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T E M A S & M A T I Z E S

MERCOSUL

O Mundo Multipolar e a Integração Sul-Americana

Samuel Pinheiro Guimarães

RESUMO: Neste início de século a integração regional e sul-americana volta a ser um dos desafios
para as novas gerações. Os países da América do Sul apresentam características históricas semelhantes,
seja em termos das desigualdades sociais e das assimetrias inter e intra-nações. Durante o período
em que houve o predomínio de governos neoliberais, muitos países da região adotaram políticas
desindustrializantes e de desnacionalização que acentuaram ainda mais as desigualdades sócio-
econômicas. Todavia, as experiências históricas de integração já realizadas durante o século XX (ALALC,
Pacto Andino e MCCA) e as reflexões teóricas e históricas sobre o desenvolvimento contribuem para
tornar as diferenças em fatores positivos para uma integração sul-americana orientada pela
complementaridade dos fatores produtivos, populacionais e das políticas de Estado. O papel estratégico
que o Brasil e a Argentina têm para uma integração sub-regional e sul-americana é essencial para o
futuro do Mercosul e da UNASUL, que aponte caminhos distintos aos da NAFTA e da ALCA. Novamente
os investimentos em transporte, energia e a criação de um sistema de crédito regional são fundamentais
para a superação das assimetrias e do baixo nível de intercâmbio.
PALAVRAS-CHAVE: Relação Brasil-Argentina. Integração. Mercosul. América do Sul.

ABSTRACT: In this new century, the regional integration and South American become, once more,
one of the challenges for the new generations. The South American countries present similar historical
characteristics, in terms of social inequalities and asymmetries of inter and intra-nations. During the
period in which there was the predominance of neoliberal governments, many countries in the region
adopted policies of denationalization and desindustrialization which aggravated socio-economic
inequalities even more. However, the historical experiences of integration during the past century
(ALALC, Pacto Andino e MCCA) and the theoretical and historical reflections on the development
contribute to making differences in factors positive for a South American integration driven by the
complementarity of production, population and policies of state factors. The strategic role that Brazil
and Argentina have for a sub-regional and South American integration is essential to the future of
Mercosur and UNASUL, which point to different ways of NAFTA and the FTAA. Further, investment in
transport, energy and the creation of a regional credit system are essential to overcome the imbalances
and the low level of exchange.
KEY WORDS: Brazil and Argentina relation. Integration. Mercosur. South America

TEMAS & MATIZES - Nº 14 - SEGUNDO SEMESTRE DE 2008

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1. A importância essencial da na América do Sul. As características da


América do Sul situação geopolítica do Brasil, isto é, seu
território, sua localização geográfica, sua
América do Sul se encontra, população, suas fronteiras, sua economia,
necessária e inarredavelmente, assim como a conjuntura e a estrutura do
no centro da política externa sistema mundial, tornam a prioridade sul-
brasileira. Por sua vez, o núcleo americana uma realidade essencial.
da política brasileira na América do Sul está O cenário econômico mundial se
no Mercosul. E o cerne da política brasileira caracteriza pela simultânea globalização e
no Mercosul tem de ser, sem dúvida, a gradual formação de grandes blocos de
Argentina. A integração entre o Brasil e a Estados na Europa, na América do Norte e
Argentina e seu papel decisivo na América na Ásia; pelo acelerado progresso científico
do Sul deve ser o objetivo mais certo, mais e tecnológico, em especial nas áreas da
constante, mais vigoroso das estratégias informática e da biotecnologia, com sua
políticas e econômicas tanto do Brasil vinculação às despesas e atividades
quanto da Argentina. Qualquer tentativa militares; pela concentração do capital e
de estabelecer diferentes prioridades para oligopolização de mercados, medida pelo
a política externa brasileira, e mesmo a número de fusões e aquisições que
atenção insuficiente a esses fundamentos, passaram de 9 mil, no valor de US$ 850
certamente provocará graves conseqüências bilhões, em 1995, para 33 mil, no valor de
e correrá sério risco de fracasso. quase 4 trilhões de dólares, em 2006, e
A África Ocidental, com seus 23 pela financeirização da economia, pois os
Estados ribeirinhos, inclusive os ativos (ações, títulos e depósitos) financeiros
arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e passaram de 109% da produção mundial,
Príncipe, é a fronteira atlântica do Brasil, em 1980, para 316% em 2005; pela
continente a que estamos unidos pela transformação dos mercados de trabalho e
história, pelo sangue, pela cultura, pelo pela pressão permanente para reverter os
colonialismo e pela semelhança de desafios. direitos dos trabalhadores; pela acelerada
A Ásia é o novo centro dinâmico da degradação ambiental; pela insegurança
economia mundial, fonte de lucros energética e pelas migrações. O cenário
inesgotáveis para as megaempresas político mundial se caracteriza pela
ocidentais e destino de uma das maiores concentração de poder político, militar,
migrações de capital e tecnologia avançada econômico, tecnológico e ideológico nos
da História. A Europa e a América do Norte países altamente desenvolvidos; pelo
são para o Brasil, como para qualquer ex- arbítrio e pela violência das Grandes
colônia e para eventuais pretendentes a Potências; pela ameaça real, e sua utilização
colônia, as áreas tradicionais de vinculação oportunista, do terrorismo; pelo desrespeito
política, econômica e cultural. Porém, por aos princípios de não-intervenção e de
mais importantes que sejam, como aliás autodeterminação de parte das Grandes
são, os vínculos e os interesses atuais e Potências políticas, econômicas e militares;
potenciais brasileiros com todas essas áreas pelo individualismo dos Estados ricos e a
e por melhores que sejam com os Estados insuficiente e cadente cooperação
que as integram as nossas relações, a internacional; pela emergência da China,
política externa não poderá ser eficaz se como potência econômica e política,
não estiver ancorada na política brasileira regional e mundial.

