You are on page 1of 40
Parte 6. O bode expiatério Tendo examinado a morte do rei do bosque coma a personificagdo da vegetacao, Frazer passa a pesquisar outro aspecto de sua morte, isto é, sua morte como bode expiatério. Fle constata uma variedade de préticas pelas quais pessoas procuram transferir males Je si préprias para um objeto, uma planta, um animal, ou mesmo para outro ser hhumano, que era entio morlo ou expulso da sociedade. 4 transferéncia do mal se faz peta magia contagiosa, é a expulséo do mal, pela magia imitativa, Na Roma antiga, a ceriménia anual da expulsao dos males era ao mesmo tempo um ‘ito de fertilidade, jé que os males que afetam as plantagdes estavam entre os males expulsos. Essa dupla finalidade permite a Frazer comparar @ morte do bode expiatério com as vitimas humanas saerificadas em favor da continuacde da forca dos deuses astecas da fertitidade. E com isso ele volta a um tema anterior, a eliminagiio de um ser humano que personifica um deus. Mas 0 objetive dessa eliminagdo agora nao é apenas beneficiar as plantagées, mas também evitar as mds influéncias. Se aplicarmos isso a morte do rei do bosque, veremos que ele foi morto tanto como nersonificacdo da vegetacao, e nesse caso 0 foi pela imitacdo, representando a sua morte € » reinado de seu sucessor, a morte € 0 renascimento da natureza, como na condigéo de bode expiatério, para que a sua fraqueza e senitidade nao contagiassem a forca reprodutiva da natureza. No ctistianismo medieval, 0 Diabo constituia uma ‘ameaca constante & boa ordem da vide humana, cireunstincia que exigia exorcismos regulates por parte dos homens. Como personificagio de todos Os males, sua aparéncia terrivel visa a provocar a repulsn dos homens e suas feigées animais refletem 0 fato de que os bodes expiatérios tomavam, com freqiléncia, a forma de animais. © Dinbo ¢ acélitos MS Douce 134, fol, 98R, Bodleian Library, Oxford 165 1. A transferéncia do mal Nas partes anteriores deste trabalho, acompa- mhamos a pritica de matar um deus entre povos na fase agricola da sociedade e procura- mos explicar os motivos que levaram 03 ho- mens a adotar esse costume tio curioso. Um de seus aspectos ainda nfo foi comentado. As desgragas ¢ pecados acumulados de todo 0 Povo sao, por vezes, lancados sobre o deus que morre, 0 qual deverd levé-los consigo para sempre, deixando 0 povo inocente e feliz, A idéia de que podemos transferir nossas culpas € sofrimentos para algum outro ser que os suportara por nds € conhecida do selvagem. Ela nasce de uma confusfio dbvia entre 0 fisico © 0 mental, entre o material ¢ o imaterial. As- sim como € poss(vel passar uma carga de ma- deira, de pedras ou de qualquer outra coisa, de nossas costas para as costas de outra pes- soa, assim também o selvagem imagina ser igualmente possivel transferir 0 peso de sua dores © penas para outra pessoa, que arcar: com © sofrimento em seu lugar. © selvagem age de acordo com essa idéia, ¢ o resultado é um niimero interminvel de recursos pouco amistosos para lancar sobre os ombros de algu- ma outra pessoa © peso que no se esté dis- posto a carregar, Em suma, o principio do softimento indireto ¢ compreendido e pratica- do habitualmente por racas que se situam em um nivel pouco elevado de cultura social ¢ intelectual, Nas péginas que se seguem, ilustra. remos a teoria ¢ a pratica tal como encontra- das entre os selvagens em toda a sua simplici- dade nua, nao disfareada pelos. refinamentos da metafisica © pelas sutilezas da teologi Os recursos de que se utiliza 0 selvagem esperto ¢ egoista para melhorar sua situacio as expensas do seu vizinho sao miltiplos, ¢ sé poderemos citar alguns. Devemos observar, de inicio, que 6 mal de que o homem quer se livrar nfo precisa ser transferido para uma pessoa: pode ser igualmente transferido para um animal ou uma coisa, embora no dltimo 166 caso esta seja apenas um veiculo para trans- mitir © sofrimento para a primeira pessoa que atocar. No