgamentos subjetivos, ligados à estética do gênero. Todos
capacidade como músico requer que corra o risco de errar. E os músicos entrevistados afirmam preferir a ausência de
os relatos mostram que é por tentativa e erro que a capacidade improvisos àquele mal-feito ou considerado sem beleza.
de improvisar se aprimora: Defendem também a parcimônia na improvisação, tanto em
AC: Quando você vai fazer os baixos, você sente que ficou relação à quantidade de tempo em que se improvisa em uma
ruim, não bateu com a melodia, não bateu com a harmonia. música quanto em relação às demonstrações de virtuosismo
Mas é aquela famosa lei da tentativa e erro, porque o chorão que metralham os ouvintes com centenas de notas por
tem essa coisa de mostrar a sua criatividade perante os outros. segundo:
LP: Você vai estudando o vocabulário, vai colocando umas
coisas suas e acaba que nem todo solo fica bom, né? Mas, às DM: a gente tava ouvindo um improviso do Jacob. Nove
vezes, tem solos que ficam ótimos, e fica uma coisa que você minutos improvisando numa música, bicho! Mas parece que
nunca fez na sua vida. ele está tocando o tema de tão bom que é, né? Totalmente
MM: Fui batendo cabeça, tentando de um jeito, tentando de dentro do contexto da música, tudo muito claro.
outro. Agora eu estou vendo o improviso de uma outra forma. TP: Eu não sou muito fã, nada contra, eu estou falando a
Porque eu aprendia muito as escalas assim, né, e não fazia no minha preferência, de muito improviso durante a música. Eu
braço todo do instrumento. Ficava só na região grave. (...) Um prefiro, acho até que aparece muito mais, valoriza muito mais o
dia, o Hamilton de Holanda me pagou um sapo. Ele falou: instrumentista, quando ele vem tocando reto e, quando
velho, você tem que estudar todas as escalas no braço todo do ninguém espera, vai pensar que ele vai entrar com a melodia,
instrumento. Foi a partir daí que eu comecei a estudar ele entra com o improviso. Mas uma coisa sutil. Eu gosto é
improvisação mesmo. Foi quando ele foi assistir o show do trio desse jeito.
Cai Dentro e sacou que eu me ferrei em alguns improvisos. (...). LB: Tocou a música, aí repete a segunda ou a terceira parte
Quando chegava na região aguda do braço, eu me ferrava. (...) vinte vezes. Só o cara que está improvisando é que está
Ele disse que eu tinha que estudar todas as escalas no braço gostando. (...) Fica aquela coisa massante, igual ao Jazz, o tema
todo do cavaco. Aí eu tive uma outra concepção do improviso, dura 30 segundos , mas a música dura duas horas. (...) Os
porque eu tava achando que improvisar era só aquela coisa dos solistas, e até mesmo os violonistas, ficam toda hora pedindo
arpejos dos acordes (...). E é brincando. pra improvisar (...). Fica sem sentido a coisa, e a música
RA: Arrisco, eu acho que é bom viver em risco. Quanto mais mesmo, que era pra ser apresentada, não acontece. Às vezes
você se arrisca, melhor você fica, porque uma hora você vai neguinho começa a tocar, faz a A, e na B já manda bala. Nem
acertar, né? Algumas coisas dão certo, outras não. As que não expõe o tema! Tem que apresentar o tema, e improvisa depois.
dão certo eu boto no bolso, e as que dão certo eu deixo ali pra FC: Bom improviso é a coisa mais intuitiva, e não aquela coisa
sempre. programada. Aquele monte de escala colada uma na outra.
RA: Improvisar para mim, bicho, é sempre ser o mais Bom improviso é o Dominguinhos. Ele cria outra melodia. Ele
melódico possível. É sempre uma melodia, sabe? O improviso não improvisa, ele faz outra música em cima da melodia que já
só é bom se for melhor do que a melodia. E tem que permear a existe. Ele compõe outra música. Não fica nessa edição.
melodia, tem que ter a ver com a melodia. Você tem que Porque pode colar errado. Às vezes fica bom, mas muitas vezes
respeitar os estilos. (...). E os caras que enxergam isso são os fica uma m.!
maiores improvisadores. Por exemplo, você vai tocar um “Flor É interessante notar que os Chorões reconhecem que a
Amorosa”, é um lance diatônico, Sol com sétima menor e Dó
técnica do improviso formulado, de unir fragmentos
maior. Por exemplo, o Paraíba, que é um trompetista
maravilhoso aqui de Brasília. Se ele vai tocar o “Flor melódicos, nem sempre funciona bem, porque às vezes o
Amorosa”, ele não vai tocar o Flor Amorosa com a linguagem resultado final é esteticamente ruim. Suas falas evidenciam
do Miles Davis. (...) Vai improvisar com a linguagem do que o bom improviso é aquele que produz uma melodia,
Callado, com a linguagem diatônica. Se for improvisar, vai ser diferente da original, mas que mantém, com ela, um diálogo.
com o melhor som, com escala de Dó maior e tocando as Eles enfatizam a necessidade de aprimoramento técnico, da
melhores notas dentro daquele estilo, sacou? (...). Por exemplo, aquisição de conhecimentos sobre harmonia, e do domínio das
“Aquarela na Quixaba”, do Hamilton (de Holanda) é um choro escalas e arpejos como ferramentas para execução do
um pouco mais moderno. Então, se o Paraíba for tocar, ele já improviso. O uso delas, contudo, deve ser feito à luz de um
vai entender que pode arriscar um jazz ali.
senso estético adquirido pela experiência de freqüentemente
ML: Os improvisos são coisas muito difíceis de fazer bem
feito, eu acho. Acho que fazer bem feito é você conseguir dizer tocar e ouvir o repertório do choro. Indicam que um caminho
coisas bonitas na música. Por exemplo, (...) se você for para o aprendizado pode ser a simples imitação dos grandes
improvisar em cima do “Vibrações”, que é uma música linda e intérpretes, e a partir dessas influências, iniciar o
maravilhosa, você vai ter que fazer uma coisa linda e desenvolvimento de um estilo próprio de improviso.
maravilhosa. Não adianta eu querer improvisar e meu A beleza do improviso, para eles, requer a união do
improviso não dizer nada perto da música. Se a música é muito conhecimento e da técnica com a criatividade pessoal do
superior a tudo que eu estou fazendo, (...), aí não vou músico. Requer, também, profundo conhecimento do gênero,
improvisar não. Toco a música como ela é. Mas eu acho que o para que as nuances dos trechos improvisados guardem
bom improvisador é aquele que consegue respeitar a música
relação com a linguagem característica do Choro. Dizem eles colocada em palavras. Eis que toda a arte tem seus mistérios.
que é possível identificar, em cada música tocada, elementos E mesmo que tenha sido esmiuçada em seus mínimos detalhes,
que a caracterizam, e que, se o improviso conseguir fazer os mistérios continuarão para serem fruídos, e nunca para
referência a eles, será aquele considerado o mais belo. serem decifrados.
Embora orientado pela estética e pela linguagem do gênero,
e apoiado em ferramentas de estudo e aperfeiçoamento, é por REFERÊNCIAS
meio da criatividade que o improviso toma corpo. Conforme BLACKING, John. How Musical is Man? Seattle and London:
mostram os discursos, é grande o grau de liberdade dos University of Washington Press, 1973.
instrumentistas para novas criações. Desse modo, o Choro traz KERNFELD, Barry. Improvisation. Grove Music Online (Acesso em
em si a constante possibilidade da surpresa. 10 de setembro de 2006).
LAVILLE, Christian & DIONNE, Jean. A Construção do Saber: Manual
IV. CONCLUSÃO de Metodologia da Pesquisa em Ciências Humanas. Belo
As falas dos Chorões de Brasília permitem concluir que, Horizonte: Editora UFMG, 1999.
apesar do Choro não possuir métodos sistematizados para LOPES, Nei. Partido Alto: Samba de Bamba. Rio de Janeiro: Pallas
orientar o estudo e a prática da improvisação, existe, no Editora, 2005.
gênero, um sistema de conhecimentos e conceitos QURESH, Regula B. Musical Sound and Contextual Input: A
consolidados sobre o assunto. A transmissão oral é o modo Performance Model for Musical Analysis. Ethnomusicology,
como tal sistema se difunde entre instrumentistas. Na p.56-85, 1987.
convivência cotidiana, na prática de tocar em conjunto, na SÈVE, Mário. Vocabulário do Choro: estudos e composições.
observação de performances, nas conversas entre músicos, Chediak, Almir (ed.), Rio de Janeiro: Lumiar, 1999.
conhecimentos e percepções sobre o improviso são TEIXEIRA, João G. A Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello de
Brasília: um estudo de caso de preservação musical
compartilhados.
bem-sucedida. Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 1, p. 15-50,
Os Chorões entendem o improviso como parte da essência
2008.
do Choro, pois, para eles, o bom chorão é aquele que, toda vez
que toca, é capaz de alterar elementos da música, mesmo sem
realizar grandes mudanças em sua estrutura original. Nesse
trabalho, foram identificados três tipos de improvisos muito
freqüentes: a paráfrase, a improvisação por cromatismo e o
improviso formulado. À paráfrase os chorões denominam
variação. Esse tipo de improvisação é presente na grande
maioria das interpretações do Choro, pois, pela tradição do
gênero, as músicas nunca são tocadas seguindo à risca as
prescrições da partitura. Na paráfrase, a melodia original
permanece presente, mas repleta de mudanças nos ritmos e
nas durações das notas, e de acréscimos de notas e
ornamentos. Pelo fato de ser praticamente onipresente, as
variações não são consideradas improvisos propriamente ditos
por muitos chorões. A improvisação por cromatismo é recurso
largamente utilizado, e consiste no uso de frases cromáticas
em determinados trechos das músicas. O improviso
propriamente dito, conforme o pensamento de alguns chorões,
é o que, neste trabalho, denominou-se improvisação
formulada. Ela consiste no uso de um vocabulário de frases,
constituídas principalmente por escalas e arpejos tocados de
formas variadas, visando a construção de uma nova melodia.
É nessa modalidade de improviso que o chorão pode exercer
plenamente sua capacidade inventiva.
Além das ferramentas técnicas, como vocabulário e
habilidade com o instrumento, o julgamento de um improviso
envolve a capacidade do músico dialogar com a melodia
original da música, e seu domínio da linguagem do Choro.
Além disso, para os chorões, o improviso deve construir uma
melodia - com começo, meio e fim -, coerente com a
linguagem do Choro e com o espírito da música especifica
que se está executando. A beleza do improviso ancora-se em
conhecimento e criatividade, e, por isso, não exclui a
possibilidade de surpresa. A imprevisibilidade do improviso,
contudo, submete-se a julgamentos baseados em critérios
estéticos. Para os chorões, o improviso tem que ser bonito. E a
definição do que é belo é altamente subjetiva, e, mesmo por
aqueles profundos conhecedores do Choro, é difícil de ser
nas Américas. E o Brasil, como país continental, acabou por acordeom, o forró foi evoluindo até que surgiu o Falamansa,
receber uma grande influência. No Rio de Janeiro, então capital dando uma arrebentada no forró universitário, aí que o forró
federal, havia escolas com mais de mil alunas! E digo alunas pé-de-serra começou a invadir, naquela época eu tocava bem
porque a sanfona era, nessa época, considerada um instrumento mais (...) o forró pé-de-serra tava que tava, em qualquer lugar
mais para mulheres que para homens. Tocava-se de tudo: que botasse o forró pé-de-serra era bombado (entrevista
polcas, valsas, mazurcas, rancheiras, jazz. Ou seja, o concedida à pesquisadora em 2007).
instrumento estava longe de ter a conotação regional que tem
Atualmente, a banda Fina Flor não existe mais, assim
hoje (Assis, 2008:31).
como outras que na mesma época tiveram maior projeção no
Esta “conotação regional” a que se refere Assis diz mercado fonográfico, como Baião de Cordas, Forróçacana, etc.
respeito à concepção do instrumento, principalmente após a Segundo Massarico:
“invenção” do baião por Luiz Gonzaga: “A sanfona de teclas
O forró pé-de-serra começou a selecionar, só foram ficando os
se tornou popular depois de Luiz Gonzaga. Ele também forrozeiros mesmo, só quem gostava mesmo do forró
tornou a imagem da sanfona um símbolo do povo nordestino”, pé-de-serra. Entraram muitos que não eram, estavam no meio
relata Vasconcelos. (Del Nery, 2002:16). só porque tava no auge, na época em que o forró tava
estourando. Aí o forró foi assentando e ficou no nível, não
III. DO NORDESTE PARA SÃO CRISTÓVÃO decaiu muito, também não subiu, estabilizou.
O “forró universitário” na década de 1990 significou um
Vianna (2001) relata que os trios de forró (sanfona, retorno da sanfona aos círculos da classe média carioca,
zabumba e triângulo) surgiram na época em que o baião se provocando um aumento no interesse de jovens pelo
consolidou enquanto gênero musical regional no mercado de instrumento. Trata-se de um “retorno” porque a sanfona
música, mais ou menos no período entre 1945 a 1955. O baião esteve, durante algumas décadas, fortemente associada à
teve em Luiz Gonzaga um de seus maiores difusores, que música nordestina, regional, e aos trabalhadores migrantes
trouxe, para o cenário da música nacional, uma forma de que gostavam de dançar baião, xote e outros gêneros
entretenimento de caráter novo, misturando elementos associados ao forró. Junto a alguns setores de público, no Rio
rítmicos, melódicos, harmônicos, performáticos e de Janeiro, essa associação constituiu um verdadeiro estigma
coreográficos, além de contribuir para a alteração da imagem que marcou o instrumento.
do sertão no centro-sul do país, estigmatizado pelo seu Ruy Castro (2008) expressa muito bem o momento de
subdesenvolvimento. Ao revelar um novo gênero musical “baixa” na história da sanfona: foi no final dos anos 1950,
dentro do cenário da música regional, Luiz Gonzaga abriu época em que o público das classes médias das capitais
novos caminhos para músicos e outros profissionais que preferia a música estrangeira; logo, muitos se tornariam
normalmente ocupavam cargos de baixa remuneração e que adeptos da bossa-nova. E João Gilberto, com aquele novo
passaram a tocar a música do Nordeste nas capitais do jeito de cantar e tocar, despertava o interesse dos jovens pelo
centro-sul numa tentativa de melhorar suas condições de vida. violão, pondo fim àquela “infernal mania nacional pelo
Um dos locais onde estes trios tinham o costume de se acordeão”:
apresentar era a Feira de São Cristóvão. Hoje parece difícil de acreditar, mas vivia-se sob o império
Segundo Nogueira (2004), desde o início da década de daquele instrumento. E não era o acordeão de Chiquinho,
1950, o bairro de São Cristóvão era o ponto de chegada dos Sivuca e muito menos o de Donato – mas as sanfonas de Luís
nordestinos que vinham tentar uma nova vida no Rio de Gonzaga, Zé Gonzaga, Velho Januário, Mário Zan, Dilu Melo,
Janeiro; o surgimento da Feira resulta da necessidade desses Adelaide Chiozzo, Lurdinha Maia, Mário Gennari Filho e
migrantes se encontrarem, matar as saudades de sua terra natal, Pedro Raimundo, num festival de rancheiras e xaxados que
ao rememorar práticas culturais regionais associadas à prática parecia transformar o Brasil numa permanente festa junina
de comércio, uma forma de complementação do seu sustento e (Castro, 2008:194).
de seus familiares. A declaração acima evidencia o preconceito que a música
Minha ligação com a Feira de São Cristóvão remonta ao regional passara a sofrer a partir de então. Nesta época,
ano de 2001, época em que eu integrava uma banda de forró inclusive, a carreira de Luiz Gonzaga sofreu um forte declínio.
formada só por mulheres, chamada Fina Flor. Como tinha a Alguns acordeonistas consagrados, como Sivuca e Donato,
responsabilidade de tocar o seu instrumento mais tiveram que ir embora do Brasil, e outros trocaram a sanfona
representativo, a sanfona, freqüentava a Feira a fim de pelo teclado. Porém nem todos, como afirma Dominguinhos:
observar os experientes sanfoneiros nordestinos que “Mas eu permaneci. Disse não! Eu não vou passar para um
dominavam essa linguagem e tocavam com seus trios de instrumento (órgão) que eu nem gosto! Continuei tocando
sanfona, triângulo e zabumba em barracas montadas nas (acordeom)” (Silva, 2003:96).
redondezas do pavilhão. Eram os tempos do boom do forró O “forró universitário” contribuiu para atenuar as
universitário, caracterizado pela redescoberta do gênero e da conotações negativas da sanfona junto aos músicos jovens do
cultura nordestina por jovens de classe média que formavam Rio e de São Paulo. Mas ele mesmo virou história, como se
grupos musicais e faziam shows em várias casas noturnas da sabe: a expressão não é mais usada, as bandas que surgiram e
cidade, conquistando espaço no cenário musical carioca. fizeram sucesso, como Falamansa e Forróçacana,
Massarico1, que desde os cinco anos de idade “dançava o desapareceram, e os locais de baile que eram uma febre entre
xaxado para arrumar uns trocados” aos fins de semana na os jovens fecharam as portas (como o Ballroom, no bairro
Feira, conta como aconteceu: Humaitá, no Rio). Por outro lado, acreditamos que se
Começou com os meninos vindo pra cá pra Feira de São “estabilizou” a cena do forró “pé-de-serra”, com duas
Cristóvão pra tentar pegar, tocar, outro queria aprender vertentes básicas: a primeira é aquela dos trios integrados por
migrantes nordestinos e seus descendentes, todos de origem muito próximo do seu contexto natal, no caso a sanfona,
trabalhadora, que se apresentam no Centro de Tradições trocando-o por um signo encontrado na cidade, o teclado
Nordestinas; a segunda é composta por trios também, porém (Fernandes, 2006:25).
estes se apresentam dentro de um circuito de forró
“pé-de-serra” fora dos limites de São Cristóvão: casas
noturnas da Lapa e Zona Sul carioca. A principal diferença
entre eles está em seus respectivos públicos, pois se na Feira a
entrada custa apenas um real, na maior parte destas casas
noturnas o ingresso não sai por menos de 15 reais. Há
diferença também no perfil dos músicos: alguns são migrantes
e seus descendentes, outros são jovens cariocas que se
formaram como sanfoneiros na época do “forró universitário”
e mesmo depois disso, quando a moda já tinha passado.
Considerando-se a existência destas duas vertentes, pode-se
indagar quais seriam os lugares sociais e musicais da sanfona,
atualmente?
Trio de forró “pé-de-serra” – Feira de São Cristóvão, 2009.
IV. LUGARES DA SANFONA NO RIO
Em uma noite de sábado, no final de 2006, fui à Feira de
São Cristóvão. Para minha surpresa, ela se encontrava muito
diferente dos tempos em que a freqüentava. Em 2003 sofrera a
intervenção da Prefeitura da cidade que transferiu antigos
feirantes e novos empresários para o interior do pavilhão de
São Cristóvão; passou a se chamar Centro Luiz Gonzaga de
Tradições Nordestinas e suas lojas agora obedecem a um tipo
de organização padronizada. Naquela noite, tive dificuldade
de encontrar os trios de sanfona, triângulo e zabumba que,
antes da reforma, no auge do “movimento de forró
universitário”, atraíam jovens de classe média. Com muita
dificuldade, encontrei um grupo tocando, em um pequeno
espaço, agregando um público limitado. Ao mesmo tempo,
em um dos palcos principais da Feira, havia uma banda
animando centenas de pessoas, tocavam “forró eletrônico”, Banda de forró eletrônico – Feira de São Cristóvão, 2009.
também conhecido como “oxente music”2, considerado por
Se na Feira de São Cristóvão a sanfona parece não ser tão
alguns “pouco autêntico e excessivamente comercial”. A
valorizada, o mesmo não acontece em relação a outros locais
sanfona estava presente, só que cumprindo um diferente papel,
da cena musical carioca. Atualmente, os trios de forró
pois outros instrumentos diluíam sua sonoridade, funcionando
“pé-de-serra” têm espaço garantido de segunda a segunda em
apenas enquanto signo de identificação daquele estilo. diferentes casas noturnas da Lapa e Zona Sul e,
Dos muitos trios que tocavam na antiga Feira, poucos conseqüentemente, a sanfona volta a se destacar:
conseguiram espaço no atual Centro Luís Gonzaga de
Tradições Nordestinas, entre eles o Trio Forró Pesado e o Trio A sanfona no trio pé-de-serra é a base, agora no eletrônico não,
o teclado vai cobrir o acordeom, ele vai ficar lá só pra dizer
de Zé da Onça e Sua Gente. Nos sábados, estes dois trios se
que é um forró [...] mas pra quem gosta de curtir um forró
apresentam nos dois palcos principais, porém em horários de tradicional mesmo, é completamente diferente, é zabumba,
pouca movimentação: entre 14h e 20h30min. A partir das 22h, triângulo e sanfona; se o sanfoneiro não for bom, você vai
o forró “pé-de-serra” só será encontrado nos três pequenos saber se ele não é, porque no pé-de-serra o sanfoneiro tem que
palcos situados nas praças batizadas com nomes de santos, e trabalhar, principalmente a baixaria. Geralmente alguns trios
as bandas de forró eletrônico, passam a ocupar os locais mais botam baixo. O trio que eu toco já não tem, aí o sanfoneiro tem
privilegiados da Feira de São Cristóvão: os palcos principais, que ser sanfoneiro mesmo, se ficar enganando ele tá ferrado,
onde o teclado, pelo menos do ponto de vista sonoro, tem um porque dá pra perceber. (Massarico, em entrevista).
destaque maior que a sanfona. Rio de Janeiro, terça-feira, 24 de março de 2009. Fui
Adriana Fernandes (2006) aponta a questão da conferir a programação do “Xote Coladinho”, título dado para
modernização como um dos fatores responsáveis pela adesão as noites de forró “pé-de-serra” da casa noturna Parada da
ao teclado pelo migrante nordestino: Lapa. Naquela noite, tinha sido convidada pelo sanfoneiro
Tocar forró com um teclado significa adaptar o Forró à cidade Chiquinho (que eu já conhecia) para assistir o show de seu
grande, é uma tentativa de inclusão, modernização e ascensão trio, o Lua Cheia. Ele também tocou na Feira de São
social. O indivíduo migrante está quotidianamente empenhado Cristóvão na época em que era fora do pavilhão: “Tocava na
em se adaptar à cidade, aos horários, ao esquema de trabalho, à moda vamos simbora”, ele explica, querendo significar com
comida, ao sistema de transporte, ao modo de viver a vida, e essa expressão “tocar sem ensaio”. Quando perguntei sua
embora, ele necessite continuar dançando, tocando e praticando opinião sobre a atual Feira, Chiquinho respondeu se
o Forró, a adesão ao teclado mostra com clareza a sua
lamentando: “Se a gente tivesse que tocar pra nordestino tinha
disposição para esta adaptação, pois ele abre mão de um signo
que estar tocando em banda de forró eletrônico. Para o
nordestino jovem, pé-de-serra é ridículo”. Ao seu lado estava eletrônico (teclados) que, aparentemente, agrada mais aos
Carrapeta, nordestino, zabumbeiro do Trio Lua Cheia, que migrantes. Nas casas noturnas da Lapa, as bandas de forró
completou dizendo: “Na Feira a gente se sente mais à vontade, surgidas nos anos 1990 deram lugar aos trios que atualmente
porém ninguém se conforma com o esquema da nova Feira”. se alternam com outros gêneros de música, principalmente
Hoje em dia, Chiquinho aparece na Feira somente para se MPB, samba e choro. O que coincide nestas duas vertentes é o
divertir. papel de destaque da sanfona. Resta ao sanfoneiro, seja qual
for sua naturalidade, sexo ou idade, cumprir suas “obrigações”,
pois como disse o sanfoneiro Massarico: “Se ele ficar
enganando ele tá ferrado, porque dá pra perceber”.
NOTAS
1
O seu nome é Manuel Jorge Amaral, mais conhecido como
“Massarico do Acordeom”. Nasceu no Rio de Janeiro, filho de
Zé do Gato, dono de uma loja de consertos de acordeom na
Feira de São Cristóvão e sobrinho de Zé da Onça, um dos
sanfoneiros mais antigos que até hoje toca no pavilhão.
Massarico é sanfoneiro do Trio Pé-de-Serra, grupo criado na
época do boom do “forró universitário”, um dos poucos que
restaram desta fase e que ainda se apresenta em casas noturnas
do Rio de Janeiro. Entrevista realizada na Feira de São
Cristóvão. Rio de Janeiro, 2007.
2
Silva registra que a oxent music surgiu na década 1990 e
pode ser chamada também de forró eletrônico. Segundo o
autor, esse novo forró aposentou a zabumba, o triangulo e o
agogô para substituí-los pelos instrumentos eletrônicos: “a
linguagem do forró eletrônico é estilizada, eletrizante e visual,
com muito brilho e iluminação. São empregados nas
gravações e apresentações equipamentos de ponta, com maior
destaque para o órgão eletrônico que aparentemente substitui
a sanfona” (Silva, 2003:110).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Figura 4. Fernando
Figura 1. Barroso
música excelente pra improvisar. Pra mim é uma terapia, estabelecidos pela interação entre músicos e público nos
massageia o meu ego também. Muito bom, muito bom mesmo. diferentes locais em que a performance do grupo acontece.
Eu fico flutuando [...] (JOÃO MARIA. 2009).
REFERÊNCIAS
Sobre o que é MPB, o músico comenta: “MPB no caso... ARAGÃO. João Pessoa, 07 março 2009. Gravação digital
chorinho é MPB, seresta, anos 60. Tudo isso aí é MPB” (55’56’’min.). Entrevista concedida a Juliana Carla Bastos.
(BARROSO, 2009). BARROSO. João Pessoa, 09 abril 2009. Gravação digital
O público que assiste às apresentações é praticamente o (13’42’’min.). Entrevista concedida a Juliana Carla Bastos.
mesmo. Aos sábados, muitas pessoas que assistem à BÉHAGUE, Gerard. Performance practice: ethnomusicological
apresentação no SB seguem com o Grupo para a sede do CCP. perspectives. Westport: Greenwood Press, 1984.