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Os Estados no centro do sistema de 400 milhões de habitantes para


mundial, cada vez mais ricos e poderosos, defender seus interesses inalienáveis de
pois a diferença de renda entre Estados aceleração do desenvolvimento econômico,
ricos e pobres passou de 1 para 4 em 1914 de preservação de autonomia política e de
para 1 para 7 em 2000, porém vinculados identidade cultural, ou de serem absorvidos
às economias periféricas quanto a recursos como simples periferias de outros grandes
estratégicos e mercados e com uma blocos, sem direito à participação efetiva
população cadente, procuram, por meio de na condução dos destinos econômicos e
negociações internacionais, definir normas políticos desses blocos, os quais são
e regimes que permitam preservar e até definidos pelos países que se encontram
ampliar sua situação privilegiada no centro em seu centro. A questão fundamental é
do sistema militar, político, econômico e que as características, a evolução histórica
tecnológico que é o resultado, por um lado, e os interesses dos Estados poderosos que
da II Guerra Mundial e dos regimes se encontram no centro dos esquemas de
coloniais e, por outro lado, do êxito de seus integração são distintos daqueles dos
esforços nacionais, em especial na esfera países subdesenvolvidos que a eles se
científica e tecnológica. Nesse processo, sua agregam através de tratados de livre
capacidade de articular ideologias e de comércio, ou que nome tenham, os quais
apresentar “soluções” como benéficas a toda ficam assim sujeitos às conseqüências das
a “comunidade internacional” é decisões estratégicas dos países centrais
extraordinária e importantíssima pois é a que podem ou não atender às suas
base de sua estratégia de arregimentação necessidades históricas.
de Estados e de elites periféricas cooptadas Os desafios sul-americanos diante
para alcançar seus objetivos nacionais, desse dilema, que é decisivo, são enormes:
vestidos com a capa de objetivos da superar os obstáculos que decorrem das
humanidade. grandes assimetrias que existem entre os
Neste cenário violento e instável de países da região, sejam elas de natureza
grandes blocos, multipolar, há uma territorial, demográfica, de recursos
tendência a que países pequenos e até naturais, de energia, de níveis de
médios venham a ser absorvidos, mais ou desenvolvimento político, cultural, agrícola,
menos formalmente, pelos grandes Estados industrial e de serviços; enfrentar com
e economias aos quais ou se encontram persistência as enormes disparidades
tradicionalmente vinculados por laços de sociais que são semelhantes em todos esses
origem colonial ou estão em sua esfera de países; realizar o extraordinário potencial
influência histórica, como no caso da econômico da região; dissolver os
América Central; ou tenham feito parte de ressentimentos e as desconfianças
seu território, como no caso dos países que históricas que dificultam sua integração.
formam a Comunidade de Estados As assimetrias territoriais são
Independentes - CEI; ou se vinculam por extraordinárias. Na América do Sul
laços étnicos e culturais, como no caso da convivem países como o Brasil, com 8,5
diáspora chinesa na Ásia. milhões de quilômetros quadrados; como
Os países médios que constituem a a Argentina, com seus 3,7 milhões de
América do Sul se encontram diante do quilômetros quadrados e em seguida outros
dilema ou de se unirem e assim formarem dez países, cada um com território inferior
um grande bloco de 17 milhões de Km2 e a 1,2 milhão de quilômetros quadrados.

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Três dos países da região se encontram região em direção aos Estados Unidos e à
voltados exclusivamente para o Pacífico, três Europa Ocidental. Há um milhão de
se debruçam sobre o Oceano Atlântico, uruguaios vivendo fora do Uruguai
quatro são caribenhos e dois são enquanto três milhões se encontram no
mediterrâneos. O Brasil tem 15.735 km de país. Há 400 mil equatorianos na Espanha
fronteiras com nove Estados vizinhos, e 4 milhões de brasileiros no exterior. Ao
enquanto a Argentina, a Bolívia e o Peru mesmo tempo, há grandes espaços
têm fronteiras com cinco vizinhos. Devido despovoados na América do Sul, onde a
a essas circunstâncias geográficas, os densidade demográfica é inferior a 1
pontos de vista geopolíticos de cada país habitante por quilômetro quadrado,
são inicialmente distintos, o que se agrava enquanto nas megalópoles a densidade
pelo fato de até recentemente - e mesmo populacional atinge mais de 10.000
até hoje - terem estado separados os países habitantes por quilômetro quadrado. A
da região pela Cordilheira, pela floresta, América do Sul exibe índices de
pelas distâncias e pelos imensos vazios concentração de renda e de riqueza, de
demográficos. pobreza e de indigência, de opulência e
O Brasil tem 190 milhões de luxo, contrastes espantosos entre
habitantes, que correspondem a cerca de riquíssimas mansões e palafitas miseráveis,
50% da população da América do Sul, entre excelentes hospitais privados e
enquanto o segundo maior país em hospitais públicos decadentes, entre
população, que é a Colômbia, tem 46 escolas de Primeiro Mundo e pardieiros
milhões de habitantes e o terceiro, a escolares. Todavia, conta a América do Sul
Argentina, tem 39 milhões. As taxas de com as vantagens da ausência de conflitos
crescimento demográfico variam de 3% no raciais agudos, ainda que ocorra
Paraguai a 0,7 % no Uruguai. A América discriminação racial; com a presença
do Sul viveu nos últimos anos um processo dominante de idiomas de comum origem
acelerado de urbanização, com o ibérica, ainda que em alguns países existam
surgimento de megalópoles que idiomas indígenas que conseguiram
concentram grandes parcelas da população sobreviver; com a ausência de conflitos
total de cada país, e que exibem periferias religiosos e predominância católica ao lado
paupérrimas e violentas. Há significativas da rápida expansão das igrejas
populações de deslocados internos no Peru, protestantes; com uma população grande,
como conseqüência da luta feroz contra a mas que não é excessiva, como em certos
insurreição do Sendero Luminoso, e de países asiáticos. O desafio que representa
refugiados, como no caso de colombianos a emergência das populações indígenas
na Venezuela e no Equador. No passado, historicamente oprimidas e seus efeitos
as ditaduras e os regimes militares para as relações políticas entre os países
provocaram o exílio de numerosos da América do Sul vão exigir, todavia,
militantes políticos, intelectuais, operários especial atenção e habilidade.
e sindicalistas, com grave prejuízo para o A América do Sul é uma região
desenvolvimento político dos países mais extremamente rica em recursos naturais,
afetados. Ademais, durante algumas que se encontram distribuídos de forma
décadas o reduzido ritmo de crescimento muito desigual entre os diversos países.
econômico provocou movimentos Enquanto o Brasil tem as maiores reservas
migratórios significativos dos países da mundiais de minério de ferro de excelente