distrito ocidental da ilha de Timor, quando os homens ou as mulheres estio reali- zando viagens prolongadas ¢ cansativas, aba- nam-se com ramos cheios de folhas, que depois langam fora em determinados lugares, onde seus antepassados fizeram a mesma coisa, an- tes deles, Com isso acham que a fadiga que sentem se transmitiré as folhas e ficard para A. onipresenga dos deménios Um homem doente com 9 Diabo, que veie buscar-Ihe alma, © o seu anjo da guarda. Manuscrito medieval, Cod. Gall, 28, fol. SV, Bayerische Staatsbibliothek, Munique. trés, Outros usam pedras no lugar de fothas. Mas ndo é apenas da fadiga corporal que o selvagem acredita poder livrar-se pelo simples expediente de langar fora um galho ou uma pedra. Evidentemente incapaz de distinguir 0 imaterial do material, © abstrato do concreto, ele é assaltado por terrores vagos, sente-se ex- posto a um perigo indefinido no local em que ocorreu qualquer grande crime ou grande des- graca. O local the parece assombrado. As intensas lembrancas que se amontoam na sua mente, que, inclusive, so muitas vezes con- fundidas por ele com duendes ¢ fantasmas, oprimem-lIhe a imaginac&o com phimbeo peso. Seu impulso ¢ fugir do lugar aterrorizador, langar fora © peso que parece agarrar-se a ele como um pesadelo. Isso, em sua maneira sim- ples senséria de reagir, parece-the ser possi- Uma lenda japonesa fala de um carpinteiro dotado de poderes magicas que criow varios instrumentos notaveis para ajudé-lo em suas tarefas, Na ilustragao, © Bishmontem, espirito criado por cle, expulsa um deménio hostil, Rokujuen. The magical carpenter of Japan. 1965, Charles Tuttle Co.. Téquio. ena Loe vel langando alguma coisa no horrivel lugar € fugindo. Nao sera assim 0 contagio da des- graca, 0 horror que Ihe apertava © coracao, separado dele e transferido para a coisa? Nao recolheré ela em si as influéncias maléficas que 0 ameacavam e, com isso, no o deixard em paz para continuar sua viagem em segu- ranga e trangiiilidade? Pensamentos como esses, se € que os tafeamentos ¢ as incertezas de um espirito nas trevas merecem 0 nome de pensamento, parecem explicar o costume, observado por viajantes em muitas terras, de langar gravetos ¢ pedras em lugares onde algu- ma coisa de horrivel aconteceu ou atos maus foram praticados. Quando Sir Francis Young- husband atravessava o grande deserto de Gobi, sua caravana chegou, mum entardecer de junho, a uma longa depressao entre elevagies, 167 conhecida como abrigo de bandidos. Seu guia, com 0 rosto marcado pelo terror, contou-lhe como, pouco tempo antes, nove homens de uma caravana ali haviam sido mortos © os de- mais deixados em estado lastimivel para con tinuar a viagem a pé através do terrivel de- serto, E um cavaleiro acabava de ser visto dirigindo-se aos morros. “Por isso, tivemos de manter uma vigilincia rigotosa e, quando che- gamos ao pé das colinas, paramos e, descarre- Bando os camelos, enrolamo-nos em nossas peles de carneiro © mantivemo-nos vigilantes durante as longas horas da noite. O dia cla- reou finalmente, ¢ ent%o avangamos em silén- cio e atingimos as colinas. Eram estranhas ¢ fantisticas em sua linha caprichosa, e, aqui e ali, um monticulo de pedras marcava 0 ponto em que uma caravana havia sido atacada; a0 assarmos por elas, os homens Ihes lancavam mais uma pedra.” Pode-se acreditar que as pedras afastem um espirito irado e perigoso, que poderia assom- brar o lugar. Mas, se essa teoria parece expli- car bem: certos casos do costume de que nos ‘ocupamos, deixa de explicar outros. Assim, na Siria € comum entre os muculmanos religiosos quando véem pela primeira vez um lugar mui- to sagrado, como Hebron ou o témulo de Moisés, fazer um monticulo de pedras ou acrescentar mais uma pedra a um jé existente Por isso, o viajante cruza, aqui ¢ ali, com toda uuma série desses monticulos ao lado do cami- nho. No norte da Africa, hi o mesmo costu- me. Esses monticulos de pedras so comu- ‘mente erguidos nos locais