São, em sua maioria, sócios de alguma dessas instituições, FERNANDO. João Pessoa, 04 março 2009. Gravação digital
(15’12’’min.). Entrevista concedida a Juliana Carla Bastos.
senão das duas. No CS, uma parte menor desse público “fiel”
JOÃO MARIA. João Pessoa, 27 março 2009. Gravação digital
se junta aos frequentadores da praça de alimentação, local da (11’09’’min.). Entrevista concedida a Juliana Carla Bastos.
apresentação. De maneira geral, as pessoas que acompanham MAZINHO. João Pessoa, 08 abril 2009. Gravação digital
o CCP se dizem identificadas com o repertório e comentam (46’53’’min.). Entrevista concedida a Juliana Carla Bastos.
que a significação dessas músicas para elas e o encontro entre NÁDER, Alexandre Milne-Jones. Performance e transmissão
amigos são fatores importantes que as fazem voltar musical na Barca Santa Maria. 2008. 179 f. Dissertação
semanalmente à convivência do CCP. (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música;
O CCP é importante para os músicos por ser um universo Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2008.
onde a “boa música” tem a oportunidade de acontecer: NAPOLITANO, Marcos. História e música. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
É o incentivo aos novos músicos a uma boa qualidade de NETTL, Bruno. The study of ethnomusicology: twenty-nine issues
música, a uma verdadeira cultura musical. Trabalhar com uma and concepts. Illinois: University of Illinois Press, 1983.
música que não é erudita, mas é uma música popular, um QUEIROZ, Luis Ricardo S.; FIQUEIRÊDO, Anne Raelly Pereira de;
incentivo maior. É uma música de qualidade, uma música RIBEIRO, Yuri Moreira. Práticas musicais no contexto urbano de
perfeita. É assim, um modo de perfeita, né? A gente consegue João Pessoa. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL
distinguir a questão da harmonização, a questão melódica DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
(FERNANDO, 2009). (ANPPOM), 16, 2006, Brasília. Anais.... Brasília: 2006. p.
Por último, para falar da inserção social, o ganho 152-157.
proporcionado pelo trabalho musical do Grupo complementa QUEIROZ, Luis Ricardo S. Performance musical nos Ternos de
Catopês de Montes Claros. 2005. 236 f. Tese (Doutorado em
a renda familiar de alguns dos músicos, que trabalham em
Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade
outra atividade fora do CCP. Já para os que estão aposentados Federal da Bahia, Salvador, 2005.
em seus antigos trabalhos, tocar no CCP se configura hoje REGIVALDO. João Pessoa, 08 abril 2009. Gravação digital
como complemento da aposentadoria. (47’59’’min.). Entrevista concedida a Juliana Carla Bastos.
TURNER, Victor. The anthropology of performance. New York:
IV. CONCLUSÃO PAJ Publications, 1988.
Até o momento, os resultados alcançados mostram aspectos
fundamentais que caracterizam a performance musical do
CCP. O mais imediato e visível é a variedade do repertório.
Os músicos atribuem esse aspecto ao fato de querer agradar ao
público e, também, por considerarem coerente tocar a “boa
música”, designação que abrange o choro, mas não somente
ele, num clube de choro.
Além disso, observa-se também como o caráter de prática
oral de aprendizagem, assimilação e execução do repertório
faz com que nenhuma música seja tocada da mesma maneira,
abrindo espaço para o improviso que os músicos tanto
valorizam.
Outro aspecto relevante observado é o fato de o universo de
performance “caminhar” para onde o Grupo vai, na grande
maioria das vezes. O repertório sofre mudanças muito sutis de
um local para outro, mesmo que o público seja praticamente o
mesmo. O CCP poderia se chamar “Clube Móvel do Choro da
Paraíba”.
Observando o público, pude notar grande assiduidade das
pessoas que acompanham o grupo, o que constitui uma platéia
extremamente familiarizada com o repertório. Platéia que
além de ouvir, canta e dança as músicas.
Assim, é possível afirmar que o CCP como universo de
prática musical apresenta aspectos singulares, que ganham
vida e forma a partir dos usos e funções do fenômeno musical
expansão dos projetos sociais como compreendemos no principalmente em Educação e Cultura, precisamos passar a
momento, junto ao governo FHC e ao Neoliberalismo. contemplar suas implicações no campo da Segurança Pública,
Parece ter havido uma mudança de cenário, de discursos, uma vez que a problemática das violências6 é tema prioritário
práticas e sentidos a partir da revista 08 (2003). Essa mudança na vida social, política e cultural de nossa sociedade.
não configura um desenvolvimento ‘linear’ do tema, mas sim Dificilmente as práticas musicais são problematizadas a
parece ser uma mudança no regime de verdade que sustenta a partir da perspectiva de serem constituintes das realidades
relação de música-ensino-transformação social, próximo ao violentas, nem mesmo quando são claramente utilizadas na
que percebemos hoje. Uma de suas expressões é o surgimento política de combate a essas realidades. Tal cenário vai desde
de outros espaços de ensino (projetos sociais) e aprendizagem, citações isoladas da relação entre Cultura e violência na cena
de maneira que o educador musical passa a ser percebido política, até grandes ações de políticas públicas. Essa
dentro do cenário dos projetos sociais, vistos como novos perspectiva traz à tona questionamentos sobre as estratégias
nichos de trabalho. de controle da população permeadas pelas práticas musicais,
Na mesma revista encontramos pela primeira vez um título assim como visibiliza com maior potência as possibilidades de
de artigo com a expressão ‘terceiro setor’ (Oliveira, 2003). participação das práticas musicais em práticas de violência,
Esse número da revista publicou artigos produzidos no XI como já havia sido questionado por Araújo et alli (2006).
Encontro Nacional da ABEM (2002), que tem como tema Um bom exemplo é o Programa Nacional de Segurança
‘Políticas públicas e ações sociais em educação musical’. A Pública com Cidadania (PRONASCI), instituído pela Lei
partir daí, encontramos uma ampliação no número de artigos Nº11.530 de 24 de Outubro de 2007, iniciativa inédita ainda
voltados à análise desse cenário nas revistas 10 (2004), 12 em implantação, capitaneada pelo Ministério da Justiça, que
(2005) e 14 (2006), que são os números que publicaram as prevê a articulação de políticas públicas de segurança com
produções referentes aos XII, XIII e XIV Encontros Nacionais ações sociais de amplo espectro, envolvendo diversos atores
da ABEM, evidenciando um fenômeno que se caracterizou da segurança pública, espaços urbanos e as comunidades
pelo fato de que estas produções que se ocuparam dos projetos (Ministério da Justiça, s/d). Suas ações propõem a articulação
sociais se expressaram diretamente nos encontros nacionais5 e de diferentes órgãos governamentais, bem como a sociedade
se refletiram na revista. em geral, por meio de acordos de cooperação firmados com
Outro elemento que chama atenção no exame dessa entidades, como, por exemplo, a Central Única das Favelas
produção acadêmica diz respeito ao discurso da (CUFA). Dentre os projetos do PRONASCI encontramos o de
‘humanização’ por meio da ‘música’. Encontramos o discurso ‘Segurança e Convivência’, que tem dentre suas linhas de
da ‘humanização’ associado à música em diferentes autores ação ‘Atividades Culturais’ a serem desenvolvidas em
(Santos, 2004; Kater, 2004; Kleber, 2006), construído com conjunto com o Ministério da Cultura, para “incentivar a
contornos de discurso transformador e intimamente ligado aos disseminação de atividades culturais nas comunidades
projetos sociais, bem como à formação de educadores atendidas pelo Programa e transformar os espaços em centros
musicais. A idéia de ‘humanizar’ não é nova, certamente, de promoção sociocultural”, tal como os Pontos de Cultura,
inclusive porque aparece desde a primeira Revista da ABEM “onde os jovens serão incentivados a desenvolver atividades
(1992), e é amplamente utilizada em diferentes sentidos. como música, teatro e dança” (Ministério da Justiça, 2009).
Entretanto, este discurso leva a questionamentos importantes Sem minimizar as diferentes violências (re)produzidas em
quando visibilizado dentro da política de projetos sociais, uma nossa sociedade, sua permanente associação com as
vez que ‘humanizar’ é, no sentido lato, ‘tornar humano’ quem vulnerabilidades, necessidades, desigualdades e injustiças
já o é. Assim, podemos perceber o crescimento das tramas que sociais, e seus profundos impactos na vida social de todas as
acercam e que constituem a produção acadêmica em camadas da população, é necessário reconhecer que as
Educação Musical e suas práticas cotidianas nas políticas violências têm sido parte objetiva das motivações que levam a
relacionadas aos projetos sociais e aos seus cenários. ações produzidas pelos projetos sociais. As práticas musicais,
As relações entre as práticas musicais e os projetos sociais habitualmente realizadas a partir do espaço da aula de música,
constroem-se por meio de diferentes discursos, amparados em são parte importante dessas ações. Essa realidade é vivamente
diferentes racionalidades circulantes. Tanto nas Políticas construída nos contextos urbanos.
Públicas, na academia, ou ainda no setor privado, Assim, neste espaço cabe reconhecer a importância das
constantemente encontramos o compartilhamento da premissa práticas musicais como estratégias de luta e resistência frente
naturalizada sobre o valor positivo universal da música ao sofrimento produzido pelas violências nos seus múltiplos
(‘música faz bem’), tais como ‘música inclui socialmente’ ou contextos, vítimas e reflexos, quanto reconhecê-las como
‘música humaniza’. É interessante notar que as práticas estratégia frente a situações de vida de poucas (ou
musicais nos projetos sociais costumam ser vistas e pouquíssimas) oportunidades. Entretanto, também se faz
problematizadas a partir de suas possibilidades de necessário desnaturalizá-las, analisado as lógicas e efeitos que
transformação positiva dos contextos em que se inserem constroem dentro das complexas tramas estabelecidas com a
(ainda que vistas a partir de suas problemáticas ou até mesmo violência e a Segurança Pública. Para tanto, busca-se
de seus aspectos de precariedade). compreender quais os discursos que, atravessados por
A presença marcante dos projetos sociais nas políticas de contextos relacionados à pobreza e violência, se articulam
Educação e Cultura tem sido acompanhada por uma profunda entre as práticas musicais e Segurança Pública, passando pelas
ligação com as políticas de Segurança Pública, apesar desta construções da academia, a partir de uma perspectiva
relação nem sempre ser clara e pouco ser objeto de análise na genealógica.
área da Música até o momento. Se tais projetos têm como
objetivo proporcionar serviços às populações mais pobres,
com que conhecemos hoje, são parte das conseqüências das práticas 2009. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/pronasci/
neoliberais no Brasil, como fruto da terceirização dos braços do data/Pages/MJ3FD1029CITEMID8C3D032FF447450DB093DF
Estado desde o governo Fernando Henrique Cardoso (década de 90) C822448CB6PTBRIE.htm> Acesso em: Abril de 2009.
(Tommasi, 2004). ________________________. Secretaria Nacional de Segurança
3
Este texto retrata parte de um levantamento realizado sobre esta Pública, Coordenação Geral de Ações de Prevenção em
temática na produção da Revista da ABEM desde seu primeiro Segurança Pública. Espaços urbanos seguros: orientações gerais.
número, de 1992, até o seu décimo quinto número, de 2006. (s/d). Disponível em: <http://www.mj.gov.br/pronasci/data/
4
No Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Pages/MJA49D1180ITEMID536445E9B3E84E1C8F13A292308
(IBGE), a metodologia oficial usa como referência o Salário Mínimo, 67700PTBRIE.htm> Acesso em: Abril de 2009.
isto é, 1/4 do salário mínimo familiar per capita e 1/2 do salário MOURA, T. Rostos invisíveis da violência armada: um estudo de
mínimo familiar per capita, limites abaixo dos quais se define uma caso sobre o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
família extremamente pobre (indigente) e pobre, respectivamente. OLIVEIRA, A. A educação musical no Brasil: ABEM. Revista da
5 ABEM, N.1, 1992.
XII Encontro Anual da ABEM, tema: Políticas públicas e ___________. Atuação profissional do educador musical: terceiro
ações sociais em educação musical; XIII Encontro Anual da setor. Revista da ABEM, N.8, 2003.
ABEM, tema: A realidade nas escolas e a formação do PEIXOTO, A. M. C. N. Instituto Carlos Gomes – Fundação Carlos
professor de música: políticas públicas, soluções construídas e Gomes. Revista da ABEM, N.1, 1992.
em construção; XIV Encontro Anual da ABEM, tema: KLEBER, M. Educação musical: novas ou outras abordagens –
Educação musical e diversidade: espaços e ações novos ou outros protagonistas. Revista da ABEM, N.14, 2006.
profissionais. KATER, C. O que podemos esperar da educação musical em
6 projetos de ação social. Revista da ABEM, N.10, 2004.
No plural por encerrar um conjunto de experiências e fenômenos
SQUEFF, E., WISNIK, J.M. Música: o nacional e o popular na
que se constroem, se articulam e se perpetuam, de forma que há
cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
“necessidade de constatarmos e analisarmos a existência de
SANTOS, R.M.S. “Melhoria da vida” ou ‘fazendo a vida
constinuuns de violências (armadas, domésticas, sexuais, sociais,
econômicas...) como expressão de uma realidade em que a guerra vibrar”: o projeto social para dentro e fora da escola e o
não é um fato social isolado, mas antes algo que impregna, como lugar da educação musical. Revista da ABEM, N.10, 2004.
realidade cultural, o nosso quotidiano, fazendo com que para muitos SOUZA, J. Funções e objetivos da aula de música vistos e revistos
e muitas a guerra se confunda com a paz” (Moura, 2007, p. 26). através da literatura dos anos trinta. Revista da ABEM, N.1, 1992.
Nisso inclui-se o fato de que mesmo as categorias guerra e paz TOMMASI, L. Abordagens e práticas de trabalho com jovens das
precisam ser reconhecidas como múltiplas, complexas e transversais ONGs brasileiras. In: Revista de Estúdios sobre Juventud –
às realidades em que se encontram e nas quais são problematizadas. JOVENes. Ano 9. N 22. Enero-Jun. México: Centro de
7 Investigación y Estúdios sobre Juventud, Instituto mexicano de la
Grifo dos autores citados.
Juventud, 2004.
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MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Programa Nacional de Segurança
Pública com Cidadania (PRONASCI). Segurança e Convivência.
dado confirmado pelo etnomusicólogo Acácio Piedade quando papel da storytelling em qualquer sociedade, seja ela amazônica
pesquisa a música dos Ye´pâ-Masa, povo do Alto do Rio urbana ou do sertão. O narrador é também cantor, sonoplasta,
Negro. ator, enfim, um performer como descreve a antropóloga Carmen
(...) os limites entre a fala e o canto são bastante Junqueira sobre a narração de um Kamayurá:
dissimulados, difíceis de definir, e a análise pautada pela O contador dramatiza a exposição, reproduzindo sons da
terminologia musical-fono-acústica nem sempre é suficiente natureza – o trovão, a chuva, o vento – e anima o diálogo
– daí a necessidade de adotar novos conceitos para abarcar dos bichos com voz peculiar, conferindo a cada evento ou
essa variedade de formas vocais (1997) personagem uma marca distintiva. Gestos, assovios, pausas
Aquilo que poderia ser considerado como um canto ajudam a recriar uma atmosfera alegre ou amedrontadora,
cômica ou triste, enfim a que mais convenha a cada passagem.
“ desinteressante e pouco melódico”, como muitas vezes foi
É um teatro em que um só artista desempenha todos os
descrito pelos primeiros viajantes europeus, na realidade, é papéis, além de cuidar dos efeitos especiais (Junqueira, 1991,
uma outra forma de expressão vocal tão importante quanto às p. 61).
canções com mais mélos. Enquanto esse canto-fala era
considerado uma das principais provas da caracterização dos A arte de narrar é uma expressão estética das culturas de
povos primitivos, que precedia o canto propriamente dito, mas vários povos e revela grande riqueza sonora. Foi pelas portas
o que se observa hoje, é que ele constitui parte de uma desse hábito milenar que adentrei os estudos das expressões
oralidade de grande complexidade, dado o seu status altamente vocais Suruí, que tem passado por grandes mudanças, pois
simbólico, além da sofisticada forma de elaboração poética. Em pajés e narradores vêm se convertendo ao evangelismo,
alguns casos, é possível localizar métricas, rimas, repetições, fenômeno crescente em Rondônia. Criou-se assim um hiato
enfim, recursos sonoros que poderiam ser definidores de formas entre as gerações que não tiveram sua formação através da
poéticas e não meros acasos fonéticos. oralidade, o que as tornam desconhecedoras de conteúdos
Nem tudo o que eu ouço como sendo música pode ser emblemáticos da história Suruí.
considerado música pelos Suruí e o que parece ser fala pode ser Percebendo a dificuldade de trabalhar com conteúdos Paiter,
música, como por exemplo, o So pereiga, o canto dos espíritos o Fórum Suruí promoveu oficinas interculturais para a
entoado pelos pajés, que, embora tenha uma estrutura rítmica e formação continuada de professores indígenas, com uma equipe
melódica fixa, soa como uma fala cadenciada, de forte multidisciplinar orientada para construir um currículo
musicalidade. Com essa finalidade, os Suruí desenvolveram diferenciado para as escolas Paiter Suruí. Em todas elas, Betty
uma espécie de “ fala cantada”, que a tonalidade da língua Mindlin desenvolveu um profícuo trabalho de transcrição e
T upi-Mondé expressa de forma intensa, dando a impressão de tradução dos mitos Suruí, que aos poucos vem estimulando a
ser música. Seria aquilo que Anthony Seeger (2004) chamou de escrita na língua Tupi-Mondé, com o apoio da linguista Ana
“ musicalidade da fala”, em sua pesquisa com os Suyá do Suelly Cabral, da UnB. Nessas oficinas, usa-se o material das
Xingu? Seria o recurso de que fala Basso nas expressões dos gravações Suruí do Acervo Arampiã, de onde provêm alguns
narradores Kalapalo? (1985) mitos importantes para serem traduzidos em sala de aula. Há
A narrativa mítica opera através do uso específico de um grande envolvimento de alguns professores nesse processo
recursos da linguagem falada em que se incluem um uso da escrita, o que seguramente promoverá uma melhora no
especial de elementos gramaticais, a focalização da ação, ensino bilíngue.
tempos e categorias verbais, imagens espaciais, tudo na direção Nos momentos da oficina em que os jovens professores
da criação de uma fantasia socialmente compartilhada, que interagiam com os korub ey eram comuns comentários sobre as
permite um pensamento situado em termos de tempo e espaço gravações que Betty Mindlin fizera décadas antes. Alguns
míticos. Na música ritual, o som atua como código simbólico discordavam das versões, outros diziam que elas estavam
modelador, também na direção da criação de tais realidades incompletas ou longas demais, mostrando a mobilidade
paralelas (Basso, 1985, p. 8). inerente aos mitos, dado bastante frequente na literatura oral.
Embora as tradições dos Paiter Suruí, dos Suyá e dos Segundo Seeger (2004), cada um conta a história à sua maneira,
Kalapalo sejam diferentes, o “ canto falado” parece ser um conforme a situação e a plateia. E é natural e saudável que haja
recurso bastante utilizado em rituais de cura. A voz do pajé traz muitas versões diferentes, revelando uma maior interação entre
termos arcaicos cujos conteúdos nem sempre são quem conta e quem ouve.
compreensíveis. São como palavras-sons, que revelam Por isso tem sido importante a digitalização, a organização,
características do espírito que “ sobrevoa” o pajé, mas que não a catalogação e a devolução do Acervo Paiter Suruí. Assim será
resultam em uma lógica discursiva, pois podem também utilizado nas escolas indígenas possibilitando que parte dessa
estarem relacionados a conteúdos míticos. A fala cadenciada tradição simbólica volte a vigorar como um dos elementos
dos velhos korub ey soa em alguns momentos como o constituintes da vida Suruí. Não se trata apenas de trazer o
sprechgesang criado por Schoenberg, que buscava a passado para o presente, mas de incentivá-los a lembrar das
“ musicalidade da fala” isto é, a palavra como música e não o reações que essas cantigas e narrativas promoveram na vida
conteúdo sintático. Essas conexões parecem se repetir ao longo Suruí. A audição do acervo tem instigados os velhos Suruí a
dos tempos como princípios fundantes de determinadas recontar os antigos mitos usando desses ricos recursos poéticos,
sociedades ou como formas artísticas necessárias em certos principalmente no momento em que se sistematiza a língua
momentos. Talvez indiquem uma ideia de atemporalidade, que Tupi-Mondé dos Paiter. Assim torna-se possível que essas
a antiga etnomusicologia analisava como uma forma preciosas formas poéticas sejam ensinadas às crianças, pelas
“ primitiva” de expressão, mas que considero fundamental no vozes dos korub ey, as únicas pessoas capazes de desvendar
entendimento da oralidade de qualquer grupo ou pessoa em termos arcaicos e suas ligações com os mitos.
qualquer tempo. Mas esse “ reacender pelas narrativas” não visa congelar as
O canto-falado (ou a fala-cantada) possui a capacidade de tradições, ao contrário, ele poderá estimular uma nova geração
conduzir o ouvinte a outras dimensões, fazendo-o “ mudar de de contadores de histórias, se for incentivado o conhecimento
tempo”. Essa função é fundamental para que se compreenda o mais profundo da língua com a contribuição de linguistas
sensíveis às formas poéticas Suruí. Vejo seguir este caminho é importante para eles reacender esses momentos orais do
Uraan Suruí, meu principal tradutor e consultor, que sabe passado Suruí.
relacionar com propriedade, termos gramaticais do português Esses cantos de pajé foram registrados pelos gravadores de
com as funções das palavras da língua T upi-Mondé. O processo Betty Mindlin e estão hoje armazenados em CDs. Pode ser que
de desvendar os aspectos da arte poética Suruí é demorado e os próprios Suruí se disponham a ouvi-los e passá-los adiante,
bastante complexo, por isso, torna-se importante catalogar e mas essa é uma decisão que cabe exclusivamente a eles.
classificar essas jóias sonoras do Acervo Suruí mesmo não Recentemente, surgiu uma possibilidade dos Suruí terem
tendo todos os cantores, pajés e narradores à disposição, posto um pequeno centro cultural em Riozinho onde poderão deixar a
que alguns faleceram e outros se converteram em evangélicos, mostra seus adereços como cocares, colares, pulseiras, cestos,
abandonando as práticas de pajelança e da narração de histórias. arco e flecha, panelas de cerâmica entre outros utensílios
Durante as oficinas e encontros individuais com os domésticos e adereços que constituem parte de sua cultura.
tradutores Suruí, foi possível acompanhar o processo de Uraan pretende propor que nesse centro cultural, haja espaço
normatização da língua e obter transcrições e traduções do para uma biblioteca sonora onde se possa ouvir as narrativas e
material junto aos Suruí e ouvir de perto os sons da língua. canções Suruí, o que considero relevante, principalmente
Iniciou-se, a partir desses encontros, a compreensão de um porque a oralidade ainda estará presente como recurso de
multifacetado panorama com diversas formas de expressão aprendizado, tal como era feito nos tempos antigos. Uma
vocal dos Paiter, que seguindo os conceitos deles próprios, oralidade que não pode ser substituída simplesmente, mas que
pude chegar à seguinte classificação que dividi em quatro possa ser vivenciada e transformada conforme as necessidades
categorias: dos Suruí.
MITOLÓGICAS SONORAS cuja função principal é contar Esses são os principais gêneros orais que se reportam ao
histórias, narrar os mitos transmitidos de geração em geração. passado Paiter, um mundo antigo que poucos jovens conhecem,
pois vários desses rituais não são mais realizados pelos Suruí,
RITOS DO COTIDIANO são os cantos de trabalho ligados que hoje vivem um momento de transição de grande
aos rituais de produção e cantos rituais que são realizados complexidade. A ação evangelizadora e a extração ilegal da
durantes as festas e trocas cerimoniais como o iatir ewa – madeira são alguns dos fatores que vêm desconfigurando
cantiga de tomar chicha e o Mapimãi ewa - cantiga da festa de continuamente as formas de parentesco e o modus vivendi dos
Mapimãi, um dos rituais mais importantes dos Suruí, em que Paiter, processo iniciado no final dos anos 70 causado pela
se dividem dois grupos, os da aldeia e os da floresta. abertura da rodovia BR-654 e pela implantação dos sucessivos
projetos de migração maciça realizados pelo governo federal.
CANTOS DE WAWÃ são as cantigas dos pajés, que fazem Engana-se, porém, quem pensa que a voz Paiter Suruí se
menção aos espíritos do Céu, das águas e da floresta, cuja calou diante desses problemas. Esse momento, embora tenha
função principal curar doenças (com exceção das doenças de emudecido os cantos míticos, foi também gerador de uma nova
branco). Pajés cantam espantando espíritos indesejados e categoria oral Suruí: a canção de autoria definida, que difere das
também preparam um ritual onde os espíritos são convidados a cantigas dos ancestrais “ que ninguém sabe quem inventou”
participar e a promover a fartura nas aldeias. como bem define Uraan.
Embora a prática da pajelança esteja dissimulada, por conta Os Paiter Suruí criaram três novos gêneros orais: as canções
da evangelização, Betty Mindlin acredita que ainda haja uma de facão (nabekod iwai ewa), as canções de amor (kasarewa) e
transmissão desse mundo arcaico pela oralidade, ainda que de as canções de guerra (ladnĩgewewa), que embora pareçam
forma assistemática. Ela própria gravou vários cantos de pajés díspares nos seus conteúdos e funções, apresentam um ponto
antes da entrada massiva das igrejas pentecostais. Eu pude em comum: a fricção entre a vida tradicional das aldeias e o
gravar ainda algumas melodias xamânicas cantadas pelos pajés, mundo de fora, configurado pelas ações da Funai, as
hoje convertidos em evangélicos. T rabalhei com algumas intervenções de madeireiros e colonos além das opções
dessas gravações buscando traduzi-las com os Suruí a fim de sedutoras de bens da cidade. Essas canções têm como principal
compreender como se dava a prática da pajelança. Durante a característica falar de e para pessoas de fora da aldeia, isto é, os
audição das canções, ficava patente a preocupação dos korub ey não índios. Os novos gêneros são assim definidos por Uraan:
em explicar a origem e os cantos de pajelança; embora
convertidos, eles não deixavam de contar e comentar esses LADNĨGEWEWA – canções para o inimigo, como cantos de
saberes místicos. guerra, avisos e ameaças de morte assim como relatos de fatos
Felizmente, os cantos de pajé vêm interessando também a ocorridos contra os inimigos de qualquer espécie, branco ou
um dos clãs dos Suruí – os G̃abg̃ir ey –, de que três gerações indígena. Ladnĩg (no singular) ou lad ey (no plural) têm
vêm se reunindo para transcrever e traduzir as histórias e as conotação pejorativa e demonstram o espírito guerreiro dos
canções de seus antepassados. Eles reconhecem que esses Suruí, que nunca se deixaram abater pelas atrocidades
cantos são portadores de um simbolismo de extrema cometidas em nome das políticas desenvolvimentistas
importância – um dos pilares da cultura Paiter Suruí. brasileiras. Há dois importantes registros de guerreiros Suruí
Há também alguns índios que, mesmo não sendo pajés, com um ciclo de ladnĩgewewa que contam passo a passo a
sentem a necessidade de gravar os cantos de pajé que ouviam preparação para o embate com o inimigo.
quando jovens, para de algum modo preservá-los. Talvez,
intuitivamente, eles percebam que ali está a essência de sua KASAREWA – nas palavras de Gasalab, líder do clã Gãgbir,
cultura. é o “ canto de paixão” que intermedeia a relação amorosa entre
Ouvir essas gravações com cantos de pajé e narrativas os índios e os brancos. São canções de amor secretas das
míticas permite aos Paiter Suruí recuperar os fios de uma indígenas Suruí com funcionários da Funai. O gênero Kasarewa
história que estava prestes a desaparecer da memória. Mesmo se reporta a um dado novo na vida Suruí: a desilusão amorosa.
que seja remota a possibilidade de se retomarem essas práticas, Como os casamentos são combinados previamente pelas regras
do parentesco, não são permitidos namoros com pessoas que gerações, quando já estiverem dominando a gramática e
não sejam os tios pelo lado materno, portanto, ter vários conhecendo bem História Suruí poderão usar o acervo como
namorados até achar a “ pessoa ideal” para casar-se não é um fonoteca onde estarão presentes livros orais da “ vida pública e
hábito Suruí. Mas desde os anos 80, os agentes da Funai, privada” dos Paiter Suruí. Um dia elas serão ouvidas e
sentindo-se atraídos pelas mulheres Suruí as seduziam com revividas, e talvez possam até ser cantadas por outras pessoas
promessas de dar-lhes facão e utensílios para casa e elas que ao traduzirem-nas, estão fazendo uma espécie de
acabavam se afeiçoando a eles, gerando conflitos de toda ordem: arqueologia musical onde essas pequenas histórias privadas em
a tradição rompida assim como paixão, sentimento que parecia forma de canção serão fonte de estudos mais aprofundados sobre
não ter espaço nas aldeias Suruí. Assim, a voz nesse tipo de esse povo.
canção nem sempre traduz candura e amor terno, mas revolta
contra aqueles que as enganaram. A voz torna-se então, NOTAS
estridente e enrijecida com tons mais médios e não tão agudos
Texto baseado na dissertação de mestrado A Arte Oral Paiter
e timbre suave como o das cantigas de iatir e de fazer casa.