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teor, a Argentina não as tem em volume As políticas econômicas


suficiente. A Argentina dispõe de terras
aráveis de extraordinária fertilidade, em Os choques do petróleo ( 1973 e 1979),
contraste com o Chile. A Colômbia possui o endividamento excessivo e o súbito
grandes reservas de carvão de boa aumento das dívidas externas acarretaram
qualidade e o Brasil as tem poucas e crises e estagnação econômica que
pobres. A Venezuela tem a sexta maior contribuíram para o fim dos regimes
reserva de petróleo e a nona maior reserva militares na América do Sul, em meados
de gás do mundo enquanto que, em todos da década de 80. A vitória do neoliberalismo
os países do Cone Sul, inclusive no Brasil, monetarista nos Estados Unidos e Reino
são elas insuficientes para sustentar o Unido, a partir de Ronald Reagan (1981-
ritmo de desenvolvimento, talvez de 7% a/ 1989) e Margaret Thatcher (1979-1990), e
a, necessário à absorção produtiva dos a renegociação da dívida externa (Plano
estoques históricos de mão-de-obra Brady) forçaram aos países
desempregada e subempregada e dos que subdesenvolvidos a adoção de políticas de
chegam anualmente ao mercado. A Bolívia abertura comercial e financeira,
detém jazidas de gás que correspondem a desregulamentação e privatização, com
duas vezes as brasileiras, mas tem sérias base nos princípios do chamado Consenso
dificuldades para ampliar sua exploração. de Washington. Essas políticas levaram a
O Chile explora as maiores reservas resultados desastrosos em países que nelas
conhecidas de minério de cobre do mundo, se envolveram mais a fundo, como foram o
responsável por 40 % de suas exportações. caso do Equador, da Bolívia e da Argentina,
O Paraguai ostenta um dos maiores e deixaram seqüelas importantes em países
potenciais hidrelétricos do mundo, em como o Brasil, o Uruguai e a Venezuela.
especial quando calculado em termos per Tais políticas neoliberais agravaram a
capita, mas ainda não teve êxito em utilizá- já elevada concentração de renda e de
lo para acelerar seu desenvolvimento. O riqueza, ampliaram o desemprego,
Suriname tem a maior reserva de bauxita contribuíram para a violência urbana,
do planeta, ainda pouco explorada. provocaram a fragilização do Estado e dos
Encontra-se na América do Sul a serviços públicos, o que levou por sua vez à
maior floresta tropical do mundo, um tema gradual emergência de importantes
central no debate político sobre o efeito movimentos políticos e sociais que passaram
estufa e suas conseqüências para o clima, a preconizar (explícita ou implicitamente)
e o maior estoque de biodiversidade do a revisão do modelo econômico e social
planeta, o qual é de grande importância neoliberal.
para a renovação da agricultura e para a Os países da América do Sul, em
indústria farmacêutica; uma parcela conseqüência das políticas neoliberais que
importante das reservas de água doce do determinaram a redução negociada e às
planeta, recurso cada vez mais estratégico vezes até unilateral de suas tarifas
e causa já de conflitos em certas regiões aduaneiras, a privatização de suas
do globo, e o maior lençol de águas empresas estatais e a liberalização de seus
subterrâneas, o Aqüífero Guarani, que mercados de capital, aumentaram suas
subjaz os territórios do Brasil, do Paraguai, importações de produtos industriais dos
da Argentina e do Uruguai. países desenvolvidos e o ingresso
descontrolado de capitais estrangeiros.

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Essas políticas levaram à A capacidade de utilizar tradicionais
desindustrialização em maior ou menor instrumentos de promoção do
grau, à maior influência do capital desenvolvimento econômico, que aliás
multinacional e à desnacionalização de tinham sido amplamente usados pelos
importantes setores de suas economias, em países hoje desenvolvidos no início de seu
especial do setor financeiro, com efeitos processo de desenvolvimento (i.e. de seu
econômicos, e inclusive políticos, processo de industrialização), foi
significativos. abandonada pelos países da América do Sul
Essa maior integração, porém de na Rodada Uruguai, quando aceitaram
natureza passiva, dos países sul- normas sobre disciplina do capital
americanos na economia mundial é estrangeiro as quais proíbem políticas tais
radicalmente distinta da integração na como a nacionalização de insumos, o
economia global que ocorre com os países estabelecimento de metas de exportação e
altamente desenvolvidos ou com certos o reinvestimento de parte dos lucros; ou
países emergentes, como a Coréia. Nesses que estabelecem normas sobre propriedade
últimos casos, essa maior integração se intelectual que ampliaram os prazos de
verifica através da internacionalização das patentes e estabelecem patentes sobre
atividades de suas grandes empresas de fármacos, dificultando de fato o
atuação multinacional mas de capital desenvolvimento tecnológico e gerando
nacional, bem como de suas exportações enormes remessas financeiras. Este
de alto conteúdo tecnológico enquanto que, abandono dos instrumentos econômicos
no caso dos países sul-americanos, se tradicionais de uso do Estado, assim como
verifica através da maior participação de a confiança excessiva desses países no livre
megaempresas multinacionais em suas jogo das forças de mercado contribuíram
economias, já que não possuem esses para que viessem a ter seu ritmo de
últimos países (com raras exceções) crescimento reduzido ou estagnado. Por
grandes empresas capazes de se outro lado, a derrocada ideológica do
internacionalizarem, e da expansão de suas Welfare State nos países desenvolvidos fez
exportações de “commodities”. com que os países sul-americanos também
Em decorrência, os países da América contraíssem ou desarticulassem os seus
do Sul retomaram, voluntária ou programas sociais, o que contribuiu para
involuntariamente, sua especialização agravar a concentração de renda e de
histórica na exportação de produtos propriedade e para a pequena expansão de
primários, tradicionais ou novos, com maior seu mercado interno.
grau, por vezes, de elaboração, para Assim, em grande parte se explicam
atender à demanda dos países altamente as baixas taxas de crescimento na América
desenvolvidos e da China. Assim, grosso do Sul, das décadas de 80 e 90, quando
modo, sua agricultura se sofisticou e comparadas às de alguns países da Ásia, e
passou a ser denominada de agribusiness; a eventual derrocada dos governos
sua indústria foi adquirida ou cerrou suas neoliberais na Argentina, no Brasil, no
portas em um processo de Chile, na Bolívia, no Equador e na
desindustrialização/desnacionalização e Venezuela. Nos últimos anos, surgiram na
muitas de suas empresas de serviços, em América do Sul governos que procuram
especial as empresas modernas e aquelas manter as políticas de austeridade fiscal e
do setor financeiro, foram adquiridas por de controle inflacionário enquanto tentam
megaempresas multinacionais. ressuscitar o Estado como agente
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suplementar do desenvolvimento integração de mercados, na elaboração de