de onde o peregrino devoto primeiro percebe a silhueta distante do local sagrado; por isso, so mais freqiientes nos pontos elevados. Por exemplo, no Marro- cos, na altura da estrada de Casablanca a Azemur de onde primeiro se vé a cidade bran- ca do santo brithando 8 distincia, hé um enorme monte de pedras na forma de piramide de varios metros de altura, e, além dele, de ambos os lados da estrada, hd intimeras pedras, isoladas ou dispostas como pequenas pirami- des. Todo mugulmano religioso cujos olhos se alegram com a visio abengoada da cidade sa- grada junta a sua pedra aos monticulos jé existentes, ou faz um novo monticulo, Esses 168 ‘A expulsio dos: mates AnAIXO. Apacheta, nos Andes, onde todo viajante joga fora seu cansago, Jangando mais uma pedra. a0 monte ao lado do caminho. Foto: C. N. Wallis, EMaAIxO, “Apedrejamento do Grande Diab antigo costume de jogar pedras num monte ai sobrevive como parte da peregrinagao mugulmana Meca. Num lugar préximo da cidade sagrada, as pedras so langadas contra am ristico parapeito de argamassa, Uma lenda diz que o parapeito simboliza a pessoa que guiou o rei da Etiépia em viagem para destruir Meca no ano do nascimento- de Maomé. Sir Richard Burton, Pilgrimage 10 El-Medinah and Meccah, 1855-6, Bodleian Library, Oxford costumes poderiam ser interpretados como uma forma de purificagao cerimonial, que, entre os poves primitives, é comumente con- cebida mais como uma forma de purgacio fisica do que moral, uma maneira de varrer ou limpar a matéria mérbida com a qual a pessoa poluida estaria infectada Esses costumes parecem indicar a transfor- magio gradual de uma velha ceriménia mégi- ca mum ito religioso, com seus aspectos caracteristicos de oragio e sacrificio. Nao obs- tante, por trés desses acréscimos recentes, como poderiamos consideré-los, parece possi- vel em muitos casos, embora néo em todos, discernir 0 nticleo em torno do qual se forma- ram, a idéia original que tendiam a disfarcar €, com © tempo, a transmudar. Essa idéia é a transferéncia do mal do homem para uma substéncia material que pode ser langada dele como uma roupa velha, Os animais so empregados, com freqiién- cia, como veiculo para a transferéncia ou o desaparecimento do mal. Assim, entre os majhwars, raga dravidica do sul de Mirzapur, se alguém morre de doenga contagiosa, como a célera, o sacerdote da aldeia vai a frente do enterro levando nas mos uma galinha, que solta na direcao de alguma outra aldeia, como um bode expiatério, para carregar para Ii a infeccdo. Ninguém, a nfo ser outro sacerdote muito experiente, ousaria tocar ou comer essa galinha. : Homens por vezes desempenham © papel de bodes expiatérios, atraindo sobre si os males que ameacam outros. Um antigo ritual hindu descreve como as angtistias da sede podem ser transferidas de um homem doente para outro sio. © operador coloca os dois sentados de costas um para o outro, 0 enfermo com 0 resto voltado para o leste ¢ o homem sio com o rosto para o oeste. Em seguida, mexe um caldo numa vasilha colocada sobre a cabeca do pa- ciente e dé 0 caldo ao outro homem para que © beba, Desa forma, ele transfere o sofrimen- to da sede da alma sedenta para a outra, que recebe esse sofrimemto em lugar da outra. Em 1590, uma feiticeira escacesa chamada Agnes Sampson foi condenada por ter curado um certo Robert Kers de uma enfermidade “sobre ele langada por um feiticeiro do oeste, quando estava em Dumfries, enfermidade que ela to- mou sobre si, suportando-a com grandes gru- nhidos © sofrimentos até a manhd, quando ento se ouviu um grande barulho dentro de casa”. O barutho foi feito pela bruxa, em suas tentativas de transferir a doenca, por meio de roupas, dela para um gato ou um cachorro, Infelizmente, a tentativa fracassou em parte. A bruxa errou © animal e atingiu Alexander Douglas de Dalkeith, que morreu em conse- qiiéncia disso, enquanto 0 doente original, Robert Kers, ficava curado. Em Travancore, quando um rajé se