Suruí de Rondônia - da Antropologia da PUC-SP. São Paulo,
NABEKOD IWAI EY EWA – T ambém conhecida como maio 2009 sob orientação da Prof. Dra. Carmen Junqueira
canção do contato, esse novo gênero da arte oral Paiter se
reporta aos conflitos entre os da aldeia e os homens da cidade.
Seria uma espécie de relato, provas factuais da História recente REFERÊNCIAS
dos Suruí que denomino de “ crônicas do facão”, termo baseado BASSO, Ellen A musical view of the universe: Kalapalo myth
na etimologia: “ canção-dos-donos-do-facão”. Para os Suruí, o and ritual performance. P hiladelphia: University of
facão simbolicamente define o primeiro contato com os brancos, P ennsylvania P ress, 1985.
pois uma das formas de atrair os indígenas para o contato JUNQUEIRA, Carmen. Antropologia indígena: uma introdução.
pacífico era dependurar os facões na floresta para que eles se São P aulo: Educ, 1991.
aproximassem. P IEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. Música Ye’ pâ-Masa: por
No Acervo Suruí, Betty Mindlin gravou 52 nabekod iwai ey uma antropologia da música no Alto Rio Negro. Dissertação
ewa, um número significativo se compararmos com 21 cantos de Mestrado Antropologia Social – Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 1997.
de pajé, 12 canções de amor e 3 de Mapimãi. Os nabekod iwai
P UCCI, Magda. A Arte Oral P aiter Suruí de Rondônia.
ey ewa só ficam atrás das narrativas míticas, em torno de 100, Dissertação de mestrado da Antropologia da P UC-SP . São
objeto de maior interesse da antropóloga que transcreveu vários P aulo, maio 2009.
mitos com os Suruí publicado no livro “ Vozes da Origem” em SEEGER, Anthony. W hy Suyá sing: a musical anthropology of
1995. A maciça presença das canções de contato expressa a an Amazonian people. Cambridge: Cambridge University
aflição dois Paiter diante do homem que veio “ mudar tudo”, P ress, 1987.
gerar desordem. Interessante é observar que esse gênero caiu em
desuso muito rapidamente e não foi substituído por nenhum
outro gênero. Segundo Uraan, hoje ninguém mais faz nabekod
iwai ey ewa, porque os Suruí preferem ouvir as canções
sertanejas e os hinos evangélicos que são traduzidos para a
língua dos Paiter.
Esses três novos gêneros Suruí, Kasarewa, os Nabekod
iwai ey ewa e o Ladnĩgewewa têm como principal característica
uma base melódica de poucas notas que serve de suporte para
longos textos. São poucas as variações de tom, com exceção do
final, quando é comum descer uma quinta abaixo, revelando a
identidade estética do canto Suruí, recurso presente nas
cantigas de So pereiga.
Essas novas canções são bem semelhantes na maneira de
utilizar a voz, que ganha quase sempre um timbre metálico,
uma entonação menos maleável, pouco relaxada, com menos
nuances sonoras, características da voz Suruí quando esta se
reporta às mitológicas sonoras que privilegia a sonoridade da
palavra em detrimento do significado. Nelas o que mais
importa é o texto, isto é, o lógus, mais que o mélos. O que
poderia ser uma contradição, na realidade revela que,
independente do sentimento de amor ou de ódio, essa maneira
de cantar se reporta ao mundo externo, o motor dessas canções.
É possível que haja alguma influência do jeito de cantar das
duplas sertanejas cuja tensão vocal é uma demanda estética,
mas também poderia se afirmar que o “ urbano” tem o poder de
“ alisar” a poética indígena, operando uma limpeza das nuances
sonoras. É o que se pode avaliar no momento, visto que essas
canções demorarão a ganhar transcrição e tradução, pois os
Suruí consideram-nas tão pessoais que só mesmo o autor delas
é que poderia traduzi-las. Assim, essas canções manterão seus
significados incógnitos por muito tempo até que futuras
diversos: a relação mais estreitada entre maestros como Heitor musical. O que os distingue são as adaptações de saberes que
Villa-Lobos e grupos tradicionais da música popular, a viagem transformam a música num produto de interesse para as
dos 8 Batutas de Pixinguinha e a contratação de jovens da camadas sociais urbanas.
classe média, com formação musical amadora, cujas Essa rede parece fundamental para a formatação de um estilo
performances aproximavam a sonoridade da boemia com peculiar do compositor em questão, destacando-se entre os
formatos padronizados pelas rádios. demais, mas também se juntando a um grupo de notáveis6 que
Mesmo percebendo que a produção musical relevante de acaba por formar uma espécie de estilo dentro do gênero
K-ximbinho nasce no Rio de Janeiro, o contexto jazzístico de musical Choro. O instrumental escolhido para os arranjos e
improvisação e a experiência em bandas militares são composições assumia duas formas: formação instrumental
elementos que já faziam parte do primeiro momento do semelhante às bandas de jazz estadunidenses para a
compositor no contexto musical da cidade de Natal. 4 A interpretação da música brasileira, conforme referências
trajetória biográfica de compositor tem como constante sua encontradas em algumas capas de discos de grupos musicais
mobilidade, transferindo-se de cidades em diferentes etapas da formados por gravadoras especializadas e sindicatos de músicos,
vida: nasce em Taipu, RN, no dia 20 de janeiro de 1917, em e o exemplo inverso verificado num disco inteiro composto de
Natal com cerca de sete anos de idade aprende a tocar requinta e interpretações em ritmo de samba da música estadunidense.
clarinete na Banda da Associação de Escoteiros do Alecrim e na Tal análise não se prende somente às partituras que
adolescência integra o grupo Pan Jazz. Durante o alistamento descrevam frases ou padrões rítmico-melódicos de cada um dos
militar, em 1935, aprende a tocar saxofone integrando a banda gêneros citados, mas deve ser estendida às capas de discos de
da corporação. Transferido pelo exército segue para Recife, diversas orquestras em que o K-ximbinho participou como
integra a Orquestra Tabajara no ano de 1938 na cidade de João saxofonista, além de discos próprios.
Pessoa, em seguida viaja para o Rio de Janeiro no ano de 1942. A trajetória de adaptações e negociação entre jazz e choro na
K-ximbinho atuou como músico e arranjador em outras obra de K-ximbinho é verificada numa linha temporal sobre
bandas semelhantes à Orquestra T abajara, cuja atividade estava seus discos de carreira e algumas composições publicadas fora
ligada a festas, bailes e demais eventos de entretenimento. desses discos. Numa breve ilustração observam-se
Como faziam música para consumo as orquestras em geral especificamente dois discos lançados por K-ximbinho, em
tinham que se mostrar atualizadas com a demanda do público. 1956 e 1959 respectivamente. O segundo disco contém apenas
O que fazia uma orquestra como a T abajara se sobressair era o uma música de autoria do compositor além de algumas
elemento criativo de Severino Araújo aliado à capacidade músicas cantadas obedecendo a demanda das boates na época
interpretativa de seus integrantes. 5 em apresentar um crooner na formação da banda. T odo o
Para se compreender este universo, construiu-se um restante do repertório no primeiro e segundo discos é composto
conjunto de dados a partir de fontes documentais diversas, por Standards do jazz e do cancioneiro estadunidense, além de
incluindo relatos pessoais e iconografia, que auxiliaram a sambas e canções brasileiros. Todos arranjados no formato de
entender como os fatos descritos são articulados por músicos e big-band.
orquestras brasileiras - como discutem, assimilam e Em seguida há um disco lançado em 1958, cujo formato
incorporam esse processo de relação e influência com o estilo instrumental se diferencia dos álbuns citados; a formação
interpretativo e instrumental de grupos e músicos de fora. As composta por instrumentos de metal sai e destacam-se apenas
capas de disco, descritas adiante, complementam visualmente o piano, contrabaixo, bateria, guitarra e clarinete (tocado por
discurso dos atores envolvidos nessa pesquisa. K-ximbinho). Também é mais presente o elemento da
O clarinetista e saxofonista Paulo Moura (2008) nos conta improvisação sobre um chorus pré-determinado.
do seu contato com a música dos Estados Unidos por meio do No ano de 1980 K-ximbinho dá início às gravações de seu
bebop, acompanhado pelo seu interesse maior pela último disco. Nesse álbum se percebe a presença de todos os
interpretação da música brasileira e sua atuação nos bailes de elementos citados acima nos discos anteriores com o acréscimo
gafieira no Rio de Janeiro. Cita instrumentistas que tiveram dos instrumentos que compõem um regional característico do
influência sobre seu aprendizado e defende que hoje, a junção Choro. Também é um disco que tem lançamento póstumo,
desses vários elementos oriundos de fontes culturais diversas é cerca de um ano após sua morte. Gilka Barros, filha
importante para a formação e o resultado na obra e interpretação primogênita de K-ximbinho, nos conta que a produção e seções
musical de um artista. de gravação do disco aconteceram sem problemas financeiros, e
Excluindo as experiências com gafieiras, K-ximbinho, pelos mesmo após as mortes do pai e do produtor do disco, Aírton
dados colhidos e a trajetória analisada em seus discos, persegue Barbosa (1942 – 1980)7, ela juntamente com a mãe Maria
o mesmo roteiro. Embora se verifique primeiramente a presença Stella Barros, conseguiram apoio para o evento de lançamento
do jazz, o elemento estranho e novo na trajetória do do disco em 14 de setembro de 1981, às 19:30h na Funarte,
compositor, isto não denota que os músicos citados cidade do Rio de Janeiro e noticiada no caderno B, do Jornal
desconhecessem os elementos do choro. do Brasil por João Máximo, na mesma data.
Segundo Paulo Moura (2008), outros arranjadores surgiram Em meio ao período de lançamento de seus discos, entre os
com destaque na década de 1930 e 1940, cada um deles com anos de 1978 e 1979, K-ximbinho levou a público o choro
referências específicas: Cipó influenciado por Duke Ellington e Manda Brasa8, concorrente e vencedor do II Festival Nacional
Count Basie, Severino Araújo por Artie Shaw, Zacharias por do Choro, promovido pela Rede Bandeirantes de T elevisão e
Benny Goodman. Moura descreve essas influências dos registrado em disco contendo a composição de K-ximbinho e
arranjadores estadunidenses no estilo de tocar e arranjar de os onze finalistas restantes. Segundo observação de Cazes
K-ximbinho, mas o destaca por imprimir no resultado musical (1998), Manda Brasa um Choro composto em “ caráter mais
identidade própria. Havia uma tendência musical que o tradicional” e refere-se à presença de instrumentos comuns às
mercado fonográfico estava disposto a comercializar e muitos rodas de Choro, e o formato de três partes executado em forma
além de K-ximbinho e Severino Araujo buscaram se destacar rondó.
em meio ao risco de proliferação e massificação desse produto
NOTAS
1. A saber, a relação da música indiana por intermédio do citarista
Ravi Shankar com os ingleses The Beatles ou P aul Simon com
grupos como o sul-africano Ladysmith Black Mambazo.
2. Essa percepção leva à necessidade de conhecer o contexto
cultural, político e social do Rio Grande do Norte durante o
período da Segunda Guerra Mundial e as possíveis
conseqüências sobre a música que se ouvia no rádio e na
música produzida por grupos específicos.
3. Segundo definição de Ulhôa (1999), uma terminologia que não
se confunde com a sigla MP B, que atende como rótulo
guarda-chuva de um segmento do mercado de discos.
4. Conforme descrito anteriormente a respeito da presença da base
militar dos Estados Unidos naquela cidade.
5. Só para citar, K-ximbinho (clarinete e saxofone) e Zé Bodega
(saxofone)
6. A citar Severino Araújo, Zé Bodega, Maestro Cipó, Nestor
Campos e demais músicos que circulavam entre os grupos que
tocavam música instrumental brasileira e jazz.
7. Fagotista, fundador e integrante do Quinteto Villa Lobos.
8. K-ximbinho, 1978. Copyright Editora Morumbi.
9. Ainda sobre a questão das adaptações, recomendamos o
trabalho de Valente (2009), que estabelece uma comparação
entre P ixinguinha e K-ximbinho, daí verifica similitudes
sobre os ajustes que cada um fazia para se manterem no
mercado, conforme a época de cada um.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O samba, a opinião e outras
bossas na construção republicana do Brasil. In: Berenice
Cavalcante; Heloísa Starling; José Eisenberg. (Org.).
popular do Brasil, deve-se especificar qual fase daquele caracteriza o uso do modo mixolídio. O fato de a seção oscilar
gênero musical está a influir nos compositores brasileiros. No apenas em dois acordes é normalmente denominado de
caso específico que se pretende estudar aqui, se pode dizer vamp(3) no jargão popular e corrobora numa priorização que
que se trata do período pós cool-jazz, aqueles anos em que, não é naturalmente tonal.
paralelamente com o free-jazz, o trompetista norte americano Outro procedimento realizado consistiu na transliteração da
Miles Davis teve o se 2º Grande Quinteto (2). Para se cifra. Esse se dá ao passar a cifra dos acordes de música
justificar a importância desse período do jazz na música popular para a pauta musical e, assim, se pode descobre
brasileira há que se lembrar, por exemplo, que no encarte do possibilidades latentes às vezes ocultada. Por exemplo: se
1º long playing de Milton Nascimento (Philips,1967) há um analisássemos apenas a melodia do trecho em questão (Upa,
texto de Edu Lobo no qual ele diz que para Milton existiam Neguinho) chegaríamos à conclusão de que se trata do modo
três compositores de extrema importância: Miles Davis, mixolídio, priorizado tanto harmônica como melodicamente.
Charles Mingus e John Coltrane. No entanto, através do procedimento adotado, verifica-se que,
na verdade, trata-se de uma seqüência híbrida, já que ora um
IV. Procedimentos Metodológicos acorde possui a nota DO natural, hora o seguinte possui a nota
Durante a década de 1960, muitos compositores e DO sustenido. Mesmo assim, a priorização se dá sem o uso do
instrumentistas do gênero popular começaram a acorde dominante.
intencionalmente buscar sonoridades mais tipicamente Pode-se citar uma série de outras canções do mesmo
brasileiras. Um bom exemplo disso foi o grupo “Quarteto período que adotam o mesmo procedimento, a saber, o da
Novo” formado por Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, priorização sem o artifício do acorde dominante com a
Theo de Barros (parceiro de Geraldo Vandré em Disparada) e repetição contínua do vamp, como Ponteio (Edu Lobo), seção
Airto Moreira. No compacto lançado em 1967 houve a B de Canção do Sal (Milton nascimento), Fica Mal com Deus
interpretação de Ponteio (Edu Lobo) e Fica Mal com Deus (Geraldo Vandré), etc.
(Geraldo Vandré), duas canções marcantes do período, de Já no caso do jazz dos anos 60 acredito que o modalismo se
forte caráter modal ligadas à música nordestina. O que dá por uma via completamente diferente: o da saturação de
diferenciou o “Quarteto Novo” dos demais grupos extensões sobre um determinado acorde. Por exemplo, a
instrumentais da Bossa Nova, foi também a utilização de música So What de Miles Davis, lançado no já citado álbum
instrumentos característicos como violões, violas, percussões “Kind of Blue” (Columbia, 1957). Nela há dois acordes: parte
típicas brasileiras ao invés do modelo jazzístico A – 16 compassos de RE menor com 6ª e 9ª, parte B 8
piano-baixo-bateria com guitarra ou violão opcional utilizados compassos de MI bemol menor com 6ª e 9ª e 8 compassos de
pelos os trios Tamba, Zimbo, Jongo, etc. parte A com o acorde inicial. Como só há um acorde em toda
A demonstração dessas características se deu através da seção A e ele está com as notas da tétrade RE FA LA DO
análise. Entretanto, essa não foi feita somente através das mais as extensões MI (9ª) SOL (11ª) e SI (6ª), o modo
partituras editadas de música popular, mas, também, da resultante é o modo dórico. Pode-se ainda enfatizar o fato de
análise e transcrição a partir de gravações históricas. Tome-se, não haver qualquer cadência com a dominante que justifique
como exemplo, o trecho inicial de Upa, Neguinho (música de uma visão tonal. Há aqui uma grande confusão no meio
Edu lobo e letra de G. Guarnieri): Figura 1 musical jazzístico. Figura 2: Blue in Green (Bill Evans/ Miles
Davis).
as duas cadências secundárias: II subV (4) do VII (compasso SANTOS, Moacir. Coisas. Brasil: Forma, 1965.
3) e II subV do VI (compasso 4). O único V grau sem função THE REAL BOOK. Hal Leonard Corporation, 6ª Edição, s/d.
de dominante é o do 9º compasso, mas que é precedido por
uma dominante individual. Aqui se tem um exemplo claro de
um falso modalismo. O que acontece é que, devido ao hábito
dos improvisadores de associar uma escala para cada acorde,
se denominou modais muitas canções que não o eram. Talvez
a abordagem dos músicos seja modal mas não a música em si.
É claro que não se quer dizer aqui que o achado desses
procedimentos seja exclusivo da música popular. Tirando-se o
procedimento dos vamps, as polarizações harmônicas modais
ocorreram principalmente ao final do romantismo.
Coincidentemente aliados a regionalismos locais e, por que
não dizer, a nacionalismos locais, compositores como Grieg,
Mussorgsky, Dvórak e, posteriormente, já no impressionismo
Debussy, Ravel, Falla realizaram, cada um à sua maneira,
caminhos modais próprios. É certo que a verificação através
da comparação dos mesmos procedimentos em diferentes
épocas e contextos pode validar ainda mais a definição teórica
que se pretende dar em relação ao aspecto técnico do
modalismo transposto ao nível harmônico.
NOTAS
(1) Como demonstra José Maria Neves (1981, 48).
(2) Isto é, o período que se estende após o antológico Kind of Blue
(1958 - marco do cool-jazz) e anterior ao In a Silent Way (1969), ou
seja, anterior ao período do jazz-rock. Esse período é chamado de o
2º Grande Quinteto de Miles, cujos membros eram, entre outros,
exatamente os citados Wayne Shorter (sax) e Herbie Hancock
(piano), no lugar de Bill Evans e John Coltrane, ambos do 1º Grande
Quinteto
(3) The New Groove Dictionary of Jazz, 1996, p. 1238.
(4) O subV é o equivalente do acorde de 6ª aumentada no jazz. Ver
Tiné, Paulo José de S. 2001.
Referências
CONTIER, Arnaldo Daraya. “Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e
o popular na canção de protesto (os anos 60)”. Revista História de
São Paulo, V.18, No 35, p. 13 – 52, 1996.
JAFFE, Andy. Jazz Harmony. Tübingen: Advance Music, 2a ed.,
1996.
NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo:
Ricordi Brasileira, 1981.
PISTON, Walter. Harmony . New York : W.W.Norton & Company,
5a ed., 1987.
The New Grove Dictionary of Jazz. New York and London: St.
Martin´s Press and The Macmillan Press Limited, 1996.
TINÉ, Paulo José de Siqueira. Três Compositores da Música Popular
do Brasil: Pixinguinha, Garoto e Tom Jobim. Uma análise
comparativa que abrange o período do Choro a Bossa Nova.
Dissertação de Mestrado. ECA-USP, São Paulo, 2001.
_______________________. Procedimentos Modais da Música
Brasileira: do campo étnico do Nordeste ao popular da década de
1960. Tese de Doutorado. ECA-USP, São Paulo, 2008.
Partituras e Gravações
obriga a recorrer neste primeiro momento, além dos trabalhos criado? (GARCIA, http://rodamoinho.blogspot.com/2007/04/
já citados, a informações – também precárias – coletadas em bambico.html).
revistas e sites especializados de música caipira, elaborados Todas as questões apresentadas, apesar de expostas
geralmente por aficionados do gênero. Embora superficiais, superficialmente, têm por objetivo esclarecer que, até o
são as fontes que dispomos no momento e às quais momento, nada foi produzido de forma consistente sobre o
inevitavelmente teremos de recorrer. tema. Apesar da inexistência de tais trabalhos, teremos alguns
Uma destas fontes é a revista Viola Caipira, especializada escritos, tanto no meio acadêmico como fora dele, que nos
em assuntos relacionados ao universo popular que envolve a darão um suporte para uma posterior investigação mais
viola caipira. A citação que apresentamos foi retirada de uma detalhada sobre a vida e a obra do violeiro.
matéria de Fernando Tassoni para a referida revista. Vale
ressaltar a menção que o autor faz a respeito das dificuldades II. PRECARIEDADE DE
em se encontrar registros sobre Bambico:
INFORMAÇÕES NOS DISCOS DE
De grande importância para a viola instrumental, tanto no aper-
feiçoamento técnico como na divulgação do instrumento, Do-
MÚSICA POPULAR BRASILERIA
mingos Miguel dos Santos, o saudoso violeiro Bambico, foi um Como pudemos observar nas citações apresentadas, são
dos mais destacados músicos na arte de pontear a viola caipira. poucos e precários os textos existentes contendo informações
[...] Partiu cedo, como diz Rolando Boldrin: ‘fora do cumbina- sobre a vida de Bambico. Percebe-se também que muito se
do’, aos 38 anos de idade, sendo extremamente difícil encon- questiona sobre a ausência de dados mais precisos e
trar registros sobre sua carreira como fotografias, arquivos e
abrangentes. Nos encontros de música sertaneja4 ocorridos no
gravações (TASSONI, 2008: p. 33).
interior do estado de São Paulo, onde se fala muito da figura
Alguns sites também trazem informações, embora de Bambico, assim como em diversos vídeos na internet, com
superficiais, sobre Bambico. Em seu site sobre música popular violeiros executando suas obras, podemos observar que
brasileira José Ricardo Gonçalves menciona: grande é sua popularidade e o número de admiradores, sendo
Inesquecível violeiro, no entanto, quase nada se falou nem tão evidente que um trabalho mais elaborado sobre o violeiro teria
pouco se escreveu sobre Domingos Miguel dos Santos, o Bam- grande repercussão fora do âmbito acadêmico.
bico, nascido em Umuarama-PR. [...] Esse jovem violeiro foi Partindo dos comentários de que Bambico teria criado
de fundamental importância na criação do ritmo do Pagode de diversas melodias e ponteados de gêneros da música caipira,
Viola. Além da dupla com João Mulato, Bambico também foi inclusive pagodes-de-viola, e gravado para muitas duplas
um grande amigo de Tião do Carro, além de ter também tocado
caipiras, entre as quais Tião Carreiro & Pardinho, temos que
a Viola Caipira em gravações de discos de Jacó & Jacozinho e
Tião Carreiro, para quem também criou diversas introduções a realização de um detalhado trabalho sobre a vida e obra do
aos seus característicos pagodes. Seu principal trabalho foi, violeiro, muito além de suprir as curiosidades dos
portanto, como músico de estúdio, com seus arranjos e acom- apreciadores de música caipira e de música instrumental de
panhamentos que deram um marcante brilho sonoro a tais gra- viola, venha, acima de tudo, a restituir a Domingos Miguel
vações (GONÇALVES, http://www.boamusicaricardinho.com/ dos Santos os créditos que lhe foram negados quando de sua
joaomulatoedouradinho_56.html). atuação como músico de estúdio e compositor. Infelizmente,
Outra referência ao violeiro é feita no site da revista Viola uma das características dos discos LPs que abrangem o
Caipira, por Pedro Lemos Barbosa, editor e criador da revista: período no qual Bambico atuou como músico de estúdio, diz
respeito ao fato de tais discos não trazerem nenhum tipo de
Pouco se falou e menos ainda se escreveu sobre esse que, sen-
do Tião Carreiro considerado o Pelé da viola, foi sem dúvida o informação sobre os músicos que participaram nas gravações.
Garrincha dos violeiros, um verdadeiro artista nas artimanhas Partindo desta característica podemos estabelecer algumas
do ponteio. Domingos Miguel dos Santos, o Bambico, natural questões: Quais solos Bambico teria criado? Para quais discos,
de Umuarama, PR, foi um dos grandes talentos da viola caipi- de quais duplas? Quais seriam as gravações em que Bambico
ra. Embora tivesse feito dupla com Bambuê, a sua notoriedade participara como músico de estúdio?
foi como violeiro e arranjador. O seu principal trabalho, por- A carência de informações nos discos sobre datas, autores,
tanto, foi como músico de estúdio, fazendo arranjos e acompa- arranjadores e instrumentistas, que também nos motivaram
nhamentos que dão às músicas um marcante brilho sonoro. A- para a realização da pesquisa, foi observada por Ary
tuou muitos anos como violeiro nas gravações de estúdios fei-
Vasconcelos no preâmbulo do primeiro volume de seu
tas pelo mestre Tião Carreiro. Bambico gravou, em 1982, o LP
‘Brincando com a Viola’. Faleceu poucos meses depois, aos 38 Panorama da Música Popular Brasileira:
anos, segundo seu amigo Tião do Carro (BARBOSA, Se achar, porém, um disco de música popular brasileira seja ele
http://www.revistaviolacaipira.com.br/link03_b01.htm). de que época for, [...] não conseguirá saber nada além do que
está no rótulo do disco: o nome da música, às vezes do gênero,
Por fim citamos um texto de Marcelo Garcia, que ressalta a do compositor (que freqüentemente não corresponde ao verda-
necessidade de um estudo mais detalhado sobre Bambico, deiro autor), o número do disco e da matriz. Quando foi grava-
trazendo algumas questões sobre sua atuação como músico de do? Que músicos participaram do acompanhamento? Quem são
estúdio: os solistas? De quem é o arranjo? São problemas que não con-
Ouvindo os ponteios de Bambico em seu disco solo e os de Ti- seguirá resolver (Referimo-nos apenas nos casos mais simples;
ão Carreiro, nota-se uma certa diferença de estilo e “pegada”. nos outros a complicação se complica ainda de muito...)