econômico e como agente de redução da políticas comuns e no financiamento pelos
desigualdade social, diante das enormes países mais ricos do esforço de redução de
injustiças e das pressões dos segmentos assimetrias entre as economias
historicamente oprimidos em suas participantes.
sociedades. Este conjunto de experiências
inspirou os programas de desenvolvimento
O bloco sul-americano econômico com base na industrialização,
em especial no Brasil durante o Governo
A atual experiência de integração sul- Juscelino Kubitschek, as propostas da
americana tem distintas origens, CEPAL de constituição de um mercado
motivações e paralelos históricos. Em comum latino-americano, as propostas
primeiro lugar, o trauma da desintegração argentinas de criação de uma área de livre
dos Vice-Reinados do Império espanhol a comércio que reunificasse economicamente
partir de 1810, a desintegração posterior as partes do antigo Vice-Reinado do Prata,
da Grã Colômbia em 1830, e a sobrevivência e estimulou à constituição em 1960 da
da utopia de unidade latino-americana, Associação Latino-Americana de Livre
preconizada pelo Libertador Simon Bolívar. Comércio – ALALC.
Segundo, a tentativa do notável economista Naturalmente, ao processo de
argentino, Raul Prebisch, de explicar as integração da América do Sul e do Cone
razões do desenvolvimento na América do Sul subjazia a latente rivalidade entre
Norte em confronto com o atraso sul- Brasil e Argentina por influência política
americano levou à formulação da teoria na região do Rio da Prata, os resquícios de
estruturalista pela Comissão Econômica um passado de lutas e a lembrança da
para a América Latina - CEPAL. Prebisch inicial predominância industrial argentina.
encontrou essas razões nas características E outros ressentimentos decorrentes de
das economias primário-exportadoras sul- conflitos e quase-conflitos passados, como
americanas e na natureza de seu processo entre Chile e Argentina; entre Bolívia,
de incorporação do progresso tecnológico; Chile e Peru; entre Peru e Equador; entre
na reduzida dimensão e no isolamento de Colômbia e Venezuela, entre a Bolívia e o
cada mercado nacional; na deterioração Paraguai, entre Brasil e Paraguai e entre
secular dos termos de intercâmbio; na Brasil e Bolívia.
importância da industrialização como A Associação Latino Americana de
estratégia para a transformação econômica. Livre Comércio, criada em 1960, e cuja
Em terceiro lugar, a percepção de êxito da meta era eliminar todas as barreiras ao
experiência de planejamento econômico e comércio entre os Estados membros até
de industrialização acelerada vivida pela 1980, encontrou obstáculos causados pelas
União Soviética, da experiência keynesiana políticas nacionais de substituição de
e da planificação de guerra norte- importações e de industrialização e, mais
americana e, finalmente, as políticas de tarde, pelas políticas de controle de
economia mista e de planejamento importações para enfrentar as súbitas
indicativo dos governos socialistas europeus crises do petróleo que acarretaram inéditos
após a II Guerra Mundial. Quarto, na déficits comerciais que atingiram os países
experiência de construção da Comunidade importadores de energia, em especial o
Econômica Européia, fundada na Brasil.

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A partir de 1965, o Convênio de desenvolvimento, redução das