apro- xima de seu fim, procura um santo bramane, que consente em assumir os pecados do mor bundo pela soma de dez mil ripias. Assim preparado para imolar-se no altar do dever em um vicirio sacrificio, pelo pecado alheio, o santo é levado ao quarto do raja © abraca 0 moribundo, dizendo-lhe: “O rei, aceito carre- gar todos os seus pecados ¢ enfermidades. Possa Vossa Alteza viver por muito tempo & reinar com felicidade”. Tendo assim, com no- bre devogiio, arcado com os pecadas do sofre- dor, ¢ também com as suas ripias, cle & mandado para fora do pais e munea mais (eri permissao para voltar, Muito semelhante a esse costume € 0 velho costume galés conhecido come “comer 0 pecado”, De acordo com Aubrey, “no condado de Hereford havia um yelho costume de, nos funerais, contratar pes- soas pobres que arcavam com todos os peca- dos do morto, Lembro-me de que um dos que se prestavam a isso vivia numa cabana na estra- da de Rosse. (Era um pobre-diabo, comprido, magro, feio, lamentavel.) Quando 0 corpo do morto era Ievado para fora da casa e colocado no catafalco, um pedaca de pio era entregue a0 comedor de pecados, por cima do cadaver, ¢ também uma tigela de bordo (taca dos me- xericos) cheia de cerveja, que ele devia beber, ¢ seis pence em dinheiro, em troca dos quais ele assumia (ipso facto) todos os pecados do defunto, libertando-o (ou libertando-a) de ter de caminhar depois de morto. . . Esse costume (embora raramente observado em nossos dias) era ainda assim respeitado por certas pessoas, até mesmo na época do mais rigoroso governo 169 presbiteriano; em Dynder, volens nolens, 0 piroco daquela paréquia, parente de uma mu- Ther ali falecida, mandou realizar fielmente essa ceriménia, de acordo com o testamento dela”. Na Europa, 0 receptaculo mais comum para a enfermidade e para todos os tipos de proble- mas é a drvore. Com freqiténcia 0 que sofre do mal prega-Ihe uma cunha, uma cavilha ou um prego, acreditando que, com isso, prega na madeira a doenca ou a dor. Assim, na Boémia um tratamento para a febre ¢ pregar uma cunha numa Arvore a0 mesmo tempo em que so pronunciadas as palavras “Prendo-te aqui para que nunca mais possas sair atraés de mim”. Do ato de prender a desgraga numa érvore ‘ou em qualquer pedago de madeira ao de pre- gi-la numa pedra, num portal ou numa pare- de, vai apenas um passo. Na entrada de Glen Mor, perto de Port Charlotte, em Islay, vé-se uma grande rocha, e afirma-se que quem ali pregar um prego estaré para sempre salvo de dores de dentes. A grande peste que devastou © mundo antigo no reinado de Marco Antoni- no ter-se-ia originado da curiosidade e da am- ico de alguns soldados romanos que, ao sa- quearem a cidade de Seléucia, encontraram um buraco estreito num templo ¢, levianamente, ampliaram a abertura, na esperanca de encon trar um tesouro. O que saiu dali, porém, nao foi nenhum tesouro, mas a peste. Havia sido aprisionada num compartimento secreto pela arte magica dos caldeus, ¢ entdo, libertada de sua prisao pelo ato irrefletido de saqueadores, estendeu-se pelo exterior ¢ espalhou a morte © a destrui¢do do Eufrates ao Nilo ¢ ao Atlan- tivo, A ceriménia simples na qual a supersti- gio dos camponeses europeus vé até hoje um grande remédio para a peste © a febre, bem come para a dor de dente, nos vem da An- tiguidade remota, pois era realizada sole- nemente, de tempos em tempos, pelo mais alto magistrado de Roma, para conter a de- vastagiio da peste ou evitar um desastre que ameagava as bases da vida nacional, No século TV aC. a cidade de Roma foi assol da por uma grande peste que durou trés anos, matando alguns dos mais altos dignitérios e 170 grande mimero de plebeus. O historiador que registra essa calamidade nos informa que, depois que se ofereceu em vdo um banquete aos deuses © quando nem os conselhos huma- nos nem a ajuda divina se mostraram capazes de mitigar a violéncia da epidemia, decidiu-se, pela primeira vez na histéria romana, instituir espetéiculos