Tião era mais energético, Bambico mais sutil. Por isso nunca (VASCONCELOS, 1964: p. 9).
achei provável que Bambico houvesse realmente tocado em Procurando suprimir esta carência da discografia da música
gravações de Tião Carreiro. Mas, depois deste texto de João popular brasileira, a dupla Abel & Caim gravou o único disco
Mulato, uma investigação mais profunda talvez se faça neces- encontrado, até o momento, em que podemos afirmar com
sária. Em quais músicas ele teria tocado? Quais ponteios teria certeza que Bambico gravou quase integralmente a parte de
viola caipira (exceto a faixa Prima Suzana, executada por pagodes-de-viola atribuídas a Tião Carreiro, procuraremos
Caim): o LP Os reis da moda-de-viola5, lançado em 1981. A também calcular sua parcela de colaboração, caso realmente
primeira faixa do disco, Velho Peão, se inicia com um exista, na criação do gênero pagode-de-viola, geralmente
recortado seguido de uma conversa entre os primos José atribuída somente a Tião Carreiro, como ressalta sua filha
Vieira e Sebastião Silva, acompanhados por um fundo musical Alex Marli Dias na biografia do pai:
de viola. Transcrevemos a conversa: Tião Carreiro tocava viola desde jovem, mas era inconformado
Caim: Êêê Abel, que som bunito que tem a tal viola, não? sempre procurando novas formas de tocar, foi aí que inventou
Abel: É a coisa mais linda do mundo6. É a pura. um ritmo diferente, em que a viola batia cruzado com o violão,
Caim: Barbaridade. E nóis já a tanto tempo gravano disco. E numa mistura de recorte do catira lento com o recortado minei-
chegô o momento da gente então atendê os nossos fãs de todo ro mais expressivo. O pagode foi criado por Tião Carreiro na
o Brasil que nos escreve pidindo para que o Abel & Caim gra- rádio cultura de Maringá/PR; Tião começou a bater com sua
vasse um LP só com moda-de-viola. Bambico! viola e conseguiu fazer a junção da viola com o violão na
Bambico: Oi! mesma gravação. Chegando em São Paulo, tocou a fita para o
Caim: Você gostaria de acompanhar o Abel & Caim num LP Lourival dos Santos – consagrado compositor sertanejo e
só de moda-de-viola? Teddy Vieira e estes ao ouvi-la , comentaram, parece um pa-
Bambico: Ô Caim, pra mim é o maior prazer da minha vida! gode – pagode em Minas Gerais era baile, e estava batizado o
Caim: Então tá contratado! novo ritmo, e Tião Carreiro tornou-se ‘O Rei do Pagode’.8
Bambico: Pois não! (DIAS, http://www.tiaocarreiro.com.br/interna.php?
page=biografia)
Percebe-se neste disco que as características da discografia
apontada por Ary Vasconcelos, no que diz respeito à carência IV. UM POSSÍVEL RESGATE DA
de informações, são suprimidas por uma informal conversa ATUAÇÃO DE BAMBICO NAS
entre os cantadores, deixando claro que o executante da viola
que o ouvinte irá escutar nas faixas do disco é Bambico. Vale
GRAVAÇÕES
ressaltar que existe aí um contraste subentendido entre as Uma possibilidade de se chegar às prováveis composições e
duplas que não fazem questão de dar os devidos créditos aos gravações de Bambico, tanto em discos da dupla Tião
“músicos de estúdio” (talvez para não perder ou não dividir Carreiro & Pardinho como de outras, pode ser realizada a
uma fama e um prestígio alcançado do qual é detentor) e as partir de duas propostas metodológicas distintas, mas que se
duplas que, como Abel & Caim, fazem algum tipo de esforço complementam: a) uma investigação biográfica, partindo de
para suprimir a ausência de informações dos LPs. entrevistas com pessoas que conviveram com o violeiro, e; b)
a transcrição do LP Função de violeiro seguida de análises
III. AS GRAVAÇÕES DE TIÃO musicais, a fim de se caracterizar a “pegada”, o “toque de
CARREIRO E A CRIAÇÃO DO PAGODE- viola” de Bambico para identificá-lo em outras gravações.
DE-VIOLA Acreditamos que as transcrições e análises, aliada aos dados
biográficos, confluam para respostas das questões já
Hoje, sentimos claramente o quanto a figura de Bambico
apresentadas.
está prejudicada pelo fato dos discos nos quais ele teria
As informações de uma detalhada biografia aliadas a uma
participado como músico de estúdio, não somente da dupla
definição estilística do violeiro pode nos possibilitar algumas
Tião Carreiro & Pardinho, carecerem de informações
respostas para as questões que se criaram em torno da figura
relevantes. O fato de a dupla Tião Carreiro & Pardinho ser
de Bambico, desvendando, por exemplo, quais composições
sempre o foco das atenções quando o assunto versa sobre as
de Bambico Tião Carreiro teria gravado e em quais discos de
participações de Bambico como músico de estúdio se deve à
Tião Carreiro Bambico teria participado.
fama que Tião Carreiro conquistou ao longo de sua vida,
A partir da coleta e do levantamento destas informações
sendo considerado um exímio violeiro e um verdadeiro
acreditamos que seja possível restituir muitos dos créditos a
virtuose do instrumento: o “rei do pagode”; o “Pelé da viola”.
que Bambico tem direito, tanto como compositor quanto como
O fato é que os boatos de que Bambico seria o autor e
instrumentista, assim como sua real contribuição na criação do
intérprete de muitas introduções de pagodes-de-viola em
pagode-de-viola, caso realmente exista. Em caso de
alguns discos da dupla Tião Carreiro & Pardinho ainda hoje
confirmação das hipóteses aqui levantadas, teremos como
perturbam muitos admiradores do violeiro.
conseqüência inevitável uma relativa desmitificação da figura
Especificamente sobre a dupla Tião Carreiro & Pardinho
de Tião Carreiro, ou, no mínimo, a apresentação de alguns
temos, aliada às características dos discos da época, que não
elementos – não apenas a figura de Bambico – que tenham
traziam informações sobre os músicos de estúdio, outro fator
contribuído para a criação do mito Tião Carreiro.
que provavelmente prejudicou uma maior projeção da figura
de Bambico na posteridade: a personalidade do próprio Tião V. INFORMAÇÕES BIOGRÁFICAS
Carreiro. Segundo Luis Faria7, violeiro e amigo de Tião
Domingos Miguel dos Santos nasceu na Fazenda Pontal, na
Carreiro, sempre que possível Tião Carreiro recolhia para si
cidade de Taciba, interior do estado de São Paulo, no dia 22 de
créditos que de fato não lhe pertenciam. Esta personalidade de
junho de 1944, filho de Miguel José dos Santos e de Emília
Tião Carreiro foi sem dúvida definitiva para se criar um mito
Angélica de Jesus. Posteriormente, fixou residência no estado
sobre sua figura, porém, o que procuramos ressaltar aqui é o
do Paraná, nas cidades de Arapongas e Apucaranas, onde
fato de que muitos foram os fatores e as pessoas que, de certa
ainda hoje residem muitos de seus familiares. No Paraná
forma, ajudaram a criar o mito Tião Carreiro.
trabalhou, dentre outras profissões, como tinteiro e sapateiro,
Além da provável participação de Bambico na criação e
além de ajudar a família na lida com o roçado.
gravação das clássicas – quase lendárias – introduções dos
Em Arapongas, Bambico conheceu Maria José Cândido discografia gravou ao lado de artistas renomados, como
(dos Santos), sua futura esposa, nascida em 25 de novembro Rolando Boldrin, além de diversas duplas, como Tião
de 1947, com quem se casou na mesma cidade no dia 12 de Carreiro & Pardinho, Jacó & Jacozinho, Zico & Zeca, Liu &
dezembro de 1961. Natural da cidade mineira de Itamogi, Léu, Lourenço & Lourival, Leôncio & Leonel, Abel & Caim,
Maria José também havia fixado residência no Paraná. Com Irídio & Irineu, Galvão & Galvãozinho, Zé Mineiro &
ela Bambico teve três filhos9: Marcos Antônio dos Santos, Mirandinha, Rei da Mata & Tião do Gado, Pardinho &
Marcelo dos Santos e Márcia Cristina dos Santos. Um dos Pardal, Cambuci & Cambuizinho, Taviano & Tavares, entre
desejos do violeiro era que sua mulher concebesse dois filhos tantas outras.
homens, no intuito de formar uma dupla caipira, daí os nomes Outra característica que pode-se perceber na sua discografia
de seus filhos: Marcos e Marcelo. diz respeito aos dois nomes artísticos que possuía
Carinhosamente chamado de “Mingo” pelos familiares concomitantemente: Bambico e Douradinho. Em uma das
(proveniente de Domingos), Bambico era uma pessoa simples, participações de Bambico no programa Viola, Minha Viola,
humilde e de bom coração. Tocava na verdade por paixão à quando o programa ainda era apresentado pelo radialista
sua arte, nunca exigindo boa remuneração pelas suas Moraes Sarmento, este questiona: “Porque se apresenta com
composições, arranjos e participações nos discos, assim como dois nomes? Como cantor é Douradinho, como solista de
nunca teve grandes pretensões financeiras e materiais. Este é viola é Bambico. Porque hein?”. A resposta do violeiro:
um dos fatores pelo qual Bambico não fazia questão de ter os Isto aí foi uma sugestão do nosso diretor, da gravadora que eu
créditos de suas composições, arranjos e gravações, pois gravei, ele achou melhor eu trocá o nome cantando como du-
estava sempre disposto a ajudar os amigos. Apesar de sua pla, e pra solá de viola ele acho melhor ficá como Bambico
personalidade solidária, fato é que Bambico não possuía uma mesmo. Intão eu mudei o nome pra Douradinho pra cantá com
exata noção de seu raro talento. meu parcero e solista de viola fiquei como Bambico.11 (BAM-
No que diz respeito às exigências, uma das poucas BICO)
preocupações do violeiro era no traje, sendo sempre Segue abaixo a discografia de Bambico. Vale ressaltar
impecável na vestimenta. Bambico fazia questão de se vestir que existe um longo hiato de produção entre o segundo
bem, com elegância, ter sempre sapatos lustrados e não disco com Bambuê (1971) e a retomada como cantor de
dispensava um perfume. dupla no primeiro disco com João Mulato (1980). Esta falta
Por volta de 1974 Bambico conheceu sua segunda de continuidade se deve pela sua atuação como músico de
companheira, Nilza, com quem passou a morar após se estúdio, o que abrange uma discografia extremamente
divorciar de Maria José. Com Nilza o violeiro não teve filhos, vasta.
e apesar da separação, os filhos sempre mantiveram contato
com o pai, pois comumente estavam presentes nas rodas de
viola das quais participava.
Apesar de ser considerado um grande virtuose da viola
caipira o primeiro instrumento de Bambico foi, curiosamente,
um cavaquinho, o qual, juntamente com o acordeom, tocava
muito bem. O apelido “Bambico” surgiu da intimidade do
violeiro com a viola caipira, devido a seu virtuosismo e da
facilidade com que criava melodias, arranjava e “tirava
músicas de ouvido”. O violeiro era tido como o “bamba10 da
viola”, o “bambambã”, daí o apelido.
Santista no futebol e católico na religião, o violeiro foi
parceiro de Bambuê (Bambico & Bambuê) e de João Mulato
(João Mulato & Douradinho). Por ser mulato, Bambico
atuava ao lado João Mulato como Douradinho, sendo o nome Figura 1. Viola e Violão – 1967 (Bambico & Bambuê)12
artístico dos dois cantadores devido à pigmentação da pele.
No início da década de 1980, já debilitado por causa da
diabetes, Bambico gravou seus últimos discos, chegando a
compor algumas introduções no hospital, como a bela
introdução de Meu Reino Encantado.
Bambico faleceu no dia 31 de julho de 1982, na cidade de
Osasco, por complicações de saúde devido à diabetes. Sua
campa está localizada no cemitério Santo Antônio, na mesma
cidade.
VI. DISCOGRAFIA
Devido a atuação de Bambico como músico de estúdio de
diversas duplas, durante um longo período, o violeiro gravou
apenas 5 LPs, número relativamente pequeno se levarmos em
consideração seu talento e a discografia de seus
companheiros. Sua atuação como arranjador e músico de
estúdio lhe ocupava muito tempo, mas apesar da pequena Figura 2. É Fogo no Fogo – 1971 (Bambico & Bambuê)13
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Capes pelo auxílio financeiro como bolsista de
mestrado, ao professor Alberto Ikeda pela orientação e a todos
que, de alguma forma, colaboraram para a elaboração da
presente comunicação. Agradecemos especialmente a Marcelo
dos Santos (filho de Bambico), Sebastião Domingos da Silva
(Tiãozinho, da dupla Sereno & Tiãozinho), Geraldo Nunes
(Gravadora Allegretto), dupla Tenório & Praense, Francisco
Pereira (Chicão Pereira), Maikel Monteiro (pelas informações
discográficas), Fernando Tassoni, Miguel Bragioni (Instituto
Figura 5. Meu Reino Encantado – 1981 (João Mulato &
Cultural Orestes Rocha) e Ivan Vilela.
Douradinho)16
14
NOTAS Fonte da imagem: <http://2.bp.blogspot.com/
1 _zWBzjAYQ1jY/R2APvN3rhNI/AAAAAAAAAd4/12Egv_P7lu8/S
Entre os primeiros violeiros que gravaram discos instrumentais de
300/Bambico>. Acesso em 27 de junho de 2009.
viola caipira estão: Zé do Rancho (A viola do Zé. 1966); Tião Carrei- 15
Fonte da imagem: <http://www.saudade-da-minha-terra.com/
ro (É isso o que o povo quer. 1976); Renato Andrade (A fantástica
viola de Renato Andrade. 1977); Bambico (Função de Violeiro. ?cat=30>. Acesso em 27 de junho de 2009.
16
1979), e; Almir Sater (Instrumental. 1985). Fonte da imagem: <http://www.saudade-da-minha-terra.com/
2
Sobre a viola caipira, suas origens e utilização ver: VILELA, Ivan. ?cat=30>. Acesso em 27 de junho de 2009.
17
A viola. In: Músicos do Brasil: Uma enciclopédia instrumental. Fonte da imagem: <http://www.saudade-da-minha-terra.com/
Disponível em: <http://ensaios.musicodobrasil.com.br/ivanvilela- ?cat=269>. Acesso em 27 de junho de 2009. Este disco é uma reedi-
aviola.pdf>; Na toada da viola. In: Revista USP. São Paulo, v. 1, n. ção do LP Função de violeiro, de 1979.
64, p. 77-85, 2004, e; O caipira e a viola brasileira. In: Pais, José
Machado (org.). Sonoridades Luso-Afro-Brasileiras. Lisboa, Impren- REFERÊNCIAS
sa de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2004, p. 173-189. ABEL & CAIM, Os reis da moda-de-viola. [Gravado por Itamaraty; LP
3
O livro de Rosa Nepomuceno foi, provavelmente, o primeiro escri- 2067]. 1981.
to trazendo alguma informação sobre Bambico. Neste pequeno texto AMARAL, João Paulo Amaral. A viola caipira de Tião Carreiro. 2008.
temos um equívoco no que diz respeito à naturalidade do violeiro, 357f. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes,
como sendo o município de Umuarama, interior do Paraná. Prova- Universidade Estadual de Campinas.
velmente baseadas no livro de Rosa Nepomuceno, as fontes sobre BAMBICO & BAMBUÊ, Viola e Violão. [Gravado por Continental;
Bambico citadas nesta comunicação – da dissertação de João Paulo LPK 20.023]. 1967.
do Amaral Pinto até as citações colhidas da internet – são unânimes BAMBICO & BAMBUÊ, É fogo no fogo. [Gravado por Beverly;
em descrever Umuarama como local de nascimento do violeiro. Na AMCLP 5086]. 1971.
verdade Bambico nasceu no interior do estado de São Paulo, na BAMBICO, Brincando com a viola. [Gravado por Phonodisc; 0-34-
cidade de Taciba, conforme consta no cartório de registro civil da 405-427]. 1987.
cidade. BAMBICO, Função de violeiro. [Gravado por Chantecler; 2-11-405-
4
Sobre a dicotomia entre “música caipira” e “música sertaneja” ver: 230]. 1979.
MARTINS, José de Souza. Música Sertaneja: A dissimulação na BARBOSA, Pedro Lemos. Violeiros: Bambico. Disponível em:
linguagem dos humilhados. In: Capitalismo e Tradicionalismo. São <http://www.revistaviolacaipira.com.br/link03_b01.htm>.
Paulo: Pioneira, 1975, e; PIMENTEL, Sidney Valadares. O chão é o Acesso em 27 de junho de 2009.
limite: a festa do peão de boiadeiro e a domesticação do sertão. (p. DIAS, Alex Marli. Tião Carreiro. Disponível em:
187-234) Goiânia: Editora da UFG, 1997. <http://www.tiaocarreiro.com.br/interna.php?page=biografia>.
5
Sobre a moda-de-viola, sua estrutura e partes constituintes ver: Acesso em 27 de junho de 2009.
GARCIA, Rafael Marin da Silva. A volta que o mundo dá. (p. 32). GARCIA, Marcelo (2007, Abril 05). Bambico. Rodamoinho: Música
2007. 240f. TCC (Graduação) – Departamento de Música da Escola instrumental, rock, viola caipira e música de raiz. 2008.
de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. Disponível em: <http://rodamoinho.blogspot.com/2007/04/
6
Sobre a utilização de hipérboles pelas duplas caipiras, sobretudo na bambico.html>. Acesso em 27 de junho de 2009.
poesia, observada pelas falas de Caim (É a coisa mais linda do mun- GONÇALVES, José Ricardo. João Mulato & Douradinho. Disponível
do) e de Bambico (É o maior prazer da minha vida), ver: GARCIA, em: <http://www.boamusicaricardinho.com/
Rafael Marin da Silva Garcia. Op. Cit. (pp. 49 e 60). joaomulatoedouradinho_56.html>. Acesso em 27 de junho de
7
Em um curso de difusão cultural promovido pelo Departamento de 2009.
Música da Universidade de São Paulo – Campus de Ribeirão Preto, o JOÃO MULATO & DOURADINHO, Saudade de um amor passado.
violeiro Luiz Faria, comentando sobre sua amizade com Tião Carrei- [Gravado por Discos Globo; GG LP 009]. 1980.
ro e sobre a personalidade do violeiro, afirma que ele jamais escre- JOÃO MULATO & DOURADINHO, Meu reino encantado. [Gravado por
veu uma letra de música, sendo que exigia dos compositores co- Discos Globo; GG LP 018]. 1981.
autoria nas letras para que gravasse suas músicas. Sendo grande a NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira: Da Roça ao Rodeio. São
possibilidade de uma canção fazer muito sucesso na voz de Tião Paulo: Editora 34, 1999.
Carreiro, muitos compositores cediam às chantagens do violeiro. TASSONI, Fernando. Bambico: O Malabarista da viola. In: Revista
8
Biografia produzida por Alex Marli Dias (filha de Tião Carreiro) Viola Caipira, n. 22. Belo Horizonte: Ed. São Gonçalo, 2008.
com a colaboração de Cléber Toffoli e Eliana Arens. VASCONCELOS, Ary. Panorama da Música Popular Brasileira. Vol.
9 01. São Paulo: Ed. Martins, 1964.
Além dos três filhos mencionados, o casal também teve uma filha
falecida com cerca de um mês de vida, que seria a mais velha dos
três irmãos.
10
BAMBA [Do quimb. mbamba] Fig. Pessoa que é autoridade em
determinado assunto [bambambã] Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque
de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portu-
guesa, 3º ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
11
Fonte dos vídeos do programa Viola, Minha Viola, onde aparece
Bambico se apresentando por volta de 1980:
<http://www.youtube.com/watch?v=Sn4rcHGW59g> e
<http://www.youtube.com/watch?v=VzaJnJ-hr08>. Nos vídeos
Bambico se apresenta como solista de viola e como cantor da dupla
João Mulato & Douradinho, respectivamente.
12
Fonte da imagem: <http://www.saudade-da-minha-terra.com/
?cat=270>. Acesso em 27 de junho de 2009.
13
Fonte da imagem: <http://www.saudade-da-minha-terra.com/
?cat=270>. Acesso em 27 de junho de 2009.
designar o samba na Bahia (CARNEIRO, 1961, p. 24). Na ou não desses tipos de instrumentos pode variar entre um
década 1980, Waddey registra os termos samba chula, samba grupo e outro. O samba de roda apresenta uma “variedade de
de parada, samba de partido alto, samba santo-amarense, instrumentos[...] a depender do contexto, influência e
samba amarrado. E o termo “samba de viola”, considerado possibilidade” (ZAMITH apud DORING, 2002, p. 88). São
pelo pesquisador uma denominação genérica do samba na utilizados fundamentalmente cordofones, membranofones e
região onde era praticado (IPHAN, 2006, p. 105). idiofones. O instrumental encontrado é composto, na maioria
Das inúmeras denominações encontradas nessa pesquisa, das vezes, pelos seguintes cordofones: cavaquinho, violão,
podemos destacar duas categorias nativas que foram bandolim . No samba chula, em especial, o instrumento mais
amplamente citadas pelos sambadores: o samba chula e o valorizado é a viola, que pode ser encontrada em dois tipos: a
samba corrido. A essas duas categorias permite-se subsumir chamada viola paulista e o Machete. Os membranofones
sambas diversos que contêm traços em comum. O “Dossiê de encontrados foram: pandeiros, atabaques, timba, timbal; os
Registro do samba de roda do Recôncavo Baiano” propõe o idiofones: encontrados prato e faca, triângulo, maracá, reco
entendimento do samba de roda em dois grandes grupos. O reco, taubinhas, chocalhos. Além dos instrumentos
primeiro grupo refere-se ao samba chula que mantém uma mencionados, alguns grupos possuem também sanfona de oito
proximidade com o amarrado, de parada ou de viola. O baixos.
segundo remete ao samba corrido, que também é conhecido No universo do samba de roda, o repertório é amplo e
por alguns de seus participantes como “samba de roda”. As diversificado. A base desse repertório é constituída por
diferenças entre samba corrido e samba chula estão centradas, sambas tradicionais do Recôncavo, que são (re)adaptados por
basicamente, na música e na dança (IPHAN, 2006, p. 34). cada grupo e (re) atualizados para os dias de hoje, além de
É importante ressaltar que a denominação “samba de roda” músicas compostas pelos próprios integrantes dos grupo. Os
utilizada neste trabalho foi retirada dos documentos do sambadores também utilizam de uma estrofe de um samba
IPHAN referentes ao Registro4, e é também apresentada nos tradicional, que pode ser encaixado de diversas maneiras no
discursos de sambadores do Recôncavo Baiano ao se corpo do texto.
referirem ao samba na região. Assim, considera-se a Os temas que compõem as letras das músicas abrangem
expressão “samba de roda” como sendo uma maneira aspectos que evidenciam a complexidade do universo cultural
generalizada de referir-se ao samba encontrado no Recôncavo. dos sambadores e das sambadeiras. O próprio samba
Como é afirmado no Dossiê de Registro, a expressão “samba frequentemente é abordado nos textos, ressaltando-se o
de roda” está relacionada à maneira como os seus contexto onde é produzido, os instrumentos utilizados, assim
participantes se organizam no momento da perfomance, ou como aspectos da coreografia. A relação entre o homem e a
seja, dispostos em círculo ou em formato aproximado mulher é um tema constante, destacando-se o “jogo” do amor,
(IPHAN, 2006, p. 23). Contudo, para alguns sambadores nem o ensejo à conquista, o ciúme, as tristezas e alegrias de um
sempre o nome “samba de roda” serve como denominação ao encontro. Além disso, o apego ao lugar de “origem”, ou seja,
gênero de samba que o seu grupo produz. O samba chula, por as cidades, os bairros e as regiões onde nasceram e ainda
exemplo, é reconhecido pelo mestre Seu Zeca Afonso, do vivem os sambadores é sempre citado nos textos.
grupo Samba Chula Filhos da Pitangueira, como sendo um No samba de roda a dança é indissociável a música. Os
gênero diferente do samba de roda. participantes do samba, sejam eles músicos ou sambadeiras,
Segundo Seu Zeca Afonso, existem duas variações de posicionam-se em círculo, semi-círculo ou formato
samba no Recôncavo, o samba de roda e o samba chula. O aproximado. Os músicos normalmente ficam de frente para as
mestre afirma que “[...]o samba de roda chama samba de roda mulheres ou do lado delas6, que por sua vez se deslocam para
porque da hora que você começa a sambar, se passar a noite o centro da “roda” para executar os passos do samba. O passo
toda sambando você vê uma pessoa na roda sambando, uma mais característico do samba de roda é o que as sambadeiras
sai, dá uma umbigada na outra[...]”. Ele acrescenta que “o chamam de miudinho. ”Trata-se de um leve e rápido pisoteado,
samba chula é diferente, dois canta a chula e os outros dois com os pés da posição paralela e solas plantadas no
responde o relativo. Aí quando termina de cantar o relativo a chão”(IPHAN, 2006, p. 53). As sambadeiras entram no
mulher entra na roda[...]( MESTRE ZECA AFONSO, 2008). miudinho e têm que correr a roda, ou seja, dançar,
Além de ressaltar a diferença entre os dois tipos de samba, o deslocando-se por o todo espaço interior da roda. Após a
mestre Zeca Afonso é enfático ao dizer que a denominação realização do seu solo, a sambadeira dá uma umbigada, ou
utilizada para designar a música produzida pelo seu grupo é gesto correspondente, em outro participante da roda. No
samba chula. samba chula, as sambadeiras entram na roda após a chula e o
O canto segue o padrão pergunta e resposta. No samba relativo. No samba corrido, a dança e o canto podem
chula, a principal parte cantada é chamada de chula 5 e o acontecer ao mesmo tempo.
chamado relativo constituí-se como um tipo de resposta a Além das apresentações públicas, os grupos de samba de
chula. No samba corrido é comum o cantador principal do roda também realizam ensaios. Esses “ensaios” são ocasiões
samba ser um solista. A resposta, que não recebe o nome de em que os sambadores têm a oportunidade de “praticar” as
relativo, é cantada pelos participantes do samba, incluindo os músicas que serão tocadas nas apresentações públicas. Em sua
integrantes dos grupos e os espectadores. As frases são curtas maioria são realizados por grupos de formação mais recente,
e repetitivas. A estruturação musical está centrada no sistema que se reúnem ocasionalmente.
tonal, apesar de alguns poucos grupos não utilizarem A transmissão dos saberes no samba de roda é realizada
instrumentos harmônicos. através da observação e da imitação. A maioria dos
Atualmente, a maioria dos grupos de samba de roda utiliza sambadores e das sambadeiras afirma que aprenderam a
instrumentos de percussão e de cordas, sendo que a presença cantar, tocar e dançar ainda na infância, participando de rodas
NOTAS
1
Defendida no Programa de Pós Graduação em Música da
Universidade Federal da Bahia, em janeiro de 2009.