Créditos Recíprocos (CCR) entre os países desigualdades sociais e geração de
da ALALC, e mais a República Dominicana, empregos, na melhor tradição das Escolas
passa a permitir o comércio sem o uso de Manchester e de Chicago.
imediato de divisas fortes, através de um Após a conclusão do NAFTA em 1994,
sistema quadrimestral de compensação em que o México na prática abandonou a
multilateral de créditos que funcionou com ALADI, os Estados Unidos, no contexto da
grande êxito sem que ocorresse nenhum Cúpula das Américas, lançaram um projeto
caso de “default” até a década de 1980, ambicioso de negociação de uma Área de
quando foi progressivamente desativado Livre Comércio das Américas (ALCA). Esse
pelos novos tecnocratas que vieram a projeto, na realidade, mais do que uma área
ocupar os Bancos Centrais dos países da de livre comércio de bens, criaria um
região, na esteira do período de governos território econômico único nas Américas,
neoliberais. com a livre movimentação de bens, serviços
Em 1969, os países andinos e capital (mas não de mão-de-obra ou
celebraram o Pacto Andino (mais tarde tecnologia) e estabeleceria regras
CAN) como um projeto mais audacioso de uniformes ainda mais restritivas à execução
integração e de planejamento do de políticas nacionais ou regionais de
desenvolvimento, prevendo inclusive a desenvolvimento econômico, já que as
alocação espacial de indústrias entre os propostas originais eram OMC-Plus e
Estados membros e a elaboração de NAFTA-plus (e parecem continuar a ser tais
políticas comuns, inclusive no campo do como revelam os textos dos tratados
investimento estrangeiro. bilaterais de livre comércio, celebrados
Em 1980, a estagnação das pelos Estados Unidos).
negociações comerciais levou a substituição Apesar das declarações diplomáticas
da ALALC pela Associação Latino feitas na ocasião, e reiteradas
Americana de Integração (ALADI). O posteriormente, de que a ALCA não afetaria
Tratado de Montevidéu (80) incorporou o os projetos de integração regional como a
“patrimônio” de reduções tarifárias Comunidade Andina e o Mercosul, estava
bilaterais, permitiu a negociação de acordos claro que a eventual concretização da ALCA
bilaterais de preferências, com a eliminaria de fato a possibilidade de
perspectiva de sua eventual convergência, formação de um bloco econômico e político
e tornou possível a concessão de sul-americano.
preferências bilaterais ao abrigo da Após o início das negociações da
“enabling clause” do então GATT. ALCA, e diante da extrema desigualdade
Em 1985, Brasil e Argentina decidiram de forças políticas e econômicas entre os
lançar um processo de integração bilateral países participantes, a negociação se
gradual, com o objetivo central de promover interrompeu em 2004, após os Estados
o desenvolvimento econômico, a que se Unidos terem retirado os temas agrícolas e
juntaram, em 1991, Paraguai e Uruguai, de defesa comercial (antidumping e
formando-se assim o Mercosul. Este último subsídios) levando-os para o âmbito da OMC
surgiu como um projeto enquadrado na sob o pretexto de ser necessária uma
concepção do Consenso de Washington do negociação mais abrangente, inclusive com
livre comércio como instrumento único e a União Européia. Em conseqüência e para
suficiente para a promoção do equilibrar as negociações, o Mercosul

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considerou que os temas de investimento, que se pretenderia semelhante à União


compras governamentais e serviços Africana, na África; à União Européia na
deveriam também passar para o âmbito da Europa; à ASEAN, na Ásia; e ao MCCA, na
Rodada de Doha na OMC e propôs aos América Central. As negociações para
Estados Unidos a negociação de um acordo concretizar a UNASUL têm encontrado três
do tipo 4+1, no campo do comércio de bens, distintas resistências: primeiro, a de países
proposta até hoje sem resposta, ou melhor, que celebraram acordos de livre comércio
cuja resposta prática tem sido a firme com os Estados Unidos; segundo, a de
atividade norte-americana de negociação países que dão prioridade ao fortalecimento
de acordos bilaterais de livre comércio (na do Mercosul e que acreditam que o Brasil
realidade com escopos muito mais amplos) estaria “trocando” o Mercosul pela UNASUL;
com os países da América Central, a terceiro, a de países que consideram ser
Colômbia, o Peru e (quase) com o Equador. necessário uma organização mais
Paralelamente, o Mercosul audaciosa, com base na solidariedade e na
empreendeu a negociação e celebrou cooperação e não naquilo que consideram
acordos de livre comércio com o Chile ser o individualismo “mercantilista” das
(1995), com a Bolívia (1996), com a preferências comerciais, dos projetos de
Venezuela, Equador e Colômbia (2004), e investimento e do livre comércio.
com o Peru (2005), que se referem
exclusivamente ao comércio de bens e não A Argentina e a estratégia de integração
incluem o comércio de serviços, compras brasileira
governamentais, regras sobre
investimentos, propriedade intelectual, etc. Não há a menor possibilidade de
Em 2002, o Congresso dos Estados construção de um espaço econômico e
Unidos tinha aprovado o ATPDEA (Andean político sul-americano (economicista ou
Trade Promotion and Drug Eradication Act) solidarista, não importa) sem um amplo
pelo qual concederiam unilateralmente programa de construção e de integração da
preferências comerciais, sem reciprocidade infra-estrutura de transportes, de energia
de parte dos beneficiários, para listas de e de comunicações dos países da América
produtos de países andinos em troca da do Sul. O comércio entre os seis países
execução de programas de erradicação das fundadores da Comunidade Econômica
plantações de coca. O resultado da Européia correspondia em 1958 a cerca de
aplicação durante cinco anos dessa lei foi, 40% do seu comércio total e hoje supera
de um lado, expandir as exportações de tais 80%. Em contraste, o comércio entre os
produtos desses países para os Estados países da América do Sul correspondia em
Unidos e, de outro, ensejar o surgimento 1960, data de começo da ALALC, a cerca
nesses países de grupos de interesses de 10% e ainda em 2006 não superou 17%
empresariais locais favoráveis à negociação do total do comércio exterior da região. Esse
de acordos de livre comércio com os Estados reduzido comércio tinha sua causa na
Unidos quando se encerrasse o prazo de pequena diversificação industrial das
vigência daquele Ato. economias sul-americanas (hoje também
Posteriormente, foi lançada em 2004, um obstáculo, pois quanto mais
em Cuzco, o projeto de formação de uma diversificadas as economias maior o seu
Comunidade Sul-Americana de Nações, comércio recíproco), mas também na
hoje denominada UNASUL, organização pequena densidade dos sistemas de