dramdticos como meio adequado de apaziguar a ira das poténcias celestes. Assim, mandou-se buscar atores na Btriiria, que dancaram nimeros simples ¢ moderados ao som de uma flauta, Mas nem mesmo esse espetéculo novo divertiu, comoveu ou emocio- nou os deuses mal-humorados. A peste conti- nuava a matar, e, no momento mesmo em que ‘0s atores procuravam dar o maximo de si no circo 4 margem do Tibre, o rio amarelo ele- ‘vou-se numa enchente irada ¢ arrastou atores espectadores, que esperneavam em meio as iguas cada vez mais profundas, para longe do espetéculo. Era evidente que os deuses des- prezavam tanto as pegas quanto as oragdes ¢ banquetes e, em meio A consternacao geral, chegou-se & conclusto de que era necesséria uma medida mais dréstica para por fim ao flagelo, Os velhos se recordaram de que uma peste havia sido contida, no pasado, enfiando- se um prego numa parede; assim, 0 Senado resolveu que, coma medida extrema, depois de terem fracassado todos os outros recursos, um magistrado supremo seria nomeado, com a inica finalidade de realizar essa ceriménia so- ene. A nomeacio foi feita, o prego foi crava- do © a peste acabou se extinguindo, mais cedo ou mais tarde. Que melhor prova da virtude salvadora de um prego? Falamos do principio primitive da transfe- réncia de males para outra pessoa, animal ou coisa, O exame dos meios utilizados, de acordo com esse principio, para livrar as pessoas de seus problemas e sofrimentos, levou-nos a constatar que, em Roma, meios scmelhantes haviam sido adotados para libertar toda a co- munidade, gragas a um nico golpe de marte- lo, dos males diversos que a afligiam. Preten- demos, agora, mostrar que essas tentativas de acabar de uma s6 vez com os sofrimentos acu- mulados do povo nao sio raras ou excepcio- nais, mas que, pelo contratio, foram feitas em A fixagdo dos mates A cada prego que Ihe foi sendo fixado, ‘enfetmidade e a dor foram sendo transferidas para fesse fetiche de forma humana, da aldeia de Neanzi em Kakonga, Africa, Pitt Rivers Museum, Universidade’ de Oxford. muitas terras, ¢ que, de ocasionais, tendem a passat a ser periddicas e anuais. Os esforgos dos povos primitivos para se livrarem de todos 0s seus problemas de uma s6 vez tomam, geral- mente, a forma de uma grande cacada e expul- séo dos deménios ou espiritos que, segundo acreditam, sio as causas de todas as afligdes. Bles acham que, se puderem deitar fora esses seus malditos atormentadores, podertio recome- car a vida, felizes e inocentes. As historias do Eden e a velha Idade do Ouro da poesia vol- A transferdncia do mal para objetos fendidos Uma erianga que pastasse sob a fenda desse freixo ficava curada de hémis. Gentleman's Magazine. 1802, Bodleian Library, Oxford. tariam entaio a ser verdade. As tentativas pu blicas de expulsar os males acumulados de toda uma comunidade podem ser divididas em duas classes, dependendo de serem os males ex- pulsos imateriais e invisiveis ou de estarem eles encerrados num veiculo material ou bode ex- piatério. A primeira pade ser chamada de expulsio direta ou imediata dos males; a se- gunda, de expulsdo indireta ou mediata, ou ainda, expulsdo por bode expiatério. Vamos examinar primeito a expulsdo ime- 171 diata dos males de toda uma comunidade, Tais expulsdes podem ocorrer em ocasides de en- fermidades ou desgragas generalizadas, embora tendam a passar de ocasionais a periddicas. Passa-se a considerar descjével um expurgo geral de espiritos malignos em épocas fixas, habitualmente uma yez por ano, de modo que a8 pessoas possam recomecar suas vidas. Na Europa cristd, o velho costume pagio de afas- tar os poderes do mal em certos periodos do ano sobreviveu até a época moderna, Feiticei- Tos e magos eram considerados como parti- cularmente malignos nos doze dias que iam do Natal Noite de Reis, na véspera do Dia de Sio Jorge, na véspera do 1.