2
Em 2004, o samba de roda do Recôncavo Baiano foi proclamado
pelo IPHAN Patrimônio Cultural do Brasil. Posteriormente, em
2005, tornou-se Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da
Humanidade, título declarado pela UNESCO. Com vistas a garantir
a sua valorização e continuidade, foi implementada no universo do
samba de roda, a política federal de salvaguarda.
III. METODOLOGIA
Neste trabalho será realizado um estudo da harmonização
original das músicas Naquele Tempo e Ingênuo, a partir da
publicação de 1947 pela editora Irmãos Vitale, e sua
transcrição para a cifragem de acordes utilizada na música Figura 2- Motivo principal da Parte B
popular por Guest (1997). Este estudo realizará uma A partir da intersecção entre melodia e harmonia
pesquisa teórica do campo harmônico a partir da intersecção podermos observar as relações entre notas estranhas com os
entre a harmonização original e os elementos melódicos que acordes principais (Tabela 2).
permitem a identificar a presença de harmonias expandidas
com dissonâncias de 9ª menor, 9ª Maior, 4ª J, 13ª menor e Tabela 2. Transcrição da Análise Harmônica das Cifras
Revisadas
13ª Maior. A partir das melodias originais foram
identificadas as notas estranhas aos acordes que poderiam
ser incorporadas nas cifras das músicas. Parte A - Ré Menor
(b9) (b13) (b9) (b13) (b9) (b9)
║: V7 │Im │ V7 │Im │ I7 │IVm4│II7
A. Naquele Tempo
│
A primeira gravação de Naquele Tempo foi feita em 1934 (b9) (b13) (b9) (b13) (b9)
pelo bandolinista pernambucano Luperce Miranda e a V7 │ V7 │ Im │V7 │ Im │ I7 │ Im│
(b9)
harmonização segue a versão da edição Irmãos Vitale, de Im4 II7 V7 │ Im :║
1948. O choro foi feito na forma tradicional em três partes, Parte B - Fá Maior
ABACA, com 16 compassos cada, sendo a parte A em Ré
(9) (9) (9) (13)
menor, parte B em Fá Maior (relativa Maior) e parte C no ║: I IV7 │IIm7 │V 4 7│ I │ III7│ VIm 4│
homônimo Maior (Ré Maior). A Parte A apresenta uma II7│V7│ I
(9) (9)
IV7 │IIm7 │III7
(9) (b9)
│ VIm 4 │IVm│
linguagem harmônica baseada nas funções Im e V7, o IVm é
(b9) (9)
preparado por sua dominante secundária I7 e a V também é I VI7│IIm V7 │I :║
preparada por sua dominante secundária II7. (Tabela 1)
A partir da análise das Cifras revisadas foi possível
Tabela 1. Transcrição da Análise Harmônica das Cifras elaborar uma quadro no qual estão identificadas as
Originais
dissonâncias usadas nas funções de dominante principal,
dominante secundária, ou IIm-V cadencial, e também as
Parte A- Ré Menor dissonâncias usadas em acordes sem função de dominante
║: V7 │Im │ V7 │ Im │ I7 │ IVm7 │ II7 │ V7 │ como os acordes de tônica e subdominante. (Tabela3).
Ingênuo era considerado pelo próprio Pixinguinha como o (b9) (b9) (b9) (9)
VI7 │ VI7 │IIm │II7 │ I │VI7 │
seu choro mais bonito (Cabral, 1997). E observando a
linguagem harmônica, podemos perceber uma ousadia muito II7
(13)
│ II7
(13)
│ V │ bVII 7 │
grande ao utilizar o intervalo de 7ª diminuta como principal
elemento expressivo do tema inicial (Figura3). O intervalo Parte A’
de 7ª diminuta é próprio do acorde de V 7 b9, que no bIII │ bIII │V7
(b13)
│ V7 │ I7 │ I7
(b9)
│ bVII7
(b9)
entanto não é cifrado como tal e apenas como acorde de │
dominante secundária V7. (b9) (9) (b9)
bVII7 │ IVm 4│ II7 │I │ VI7 │ IIm 4 │
IVm V7 ║ I │ I7 │
Parte B’ V 11 4 1 1 58%
REFERÊNCIAS
sendo abandonado e a dança deixou de existir neste espaço. O à realidade local, característica marcante do hip-hop,
grafite foi revelado rapidamente pela autora por meio de uma conforme apontado anteriormente. Neste caso, a música do
fotografia ao descrever um dos ambientes da escola: “O grupo RDC remete a um passado mais tranqüilo no morro e a
auditório é amplo [...] e na parede se vê a cultura hip hop um presente de insegurança e medo. Em entrevista, um dos
expressa em grafite, trabalho feito pelos adolescentes da integrantes do movimento hip-hop da comunidade expressa o
escola” (ADÃO, 2006, p. 33). que o inspira a compor suas músicas:
No que se refere à música, desde o surgimento do hip-hop “Não sei, assim, nos baseamos nos fatos que acontecem na
nos Estados Unidos, o tema principal das composições dos comunidade. Quando acontece de matar alguém ali embaixo aí
rappers tem recaído sobre a discriminação, violência e nós fazemos um pouco em cima dessas coisas, começamos a
opressão sofrida pela raça negra. Ao chegar ao Brasil, essa escrever”.7
característica permaneceu, havendo “uma continuidade e um
refinamento no trato dessa[s] quest[ões], que vai da postura
agressiva e de enfrentamento [...], até uma atitude mais III. AS MULHERES NO HIP-HOP
afirmativa, de orgulho de ser negro” (ZENI, 2004, p. 232). Esta mesma violência permeia a composição das mulheres
De modo geral, grande parte da produção musical do rappers deste morro. Uma das compositoras entrevistada
movimento está consagrada “a desenvolver a consciência descreve em uma das suas músicas uma violência sexual
política, a honra, os impulsos revolucionários. (...) Outros sofrida por uma menina adolescente dentro comunidade.
raps funcionam como fábulas morais de rua propondo Desta vez uma situação que me deixou revoltada,
histórias preventivas e conselhos práticos sobre problemas uma menina menor virgem que foi estuprada.
criminais, drogas e higiene sexual” (SCHUSTERMAN apud E a lei que lei é essa que não ta fazendo nada,
GONÇALVES, 2003, p. 297). Além do mais, “os rappers fatos reais, não é hipocrisia.
recuperam a história, produzem memórias, com linguagem, Chega-se a ponto de sair do local em que cresceu com sua
identidade e filosofia de vida renovados. Produzem uma família.
crítica social elaborada e contextualizada onde reclamam seu [...] Denúncia, BO, foi tudo registrado,
pertencimento à sociedade e reivindicam direitos” mas ainda continuam na ativa e livre os safados
(GONÇALVES, 2003, p. 297). que não sabem viver como seres humanos.
De acordo com Ângela M. Souza (1998) – que fez uma
etnografia do hip-hop em Florianópolis – esta manifestação Novamente, percebe-se que, embora a temática ‘violência’
chega primeiramente a São Paulo, espalhando-se “pelas permaneça, os problemas e conflitos locais é que tomam
grandes cidades brasileiras, inclusive Florianópolis, [onde] destaque na música. Percebe-se, com isso, que o hip-hop
chega no final dos anos 80” (SOUZA, 2006b, p. 53). Apesar aparece como uma forma de discutir os problemas práticos
do movimento hip-hop possuir algumas características globais, enfrentados pelos moradores e moradoras desta localidade no
por onde passa adquire profundos vínculos com a realidade seu dia-a-dia.
local, passando a interagir diretamente com os problemas Bruna, Clarice, Iasmim e Camila são algumas das mulheres
sociais da localidade (HERSCHMANN, 2000). De acordo que cantam hip-hop nesta comunidade8. Fazem participações
com Souza (2006b), a violência emerge como uma das especiais com outros rappers, como por exemplo, com o
principais temáticas presentes nas músicas compostas pelos grupo Movimento Negro Periférico9, também da comunidade,
grupos de hip-hop da cidade de Florianópolis. e com o grupo feminino Declínio do Sistema10.
[...] entre os rappers de Florianópolis é possível perceber que Contudo, a participação feminina no hip-hop ainda é pouco
em suas letras de música alguns assuntos sobressaem, entre comum, conforme destacou Herschmann (2000) ao pesquisar
eles a discussão sobre a violência e o que a circunda. A forma este fenômeno na cena carioca e paulista. Segundo o autor
como o movimento hip-hop se manifesta, através de suas letras
[...] a mulher no mundo do hip-hop carioca ou paulista ocupa
de música, do vestuário, da performance em palco, das gírias,
um papel secundário, apesar de nenhum de seus membros
faz referência constante a um cenário que envolve a violência.
admitir isso nas várias entrevistas realizadas. Além de
A violência é tema recorrente e ganha ares performáticos, a
enfrentarem um machismo velado, que se expressa no uso
ênfase que o ato ganha, parece ser uma forma importante de
freqüente da expressão ‘vadia’ nas músicas e discursos, elas
dar visibilidade a uma existência. A riqueza de detalhes na
enfrentam o pouco espaço que existe para que artistas do sexo
construção da narrativa deixa esta violência mais real (op. cit, p.
feminino – seja cantora, dançarina ou grafiteira – possam se
55-56).
manifestar. Ao contrário das mulheres no funk, as do hip-hop
Na comunidade aqui pesquisada, a violência também surge não podem usar explicitamente o erotismo como estratégia
como uma das principais questões presentes nas letras de para subverter esse universo predominantemente masculino.
compositores de rap, conforme pode ser percebido neste Nenhuma delas usa roupas provocantes, com medo justamente
trecho do refrão de uma das músicas mais conhecidas da de serem estigmatizadas por isso. Sua indumentária lembra as
produção local, música do grupo RDC6. roupas pesadas e largas dos homens. Sua estratégia é fazer uso
da palavra, em um discurso que se aproxima muito do
Morro da Caixa periferia, ‘feminista tradicional’. Respondem ao discurso dos homens
a gente era feliz e não sabia. com mais discurso, ou melhor, diante da verborragia masculina,
Antigamente era alegria, produzem mais verborragias (op. cit, p. 204).
agora é tiroteio e correria.
Santos (2008) ao referir-se ao break, mas não
Embora o tema “violência” esteja presente nas exclusivamente, aponta que “O hip-hop, nos dias de hoje, é
composições de rappers não só de Florianópolis, mas de narrado como um terreno masculino no cenário da dança:
diversas partes do mundo, percebe-se nas músicas a referência música, roupas, acessórios, movimentos coreográficos,
acrobacias e cores utilizadas por esses dançarinos apontam IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
para um lugar ocupado/produzido pelo homem. A mulher,
Verificou-se nesta investigação que as relações de gênero
neste espaço, ocupa uma posição coadjuvante e auxiliar”. O
no interior desta cultura musical não se apresentam de forma
mesmo foi constatado por Adão (2006) que associou aparição
estática, mas sim em constante processo de reformulação. Por
de meninas em sua pesquisa ao fato delas participarem de um
trás dos depoimentos, das práticas políticas, sociais e artísticas
projeto vinculado à escola da região, e não por estarem
constatou-se que as mulheres rappers se articulam no sentido
engajadas ao movimento.
de estabelecer novas relações de poder no movimento,
Discordando daqueles que colocam a participação feminina
caracterizando sua atuação como uma prática de resistência e
no hip-hop como “coadjuvante e auxiliar”, verificou-se nesta
incorporação ideológica específica do gênero feminino. Sua
investigação que as mulheres que atuam como rappers
produção musical revela um discurso próprio, uma “realidade
produzem narrativas musicais bastante específicas, com
que os rapazes não mostram” 13 , portanto, um diferencial
peculiaridades próprias do gênero feminino (SOUZA, 2008).
marcado pelas determinações de gênero.
Esse fenômeno foi constatado em pesquisas anteriores
A crescente participação das mulheres no meio musical
(GOMES e MELLO 2007; GOMES, 2008) e também por
precisa ser acompanhada também de uma crescente
diversas autoras que analisaram a participação feminina neste
visibilidade nos estudos acadêmicos sobre a produção
movimento (SOUZA, 2006; LIMA, 2005; MATSUNAGA,
feminina, o que ainda continua sendo pouco pesquisado no
2006). De acordo com estes estudos, as mulheres que atuam
Brasil, apesar da reestruturação e conquista de diversos
no hip-hop se posicionam de acordo com sua condição de
espaços por parte do contingente feminino.
gênero. Segundo as autoras, “as mulheres se colocam no
Movimento Hip Hop no sentido de provocar uma reflexão
sobre sua condição de gênero, [...] criticando fortemente a
forma como vários rappers (homens) referem-se às mulheres NOTAS
de forma pejorativa e objetificante” (SOUZA, 2006a). “Os 1
Este trabalho traz resultados de Pesquisa de Iniciação Científica,
raps femininos promovem a importância da mulher, o sob orientação de Maria Ignez Cruz Mello e Acácio T. C. Piedade, e
desenvolvimento de sua auto-estima questionando a posição Trabalho de Conclusão de Curso orientado por Áurea Demaria Silva.
estereotipada de que são sexualmente submissas” (LIMA, 2
Entenda-se por “rappers” como os musicistas cantam e compõe as
2005, p. 64). “A tentativa de reverter este quadro [da músicas do movimento hip-hop.
supremacia masculina] está presente, principalmente, no 3
O Morro da Caixa d’Água está localizado em uma das encostas do
discurso das mulheres que fazem parte do movimento e Morro da Cruz, no centro da cidade de Florianópolis. É considerada
reivindicam para si outras representações” (MATSUNAGA, uma das comunidades afro-descendentes mais tradicionais da cidade.
2006, p. 183). Constitui-se em uma das tantas regiões empobrecidas que luta contra
Assim, apesar de ainda formarem minoria, as mulheres, em a pobreza, discriminação racial e social.
4
especial mulheres negras, estão encontrando no hip-hop um Além destes, podemos destacamos como elementos característicos
significativo espaço para fomentar discussões sobre as causas do movimento hip-hop os trajes típicos (bonés, roupas largas,
femininas, promovendo através das letras das canções a correntes grandes penduradas no pescoço), o linguajar próprio (gírias)
e o discurso politizado (HERSCHMANN, 2000, p. 190).
conscientização das mulheres sobre temas como aborto, 5
Escola Básica Estadual Lúcia Livramento Mayvorne.
cuidado com o corpo, uso de anticoncepcionais, entre outras 6
questões que integram o universo feminino. A música, ou seja, O grupo RDC é composto por Rajam, Diego, Carlos e Choquito. É
um dos grupos de hip-hop de maior projeção do Morro da Caixa,
o rap, surge também como um locus para a divulgação dos
apresentando-se em diversos eventos dentro e fora da comunidade.
seus direitos civis, como por exemplo, licença maternidade, Algumas de suas músicas são bastante conhecidas pelos moradores,
aposentadoria para donas de casa e domésticas, denúncia à como por exemplo, esta selecionada, conhecida inclusive entre
violência contra mulheres, etc. aqueles que não simpatizam com o movimento.
Jussara Lima, umas das integrantes de um grupo feminino 7
Entrevista concedida a Sandra Regina Adão (2006, p. 81). A
de hip-hop de Florianópolis e ex-moradora do Morro da Caixa identidade foi preservada pela pesquisadora.
d’Água, confirma este dado ao revelar como sua produção 8
Em entrevista, Bruna e Clarice indicaram não conhecer nenhuma
musical reflete uma forma feminina de retratar a realidade. outra mulher na comunidade fazendo hip-hop.
9
“A gente luta por nós mulheres, a gente mostra a realidade das Atualmente, o grupo Movimento Negro Periférico é composto
mulheres [...] e essa realidade os rapazes não mostram. Nossas apenas por Djavan, Bruna e Clarice, todos moradores da
músicas giram em torno da causa feminina, sempre da causa comunidade.
10
feminina. Temos até um CD que fala de saúde, tudo da causa Segundo a informante Jussara Lima, o grupo Declínio do Sistema
feminina, de aborto, sobre o corpo, tudo isso”.11 tem sua origem vinculada ao Morro da Caixa d’Água, quando fazia
Bruna, moradora da comunidade, ao ser questionada sobre seus ensaios na sede da UNEGRO, a qual fixava-se nas proximidades
da tradicional Escola de Samba Embaixada Copa Lord.
os temas que aborda em suas composições destaca que sua 11
principal temática circunda o universo da mulher. Jussara Pereira Lima, Entrevista concedida em 19/04/2007.
12
Bruna Luzzi Viér, entrevista concedida em 04/10/2008.
“[...] da mulher, o mundo da mulher. Essa violência que existe 13
por aí. A mulher precisa ser respeitada, sobre aborto, Jussara Pereira Lima, Entrevista concedida em 19/04/2007.
discriminação, o preconceito que existe sobre a mulher
mesmo”.12 REFERÊNCIAS
ADÃO, Sandra Regina. Movimento Hip Hop: a visibilidade do
adolescente negro no espaço escolar. 2006. 115p. Dissertação
Figura 1. Melodia-solo
Figura 2. Melodia-coro
A Ratoeira pode ser eventualmente acompanhada por forneceram informações a esta pesquisa estão, ou já estiveram,
instrumentos como violão, acordeom, percussão, entre outros. ligados a políticas culturais. O trabalho de campo foi realizado
A melodia-coro está representada acima com uma possível em diversos encontros de grupos de idosos. Estes grupos de
variação cromática no terceiro compasso, entre parênteses. idosos estão relacionados a associações de bairro e secretarias
Essa variação foi verificada na coleta de material entre de cultura. Em alguns casos, o objetivo destes encontros está
diferentes grupos. O trabalho de campo vem mostrando que em trabalhar na manutenção de tradições, como cantigas,
pode haver outras variações melódicas em diferentes regiões manufaturas, danças, etc. Em outros, o foco é a saúde física e
do litoral catarinense onde a Ratoeira é praticada. A poética mental dos participantes através de integração social e
aponta para a tristeza como ideal estético de beleza, e envolve atividades ocupacionais. Grande parte das mulheres que
metaforicamente plantas e partes do corpo humano.3 Com esta freqüentam estes encontros são viúvas, algumas em idade
breve descrição da Ratoeira e seu contexto, vamos agora falar avançada. A ênfase nesses encontros transita entre o folclore e
de construção de identidade, tendo o campo do nacionalismo a terapia ocupacional dependendo das circunstâncias. No
como pano de fundo. entanto, a questão da identidade está sempre em voga quando
o que é considerado patrimônio cultural está em questão. O
II. UMA IDENTIDADE EM EVIDÊNCIA orgulho em preservar certas práticas culturais como a Ratoeira,
Os processos de construção da identidade estiveram sempre o Boi de Mamão, e mesmo patrimônios culturais móveis e
presentes nas discussões nacionalistas, tanto no Brasil quanto arquitetônicos como igrejas e outras construções centenárias,
em outros países e também no campo artístico, como no caso é comum nesse contexto. Este orgulho está relacionado à
do modernismo brasileiro. 4 Um conceito importante identidade cultural açoriana, seus costumes e valores. Valores
relacionado à construção de identidade é o de autenticidade que parecem ter ficado em algum lugar do passado antes da
(STOKES, 1994). Para Stokes, autenticidade e identidade influência dos meios de comunicação e as mudanças sociais
estão intimamente ligadas (op.cit., p. 6). O autor também decorrentes disso. Entre os vários efeitos dessa influência,
discute a problemática de se definir o conceito de etnicidade, parece ter havido uma diminuição na auto-estima das pessoas,
e discorre que este deve ser entendido em termos de como conta o discurso nativo. A recuperação da auto-estima
construção, manutenção e negociação de fronteiras. nestas comunidades é um dos discursos de políticas culturais
Complementa formulando que fronteiras étnicas definem e como estas que promovem estes encontros de idosos, parcela
mantém identidades sociais (op.cit.,p. 6). da população a qual problemas de auto-estima também estão
Os modernistas brasileiros, por exemplo, em sua busca por relacionados às limitações da idade (op. cit.).
uma arte nacional autêntica, utilizavam material folclórico. Podemos analisar o universo da cultura açoriana do litoral
Esta autenticidade artística atuaria na construção e catarinense em seus processos de formação de identidade num
manutenção de uma identidade nacional, o que contexto local, fazendo referência à construção da nação
conseqüentemente destacaria as fronteiras nacionais no brasileira. Para DaMatta, a identidade nacional brasileira não
contexto artístico internacional. A autenticidade artística viria estaria ameaçada pelo fenômeno da globalização dos fins do
como resultado da utilização de matéria-prima autêntica, século XX, pois o nacionalismo teve bases sólidas em sua
retirada do folclore oriundo principalmente do meio rural formação (apud LACERDA, 2003a: 9). No entanto algumas
brasileiro. Para elucidar melhor sobre esta autenticidade tendências contemporâneas seriam perceptíveis, entre elas: “...
proveniente do folclore vale falar também na idéia de a intensidade dos processos locais de afirmação étnica, a
patrimônio cultural. Para Gonçalves uma identidade cultural emergência de transnacionalismos de toda ordem e a
pode ser representada por patrimônios culturais. progressão incalculável das viagens.” (Cf. LACERDA, 2003a,
p. 9). Na intenção de melhor compreender a açorianidade,
“Os chamados patrimônios culturais podem ser interpretados
Lacerda parte destas considerações de DaMatta para
como coleções de objetos móveis e imóveis, através dos quais
é definida a identidade das pessoas e de coletividades como a investigar questões como o transnacionalismo, processos de
nação, o grupo étnico etc.”. (1988: 266) afirmação de identidade, invenção da tradição e sociabilidade
local. Sobre o termo açorianidade, Lacerda explica:5
O autor mostra como um patrimônio cultural está
normalmente ligado a políticas culturais, que através de “...cunhado na década de 1930 pelo escritor açoriano Vitorino
ministérios, secretarias, fundações, associações e etc, atuam Nemésio, traduzia na época um esforço sistemático e
permanente de intelectuais e organizações políticas açorianas
para construir e comunicar uma identidade étnica ou nacional
para fixar, no imaginário nacional português, um espaço de
(op. cit.: 266). Isso se confirma em meu trabalho de campo diferença constitutivo da identidade cultural das populações do
pesquisando a Ratoeira. A maioria dos grupos e pessoas que Arquipélago.” (op.cit., p.10)
Este autor discorre que este discurso da açorianidade intituições dos Açores para levar descendentes de açorianos
atravessa o século XX, como um “mote unificador” entre as ao Arquipélago (Cf. LACERDA, op.cit., p.98-106).
comunidades dos Açores e de outras comunidades de Como vimos, a Ratoeira pode ser entendida como um dos
imigrantes e descendentes de imigrantes açorianos pelo mecanismos do sistema que reforça o sentimento de
mundo, como no caso do Sul do Brasil. Lacerda mostra como identidade açoriano-brasileira. No entanto, não é uma
manifestações de cultura popular traduzem e alimentam este manifestação muito divulgada pela mídia como um símbolo
sentimento da açorianidade, simbolizando a busca de uma de identidade açoriano-brasileira, ou catarinense. Aliás, é
identidade cultural, podendo inclusive estar relacionada a conhecida entre um número restrito de pessoas, entre os quais
disputas de ordem política em alguns contextos. O discurso da não parece desempenhar uma função central na expressão da
açorianidade “narra uma idéia de nação para além das identidade cultural local se comparada com outras
fronteiras nacionais” (op.cit., p.11). manifestações, como por exemplo o Boi de Mamão, que
Isso mostra como um sentimento de identidade nacional ou possui maior visibilidade no cenário da mídia catarinense. No
cultural muitas vezes pode transcender a fronteira política dos entanto, lembrando o que foi dito por DaMatta, existe uma
estados. Essa idéia de nação além de fronteiras nacionais tendência aos processos locais de afirmação étnica.
talvez seja baseado em um sentimento fraterno e nostálgico no Diferentemente dos processos de elaboração de uma
caso dos descendentes de imigrantes, mas também pode identidade nacional, a Ratoeira parece atuar em conjunto com
envolver questões políticas e sociais. Pessoas com todo um arsenal de outras práticas. No caso da identidade
antepassados de um mesmo local de origem podem utilizar nacional, parece haver uma tendência muito maior em
esse fator em comum como elemento demarcador de uma selecionar um ou alguns fatores definidores de identidade.6 No
fronteira cultural. Uma comunidade unida por um sentimento caso de uma identidade local, parece haver mais aceitação de
de identidade cultural provavelmente possui mais força na um repertório mais amplo enquanto representatividade
conquista de espaço político dentro de um contexto mais simbólica. Ao menos no caso do estado de Santa Catarina este
abrangente. parece ser o caso, talvez porque o povo catarinense é
A imigração dos açorianos para algumas partes do mundo, divulgado pela mídia como um mosaico de etnias, dada a
principalmente na América, pode ser encarada como uma imigração de pessoas provenientes de vários lugares. A
diáspora (op.cit.). Baseando-se em Clifford (1997), Lacerda cultura de descendentes de alemães e italianos parece ser a
afirma que geralmente os povos que experimentam a diáspora mais preferida na divulgação enquanto imagem do povo
acabam desenvolvendo sentimentos de identidade divididos: catarinense pela mídia, mas a cultura açoriano-brasileira vem
de um lado estaria a identidade da terra de origem, de outro conquistando mais espaço e aceitação desde a década de 1990,
uma nova identidade criada num novo contexto de inserção como mostrou (Lacerda, 2003a). Esse panorama da identidade
social (op.cit.). Isso tornaria evidente a capacidade dos povos catarinense parece estar relacionado à maneira como é
de recriarem sua cultura em locais diferentes (op.cit., p.37). distribuída a renda e o poder no estado, o que certamente
Paralelamente a isso, a aceitação e valorização da cultura de merece uma análise sociológica mais aprofundada.
origem açoriana varia historicamente. Em Santa Catarina, em Valorizar várias práticas folclóricas talvez seja um
geral sempre se tratou das culturas litorâneas como atrasadas mecanismo de estabelecer as fronteiras da identidade neste
em relação àquelas do interior, onde houve predomínio de contexto regional que facilitaria a integrações destas
colonos alemães e italianos. A partir da década de 1990 a identidades. A Ratoeira, portanto, exerceria este papel de
cultura açoriana passa a ser vista positivamente e surge então compor um conjunto de traços da identidade cultural dos
entre alguns intelectuais a necessidade de elaborar um açoriano-brasileiros. No caso da Farra do Boi isso aconteceria
discurso de “preservação” e “resgate” (op.cit., p.89). Isso de maneira transgressora, ou mesmo ilegal.7
acabou levando ao que os teóricos do nacionalismo chamam Após toda a digressão sobre a Ratoeira e seu contexto
de invenção de tradição (HOBSBAWM e RANGER, 1983). sócio-cultural e o conceito de açorianidade, é possível analisar
Sobre isso, Lacerda afirma: esta prática musical enquanto mecanismo de afirmação de
“Como imagem notória e integrada, a elaboração da identidade identidade cultural. Isso poderia também ser uma maneira de
vai implicar na seleção de atributos tácitos, quer dizer, no entender como esta prática encontra seus novos espaços no
estabelecimento de um consenso sobre a memória. O que mundo globalizado atual, contrariando o discurso da extinção.
devemos lembrar é uma questão crucial nos processos de A Ratoeira não é o principal símbolo da cultura
reconstrução identitária. No entanto, lembrar também implica açoriano-brasileira, mas expressa elementos fundamentais
uma dose de esquecimento.” (op.cit., p.98). ainda presentes em outras dimensões culturais, não apenas a
Alguns mecanismos que atuaram na construção desta jocosidade e as relações amorosas como também o universo
identidade dos açoriano-brasileiros foram o “mito fundador”, fantástico e sobrenatural onde plantas e corpos se fundem nos
que narra a saga da chegada dos imigrantes; a demarcação de feitiços de amor. Todos os elementos simbólicos, expressos
uma fronteira, no contexto multiétnico do estado de Santa tanto na poética quanto na dimensão sonora, agindo neste
Catarina; eventos evocativos, que principalmente a partir dos verdadeiro rito açoriano que é a Ratoeira, trabalham portanto
anos 90 passam a valorizar a cultura açoriana do litoral em função da construção e manutenção de identidade. Com
catarinense; um repertório singular de tradições culturais, esta perspectiva, vislumbramos esta nova possibilidade de
como o ciclo do divino, Farra do Boi, Boi de Mamão, Terno abordagem na investigação desta prática musical.
de Reis, Pão por Deus, Renda de Bilro, lendas e mitos, danças
de roda (entre elas, a Ratoeira); a figura do “manézinho da
ilha”; e viagens e “peregrinações”, como as promovidas por
REFERÊNCIAS
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mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (eds.). The Invention of
Tradition. New York/Oakleigh, Australia: Cambridge University
Press, 1983.
