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PEDAGOGIA

FILOSOFIA E EDUCAÇÃO
Universidade Estadual
de Santa Cruz

Reitor
Prof. Antonio Joaquim da Silva Bastos

Vice-reitora
Profª. Adélia Maria C. M. Pinheiro

Pró-reitora de Graduação
Profª. Flávia Azevedo de Mattos Moura Costa

Diretora do Departamento de Ciências da Educação


Profª. Maria Olívia Lisboa

Ministério da
Educação
Ficha Catalográfica

E24 Educação, história e sociedade : módulo 1 : Filosofia e


Educação, volume 2 / Elaboração de conteúdo: Carla
Milani Damião. – [Ilhéus, BA] : UAB/UESC, [2009].
1 v. (várias paginações).

Módulo: PEDAGOGIA/EAD-UESC.
Inclui bibliografias.
ISBN: 978-85-7455-176-0

1. Educação – Filosofia. 2. Filosofia da Educação.


I. Damião, Carla Milani.

CDD 370.1
PEDAGOGIA
Coordenadora UAB – UESC
Profª. Maridalva de Souza Penteado

Coordenadora Adjunta UAB – UESC


Profª. Flaviana dos Santos Silva

Coordenadora do Curso de Licenciatura


em Pedagogia (EAD)
Profª. Maria Elizabete Souza Couto

Elaboração de Conteúdo
Profª. Carla Milani Damião

Instrucional Designers
Profª. Marileide dos Santos de Olivera
Profª. Gessilene Silveira Kanthack

Revisão
Profª. Sylvia Maria Campos Teixeira
EAD - UESC

Profª. Maria Luiza Nora

Diagramação
Jamile A. de Mattos Chagouri Ocké
João Luiz Cardeal Craveiro

Ilustração e Capa
Sheylla Tomás Silva
Sumário

UNIDADE I

O Surgimento da Filosofia e as Cosmologias das Escolas Pré-socráticas.............................. 9

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................11

2. O NASCIMENTO DA FILOSOFIA.........................................................................................12

3. AS ESCOLAS PRÉ-SOCRÁTICAS. .......................................................................................16

3.1. A escola jônica.........................................................................................................17

3.2. A escola pitagórica ou itálica......................................................................................19

13.2.1. Ensinamentos, contribuições e decadência do pitagorismo...........................................19

3.3. Heráclito de Éfeso (cerca de 540-470 a.C.)..................................................................22

3.4. A escola eleata.........................................................................................................23

3.5. A escola da pluralidade...................................................................................................24

REFERÊNCIAS......................................................................................................................27

UNIDADE II

Porque Sócrates é Filósofo e porque a Filosofia não é um saber........................................ 29

1. INTRODUÇÃO................................................................................................................31

2. TIPOS DE SÁBIOS NA ANTIGUIDADE GREGA......................................................................32

3. SÓCRATES: “SÓ SEI QUE NADA SEI”.................................................................................35

4. PLATÃO E A BUSCA DO SABER..........................................................................................39

REFERÊNCIAS......................................................................................................................46

UNIDADE III

As Propostas Educativas em Platão e Aristóteles: Mímesis e Aprendizagem...................... 49

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................51

2. O CONCEITO DE MÍMESIS E O PROCESSO DO APRENDIZADO EM PLATÃO..............................52

3. O CONCEITO DE MÍMESIS E O PROCESSO DO APRENDIZADO EM ARISTÓTELES......................59

REFERÊNCIAS......................................................................................................................63
UNIDADE IV

As Utopias Clássicas............................................................................................................65

1. INTRODUÇÃO................................................................................................................. 67

2. A UTOPIA: UM EXERCÍCIO DE TORNAR CONHECIDO UM LUGAR INEXISTENTE.......................... 68

2.1 O imaginário das utopias clássicas............................................................................. 68

3. NARRADORES NAVEGANTES OU NAVEGANTES NARRADORES NAS TRÊS UTOPIAS.................... 71

3.1 More e A Utopia...................................................................................................... 71

3.2 Campanella e A cidade do sol................................................................................... 71

3.3 Francis Bacon e Nova Atlântida................................................................................. 72

4. CONHECIMENTO, EDUCAÇÃO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL NAS UTOPIAS.................................... 72

4.1 Nova Atlântida........................................................................................................ 73