° de Maio (Noite de Walpurgis) © na véspera do Solsticio de Verio. Medidas especiais de precaucio tinham de ser tomadas nessas ocasides. Assim, na longa © espagosa Piazza Navona, em Roma, na véspera da Epifania, reine-se grande multidao, que faz um barulho ensurde- cedor. Pouco depois do jantar, grupos de jo- vens desfilam pelas ruas, tendo frente bone- cos de’ massa e titeres, ¢ procuram fazer 0 maior alarido possivel. Dirigem-se, partindo de diferentes bairros, para a Piazza Navona, onde se unem para provocar um ruido terrivel. Os instrumentos musicais prediletos nesse concer- to de loucos séo as cornetas de brinquedo, das quais, juntamente com tamborins, sinetas e outros instrumentos semelhantes, as lojas tém © cuidado de se abastecer bem, preparando-se para ‘© pandemdnio daquela noite. A cerimé= nia é realizada em honra a uma certa feiticei antiga, mitica, de nome Befana, cuja efigic, feita de trapos, & colocada pelas mulheres © criangas nas janelas, na Noite de Reis, Seu nome, Befana, é evidentemente uma corruptela popular de Epifania, 0 nome eclesidstico da festa; vista, porém, em conexdo com as festas populares que examinamos, podemos acreditar que tenha origem mais pagi do que crista, De fato, podemos imaginar que ela anteriormente cra uma bruxa e que o barulhento ritual da Piazza Navona é apenas um resquicio da expul- so anual das feiticeiras feita nessa época do ano. Nas ilhas Shetland, 0 Yule, ou feriados de Natal, comegava sete dias antes do Natal pro- 172 priamente dito ¢ durava até Antinmas, isto é, 0 vigésimo quarto dia depois dessa data. Na lin- guagem de Shetland, esses feriados s20 conhe- cidos como “os Yules”. Na primeira noite, cha- mada de Tul-ya’se’en, sete dias antes do Natal, certos duendes malignos, aos quais os habitantes dio 0 nome de trows, “receberam permisso de deixar suas moradas no coracio da terra e viver, se isso Ihes agradar, entre us moradas dos homens”. Assim, no éltimo dia dos feriados, ou seja, 0 vigésimo quarto dia de- pois do Natal, que, naquclas ilhas, recebe 0 no- me de Pfichelly-a', Uphellia ou Uphaiiday, “as portas eram todas abertas, e realizavam-se pan- tomimas de perseguicao a criaturas invisiveis Muitas jaculat6rias eram pronunciadas, exi biam-se objetos de ferro, ‘pois os frows nao su- portam a vista do ferro’. Lia-se © citava-se a Biblia. As pessoas movimentavam-se em gru- pos Ou casais, nunca sozinhas, ¢ as criancas eram cuidadosamente protegidas ou bentas por ‘velhas comadres’, vigilantes e experientes. Po- bres ‘rows, seu periodo de liberdade e de di- Yertimento terminou e, na vigésima quarta noite, cles se retiram para a sua sombria mo- tada debaixo do solo, raramente tendo oportu- nidade de reaparecer, e sem gozar da mesma liberdade, até que os Yules voltem”. Chegamos agora i segunda classe de expul- ses, na qual as mas influéncias esto materia- Tizadas numa forma visivel ou, pelo menos, se supe que se tenham descarregado sobre um meio material que age como veiculo para afasté-las das pessoas, da aldeia ou da cida- de, Em Munzerabad, no distrito de Mysore, no sul da India, quando hé ocorréncia de cétera ‘ou variola, os habitantes se retnem para con- jurar o dem6nio da doenca, fazendo com que penetre em uma imagem de madeira, que Ievam, em geral & meia-noite, para a aldeia vi- zinha. Os habitantes desta passam, da mesma forma, a imagem para outros vizinhos, ¢ assim 0 deménio € expulso de aldeia apés aldeia até chegar as margens de um rio, onde é final- mente Iangado. Os aldedes russos procuram proteger-se contra epidemias que atingem os homens ou os animais tragande com um arado um sulco em toro da aldeia, O arado € arras- tado por quatro vitivas e a ceriménia é realiza- da & noite; todos os fogos ¢ luzes devem ser apagados enquanto se realiza a ceriménia. Acredita-se que nenhum espirito impuro possa passar através do suleo assim tragado. O veiculo do afastamento dos deménios pode ser de varios tipos. Um dos mais comuns € um pequeno navio ou barco, Assim, no dis- trito sul da itha de Ceram, quando alguma