LACERDA, Eugenio Pascele. O Atlântico Açoriano: uma
antropologia dos contextos globais e locais da Açorianidade.
adquirido equipamentos capazes de mixar e editar o som, camas, simultaneamente. De costas uma para a outra se
permitindo trabalho mais detalhado do compositor, ainda que assustam quando param de colocar o líquido no copo, mas o
nos primeiros trabalhos da companhia de posse desse som não cessa, pois vem da outra jarra. Um clima de tensão é
equipamento não encontramos grandes diferenças entre as descrito pela música até o final da cena quando Chico percebe
práticas musicais anteriores, pois os diretores não pensavam a presença inimiga e foge pela janela. Quando Frou-Frou
em aventurar-se em grandes mudanças alterando um produto fecha a veneziana a música é interrompida.
que era sucesso, que era aceito pelo público com as limitações
que tinha. Diretores e compositores de trilhas implantaram as
modificações paulatinamente.
Alexandre compôs para os créditos iniciais de De vento em
popa um arranjo instrumental com o tema de algumas canções
que foram inseridas no filme 2 , prática comum na década.
Alexandre conhecia a música que se estabelecera no cinema
de Hollywood durante a década de 30 e a utilizou com muita
segurança dentro deste filme. Em dois momentos distintos da
trilha ele aplica a técnica do Mickeymousing3 (CARRASCO,
2003, p.138).
A primeira inserção aparece brevemente aos 41 minutos do
filme, na cena que Mara (Sonia Mamed) declara a Lucy
(Dóris Monteiro) que se ela quiser conquistar o coração de
Sérgio (Cyl Farney) terá que mudar sua maneira antiquada de
vestir. O primeiro acorde acentua o movimento dos ombros de Figura 2. Cena da segunda inserção do mickeymousing
Lucy, o segundo o levantar da personagem que está sentada
em uma cama. Na sequência, as cordas marcam os passos de O compositor utiliza estilos musicais distintos para
Lucy que se dirige ao espelho e ensaia mudanças diante deste. caracterizar diferentes posições das personagens dentro da
A linha melódica pontua claramente através de movimentos narrativa. De autoria de Cajado Filho, o roteiro traz
ascendentes e descendentes das notas o aproximar e distanciar argumento comum na Commédia Dell’Arte4 (SCALA, 2003,
da personagem em relação ao espelho. Lucy se decepciona p. 15 a 33). Em De vento em popa a personagem Sérgio é
com seu desempenho e a música acaba no mesmo momento filho de um casal abastado, financiado por eles para ir aos
que a encenação de mulher sofisticada. A duração é de 33 Estados Unidos estudar energia nuclear. Uma vez no país, o
segundos. jovem se encanta pela música popular, estuda bateria e
produção de eventos sem a autorização dos pais, que marcam
o casamento dele com a herdeira de uma grande indústria. Ao
anunciar a volta do filho, um grande intelectual, o pai soca
com os punhos as teclas do piano onde a futura noiva estuda
canto. A cena é cortada do punho do pai para o de Sérgio que
dentro do navio ataca o prato de condução da bateria. Sérgio
em trio, formado com piano e contrabaixo acústico, se
apresenta no barco onde os passageiros jovens deliram com
um solo do instrumento de percussão. Cyl Farney, antes de se
tornar ator era baterista profissional na banda de seu irmão o
cantor Dick Farney, o que tornou a cena muito natural. O
número que apresenta a personagem é utilizado para vincular
o recém chegado rock ao mundo dos jovens.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos na pessoa do Senhor Luiz Henrique
Severiano Ribeiro Baez, aos proprietários e funcionários da
Atlântida Cinematográfica pelo material e informações
cedidos a essa pesquisa.
Na pessoa de meu orientador Claudiney Carrasco agradeço
à UNICAMP e ao Instituto de Artes.
Ao professor Hernani Heffner.
decisivas para a maioria das manifestações musicais eram, por exemplo, criticadas pelo seu forte caráter de
posteriores a ela, pois inauguraram um período ousado na experimentação, comportando diversas tendências musicais, e
música popular brasileira, no qual elementos considerados não somente aquelas consideradas autenticamente cubanas.
estrangeiros, como as guitarras elétricas no Tropicalismo, Da mesma forma a atitude de João Gilberto de sintetizar no
passaram a fazer parte das criações. violão as síncopas do samba e uma certa “liberdade”
jazzística, e ainda criar uma forma de interpretação
B. Nova Trova polirrítmica em que a melodia e a harmonia mutuamente se
Em se tratando do contexto musical cubano da década de completavam num constante desencontro, foi por muitos,
1960, a Nova Trova (em espanhol Nueva Trova), assim como repudiada.
a Bossa Nova, representou a mais significativa experiência O surgimento da Nova Trova, em Cuba, assim como a
moderna (aglutinadora de novas sonoridades e captadora de Bossa Nova no Brasil, inaugurou um marco embasado em
fontes externas) que projetou a música cubana para além características tradicionais e inovadoras (modernas). Sabe-se
fronteiras. No entanto, a sua aceitação enquanto porta-voz da que o termo bossa, nos anos 1930, designava “ritmo”,
“revolução socialista” se deu mediante muitas desconfianças e “molejo”, daí que batizar a nova batida de “Bossa Nova”
estratégias governamentais que, em contrapartida, não foram parecia corresponder às aspirações de seus compositores. Já
desperdiçadas pelos músicos envolvidos, como Pablo no caso da Nova Trova, Villaça (2002) afirma que a criação
Milanés, Silvio Rodrigues e Noel Nicola. Os dois primeiros, do nome se deu mais em virtude de interesses políticos do que
principalmente, de “suspeitos de atividades contra- propriamente estéticos. Titular o movimento de Nueva Trova
revolucionárias”, transformaram-se em líderes artísticos da significava, para a política cultural cubana, render méritos à
juventude cubana. tradição dos trovadores, estilo musical pitoresco de Cuba.
O surgimento da Nova Trova coincidiu com os primeiros Ressalto que a Trova Tradicional era caracterizada por
anos logo após a Revolução de 1959. A criação do canções regionais dedicadas à pátria, à natureza e aos amores.
Movimiento de la Nueva Trova (MNT) em 1972, significou Com a Nova Trova, o termo “trova” passou a se referir à
apenas a sua oficialização, pois as atividades de seus membros maioria dos gêneros tradicionais cubanos: son, bolero, chá-
já existiam há pelo o menos três anos, em virtude da criação, chá-chá e a própria trova.
em 1969, do Grupo de Experimentación Sonora (G.E.S.) – Apesar do título dado à nova música fazer jus às demandas
liderado pelo compositor e maestro Leo Brouwer –, vinculado nacionalistas, a “aceitação” da Nova Trova não aconteceu sem
ao ICAIC (Instituto Cubano del Arte y Indústria umas tantas ressalvas. A política cultural cubana declarava
cinematográficos), cujo diretor, Alfredo Guevara, admirava e que era necessário, acima de tudo, privilegiar ritmos que
acompanhava a produção musical brasileira. aludissem à tradição musical e, da mesma forma, letras que
A concepção que se criou em torno dos compositores da expressassem os feitos da revolução. Ao contrário do que se
Nova Trova nos anos 1970, e que se expandiu para as décadas pensa, tais ordens não barraram a criatividade dos
seguintes, era a de que eles estavam comprometidos com os compositores, mas sim significaram, para eles, o passaporte de
ideais implementados por Fidel Castro e o Partido Comunista reconhecimento na América Latina e na Europa. Mesmo sob a
Cubano. Em 1961 (“Palabras a los intelectuales”), Fidel “égide” de alguns limites impostos, os músicos da Nova
Castro havia deixado claro que os artistas deveriam se Trova sempre privilegiaram a fusão de estilos e letras
“comprometer em defender a Revolução” e submeter-se metafóricas (principalmente as obras de Silvio Rodrigues). Já
“incondicionalmente às deliberações das instâncias superiores, o Estado Cubano, não podendo conter a repercussão dessas
mesmo em se tratando de opções estéticas” (VILLAÇA, 2002, músicas entre a juventude, mudou o discurso, reinterpretando-
p. 3). Alguns capítulos que a história tentou camuflar sobre a as de acordo com seus interesses. Sabe-se, no entanto, que as
trajetória dos novos trovadores, foi o seu envolvimento – anos canções que ultrapassaram fronteiras, em sua maioria, foram
antes da criação da MNT – em atos considerados subversivos, aquelas que falavam mais abertamente das conquistas
que incluíam a censura de certas músicas tidas como revolucionárias.
portadoras de mensagens subliminares anti-revolucionárias. Sem adentrar no mérito dos interesses políticos que,
De acordo com Villaça (2001), outro fato que incomodava os segundo Villaça (2002), foram responsáveis por batizar o
setores estatais cubanos era a inclusão, por parte desses grupo, é possível detectar, nas canções da Nova Trova, a não
músicos, de guitarras elétricas, de sonoridades provenientes ruptura com o passado, pois seus compositores continuaram
do jazz e do rock, características musicais tidas como utilizando instrumentos, ritmos e temáticas tradicionais
originárias do maior inimigo cubano, os Estados Unidos. (porém, ressignificadas) misturadas com sonoridades advindas
da música erudita, do jazz norte-americano, da Bossa Nova e
C. Interlocuções
das experiências antropofágicas da Tropicália (Brasil).
Apesar de situados em momentos e contextos políticos bem Em relação à temática das letras, a Bossa Nova,
distintos, a Nova Trova mantém uma relação direta com a primeiramente, privilegiava assuntos triviais e corriqueiros,
Bossa Nova no sentido de ambos terem sido, em Cuba e no deixando de lado a descrição de dramas de paixão e
Brasil, os primeiros expoentes mais significativos que embriagues. Em muitos casos, como em “Samba de uma nota
polemizaram as mentalidades nacionalistas acerca da só” e “Desafinado” (ambas de Tom Jobim e Newton
utilização de elementos estrangeiros. Se no plano estético e Mendonça) uma história de amor é usada como pano de fundo
ideológico a Bossa Nova encontrou dificuldade de se afirmar para se discutir questões de estética musical, resultando em
enquanto uma música “brasileira”, o mesmo ocorreu com a processos de metalinguagem. Já no caso da Nova Trova, esses
Nova Trova em sua fase embrionária. As composições para antigos temas foram substituídos por letras metafóricas, nas
cinema elaboradas pelos integrantes do G.E.S. do ICAIC
quais o ser humano era quase sempre interpretado sob uma olhos a incorporação de “elementos estrangeiros” em sua
visão holística de solidariedade e comunhão. Algumas faziam produção musical.
críticas à situação sócio-política de Cuba, às quais, nesse caso,
se valiam de uma história secundária para “burlar” a censura,
como por exemplo, em “En mi calle” (“Em minha rua”) de AGRADECIMENTOS
Silvio Rodrigues. Nessa canção, o autor descreve as
Agradeço o apoio financeiro da FAPEMIG (Fundação de
características de uma rua normal de uma cidade qualquer:
Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais); o empenho
“(...) En mi calle el mundo no babla, la gente se mira y se
da professora Sônia Ribeiro; e as orientações dos professores
pasa con miedo. Si yo no viviera en la ciudad, quizá vería el
Adalberto Paranhos (Uberlândia-MG/Brasil) e Gaspar
árbol sucio donde iba yo a jugar. En mi calle de silencio está,
Marrero (Sancti Spiritus-SS/Cuba).
y va pasando por mi lado: es un recuerdo desigual. Yo no sé
por qué estoy riendo, por qué estoy llorando, por qué estoy REFERÊNCIAS
viviendo. Yo no sé por qué estoy cantando, por qué estoy
amando, por qué estoy muriendo”; (“Em minha rua o mundo BLANCO, Billy & JOBIM, Tom. LP Tom Jobim e Billy Blanco:
série ídolos da MPB, n.º 7. Continental, 1974.
não fala, as pessoas se olham e passam com medo. Se eu não
CARDOSO, Elizeth. LP Canção do amor demais. Festa, 1958.
morasse na cidade, talvez veria a árvore suja onde eu ia CARIOCAS, Os; GILBERTO, João; JOBIM, Tom; e MORAES,
brincar. Em minha rua o silêncio está, e vai passando ao meu Vinicius de. Áudio do encontro Live at au bon Gourmet. Rio de
lado: é uma lembrança desigual. Eu não sei porquê estou Janeiro, 1962.
rindo, porquê estou chorando, porquê estou vivendo. Eu não CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa
sei porquê estou cantando, por quê estou amando, porquê Nova. 3.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
estou morrendo”). Vê-se que a perspectiva poética dessa GARCIA, Walter. Bim bom: a contradição sem conflitos de João
canção não é exaltar grandes feitos revolucionários, mas sim Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
coisas simples do cotidiano, como o descontentamento em GAVA, José Estevam. A linguagem harmônica da Bossa Nova. São
Paulo: UNESP, 2002.
relação ao “silêncio”, que pode suscitar diversas
GILBERTO, João. LP Brazil’s Brilliant. Capitol, 1962.
interpretações. GILBERTO, João. LP Chega de saudade. Odeon, 1959.
Já sobre o estilo de cantar, os integrantes da Nova Trova GILBERTO, João. LP O amor, o sorriso e a flor. Odeon, 1960
optaram pela naturalidade de uma voz não impostada, visto (relançado em CD).
que, até então, a impostação e o grande número de cantores GRUPO DE EXPERIMENTACIÓN SONORA. 45 rpm.
com vozes eloqüentes eram comuns, com destaque para María Areito/EGREM, 1973.
Teresa Vera e Omara Portuondo. O mesmo fenômeno se deu GRUPO DE EXPERIMENTACION SONORA. 78 rpm.
com a Bossa Nova, uma vez que João Gilberto (e outros Areito/EGREM, 1974.
cantores) adotou uma espécie de canto-falado, escolha estética MILANÉS, Pablo. Su nombre es pueblo. LD3547, EGREM, 1975.
NICOLA, Noel. De un pájaro las dos alas. LD3530, EGREM, 1975
que se contrapunha às grandes vozes de outrora. No plano das PARANHOS, Adalberto. Novas bossas e velhos argumentos:
harmonias, assim como a Bossa Nova o fez, a Nova Trova tradição e contemporaneidade na MPB. História & Perspectivas,
alargou a concepção de campo harmônico ao incluir n.º 3, Uberlândia, UFU, jul./dez. 1990.
dominantes substitutas e/ou individuais, tensões, empréstimos RODRIGUES, Silvio. CD Causas y azares. Fonomusic, 1986.
modais, inversões de acordes e outros recursos até então RODRIGUES, Silvio. LP Días y flores. EGREM, LD3467, 1975.
pouco usados, ou usados de maneira fragmentada. SANT’ANNA, Afonso Romano de. Música popular e moderna
poesia brasileira. 4.º ed. São Paulo: Landmark, 2004.
II. CONCLUSÃO SCHWARCZ, Lilia Kaui Moritz. Complexo de Zé Carioca: Notas
sobre uma identidade mestiça e malandra. Revista Brasileira de
Sabe-se que existiram vários shows e parcerias entre os Ciências Sociais, n.º 29, ano 10, out., 1995.
músicos da Nova Trova e os músicos brasileiros identificados TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular: da
com a canção de protesto, como Chico Buarque, Milton modinha à canção de protesto. 3.ª ed. Petrópolis: Vozes, 1978.
Nascimento e Caetano Veloso. As experiências musicais VILLAÇA, Mariana Martins. A política cultural cubana e o
desses músicos brasileiros, envolvidos num contexto de movimento da Nova Trova. Actas del IV Congreso
ditadura militar (iniciada em 1964), estavam embasadas, de Latinoamericano de la Asociación Internacional para el estúdio
uma forma ou de outra, no pioneirismo sintetizador da Bossa de la Música Popular, 2002.
____________. Música cubana com sotaque brasileiro:
Nova. Por serem contemporâneos e vivendo realidades ao
entrecruzamentos culturais nos anos sessenta. História: questões
mesmo tempo diferentes e parecidas, é óbvio que, os músicos & debates, Curitiba, n.º 35, UFPR, 2001.
da Nova Trova tivessem mais afinidades com aqueles que
lideravam a chamada canção de protesto no Brasil.
No entanto, é com a Bossa Nova e a Nova Trova que Brasil
e Cuba, respectivamente, conquistaram um significativo
pioneirismo estético, demarcando um período e lançando
bases para a música do futuro. De marginalizadas e acusadas
de estrangeirismos, elas passaram a compor a “identidade
cultural” de seus países. Graças a essas manifestações
artísticas, que se tornaram herança cultural e estética para a
música mundial, Brasil e Cuba passaram a encarar com outros
catalisador e irradiador de sentidos que subjetivamente influenciada pelo candomblé. As fontes de pesquisa são
fornecem o lastro para a continuidade dos hábitos cotidianos múltiplas e fornecerão um conhecimento profundo da
em outras manifestações culturais. bibliografia e discografia existente, assim como serão
Compreendendo que as manifestações musicais de tradição realizadas consultas com especialistas e agentes nos vários
oral possuem uma dinâmica complexa, mudando e domínios musicais. Destaca-se aqui o trabalho a ser realizado
permanecendo, mas também desaparecendo por força da em jornais, em revistas, em arquivos sonoros que contêm
mudança acelerada pela qual passamos, devemos enfatizar a entrevistas de músicos, ou sobre músicos e músicas da Bahia,
urgência de seu registro. Modificações graduais tornam-se além das diversas pesquisas de caráter etnomusicológico
perceptíveis com o decurso do tempo. A sua abordagem vinculadas ao Programa de Pós-Graduação em Música da
implicando, em linhas gerais, no reconhecimento de suas UFBA. Documento, aqui, será tratado no sentido mais amplo,
formas de objetivação sócio-culturais. Importam não apenas documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, imagem,
os gêneros musicais existentes, os instrumentos musicais ou de qualquer outra maneira. Um levantamento bibliográfico
utilizados, muitas vezes sacralizados, a sua execução, e até minucioso e criterioso sobre as religiões afro-brasileiras e,
mesmo o contexto musical em que se realizam, comumente sobre os problemas etnomusicológicos, antropológicos e
negligenciados. Os diversos fazeres musicais são portadores sociológicos de maior abrangência para esta pesquisa como
de maneiras peculiares de expressão verbal sobre os mesmos, questões que contemplem estudos de gênero, identidade,
entre os próprios sujeitos que os realizam. As expressões transmissão, sincretismo religioso acompanharão as diversas
verbais sobre música, usadas pelos músicos e demais agentes fases e fundamentarão o estudo que ora se pretende realizar.
sociais que perfazem os contextos das manifestações onde as Pesquisas de campo que permitam apreender os aspectos
músicas se realizam, necessitam também ser objeto de registro. peculiares de cada contexto, os sujeitos e símbolos culturais
A apreensão deste objeto implicando no conhecimento das em constante reelaboração será nossa ferramenta
diversas manifestações musicais em sua plenitude: nos seus metodológica central. Observação e gravação das diversas
produtos, procedimentos e concepções. O importante aqui é a manifestações assim como entrevistas com os principais
busca de entendimento de como a essência de um sistema de agentes destas comunidades devem ser empreendidas visto
saber e fazer musicais se mantém em contextos bem que os tipos de informações que se buscará junto aos mesmos
diferentes, mesmo que com explicitas diferenças entre os são de natureza eminentemente qualitativa. Os aspectos
produtos resultantes. Assim, a análise não deve focar apenas musicais serão apreciados a partir de uma perspectiva
ou diretamente o produto musical, mas, principalmente, a teia etnomusicológica onde a música é concebida como produto de
de concepções e procedimentos que o tornam realidade social, relações sociais e culturais, não podendo ser enfocada de
considerando, entre outros fatores, as suas rápidas mutações maneira isolada do contexto em que está inserida.
no espaço e no tempo da cultura baiana. Abordaremos as diversas vertentes da vida musical,
perspectivando a música como um sistema, um universo
II. OBJETIVOS social dinâmico. Cada manifestação será analisada incluindo
A proposta desta pesquisa, em fase inicial, é investigar uma contextualização social e cultural, sínteses analíticas e
como o candomblé, seus saberes e práticas, inclusive musicais, históricas, definições de conceitos fundamentais e referências
influenciam a música produzida em Salvador. Paralelamente, a personalidades, os meios de comunicação musical, os
outras questões poderão ser elucidadas: O que esta música processos musicais e sociais centrais, bem como os gêneros
significa para os baianos e como contribui para a formação de performativos em torno dos quais estão constituídos universos
uma identidade musical soteropolitana/baiana? Como a sócio-musicais distintos. Partindo do pressuposto que o que se
música do candomblé é usada, e/ou adaptada, para que música transmite é o que se ouve e o que se vê, o estudo da
seja gerada em outros contextos musicais sejam eles da transmissão musical é também essencial, destacando não só
tradição oral, da música urbana ou da música de concerto? De quais elementos são evidenciados pelo emissor, como
que forma repertórios musicais do candomblé são principalmente quais elementos são apreendidos pelo
compartilhados com outras expressões musicais? Quais os receptor.
fatores que permitem esse compartilhamento? Por que a O material coletado será apreciado a partir de uma
música do candomblé consegue estender os seus tentáculos perspectiva etnomusicológica, como fonte de produção de
em tantas direções? Há realmente uma ‘essência de um conhecimento com métodos e fundamentos que respondem a
sistema’ que se expande? Como se relacionam os seus uma lógica ou maneira própria de ver o mundo, não podendo
músicos com aqueles de outras áreas musicais? Como são ser enfocada de maneira isolada do seu contexto. Pretendemos
percebidos pelos outros? Este estudo pretende fornecer realizar todas as análises possíveis, priorizando, pelo menos, a
informações sobre a vida musical em Salvador, bem como musical, a contextual e a cognitiva sob o ponto de vista
sobre as múltiplas manifestações, os instrumentos, as etnomusicológico. Desta forma, acreditamos ser possível uma
expressões e as personalidades musicais baianas relacionadas descrição das manifestações, uma explicação dos elementos
e/ou influenciadas pelo candomblé. O objetivo mais descritos e, posteriormente a interpretação dos elementos
ambicioso seria talvez o de contribuir para o desenvolvimento musicais, ou não, relacionados ao seu contexto.
de estudos sobre a cultura musical da Bahia e também para os
estudos da continuidade e mudança musical. IV. RESULTADOS ESPERADOS
Do ponto de vista etnomusicológico, a produção existente
III. METODOLOGIA na Bahia já nos permite uma revisão bibliográfica sobre
Nosso ponto de partida será a revisão bibliográfica das importantes expressões musicais baianas tanto de caráter
pesquisas realizadas sobre a música na Bahia relacionada e/ou genérico, quanto em seu desdobramento. Contamos, por
REFERÊNCIAS
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Música) – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia,
Salvador.
RISÉRIO, Antonio. Carnaval Ijexá: notas sobre afoxés e blocos do
novo carnaval afro-baiano. Salvador: Corrupio, 1981.
II. PROBLEMATIZAÇÃO
I. INTRODUÇÃO
O movimento do rock montesclarense representa uma
Este trabalho, ainda em fase inicial, visa estudar a
esfera cultural que reflete valores, pensamentos e idéias
manifestação do rock na cidade de Montes Claros-MG, bem
peculiares à sua música. Sendo assim,
como as relações desta música com seu contexto, seja na ótica
da análise da performance desta música como produto sonoro, o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e
seja como o reflexo resultante de sua relação com os espaços valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as
posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural,
nos quais ela se configura. A pesquisa está vinculada ao curso
ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura
de Mestrado em Música – Etnomusicologia do Programa de (LARAIA, 2003, p. 68).
Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Bahia
e é financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado A prática desse rock pode ser definida como o reflexo da
da Bahia (FAPESB). influência de um contexto cultural que determina, através de
Parece consenso afirmar que o rock aparece em Montes seus participantes – músicos ou não – padrões de
Claros por volta de 1968, com os discos dos “Beatles” e da comportamentos, no âmbito sonoro através da performance
“Jovem Guarda”. Destes primeiros contatos, surgem bandas musical e nas reações que se verificam através destas. Assim,
“cover” destes artistas, como “Os Brucutus”, que tocavam pertencendo ao rock, os membros dessa cultura
versões das músicas que ouviam. Nos anos 1970, sob caracterizam-se por um complexo de elementos que
influências advindas de outros estilos que se configuravam, simbolizam e exprimem sua visão de mundo. A música
aparecem novas bandas no cenário da cidade, a exemplo da expressada por eles torna-se um meio no qual se afirmam e
banda Punk “Ataq Cardíaco” que concorreu em festivais com consolidam suas idéias, sobre si mesmos e dos outros à sua
a música “Alucard”. volta. A cultura seria então um complexo sistêmico onde
Os anos 1980 são marcados pela chegada de Eltomar todas as atividades realizadas estariam interligadas (Veiga,
Santoro¹, realizando-se os primeiros eventos de rock em 2005).