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transportes naquela época e até hoje. Há internas. É parte essencial da estratégia


um interesse vital em conectar os sistemas brasileira de integração fornecer crédito
de transportes nacionais e as duas costas aos países vizinhos para a execução de
do subcontinente, superando os obstáculos obras de infra-estrutura e, no futuro, vir a
da Floresta e da Cordilheira, como se está fornecer créditos a empresas desses países
fazendo ao norte entre Brasil e Peru, e se em condições normais semelhantes às que
procurará fazer ao sul, entre Brasil, se exigem de empresas brasileiras, tendo
Argentina e Chile. A Iniciativa para a em vista o interesse vital brasileiro no
Integração da Regional Sul-Americana crescimento e no desenvolvimento dos
(IIRSA), em 2000, foi um passo de grande países vizinhos até mesmo por razões de
importância neste esforço de interesse próprio, devido à grande
planejamento, que necessita para se importância de seus mercados para as
concretizar da alavanca regional do exportações brasileiras e, em conseqüência,
financiamento. para o nível de atividade econômica geral e
Uma das maiores dificuldades dos de suas empresas.
países da América do Sul é o acesso a Além da integração da infra-estrutura
crédito para investimentos em infra- física em termos de rodovias, pontes,
estrutura devido a limites ao endividamento ferrovias e de energia é essencial a
externo e à falta de acesso a instrumentos integração das comunicações aéreas, pela
de garantia. Este acesso ao mercado sua importância para a economia e a
internacional de capitais é tanto mais política, assim como da mídia em especial
importante quanto maior for a dificuldade a televisão, essencial à formação do
desses países em elevar sua poupança imaginário sul-americano, através do
interna, devido à prioridade concedida ao conhecimento da vida política, econômica
serviço da dívida interna e externa. O Brasil e social dos países da região, hoje
tem contribuído para o fortalecimento da desconhecida do grande público e,
Cooperação Andina de Fomento – CAF, portanto, fonte de toda sorte de
entidade financeira classificada como AA preconceitos e manipulações que
no mercado internacional e voltada para envenenam a opinião pública e afetam os
investimentos em infra-estrutura, e tem discursos, as atividades e as decisões
participado, de forma positiva e prudente, políticas. A TV Brasil - Canal Integración e
do processo de construção de um Banco a TELESUR são experiências não-
do Sul que se deseja eficiente. O Brasil é hegemônicas de integração de
um dos poucos, senão o único país da comunicações, assim como a iniciativa
região, que dispõe de um forte banco de brasileira de procurar estabelecer um
desenvolvimento, cujos ativos são de US$ padrão regional de TV Digital, com a
87 bilhões, maiores que os do Banco participação dos Estados do Mercosul,
Interamericano de Desenvolvimento - BID inclusive no processo industrial.
( US 66 bilhões), que pode emprestar A questão da segurança energética é
recursos para a execução de obras de infra- central nos dias de hoje e no futuro
estrutura em condições competitivas com previsível. A integração energética e a
as do mercado internacional e sem autonomia regional em energia para
condicionar tais empréstimos a garantir a segurança de abastecimento
“compromissos” de política externa ou à energético é prioridade absoluta da política
execução de “reformas” econômicas externa brasileira na América do Sul. Não