doenga se abate sobre toda uma aldeia, faz-se um pequeno navio que é enchido de arroz, fumo, ov0s, etc., doados por todo © pove ¢ no qual se coloca uma pequena vela. Quando tudo esta pronto, um homem grita: “O doeneas, 6 variolas, febres, caxumbas, ete., que nos vi taram por tanto tempo e tanto nos castigaram, mas que agora deixam de nos atormentar, fi- zemos esse navie para vocés ¢ colocamos nele provisdes suficientes para a viagem. Nao falta- 4a vocés comida nem folhas de bétel, nem nozes de areca nem tabaco. Partam; naveguem para longe de nds € nunca mais voliem; pro- curem uma terra que seja longe daqui, Que todas as marés ¢ todos os ventos levem vocés rapidamente para Id, para tao longe que possa- mos viver bem ¢ com satide para o futuro, que jamais voltemos a ver o sol se levantar para voces”. Em seguida, dez ou doze homens le- vam © barco para a praia e deixam que se afaste ao sopro da brisa, convictos de que esto livres para sempre das enfermidades, ou, pela menos, até que elas voltem, Se a doenca volta @ atacé-los, terdo a certeza de que néo se trata da mesma enfermidade, mas de outra, diferente, que, no devido tempo, eles afastario pelo mesmo processo. Quando perdem de vista © barco cheio de deménios, os carrepadores voltam a aldeia, e um homem grita: “As doen- ¢as foram embora, desapareceram, foram ex- pulsas, ¢ partiram no barco”, Com isso, todos deixam suas casas correndo, repetindo uns para ‘os outros as mesmas palavras, alegremente, fazendo soar os gongos, os sinos e chocalhos. Com freqiiéncia 0 veiculo que afasta os males ou os deménios colecionados por toda uma comunidade € um animal ou bode expia- trio, e pode acontecer que 0 bode expiatério seja um homem. Por exemplo, de tempos em tempos os deuses costumavam advertir o rei de Uganda de que seus inimigos, os banyovos, estavam fazendo feiticos contra ele e seu povo ‘com 0 objetivo de mati-los por meio de doen- gas, Para evitar essa catéstrofe, © rei mandava um bode expiat6rio até a fronteira com Bu- nyoro, a terra dos inimigos. O bode expiatério consistia em um homem e um rapaz ou em uma mulher e seu filho, escolhidos devido a alguma marea ou defeito fisico que os deuses haviam notado © pelos quais as vitimas seriam reco- nhecidas. Com as vitimas humanas eram man- dados também uma vaca, um bode, uma ave © um cio, Uma forte guarda escoltava-os até @ terra que o deus havia indicado, Ali os mem- bros das vitimas eram quebrados, e elas eram deixadas para morrer lentamente em terra inimiga, uma vez que ndo poderiam sequer arrastar-se de volta para Uganda, tal o seu es- tado. Achava-se que, com isso, a enfermidade ‘ou a peste haviam sido transferidas para as vitimas, e também devolvidas, em suas pessoas, & terra de onde vinham. Da mesma forma, depois de uma guerra, os deuses por vezes aconselhavam 0 rei a mandar de volta um bode expiatério a fim de Tibertar os guerreiros de algum mal que se tivesse associado ao exérci- to. Uma das eseravas, bem como uma vaca, um bode, uma ave e um cao eram escolhidos entre os cativos e mandados para a fronteira do pais de onde procediam. Ali, eram mutila- dos e abandonados & morte, Depois disso, o exército era declarado expurgado © pronto a voltar a capital. Em ambos os casos, certas ervas cram esfregadas nas pessoas © nos animais, em seguida atadas as vitimas, que levavam 0 mal de volta consigo. Expulsdes piblicas mediatas do mal ocorrem a intervalos regulares. Anualmente, no inicio da estacio das secas, os ilhéus de Nicobar atravessam suas aldeias carregande 0 modelo de um navi. Os demdnios séo expulsos das cabanas ¢ dirigidos para bordo do pequeno barco, que é entao langado no mar, aguardan- do-se que 0 vento o leve para longe. A ceri- ménia foi deserita por um catequista, que a presenciou em Car Nicobar em julho de 1897. ‘Durante trés dias, prepararam-se duas embar- cagdes bastante grandes, com o formato de canoas, dotadas de velas e carregadas de cer 173

You might also like