Montes Claros. O Rock da Cidade, realizado em seis versões, A etnomusicologia tem se prestado ao estudo da música no
foi o catalisador de futuras manifestações roqueiras, dando a seu contexto cultural, sendo visíveis relações de várias
elas maior visibilidade. Dos grupos da época destacaram-se naturezas. A sua aplicação, portanto, no sentido de uma
“Língua Solta” – da qual fazia parte o próprio Eltomar abordagem específica na relação de música e cultura se
Santoro –, “Clamídia”, “Ian”, “Estrutura Metálica”, mostra valiosa, como na visão Merriam (1964), que vem
“Capiroto”, “Anestesia Geral”, “Novo Estado”, “Zona trazer a idéia do estudo da música como cultura, observando
Proibida”, dentre outras. toda essa dinamicidade pertencente ao contexto e a sua
Dos anos 1990 aos dias atuais, as bandas de rock ganharam reflexão musical. O rock de Montes Claros demonstra a
maior projeção, passando a se apresentar em eventos como a presença de sua música como aspecto representativo de um
Feira de Artesanato e a Festa do Pequi². Surgiram também complexo cultural transformado e transformador desse meio.
espaços específicos para a atuação das bandas de rock. A A música, então, não se desvencilha das bases culturais que a
Garagem do Pedrão recebia bandas do estilo “Metal” como sustentam, enquanto estas são afirmadas pela presença desta
mesma música.
Na visão etnomusicológica de estudo das manifestações
urbanas, o rock se processa como um gênero musical que se
configura com base nas relações sociais que estão por trás de Como objetivos específicos buscaremos identificar os
sua concepção. Este gênero pode ser definido como “um principais grupos de rock atuantes, as influências e
conjunto de eventos musicais (reais ou possíveis) cujo curso é características musicais mais marcantes nessa música
definido por um conjunto de regras socialmente aceitas4” ponderando a sua variedade estilística e estético-musical, os
(FABBRI, 2009). Assim, a dinamicidade presente nas processos criativos, os saberes musicais e as formas de
relações sociais dos membros da cultura rock, bem como as transmissão dos conhecimentos, procurando conhecer,
convenções diversas implicam em códigos musicais que são principalmente, quem são as pessoas que fazem parte do
delineadores do curso de sua performance. Mudanças nos movimento de rock em Montes Claros.
códigos musicais podem implicar mudanças nos códigos Paralelamente, outras questões poderão ser elucidadas:
sociais, e vice-versa. Dessa forma, a configuração da como é transmitido o corpo de conhecimentos pertinentes a
identidade do rock montesclarense passa através dos essa música? (Aqui poderão ser tratados conceitos como
consensos (e contra-sensos) sociais entre os membros informalidade, autodidatismo e correlatos) Como ela se
participantes, e das implicações performáticas obtidas pelo desenvolveu em Montes Claros? Como se relacionam os seus
resultado dessas relações contextuais. Este complexo chama a músicos com aqueles de outras áreas musicais? Como são
atenção para a necessidade de se perceber de que formas as percebidos pelos outros; o que os diferenciam? Que tipo de
pessoas integrantes do rock em Montes Claros modelam sua público freqüenta esses shows? Qual a função dessa música?
identidade cultural, a fim de se identificar de que maneira se
processa sua identidade musical e a relação entre as duas. IV. METODOLOGIA
Apesar da configuração do rock de Montes Claros A metodologia da pesquisa se divide em momentos
depender de todo um consenso cultural por parte de seus distintos. Num primeiro momento se realizará uma pesquisa
integrantes, este nem sempre se apresenta de forma bibliográfica nos assuntos pertinentes ao tema proposto,
planificada, ou unificada. Blacking (2000) diz que dentro de sempre à luz da etnomusicologia, como eixo principal para as
uma esfera social, nem todas as práticas estão relacionadas análises. Também se fará uma pesquisa documental em
diretamente a todos os seus membros. Dessa forma, o rock jornais, revistas, acervos públicos e privados e meios
apresentou ao longo de sua história um processo longo de eletrônicos. De certo que esta pesquisa será contextualizada
subdivisões, gerando uma gama de estilos diferentes. Em socialmente, em seus diversos aspectos históricos, políticos,
Montes Claros, este fenômeno não foi diferente. Não se pode antropológicos. Num segundo momento, serão aplicados
dizer que a totalidade dos membros do rock montesclarense questionários junto ao universo pesquisado, visando levantar
compartilha das mesmas formas de se pensar e interpretar a os principais grupos atuantes na cidade, privilegiando um
sua cultura. Isso justificaria a multiplicidade de estilos que na diálogo transparente entre as partes envolvidas no trabalho de
cidade se configuram. Estes estilos indicam uma divergência pesquisa e, a partir daí, uma observação participante, no
de discursos num certo nível, mas é possível perceber em intuito de melhor compreender a manifestação do rock nesse
outras esferas o compartilhamento do discurso do gênero contexto. Com base nesta observação realizar-se-ão
musical em si. As partições ocorridas dentro da cultura entrevistas semi-estruturadas, coletando assim dados
roqueira se explicariam na idéia de que “tais divisões também adicionais. As performances observadas serão gravadas em
estão relacionadas com questões de identidade, ou seja, a áudio e vídeo, para análises posteriores. Após este período os
necessidade de identificar-se com um grupo geral, ao mesmo dados coletados serão submetidos a processos possíveis de
tempo em que caracteriza fronteiras para diferenciar-se” classificação e análises permitidas pela música (histórica,
(RIBEIRO, 2007, p. 12). contextual, cognitiva, entre outras), objetivando obter
Nesta perspectiva, entendendo a música como cultura, na informações para confecção do material que indique os
ótica de Merriam, na idéia de Cook (1990) de que a produção resultados obtidos na pesquisa.
musical de um local é capaz de adquirir elementos que a
tornem perceptível como tal, verificando ainda que o gênero V. CONCLUSÃO
do rock montesclarense se configura de forma multifacetada,
A multiplicidade de contextos da música brasileira revela a
devido à variedade de estilos5 de discurso musical desse
possibilidade de se buscar considerações acerca de como a
mesmo gênero e que estes configuram elementos estilísticos e
música se processa e se relaciona com os locais dos quais ela
estético-musicais próprios, quais seriam os principais aspectos
faz parte. Entender a relação do contexto do rock com a
característicos, estilísticos e estético-musicais do rock de
cidade de Montes Claros se mostra de grande valia, quando
Montes Claros? De que forma essa música se afirmaria e se
desejamos entender os meios nos quais as culturas definem
desenvolveria no contexto desta cidade, dada a
suas identidades, e através delas realizam seu discurso
multifacetagem existente nos seus mais diversos subgêneros?
musical.
Montes Claros é uma cidade que se projeta para o exterior
III. OBJETIVOS com a imagem da cultura popular tradicional, e elege como
Tomando como universo o rock da cidade de Montes elementos dessa representação gêneros bem distintos do rock.
Claros, a presente pesquisa tem como objetivo geral No entanto, pesquisas revelam que este gênero mesmo
identificar os principais aspectos performáticos, estilísticos e estando entre as manifestações mais praticadas na cidade
estético-musicais do rock de Montes Claros, verificando de ainda é pouco estudado. Compreender as estruturas que o
que forma essa música se afirma e se desenvolve no contexto configuram, bem como estas se relacionam com os outros
da cidade, considerando a multifacetagem existente nos seus contextos poderá contribuir para clarificar essas questões.
diversos subgêneros. Enfim, um estudo dessa natureza poderá contribuir com a
ampliação dos resultados e discussões sobre o acontecimento
AGRADECIMENTOS
Agradecemos ao programa de pós-graduação em música da
UFBA e a FAPESB pelo apoio prestado. Agradecemos
também a ANPPOM pela realização deste evento.
NOTAS
1. Eltomar Santoro foi idealizador de diversos eventos de rock em
Montes Claros.
2. Festa popular celebrando a época da colheita do pequi, fruto de
grande importância econômica para a região.
3. Importante avenida da cidade, com uma estrutura de bares e locais
propícios à presença de pessoas de distintas orientações culturais.
4. “[…] a set of musical events (real or possible) whose course is
governed by a definite set of socially accepted rules”.
5. Considerando estilo musical como “um termo que denota uma
maneira de discurso, um modo de expressão mais particularmente a
maneira na qual uma obra de arte é executada”.(RIBEIRO apud
PASCALL, 2007, p. 20)
REFERÊNCIAS
BLACKING, John. How Music is Man? 5. ed. Seattle e London:
University of Washington Press, 2000.
COOK, Nicholas. Music, Imagination e Culture. New York: Oxford
University, 1990.
FABBRI, Franco. A Theory of Musical Genres: two applications.
Disponível em: <http://www.francofabbri.net/files/
Testi_per_Studenti/ffabbri81a.pdf>. Acessado em: 24/04/2009.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 16
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
MERRIAM, Alan P. The Anthropology of Music. Evanston:
Northwester University Press, 1964.
RIBEIRO, Hugo L. Dinâmica das Identidades: análise estilística e
contextual de três bandas de Metal da cena rock underground de
Aracaju 2007. Tese (Doutorado em Música) – Programa de
Pós-Graduação em Música/Etnomusicologia da Universidade
Federal da Bahia.
VEIGA, Manuel. Etnomusicologia no Brasil: o presente e o futuro
(problemas e questões). Anais do II Encontro Nacional da ABET.
Salvador, 2005.
Casinha Pequenina:
A seresta e a serenata na cidade de Conservatória no Rio de Janeiro
Valéria Gomes de Souza
PPGM- Programa de Pós-Graduação em Música -UNIRIO
val_musica@yahoo.com.br
Palavras-Chave
Seresta, serenata, Conservatória, reuniões musicais
Keywords
Seresta, serenade, Conservatória, musical meetings
Antes da serenata ter início, nas noites de sexta-feira e O primeiro contato com o repertório seresteiro se deu em
sábado, há um “aquecimento” dentro do Museu, isto é, há todos os entrevistados pelo ambiente familiar. É demonstrada
uma seresta que antecipa a serenata. Quando a serenata toma por todos a preocupação com a transmissão e manutenção
as ruas ela tem um ritual de abertura. São cantadas sempre desse repertório e dos valores da serenata e querem passar isso
duas músicas de Cândido das Neves. A primeira é “Noite para as gerações mais novas. O projeto “Conservatória meu
cheia de estrelas” seguida de “Última estrofe”. A terceira é amor”7 é um exemplo de preocupação com a preservação
“Cavalgada” de Roberto Carlos. Isso demonstra um encontro desse patrimônio cultural que é a serenata.
de gerações de compositores dentro da serenata. É interessante observar que nas serestas e serenatas há uma
Mas Conservatória se tornou conhecida como a Capital da predominância de um público da terceira idade8, apesar de
Seresta. Qual a diferença entre estas reuniões? De acordo com alguns casais mais jovens também participarem, mas em
os escritos dos irmãos a diferença se mostra da seguinte número bem menor. Porém não são vistos adolescentes, desta
maneira: maneira o projeto pode funcionar como um incentivo a
Ao visitar Conservatória, descobre-se a diferença entre seresta participação deles.
e serenata: a primeira refere-se ao canto em ambiente fechado, Como existe uma grande distância entre as crianças
a segunda, ao canto sob o sereno, à luz das estrelas e do luar. É (projetos musicais) e os seresteiros, que são adultos acima de
a serenata que diferencia Conservatória de qualquer outro lugar 50 anos, há risco da tradição acabar? A participação de
do país. No entanto, divulgações equivocadas, referem-se à adolescentes se deu no passado, hoje com a mídia há uma
Conservatória como “Cidade das Serestas” quando o mais ausência total de adolescentes na ação comunicativa da
correto seria “Cidade das Serestas e Serenatas”.4 seresta. No passado era comum a presença de adolescentes,
A serenata agrupa um grande número de pessoas que logo mas hoje a ausência marca uma lacuna de tempo entre as
após seu término se reúne em bares e restaurantes e crianças e os adultos acima de 50 anos (seresteiros)
permanecem cantando ao som dos violões, isto é, fazendo (FERNANDES, 2008, p. 8)
serestas. Desta maneira em Conservatória a serenata serve
como um elemento inspirador para a seresta. C. O violão
O violão representa hoje um dos elementos da identidade
A. Os irmãos José Borges e Joubert de Freitas nacional. Em todos os cantos desse imenso país, o violão é
Os irmãos José Borges de Freitas Netto (9-11-1922 / 29-11- parte integrante nos eventos que abraçam todas as classes
2002), e Joubert Cortines de Freitas (8-9-1921) são os sociais. Desde a roda de samba e choro, até as salas de
responsáveis pelo movimento da seresta e da serenata em concerto, passando por shows em grandes casas de
Conservatória. A família chegou na cidade em 1938, mas foi espetálucos, o violão marca a sua presença. Sendo com cordas
somente na década de 50 com o falecimento do seresteiro de nylon ou de aço, e em estilos variados, ele se tornou uma
Emérito Silva (“Merito”)5 , que os dois irmãos foram peça fundamental na música brasileira.
assumindo a liderança da serenata (MAGNO, 2008). No início Na seresta e na serenata ele é uma peça fundamental para
eram feitas de forma esporádica e com o tempo foram se sua realização. De acordo com a seresteira Marluce, o José
tornado cada vez mais assíduas. O ponto de encontro era na Borges comentava que na trilogia da serenata, os ingredientes
casa onde hoje se localiza o Museu da Seresta e da Serenata fundamentais eram o violão, a lua e as estrelas.
que foi fundado na década de 60, pelos irmãos Freitas6 . Uma O violão entra com sua função de instrumento
característica salientada por todos é o Museu não ter qualquer acompanhador, não como solista. São executadas harmonias
tipo de incentivo governamental e não ser cobrada tarifa para simples que são assimiladas através da imitação e da
adentrar ao local. A casa pertence à família Borges e todos os observação. Outros instrumentos podem participar, tais como
impostos são pagos por eles. Assim o Museu é uma entidade o cavaquinho, a flauta, o clarinete, mas como coadjuvantes. O
sem fins lucrativos que está diretamente preocupada com a violão tem a função de principal acompanhador e é elemento
tradição da seresta e da serenata. indispensável.
sujeito unificado. A assim chamada crise de identidade é vista característica principal a tradição e esta se revela como o seu
como parte de um processo mais amplo de mudança, que está elemento diferencial.
deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades Todos os projetos tais como o festival Silvio Caldas, o
modernas e abalando os quadros de referencia que davam aos projeto Conservatória Meu Amor, a Missa dos seresteiros, as
indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (Hall,
2006, p.7)
práticas dentro do Museu da Seresta, a Solarata e a serenata,
assim como as ações dos irmãos Freitas (hoje somente através
Hall acredita que as identidades estão sendo descentradas e do seresteiro Joubert Freitas devido ao falecimento do seu
fragmentadas na sociedade moderna e que essa irmão José Borges em 2002) reforçam a prática da seresta
“fragmentação” do sujeito e de sua identidade cultural afeta nesta cidade.
diretamente a identidade nacional. O violão com sua função de instrumento acompanhador e o
Com o fenômeno da globalização e o deslocamento das canto com interpretação diretamente ligada a emoção formam
identidades culturais, Hall prevê que ou as identidades os ingredientes que não podem faltar na seresta e
culturais se desintegrarão como efeito da homogeneização Conservatória preserva esses ingredientes e se mostra como
cultural e da globalização, ou as identidades culturais serão represente desta prática musical corrente na música brasileira.
reforçadas pela resistência a globalização, ou novas
identidades se formarão, sendo chamadas de híbridas.
Conservatória se mostra como uma cidade criada para
manter a tradição e a resistência à globalização9. Esta cidade NOTAS
1
se mantém na contramão da globalização. Isto pode gerar de Serenata feita aos domingos de manhã em uma das ruas de
acordo com Hall uma fascinação pela diferença, um interesse Conservatória.
2
pelo “local” em detrimento ao “global”. Esta cidade se mostra Entendendo seresteiro como a pessoa que faz seresta ou a
como um espaço criado para vivenciar este “local”. As freqüenta.
3
pessoas vão aos finais de semana para viver esta tradição. Isto Letra da música: Casinha Pequenina. Modinha de domínio Público.
pode explicar o sucesso das serestas nesta cidade. Isto Lançada por Mário Pinheiro em 1906 tendo mais tarde dezenas de
outras gravações.
demonstra que globalização não destrói as identidades, muitas 4
Depoimento recolhido no site www.seresteiros.com.br, que de
vezes pode reforçá-las.
acordo com a seresteira Marluce são de autoria de José Borges e
A continuidade desta tradição é um fator importante, por Joubert de Freitas.
isto os projetos educacionais para que os jovens participem e 5
Seresteiro conhecido na cidade de Conservatória por incentivar a
conheçam a serenata foram criados. Muito importante também prática seresteira.
é a ação dos irmãos Freitas, com a presença do seresteiro 6
De acordo com depoimento da seresteira Marluce.
Joubert em pelo menos uma serenata ao mês, devido a idade 7
Esse projeto teve início em outubro de 2003 e consiste em aulas que
já avançada. Assim como o festival Silvio Caldas e a missa são aplicadas aos jovens para aprenderem o repertório da serenata, o
dos seresteiros10. trabalho dos irmãos e a sua importância para cidade de
Para ser mantida a tradição e a continuidade da serenata e Conservatória. O curso é gratuito e o jovem só necessita residir na
da seresta em Conservatória não são feitas reuniões. Todo o cidade e estar cursando a partir da 2ª série.
8
processo se mantém através dos escritos dos irmãos que se Entendo terceira idade como termo utilizado para definir pessoas
encontram no Museu da seresta e da serenata, e com o apoio acima de sessenta anos de idade.
9
da seresteira Marluce, que hoje é uma grande incentivadora do Entendo globalização como um processo que atravessa fronteiras e
de certa forma tenta integrar e conectar comunidades.
projeto na cidade. 10
Como observamos in loco e também segundo os entrevistados.
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS
A seresta é uma prática musical vigente na música popular Dicionário:
brasileira. Conservatória se mostra como uma representante CASCUDO, Fernando Luís da Câmara. Dicionário do Folclore
importante desta tradição reunindo centenas de pessoas todos Brasileiro. 10ª ed. São Paulo: Global Editora, 2001.
os finais de semana em busca desta prática. Entrevistas:
A serenata nesta cidade se revelou como um elemento SOUZA, Valéria Gomes de. Entrevista realizada no Museu da seresta
diferenciador. Uma serenata em forma de procissão seguida com a seresteira Ângela Nunes. Conservatória, 2008. Vídeo (12
por um grande número de pessoas e não apenas de um homem min).
para sua bem amada. ________________________ Entrevista realizada na Loja Canto
A tradição nesta cidade é um elemento importante, assim Lírico com a seresteira Marluce Magno. Conservatória, 2008.
como a transmissão do repertório de pai para filho que foi Vídeo (50 min).
________________________ Entrevista realizada na rua de
confirmada por todos os entrevistados. Assim a transmissão Conservatória com o seresteiro Antônio João Ribeiro.
do conhecimento cultural dentro do ambiente familiar Conservatória, 2008. Vídeo (20 min)
contribui para inculcar uma determinada prática, neste caso a ________________________ Entrevista realizada na rua de
musical. A conservação de compositores, tais como Cândido Conservatória com o seresteiro Amauri Azevedo. Conservatória,
das Neves, na serenata e na seresta confirma este fato. 2008. Vídeo (12 min)
Como visto através do olhar do autor Hall, a tradição pode ________________________ Entrevista realizada na rua de
ser reforçada mesmo com a globalização. Assim, Conservatória com o seresteiro Sidney Viana. Conservatória,
Conservatória mesmo com todos os atrativos do mundo 2008. Vídeo (13 min)
moderno se mostra como uma cidade que tem como Livros:
Todavia, ela os ultrapassa, uma vez que nenhum deles pode não faltaram a Tomé e ao seu regional. Em nota publicada na
ser o próprio evento. Além do mais, tais documentos ou Revista do Rádio e TV, número 632, do ano 1961, há os
narrativas são carregados da subjetividade de quem os seguintes dizeres: “OS VALORES artísticos desta Capital
produziu. De fato, um mesmo evento poderá ser descrito de podem ser contados a dedo. Temos um Duílio Costa, um
diversos pontos de vista, dependendo do seu autor. Ao Hélio Chaves, uma Ely Camargo e um João Tomé, solista de
destacar a própria incoerência da história, que inerentemente violão que faria sucesso em disco.” Em 1962, na revista
não pode ser objetiva, completa, Veyne apresenta uma nova Madame, é publicada nota com foto fazendo referência ao
forma de se fazer história, ou seja, mais focada nos indivíduos conjunto de Tomé .
e em acontecimentos do cotidiano, em vez da concepção
tradicional que conta a história de impérios e de grandes
personalidades. Nesse ínterim, se insere a história biográfica e
anedótica, assim definida por Veyne:
“É a menos explicativa, mas a mais rica do ponto de vista da
informação, já que considera os indivíduos nas suas
particularidades e detalha, para cada um deles, as nuances do
caráter, a sinuosidade de seus motivos, as etapas de sua
deliberação. Essa informação é esquematizada, depois abolida,
quando se passa a histórias cada vez mais fortes”. (VEYNE,
1971, p. 26)
As transformações das sociedades modernas e as
conseqüentes mudanças no conteúdo dos arquivos, que cada
vez mais passam a dispor de registros sonoros, impulsionam a
tendência a uma revisão do papel das fontes escritas e orais. A
história oral é um instrumento privilegiado para recuperar
memórias e resgatar experiências de histórias vividas
(FERREIRA, 2002). A autora afirma que a história oral como
método de pesquisa, que produz uma fonte especial, tem-se
revelado importante instrumento possibilitando um melhor
entendimento da construção das estratégias de ação e das
representações de grupos ou indivíduos nas diferentes
sociedades. A aplicação desse método é um importante
recurso para o entendimento de um grupo social, através do
qual se pode ter uma face da história vivida.
Depoimentos colhidos de indivíduos próximos a João
Tomé e pesquisas em jornais e revistas da época contribuíram
para o esclarecimento das circunstâncias que o levaram a
optar por fixar residência em Brasília, da repercussão de seu Figura 1 - João Tomé e regional. Atuação artística em Brasília.
trabalho performático e atividades como compositor e Como músico contratado, participou de programas da TV -
professor. Rádio Nacional de Brasília como o Programa Infantil do Titio
Wanderley Mattos, apresentado na rádio todos os domingos
A. Trabalho em Brasília
pela manhã; o Programa Uma Rua Chamada Saudade,
Em fevereiro de 1960, Tomé recebeu um convite para tocar apresentado por Antonio Gonçalves e o Programa de Calouros
em uma nova casa noturna na Cidade Livre, dois meses antes do apresentador Meira Filho. Além disso, acompanhava ao
da inauguração de Brasília. As oportunidades de trabalho violão a cantora Ely Camargo em um programa de TV
como freelance permitiram sua permanência na futura capital. realizado semanalmente. Em Vasconcelos (1992) consta o
Esse período lhe rendeu um bom dinheiro e em carta nome de Tomé como músico violonista da orquestra da Rádio
endereçada à esposa, escreveu: “Brasília promete!”. Em Nacional de Brasília.
pouco tempo, passado o primeiro mês, João já estava Em 1961, aceitou o convite para atuar no Centro de Ensino
trabalhando em outro local, agora no plano piloto, na W3 sul, Fundamental (CASEB) e posteriormente no Centro de Ensino
na boate Pilango. Nesse período, também fazia trabalhos na Médio Elefante Branco (CEMEB), na condição de professor
TV - Rádio Nacional, canal 3, onde conheceu e trabalhou com de violão, sendo efetivado como servidor público, em junho
grandes músicos, entre eles, o maestro Isaac Kolman. No mês de 1963, pela Fundação Educacional do Distrito Federal (atual
de julho, João Tomé fixa residência na asa sul, plano piloto, Secretaria de Estado de Educação). Tinha como colegas de
onde permaneceu temporariamente com a esposa e filhos, até instituição os professores João Vieira, o maestro Reginaldo
a transferência para outro apartamento, na asa norte, em Carvalho e professora Neusa França. Francis (2007) apresenta
quadra destinada, por JK, aos funcionários da TV - Rádio o cenário musical de Brasília a partir da figura de Neusa
Nacional de Brasília. França, pianista, compositora e professora, objetivando a
Sua contratação nessa emissora efetivou-se em agosto de compreensão do processo pelo qual a personagem se
1960, com a inclusão dos seus parceiros de conjunto, Gilson legitimou como uma das mais respeitadas profissionais da
Machado (acordeom) e Walter Ibituruna (percussão), também música e a sua relação com a cidade, sua trajetória musical e o
deficientes visuais, ex-alunos de Tomé em Uberaba. Elogios processo de legitimação da cultura musical em Brasília. Há
relatos das dificuldades encontradas, na época, para conseguir profissional. Os diversos trabalhos musicais em casas
espaços apropriados aos concertos musicais, para implantar o noturnas, rádio, TV, e escolas de música proporcionaram o
canto orfeônico e a criação do programa “Vamos brincar de desenvolvimento das suas capacidades artísticas.
Música”, veiculado pela TV Nacional entre outubro de 1961 e
dezembro de 1962. Foram momentos vividos no principio do III. CONCLUSÃO
processo de formação cultural. A mudança para a nova capital possibilitou uma maior
projeção artística e maior intercâmbio com músicos de outras
regiões do Brasil. A efetivação como funcionário público da
rede de ensino do Distrito Federal e da Rádio e TV Nacional
de Brasília possibilitou condições favoráveis de trabalho
resultando em vitória profissional dentro da estrutura
emergente para músicos da nova Capital.
REFERÊNCIAS
CLÍMACO, Magda de Miranda. Alegres dias chorões... O Choro
como expressão musical no cotidiano de Brasília. Tese de
doutorado. Brasília, 2008.
FERRARETTO, Luiz Artur. Rádio: o veículo, a história e a técnica.
Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2001. FERREIRA,
Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral.
Revista Topoi. Rio de Janeiro, pp. 314-332. dezembro, 2002.
transformações a partir da incorporação de elementos de violeiros que ensinam “receitas” de como fazer pactos com
externos5. Desse modo, pouquíssimo tempo depois do início o sobrenatural para poder tocar viola melhor. (CORRÊA,
das gravações de música caipira, novos ritmos, formações e 2000; p:48). Assim, o violeiro mantinha um trânsito entre
estruturas musicais já faziam parte do repertório, agora, Deus e o Diabo, como nenhum outro membro da comunidade
sertanejo. conseguia. (VILELA PINTO, 2004, p. 9). O conhecimento do
Observando, por exemplo, as gravações já partir das pontear a viola era de extremo valor, sendo transmitido
décadas de 30 e 40 é notória a variação temática do conteúdo oralmente e de geração em geração, o toque dos violeiros, a
das letras que vão desde as mais voltadas para o universo rural afinação utilizada, determinava a marca, o estilo, de cada
do caipira, buscando recriar um ambiente e um modo de vida violeiro, funcionando como uma espécie de assinatura
ainda muito presente dentro do país, até as mais urbanas, individual. Sobre essa peculiaridade, o violeiro Almir Sater
incorporando influências internacionais que culminaram, já na comentou: “O toque de um violeiro é muito especial, difícil de
década de 80, no uso do romantismo exacerbado a na ser assimilado, tem que escutar muito para aprender o
associação com a moda country dos Estados Unidos. Assim, o caminho das mãos”. (NEPOMUCENO, 1999 p.392).
gênero sertanejo que inicialmente tive como referência as Nota-se, que já nos antigos bairros rurais, na ocasião de
matrizes caipiras, rapidamente passa conviver e incorporar festas e bailes (também tratada pelo caipira por “pagodes”,
outras matrizes musicais e outros gêneros de procedência “fandangos”, “cateretês”, “catiras” ou “sambas”) que os
internacional como as guarânias, polcas, boleros, tangos; violeiros encontravam o devido espaço e atenção para as
passando também pelo rock’n’roll da Jovem Guarda até cantorias e os solos de viola. O pesquisador Romildo
atingirem a incorporação dos padrões atuais de música pop Sant’anna (2000) faz a seguinte afirmação sobre esse ponto:
internacional. Em decorrência disso, guitarras, teclados e “executanto-se os gêneros de dança e mesmo considerando
bateria ganham destaque nas composições e arranjos seu caráter de entretenimento (...) a pessoa se concentra para
sertanejos ao passo que a viola caipira vai ficando reservada escutar a Moda Caipira; (...) é desrespeito (...) fazê-la de
para as duplas sertanejas denominadas “de raiz”. fundo musical, em meio das conversas para elas (...). Por isso,
no pagode vivo, como evento de socialização, o desempenho
II. MÚSICA INSTRUMENTAL dos violeiros, com o entusiasmo nos dedos e na voz, equivale
SERTANEJA a uma audição de concerto”. (SANT’ANNA, 2000, p. 94).