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O Mundo Multipolar e a Integração Sul-Americana
há possibilidade de crescer a 7% a/a na A redução das assimetrias é o
média durante um período longo sem um segundo elemento essencial da estratégia
suprimento suficiente, seguro e crescente brasileira de integração. Em um processo
de energia. Este suprimento depende de de integração em que as assimetrias entre
investimentos de prazo mais ou menos as partes são significativas tornam-se
longo de maturação, tais como a prospecção indispensáveis programas específicos e
de jazidas de petróleo, gás e urânio, a ambiciosos para promover sua redução. É
construção de barragens, a construção de óbvio que não se trata aqui das assimetrias
usinas hidro e termoelétricas, assim como de território e de população mas sim
nucleares. A América do Sul, como região, daquelas assimetrias de natureza
tem um excedente global de energia, porém econômica e social. É indispensável a
com grandes superávites atuais e existência de um processo de transferência
potenciais em certos países e com severos de renda sob a forma de investimentos
déficits em outros. No primeiro caso, se entre os Estados participantes do esquema
encontram a Venezuela, o Equador e a de integração como ocorreu e ocorre ainda
Bolívia para o gás e o petróleo. No caso de hoje na União Européia. Esse processo é
energia hidrelétrica, há excedentes ainda embrionário no Mercosul, sendo o
extraordinários no Brasil, no Paraguai e na Fundo para Convergência Estrutural e o
Venezuela. De outro lado, se encontram Fortalecimento Institucional do Mercosul -
países com déficit estrutural de energia FOCEM, apenas um modesto início.
como o Chile e o Uruguai e casos A generosidade dos países maiores e
intermediários como são o Peru, a Colômbia mais desenvolvidos é sempre mencionada
e a Argentina. Assim, a integração pelo Presidente Lula como um terceiro
energética da região permitirá reduzir as elemento essencial para o êxito do processo
importações extra-regionais e fortalecer a de integração do Mercosul e da América
economia da América do Sul. No esforço do Sul. Esta generosidade deve se traduzir
de fortalecer e de integrar o sistema pelo tratamento diferencial, sem exigência
energético da região, o Brasil tem de reciprocidade, em relação a todos os
financiado a construção de gasodutos na países da América do Sul que estejam
Argentina e tem se empenhado na engajados no processo de integração
concretização do projeto do Grande regional, nas áreas do comércio de bens,
Gasoduto do Sul que deverá vincular os de serviços, de compras governamentais,
maiores centros produtores de energia (a de propriedade intelectual etc. Isto é, o
Venezuela e a Bolívia) aos maiores Brasil deve estar disposto a conceder
mercados consumidores (o Brasil, a tratamento mais vantajoso sem
Argentina e o Chile). O Brasil está disposto reciprocidade a todos os seus vizinhos, em
a compartilhar a tecnologia que especial àqueles de menor desenvolvimento
desenvolveu na área dos biocombustíveis, relativo, aos países mediterrâneos e aos
acreditando que a crise energética e países de menor PIB per capita. O
ambiental somente poderá ser enfrentada Brasil, apesar de ser o maior país da região,
com eficiência a partir de uma modificação não acredita ser possível desenvolver-se
gradual da matriz energética mundial, de isoladamente sem que toda a região se
uma redução do consumo e do desperdício desenvolva econômica e socialmente e se
nos países altamente desenvolvidos, assegure razoável grau de estabilidade
principais responsáveis pela emissão de política e segurança. Assim, a solidariedade
gases de efeito estufa. nos esforços de desenvolvimento e de
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Samuel Pinheiro Guimarães
integração é uma idéia central na estratégia recuperação e fortalecimento industrial de
brasileira na América do Sul, assim como seus vizinhos nos levou à negociação do
a idéia de que este processo é um processo Mecanismo de Adaptação Competitiva com
entre parceiros iguais e soberanos, sem a Argentina, aos esforços de
hegemonias nem lideranças. estabelecimento de cadeias produtivas
A integração econômica da América do regionais e à execução do Programa de
Sul tem passado por um processo acelerado Substituição Competitiva de Importações,
de expansão, impulsionado pela redução cujo objetivo é tentar contribuir para a
das tarifas propiciada pelos acordos redução dos extremos e crônicos déficits
comerciais preferenciais. O comércio de comerciais bilaterais, quase todos favoráveis
bens intra-América do Sul que era de 10 ao Brasil. No campo externo, a estratégia
bilhões de dólares em 1980 passou para brasileira visa a ampliar os mercados para
68 bilhões em 2005. O comércio de as exportações do Mercosul através da
serviços, que era praticamente inexistente negociação de acordos de livre comércio ou
na década de 1960, também se expandiu, de preferências comerciais com países
ainda que em menor escala. Os exemplos desenvolvidos, como no caso da União
mais relevantes de expansão poderiam ser Européia; e com países em
dados pelo setor financeiro, com o desenvolvimento tais como a Índia e a
estabelecimento de filiais de bancos, pelo África do Sul, em busca da abertura de
setor dos transportes aéreos e mesmo mercados e visa a prestigiar e fortalecer o
terrestres, e pelo turismo intra-regional. Os processo de negociação em conjunto, que
investimentos de empresas da região em não só favorece os parceiros maiores, mas
terceiros países da própria região se também os parceiros menores do Mercosul,
tornaram expressivos, como demonstra a na medida em que obtêm eles condições
expansão das empresas chilenas e de acesso que possivelmente não
brasileiras, em especial na Argentina. alcançariam caso negociassem
Finalmente, houve considerável expansão isoladamente.
das populações de imigrantes intra- Em um sistema mundial cujo centro
regionais. Todos esses fatores contribuem acumula cada vez mais poder econômico,
para a formação de um mercado único sul- político, militar, tecnológico e ideológico;
americano, já que, implementados os em que cada vez mais aumenta o hiato entre
acordos comerciais bilaterais entre países os países desenvolvidos e subdesenvolvidos;
da região, cerca de 95% do comércio intra- em que o risco ambiental e energético se
regional será livre de tarifas, em 2019. A agrava; e em que este centro procura tecer
reativação do CCR e o estabelecimento de uma rede de acordos e de normas
uma moeda comum para transações entre internacionais que assegurem o gozo dos
Brasil e Argentina muito contribuirão para privilégios que os países centrais
a expansão do comércio bilateral e regional. adquiriram no processo histórico e em que
A estratégia brasileira no campo dessas negociações participam grandes
comercial tem sido procurar consolidar o blocos de países, a atuação individual,
Mercosul e promover a formação de uma isolada, nessas negociações não é
área de livre comércio na América do Sul, vantajosa, nem mesmo para um país com
levando em devida conta as assimetrias as dimensões de território, população e PIB
entre os países da região. A compreensão que tem o Brasil. Assim, para o Brasil é de
brasileira com as necessidades de indispensável importância poder contar

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O Mundo Multipolar e a Integração Sul-Americana

com os Estados vizinhos da América do Sul No campo da política, os mecanismos


nas complexas negociações internacionais de integração devem propiciar e estimular
de que participa. Mas talvez ainda seja de a cooperação entre os Estados sul-
maior importância para os Estados vizinhos americanos nos foros, nas disputas e nas
a articulação de alianças entre si e com o negociações internacionais, encorajar a
Brasil para atuar com maior eficiência na solução pacífica de controvérsias, sem
defesa de seus interesses nessas interferência de potências extra-regionais,
negociações. o respeito absoluto e estrito aos princípios
Apesar das assimetrias de toda ordem de não-intervenção e de autodeterminação,
que caracterizam os países da região, somos i.e. não deve nenhum Estado e muito
todos subdesenvolvidos e as características menos o Brasil imiscuir-se nos processos
centrais do subdesenvolvimento são as domésticos dos países vizinhos nem
disparidades sociais, as vulnerabilidades procurar exportar modelos políticos por
externas e o potencial não explorado de mais que os apreciemos para uso interno.
nossas sociedades. No caso das O Brasil tem, como princípio, manter-se
desigualdades sociais, a América do Sul se sempre imparcial diante de disputas que
caracteriza como uma das regiões do surgem periodicamente entre países
mundo onde há a maior concentração de vizinhos, bastando lembrar a ressurreição
renda e de riqueza e onde há ativos da questão da mediterraneidade entre
enormes aplicados no exterior, resultado Bolívia, Chile e Peru; da fumigação na
de “fugas” históricas de capital. Por outro fronteira entre o Equador e Colômbia; das
lado, o Brasil tem procurado estabelecer divergências ocasionais entre Colômbia e
programas de combate à fome e à pobreza, Venezuela; da questão das papeleiras entre
e de natureza social em geral, que podem Argentina e Uruguai. E o Brasil tem
ser objeto de útil intercâmbio de procurado tratar com generosidade e
experiências. Uma das características da lucidez política, e não com o rigor do
região é o crescente número de imigrantes economicismo míope, apesar das
( legais e ilegais) de refugiados e de resistências internas e dos preconceitos de
deslocados cuja situação necessita ser setores conservadores da sociedade
regularizada de forma solidária e brasileira, as reivindicações econômicas,
humanitária, a exemplo do que têm feito a em relação ao Brasil, que fazem por vezes
Argentina e a Venezuela. O Brasil tem Bolívia, Paraguai e Uruguai. O Parlamento
como prioridade a cooperação nas áreas de do Mercosul será o foro para o
fronteira, cada vez mais vivas, a promoção conhecimento mais íntimo dos políticos e
de eliminação de vistos e de exigências dos estadistas dos países da América do
burocráticas que dificultam a circulação de Sul, contribuindo para o indispensável
mão-de-obra e a negociação da concessão ambiente político a um processo de
de direitos políticos aos cidadãos sul- integração.
americanos em todos os países da região, No processo de integração do Mercosul
a começar pelo Brasil. A decisão brasileira e da América do Sul e nas relações políticas
de tornar obrigatório o espanhol no ensino com o mundo multipolar violento e
médio no Brasil contribuirá para o processo “absorvedor” em que vivemos, Brasil e
de integração social e cultural da América Argentina se encontram unidos pelos
do Sul. objetivos comuns de transformar o sistema
internacional no sentido de que as normas