Na medida em que a música caipira foi sendo incorporada e
Ao mesmo tempo, a incorporação de novos parâmetros na
apropriada pela indústria do disco, essa dimensão instrumental
composição da música sertaneja abriu precedente para que a
foi, com o tempo, ganhando consistência e aos poucos se
viola também ganhasse destaque e gradativamente se tornasse
transferindo das práticas e rituais do meio rural para o meio
um importante instrumento na música popular brasileira.
urbano. Ao mesmo tempo e também em decorrência disto, no
Mesmo reconhecendo que a música sertaneja esteve sempre
meio musical, verifica-se que os violeiros foram ganhando
associada aos rituais culturais dos bairros rurais e foi
espaço e já se faziam notar como músicos de destaque, pelo
executada, em geral, na forma de canções com a configuração
menos desde a década de trinta, como nos revela J. L Ferrete
até hoje existente (duas vozes cantando em intervalos de
(1985) na seguinte passagem: “(...) a partir de 1° de junho de
terças ou sexta paralelas acompanhadas por viola e violão), é
1936 (...) Capitão Furtado criou o seu Repouso, programa (...)
possível afirmar que os ponteados de viola executados nas
onde o Capitão (...) recebia seus convidados: (...) Laureano,
introduções dessas canções contribuíram, de certa forma, para
um dos maiores violeiros da época” (FERRETE, 1985 P: 85).
o surgimento de uma dimensão instrumental do gênero
Observando a trajetória da música sertaneja do século XX,
sertanejo que, com o passar o tempo, criou condições para que
em especial a ramificação representada pela música
a viola caipira também fosse usada e desenvolvida como
instrumental sertaneja, é possível afirmar que, já na década de
instrumento-solo.
quarenta, a música instrumental sertaneja começa a se
Os fortes laços que se criaram entre a viola e o homem do
delinear como um segmento no mercado fonográfico.
campo bem como a própria incorporação do instrumento ao
Entretanto, a consolidação deste segmento ocorreu
cotidiano das comunidades rurais ocasionaram o surgimento
posteriormente e, de um modo geral, também seguiu os
de um novo personagem que, com o tempo, foi se tornando
moldes da canção sertaneja. Porém, é possível perceber dois
uma figura importante dentro da esfera cultural destas
princípios, ou ainda, duas maneiras distintas de apropriação
populações rarefeitas do centro-sul do Brasil. Trata-se do
dos elementos da música e da cultura caipira, que deram
tocador de viola, conhecido aqui no Brasil como violeiro.
origem à música instrumental sertaneja: (i) a partir dos
Esse indivíduo, que desenvolveu uma forma muito particular
parâmetros da canção de massa, ou da canção sertaneja, na
de tocar o instrumento, quase sempre autodidata, era sempre
qual alguns violeiros, que além de cantarem em duplas
solicitado para animar os ritos religiosos como a folia de
caipiras, também se dedicaram a criar músicas instrumentais;
devoção ao Reis Magos, de devoção ao Espírito Santo ou
(ii) e da apropriação culta dos elementos da cultura caipira,
ainda, as festas de São Gonçalo e de Santa Cruz.
nos quais, alguns artistas mais intelectualizados vão descobrir
De acordo com o pesquisador e violeiro Ivan Vilela (2004),
na cultura caipira recursos e ferramentas para suas
curiosamente, o violeiro atraiu para si uma aura de
composições.
diferenciação, de misticismo, pois tocar viola com destreza
A primeira vertente da música instrumental sertaneja, mais
sempre foi visto como algo que “salta aos olhos” das pessoas
tradicional, desprovida de formação musical formal nos
e suscita curiosidades. A habilidade de tocar o instrumento era
moldes da música erudita, é identificada na obra de violeiros
muitas vezes associada ao resultado de algum pacto com o
que de uma maneira ou de outra, representam as matrizes
diabo ou com “seres místicos”. É recorrente em todas as
caipiras em seus diversos graus de transformação. Essa
literaturas que tratam sobre as origens da viola caipira, relatos
ligação com esse universo caipira se deve talvez, ao fato de Orquestra de Câmara, Regente Armando Belardi. (LIMA,
muitos desses violeiros terem sido moradores de zonas rurais 1997; p:17).
que migraram para os centros urbanos, portanto, Rossini afirma nesta mesma obra que “Theodoro Nogueira
remanescestes dos antigos bairros rurais e que tiveram contato foi o primeiro a contribuir para a integração da viola brasileira
com as práticas ritualísticas das populações caipiras. Essas na música erudita atual” (LIMA, 1997 p.17). Nesse livro fica
matrizes muitas vezes são claramente identificadas nas clara a intenção de se usar a viola caipira, bem como as
primeiras gravações do segmento sertanejo, classificadas por matrizes da música caipira associada a procedimentos
Ferrete como sendo “aquele primitivismo folclórico do tempo composicionais formais e a partir daí produzir obras
de Cornélio Pires” (FERRETE, 1985, p.61). “modernas” que buscam criar um diálogo entre os dois
Nesta vertente popular, identificamos o pioneiro Zé do universos: rural e urbano.
Rancho (José Isidoro Pereira), paulista nascido em Theodoro Nogueira tem outra iniciativa interessante em
Guapiaçu/SP que além de compositor e intérprete em duplas relação à viola caipira ou viola brasileira como o próprio
com Zé do Pinho, Serrinha e Mariazinha, também foi o compositor se referia ao instrumento: inicia uma pesquisa
violeiro responsável pela gravação, em 1966, do primeiro LP histórica do instrumento. Partindo de registros de diversos
instrumental de viola caipira 6 . Tocava violão elétrico em pesquisadores da época, tais como Rossini Tavares de Lima,
bandas de baile antes de ir para São Paulo, cidade na qual Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, Guerra Peixe, Kilza Setti e
viria a trabalhar em gravações e em alguns shows. Marina de Andrade Marconi, começa a estabelecer uma
Acompanhou artistas como Vicente Celestino e atuou em sistematização da história do instrumento, sua trajetória dentro
gravações com Tonico e Tinoco, Leo Canhoto e Robertinho, e fora do Brasil, tipos de afinação, formas de escrita para o
Sérgio Reis dentre outros, apesar de quase nunca ter seu nome instrumento e até mesmo da morfologia da viola. A partir
creditado nas capas dos discos. Zé do Rancho ainda gravou dessa pesquisa estabelece uma afinação padrão (lá, ré, sol, si,
um LP e um compacto pela gravadora Continental e o LP mi) e passa a compor e transcrever obras para viola:
“Viola Sertaneja” em 1981 – BMG. A nossa viola, instrumento folclórico, predileto do nosso
Alinham-se a ele, nessa vertente instrumental, os violeiros caipira ou sertanejo já existiu há 2.500 antes de Cristo. A viola
Tião Carreiro, Gedeão da Viola, Bambico, Téo Azevedo, Tião foi difundida pela Europa graças aos trovadores. E o primeiro
do Carro, Índio Cachoeira, Zé Coco do Riachão, Helena método para seu estudo, Guitarra espanhola, y yandola, teve
Meireles dentre outros (NEPOMUCENO, 1999 p. 37). sua publicação em Barcelona, no ano de 1586. A viola
estudada nesse método é semelhante à nossa viola de cinco
III. A VIOLA NAS SALAS DE CONCERTO cordas duplas.
O primeiro tratado de viola elaborado para se aprender o estilo
A outra vertente da música instrumental sertaneja aparenta “rasgueado” ou como dizemos, rasqueado, publicou-se em
estar associada à idéia de “apropriação culta” (ZAN, 2004) de Lisboa em 1752, e chama-se Dona Policárpia, mestra da viola.
elementos da música das regiões rurais do centro-sul do país. Servia para o aprendizado da viola portuguesa ou de ninfas, de
Esta produção utiliza-se de uma apropriação, aparentemente, cinco cordas duplas.
mais consistente das matrizes da música caipira para elaborar Em 1789, foi publicado, ainda em Portugal, o segundo tratado,
músicas mais sofisticadas tanto em termos harmônicos, que se intitulaNova arte de viola, de Manuel da Paixão Ribeiro.
melódicos, rítmicos e de arranjos. Resultando numa No prefácio o autor escreve: "Viola... instrumento mais belo
sonoridade que dialoga entre dois universos, o urbano e o que o cravo".
A afinação da viola foi estabelecida pelo grande novelista,
rural. O primeiro artista a se enveredar por esse caminho foi
poeta e musicista Vicente Espinel. Era natural de Ronda,
Ascendino Theodoro Nogueira. Málaga, e viveu entre 1551 e 1634. Esta afinação é idêntica a
Ascendino não tocava viola, mas foi protagonista de usual na viola brasileira (...) A viola foi trazida para o nosso
momento importante da história da música instrumental país pelos portugueses e apesar de ser um instrumento nobre
sertaneja como compositor e violonista. Aluno Camargo permaneceu por aqui entre os caipiras e sertanejos. A viola que
Guarnieri e autor de 5 sinfonia, dois quartetos e centenas de atualmente se usa na cidade e que é produzida pelas fábricas de
obras para vários instrumentos. Autor da primeira missa instrumentos não passa de um violão encordoado, com cinco
cantada em português, Missa a Nª Senhora dos Navegantes, cordas duplas. Apesar de ser difundido por todo território ou
gravada pelo Coral Paulistano, regente Miguel Aruqueróns, na pelo menos quase todo até agora não existe um método para
seu aprendizado no Brasil. Por isso, desejando compor música
qual a viola caipira faz parte da sua instrumentação. Escreveu
para viola, tive que adquirir um exemplar, para estudá-la.
para viola e orquestra de câmara, tendo seu “Concertino para Estabeleci à maneira de escrever para ela, usando clave de sol e
Viola Brasileira e Orquestra” sido gravado por seu aluno clave de fá, em virtude dos tons oitavados e uníssonos. Do
Barbosa Lima em 1963 no LP “Viola Brasileira”. No prefácio livro Folclore de São Paulo, melodia e ritmo, de Rossini
do livro “Moda de viola – poesia de Circunstância” de Rossini Tavares de Lima, extraí um modelo de viola folclórica e
Tavares de Lima (1997) há o seguinte relato de Theodoro Antônio Carlos Barbosa de Lima providenciou a fabricação por
Nogueira: Giannini. Sugeri ao talentoso Antônio Carlos Barbosa de Lima,
que elaborasse um método baseado nas escalas e ritmos
Em 1963 num bate papo com Rossini, resolvi compor um
brasileiros, sendo este o primeiro escrito para o estudo da viola,
concertino para viola caipira. Os materiais que existiam nessa
no país.
época sobre afinações desse instrumento, foram recolhidos por A fabricação varia de violeiro para violeiro. Cada violeiro pode
Rossini, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, Guerra Peixe, Kilza fabricar, afinar e tocar o instrumento à sua maneira. As cordas
Setti, Marina de Andrade Marconi, que Rossini deixou a minha são de metal branco, amarelo ou são bordões. Os nomes são:
disposição. Estabeleci a maneira de executá-la por música e canutilho, tuêca, turina, verdegal ou sobreturina. Verdega,
com as afinações compus sete prelúdios sendo seis os modos
segundo o dicionário, é corda de viola usada em vara de pesca.
de viola que foram gravados pelo meu aluno Barbosa Lima e a
No Brasil, há viola de 12 cordas, que é a mesma de 10, com
dois sons duplicados. Até 10 trastes, a extensão chama-se polegar e indicador apenas. Décadas depois, essa forma de
meia-regra e passando de 10, regra inteira, como no modo execução proposta por Ascendino Nogueira e Geraldo Ribeiro
europeu (NOGUEIRA, 1963). foi incorporada e adaptada por outros violeiros e recentemente
Essas afirmações de Theodoro Nogueira fazem parte de um ganhou o nome de Técnica das Dez Cordas pelo violeiro e
artigo escrito pelo próprio autor intitulado: Anotações para um compositor Ivan Vilela em seu Cd Dez Cordas (Kalamata,
estudo sobre a viola; origem do instrumento e sua difusão no 2007).
Brasil e publicado no jornal Gazeta em 24 de agosto de 1963. A partir da iniciativa de Theodoro Nogueira, outros artistas,
Nesse mesmo artigo, Ascendino relata um pouco dos seguiram a diante nesta investida e deram realmente corpo à
procedimentos adotados por ele para escrever para viola e idéia de dar um tratamento diferenciado aos elementos da
qual afinação estabeleceu como padrão em suas obras: música caipira, unindo esse universo às esferas da música
Apesar de existir mais de 20 afinações de viola, no Brasil, a erudita, da música popular e instrumental brasileira, ou do
que predomina é: lá, ré, sol, si, mi. A afinação melhor para o jazz, cada qual, obviamente, de maneira, intensidades e tendo
compositor trabalhar é aquela que apresenta as cordas lá e ré, referências diferentes. Entre esses artistas destaco aqui o
afinadas em oitavas, e sol, si e mi, em uníssono. Além das músico mineiro Renato Andrade.
afinações, há os modos de viola: são acordes tradicionais Renato Andrade nasceu em Abaeté/MG, em agosto de 1932.
sobre I, IV e V graus. O melhor trabalho divulgado no país Dedicou-se desde muito cedo à música indo para Belo
sobre os modos da viola foi realizado por Rossini Tavares de Horizonte estudar violino com o professor Flausino Rodrigues
Lima, em Piracicaba. Aproveitando esses modos, compus seis Vale. Foi violinista de orquestra e fez apresentações por todo
prelúdios nos modos da viola. Para cada modo, o violeiro o Brasil e exterior ao longo dos mais de vinte anos em que foi
caipira costuma fazer, uma nova afinação. Entretanto, na violinista. Em entrevista para a jornalista Geovana Jardim,
afinação lá-ré-sol-si-mi podem-se perfeitamente tocar todos os Renato afirma:
modos. O violeiro costuma colocar a nota grave em cima e a eu queria ser violinista de capela, para não dizer violinista ruim,
aguda em baixo, naturalmente para ter melhor apoio quando mas tinha uma viola em casa, como todo mundo tem um violão,
toca com o polegar. A nossa viola serviu até hoje para decorando. (Revista Viola Caipira N° 8: p: 34).
acompanhar congada, cana-verde, dança de São Gonçalo, Aos trinta e seis anos voltou para Abaeté e abandonou a
cateretê, cururu, fandango, folia de Reis, folia do Divino, carreira de violinista após ter contato com a viola caipira. Na
modas de viola e outras manifestações do nosso folclore década de 70 passou a se dedicar exclusivamente a esse
(NOGUEIRA, 1963). instrumento como autodidata. Desenvolveu grande qualidade
Vale lembrar que esta afinação proposta por Ascendino é a técnica e rapidamente começou a compor para o instrumento.
mesma utilizada no violão, apenas suprimindo a 6ª corda já Nesse período participou como coadjuvante e como
que a viola possui cinco ordens de cordas e o violão seis. compositor da trilha do filme “Corpo Fechado” de Schubert
Theodoro Nogueira também adaptou e transcreveu obras de Magalhães, trilha esta composta para viola caipira em parceria
outros compositores e outros instrumentos para a viola. com o também violeiro mineiro Tavinho Moura.
Dentre essas transcrições destacam-se as Partitas para violino Foi para o Rio de Janeiro onde se apresentou interpretando
Solo de J. S. Bach gravadas no Lp Bach na Viola Brasileira – concertos de Guerra-Peixe, Francisco Mignone e Edino
Transcrição de Theodoro Nogueira – Execução: Geraldo Krieger e ficou conhecido como o músico que levou a viola
Ribeiro lançado pela Fermata Produções em meados da caipira para as salas de concerto. Em entrevista fez a seguinte
década de 60. Na contracapa do Lp, Theodoro Nogueira declaração quando questionado sobre sua ida para o Rio de
publica o mesmo artigo Anotações para um estudo sobre a Janeiro:
viola; origem do instrumento e sua difusão no Brasil. Nesse
(...) acabei indo para o Rio de Janeiro (...) ia ficar uns dias
disco, a execução da viola é fortemente marcada pelas
acabei ficando quinze anos. Conheci Guerra-Peixe, Edino
técnicas e pelas sonoridades da música de concerto. Tal Krieger Francisco Mignone que me ajudaram muito. (...) fui
afirmação é possível a partir de vários elementos. pra um lugar errado, Rio de Janeiro, aonde a viola não tanto a
Primeiramente pelo repertório escolhido: Partitas para ver com a cultura local, isso em 1971. Mas eu não cheguei de
Violino solo de Bach, composta por cinco movimentos botina, já sabia quem era Beethoven, Chopin e Shopenhouer
(Prelúdio, Loure, Gavota, Fuga e Chacona), ou seja, uma (...) (Revista Viola Caipira N°8: p: 34).
linguagem musical não proveniente da música caipira e Em 1977 lança pelo selo Chantecler seu primeiro disco A
sertaneja, de característica contrapontística, muito recorrente fantástica viola de Renato Andrade onde interpreta
não só no período Barroco, mas como na obra de J. S. Bach composições instrumentais próprias. Com esse disco recebe o
como um todo. Além disso, a principal característica dessa prêmio Raízes do importante troféu Villa-Lobos de 1977. No
gravação é a utilização de uma técnica na mão direita (para os prefácio deste disco, o compositor Guerra-Peixe, ao comentar
músicos dextros) na qual os pares de cordas da viola são a música de Renato Andrade, compara essa obra com a
dedilhados separadamente de forma a permitir a reprodução música e movimento cultural nordestino denominado
das diversas “vozes melódicas” da linguagem polifônica. Esse Movimento Armorial, produção esta que se destacou no
tipo de execução não era comum na viola caipira até aquele mesmo período e que tinha como representantes o grupo
momento, em geral, o “ponteado” dos violeiros era feito Quinteto Armorial e o escritor Ariano Suassuna. Guerra-Peixe
atacando as duas cordas dos pares simultaneamente. Mesmo o chama a música de Renato Andrade de Música Armorial
uso de todos os dedos da mão direita como ocorre na Mineira.
interpretação de Geraldo Ribeiro merece destaque, e revela Esse disco de 1977 foi o primeiro de uma discografia de
certo grau de “erudição”, uma vez que no “toque” dos sete discos, sendo quatro LPs: A Fantástica viola de Renato
violeiros “tradicionais” é recorrente a utilização dos dedos Andrade (1977) - Chantecler; Viola de Queluz (1979) -
Chantecler; O Violeiro e o Grande Sertão (1984) - Bemol; A século XX e início do XXI e que é composta por músicos, que
magia da viola (1987) - Chantecler; e cinco CDs: assim como Renato Andrade são originários de classe média
Instrumental no CCBB- Renato Andrade e Roberto Corrêa urbana, intelectualizado, alguns de formação universitária e
(1993) - Tom Brasil; Violeiros do Brasil (1998) - que se encantaram com a cultura e com a música caipira.
SESC-Núcleo Contemprâneo; A viola e a minha gente (1999) Dessa forma, procuram explorar as ‘tradições’ de uma
- Lapa Discos; Enfia a viola no saco (2002); Os Bambas da maneira muito particular; uma espécie de fonte de pesquisa,
Viola (2004). Todos os discos são instrumentais e trazem cujo intuito é incorporar esses elementos e fazer deles o
apenas a viola acompanhada por um violão com protagonistas. material base para suas composições.
Aliás, essa é uma das principais características da obra de Essa forma de olhar para as ‘tradições’ parece se
Renato, não usar outros instrumentos e deixar sempre a viola caracterizar como uma espécie de apropriação culta da cultura
em primeiro plano dentro da música, acompanhada em alguns caipira, cuja finalidade é criar uma identidade musical para as
trechos pelo violão. composições feitas modernamente (ZAN, 2005, p. 9). Renato
Renato Andrade fez apresentações por todo o Brasil e Andrade, assim como os outros compositores que se seguiram
exterior, participou de diversos concertos ao lado de grandes a partir de sua iniciativa, usa a viola para compor um
nomes da música popular e tornou-se um dos maiores mestre repertório que dialoga entre as “tradições” rurais e a cultura
de viola caipira. Fez apresentações nas Universidades do urbana e que, de certo modo, busca substitui aquela imagem
Texas, Florida, Arizona, Los Angeles, Califórnia, Minnesota, do violeiro, de mãos duras da lida no campo e que faz pacto
Washington, Nova York entre outras. Sua obra tornou-se com o diabo, por um novo tipo de músico: o concertista e
referência para todos os instrumentistas de viola. Uma das pesquisador de música caipira.
suas últimas apresentações foi no encerramento do II Prêmio
Syngenta de Música Instrumental para Viola. Faleceu no dia
30 de dezembro de 2005, aos 73 anos de idade, vítima de 1
Segundo Amadeo Amaral, na sua obra intitulada: Dialeto Caipira,
câncer de pulmão.
o Nheengatu foi a língua geral falada pelos índios na faixa litorânea
Renato tornou-se uma espécie de mito entre os violeiros. que ia do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte (AMARAL,
Muitos dos relatos que remetem à crença em pactos e 1976).
simpatias com o sobrenatural são protagonizados por violeiros 2
Vilela faz tal afirmação a partir da observação e do estudo de dois
que recorreram a esse tipo de “ajuda” para tentar tocar tão autores: O primeiro, o professor e antropólogo Robin Wright
bem como Renato. O violeiro Roberto Corrêa, em (Universidade de Campinas), profundo estudioso de temas
documentário do departamento de Antropologia da USP, faz o relacionados à religiosidade dos índios sul-americanos, afirma ser
seguinte comentário quando questionado sobre a obra de esta uma particularidade de índios da América do Sul, a de terem a
Renato Andrade: música como principal veículo na sua relação com o sagrado. O
segundo autor que contribui para a definição de Vilela é Mário de
o Renato encarnou um papel de um tipo de violeiro que existia
Andrade (1989) que afirma que José de Anchieta já se aproveitara do
antigamente, que era o violeiro performático (...) que imitava cateretê, dança indígena, alterando-lhe os textos para catequizar os
passarinho, fazia brincadeiras com a viola.
índios brasileiros (VILELA PINTO 2004: 176).
O virtuosismo técnico associado ao conhecimento musical 3
CALDAS (1979); CORRÊA (2000); FERRETE (1985); MARTINS
deu origem a um repertório em que se mesclam elementos da (1975); NEPOMUCENO (1999); VILELA PINTO (2002)
música caipira com elementos diversos tanto da música SANT’ANNA (2000); ZAN (2004)
4
popular como da música erudita, ou música de concerto. Em Numa entrevista concedida ao programa Ensaio, da TV Cultura
suas composições, Renato Andrade explora a música caipira (produção de Fernando Faro) a dupla Tonico e Tinoco revela que
de diversas maneiras, aplicando técnicas variadas de viola e quando moravam na fazenda tocavam romance que de tão longos era
procedimentos musicais ainda mais sofisticados. É possível preciso uma pausa para o “povo” tomar café. Mas quando se
encontrar, por exemplo, ritmos como a catira, o cururu, a transformaram em artistas urbanos não puderam mais gravar as
mesmas músicas que cantavam na fazenda, pois segundo eles a
folia de reis, o batuque, o pagode de viola, ou ainda, perceber população da cidade não tinha paciência para músicas tão longas “(...)
que a temática das músicas, mesmo sendo cunho instrumental, o povo, hoje, eles ouve uma música assim, olhando o relógio, sempre
estão quase sempre ligadas ao cotidiano do homem do campo. tem o que fazê.” (BERNADELLI, Maria Madalena. “Breve Histórico
Outro detalhe que também evidencia a influência da cultura da Música Caipira”. In Leitura, Publicação Cultural da Imprensa
caipira nas criações do violeiro é o fato deste sempre, em seus Oficial do Estado de São Paulo S/A – IMESP, fevereiro de 1992,
shows e apresentações, contar causos e anedotas caipiras, p.9)
5
semelhantes àquelas contadas por Cornélio Pires no início da Devido a falta de instrumentistas do gênero música caipira e
década de 30. sertaneja, as primeiras gravações contam com músicos provenientes
Ao mesmo tempo em que utiliza esses elementos da música de outros gêneros brasileiros como o Choro, o Samba etc. Além
caipira, Renato Andrade explora ferramentas composicionais disso, como tratava-se de algo novo, algumas iniciativas foram
tomadas no intuito de consolidar uma linguagem musical a esse novo
da música popular e da música erudita. Estas ferramentas
gênero, entre essas tentativas destaca-se o uso der instrumentos que
estão ligadas às estruturas formais, às construções melódicas, não são comuns à música caipira como tubas, trombones, violinos o
ao uso de contraponto ou ainda, a determinados caminhos que revela a busca por parte dos músicos e arranjadores, de uma
harmônicos escolhido pelo compositor que possibilitam o sonoridade e mais do que isto, a adequação do gênero aos
surgimento de composições que exploram a viola caipira de procedimentos da música popular vigente no período
diversas maneiras, ampliando os recursos ligados à técnica do 6
Localizamos um registro de uma música instrumental de viola na
instrumento e buscando novas sonoridades vertente popular, mas antigo que o LP de Zé do Rancho, já que se
A iniciativa de Renato Andrade reflete a propagação de trata se uma gravação em disco de 78 r.p.m, entretanto sem que nela
uma produção que se intensificou nas últimas duas décadas do conste a data. A gravação intitulada “Paixão de Caboclo” é de autoria
de Arlindo Santana e interpretada por ele mesmo. Selo fonográfico: _______. Capitalismo e tradicionalismo: estudo sobre as
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Universidade de São Paulo, 2007 CACIQUE E PAJÉ: Os índios e a viola. Ed. Chantecler.
MARTINS, José de Souza. Viola Quebrada in: Revista Debate e CARREIRO, Tião: É isto que o povo quer: em solos de viola caipira.
‘Crítica. São Paulo, Editora HUCITEC Ltda, nº4, 1974. Ed. Chantecler.
CARREIRO, Tião: O criador e rei do pagode: solo de viola caipira.
Ed. Chantecler.