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que regem as relações entre os Estados e políticas e econômicas tanto do Brasil


as economias sejam de tal natureza que os quanto da Argentina . Foram nossos dois
países em desenvolvimento como o Brasil países aqueles que, na região, lograram
e a Argentina preservem o espaço alcançar o mais elevado nível de
necessário para a elaboração e a execução desenvolvimento industrial, agrícola, de
de políticas de desenvolvimento que serviços, científico e tecnológico; aqueles
permitam superar as desigualdades, vencer que, considerados como um conjunto,
as vulnerabilidades e realizar o potencial detêm as terras mais férteis e o subsolo
de suas sociedades. mais rico da região; aqueles cuja população
No mundo arbitrário e violento em que permite o desenvolvimento de mercados
vivem o Brasil, e a América do Sul, é internos significativos, base necessária
indispensável ter forças armadas para a atuação firme no mercado externo
proporcionais a seu território e à sua sempre sujeito às medidas arbitrárias do
população. A estratégia brasileira de defesa protecionismo agrícola e industrial; somos
vê o continente sul-americano de forma aqueles países que, por seu grande
integrada e considera a cooperação militar potencial e interesses comuns, são os mais
entre as Forças Armadas, inclusive em capazes de resistir à voragem absorvedora
termos de indústria bélica, como um fator dos interesses comerciais, econômicos,
de estabilidade e de equilíbrio regional financeiros e políticos dos países mais
através da construção de confiança. A desenvolvidos, sempre mais preocupados
inexistência de bases estrangeiras no em concentrar poder e preservar privilégios
continente sul-americano, à exceção de econômicos e políticos, ainda que pela
Manta, é um importante fator político e força, do que em contribuir para a
militar para o desenvolvimento e a construção de uma ordem econômica,
autonomia regional. Por outro lado, o Brasil ambiental e política necessária ao
rejeita qualquer intervenção política, e desenvolvimento da comunidade
ainda mais militar, de origem extra-regional internacional como um todo e à
nos assuntos da América do Sul. Os preservação do planeta. A coordenação
programas de intercâmbio militar exercem política que ocorre entre a Argentina e o
importante papel no processo de Brasil na defesa de seus interesses nos
construção da confiança, assim como a foros, nas negociações, nos conflitos e nas
participação de efetivos militares de países crises internacionais atingiu extraordinária
da região em operações de paz das Nações intensidade e eficiência e foi isto que nos
Unidas, em especial na Minustah. permitiu agir no âmbito do Conselho de
Finalmente, como mencionou o Segurança, das negociações ambientais, das
Ministro Celso Amorim, é necessário negociações hemisféricas desiguais e das
promover a integração e o desenvolvimento negociações multilaterais econômicas da
econômico e social de nossos países antes Rodada Doha, através do G-20, de modo a
que o crime organizado o faça em suas impedir o desequilíbrio de seus resultados
diversas facetas: o narcotráfico, o e a garantir o espaço necessário às nossas
contrabando, o tráfico de armas. políticas de desenvolvimento econômico.
A integração entre o Brasil e a Falta muito a fazer, em especial nos
Argentina e seu papel decisivo na América campos avançados do desenvolvimento
do Sul deve ser o objetivo mais certo, mais científico e tecnológico que plasmarão a
constante, mais vigoroso das estratégias sociedade do futuro, tais como as atividades

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espaciais, aeronáuticas, nucleares, de defesa, de informática e de biotecnologia. É


necessário e indispensável que todos os organismos da estrutura burocrática dos Estados
brasileiro e argentino, ainda muitas vezes envolvidos em rivalidades, ressentimentos e
desconfianças históricas, compreendam o desafio que a Nação argentina e a Nação
brasileira enfrentam neste início do Século XXI, compreendam a visão estratégica dos
presidentes Nestor Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva e contribuam, assim, para que
se realize a faceta gloriosa da profecia de Juan Domingo Perón: “O Século XXI nos
encontrará unidos ou dominados”.

T & M

Texto recebido em setembro de 2008.


Aprovado para publicação em outubro de 2008.

SOBRE O AUTOR
É Embaixador do Itamaraty; foi Secretário-Geral das Relações Exteriores do Ministério
das Relações Exteriores, entre 2003 e 2009; ex-chefe do Departamento Econômico do
Itamaraty e ex-diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (IPRI) do
Itamaraty. Autor e/ou organizador de vários livros, dentre os quais cabe destacar:
Quinhentos Anos de Periferia (Editora Universidade/UFRGS/Contraponto, 2000) e ALCA
e Mercosul: riscos e oportunidades para o Brasil (IPRI/FUNAG, 1999).

Universidade Estadual do Oeste do Paraná


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