4.1.1 Nova Atlântida: as atividades da Casa de Salomão................................................... 75


4.2 A Cidade do Sol de Campanella ............................................................................... 77

4.2.1 O sistema heliocêntrico e a ordenação da Cidade do sol............................................. 78


4.3 A Utopia .............................................................................................................. 79

4.3.1 A função da ironia na narrativa.............................................................................. 80

5. CONSEQUÊNCIAS E DIMENSÃO TOMADAS PELO CONCEITO DE UTOPIA NO SÉCULO XIX E XX.... 82

6. REFERÊNCIAS................................................................................................................. 87

UNIDADE V

A Constituição da Subjetividade na Filosofia Moderna........................................................89

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 91

2. DESCARTES: SUJEITO DO CONHECIMENTO E SUBJETIVIDADE...............................................92

3. RACIONALISMO E EMPIRISMO...........................................................................................95

4. REFERÊNCIAS............................................................................................................... 101

UNIDADE VI

Filosofia e Educação em Jean-Jacques Rousseau1.............................................................. 103

1. INTRODUÇÃO................................................................................................................. 105

2. JEAN-JACQUES ROUSSEAU E SUA CRÍTICA AO CONTEXTO SOCIAL E POLÍTICO ...................... 106

2.1 Rousseau e o Iluminismo francês............................................................................. 106

3. NATUREZA, AMOR DE SI E AMOR-PRÓPRIO:....................................................................... 109


4. MÍMESIS E A CRÍTICA AO TEATRO E À EDUCAÇÃO ............................................................ 112

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 120

UNIDADE VII

As Reflexões de Kant sobre a Educação............................................................................ 123

1. INTRODUÇÃO................................................................................................................125

2. A FILOSOFIA DE KANT....................................................................................................126

3. KANT E A EDUCAÇÃO.....................................................................................................127

REFERÊNCIAS.....................................................................................................................135

UNIDADE VIII

A Educação após Auschwitz..............................................................................................137

1. INTRODUÇÃO............................................................................................................... 139

2. A TEORIA CRÍTICA E O INSTITUTO DE PESQUISA SOCIAL.................................................. 140

3. ADORNO E A EDUCAÇÃO APÓS AUCHWITZ....................................................................... 141

4. SOBRE MÍMESIS EM ADORNO......................................................................................... 145

4.1 O estudo sobre a personalidade autoritária..............................................................146

5. EDUCAÇÃO: REIFICAÇÃO E MÍMESIS............................................................................... 148

REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 153

UNIDADE IX

Tecnologia e Educação................................................................................................... 155

1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 157

2. OBRA DE ARTE SOB AS CONDIÇÕES DOS NOVOS MEIOS E DA TÉCNICA............................ 158

3. CINEMA, METRÓPOLE E TRABALHO INDUSTRIAL.............................................................. 159

4. O APRENDIZADO DO ADULTO........................................................................................ 161

5. O APRENDIZADO DA CRIANÇA. ..................................................................................... 167

REFERÊNCIAS................................................................................................................... 170
1

unidade
O SURGIMENTO DA FILOSOFIA E AS
COSMOLOGIAS DAS ESCOLAS PRÉ-SOCRÁTICAS
Meta

Introduzir interpretações sobre a origem


da Filosofia e apresentar as preocupações
comuns geradas pelo pensamento
cosmológico.

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz


Objetivos

de:

• identificar as características nascentes da


filosofia e algumas problematizações a
respeito de seu surgimento;
• determinar a origem dos filósofos pré-
socráticos e suas teorias;
• distinguir, nas teorias expostas, as
respostas dadas pelos filósofos pré-
socráticos ao princípio de organização que
rege a ordem do mundo; o movimento e o
repouso; a unidade e a multiplicidade;
• discutir a oposição entre o pensamento de
Heráclito e Parmênides, como um problema
inaugural da questão do conhecimento na
história da filosofia.
Módulo 1

UNIDADE I

1 INTRODUÇÃO PEDAGOGIA
Filosofia e Educação

Para você compreender o que seja a Filosofia, nosso


roteiro de estudo dessa unidade é o seguinte:
UNIDADE I

• O nascimento da Filosofia
• As escolas pré-socráticas:
• A escola jônica;
• A escola pitagórica ou itálica;
• Heráclito de Éfeso;
• A escola eleata;
• A escola da pluralidade.

11
Volume 2

2 O NASCIMENTO DA FILOSOFIA

Segundo os historiadores, a filosofia tem data e local de


nascimento: século V a.C. em Atenas, Grécia Antiga. Considera-
se também o surgimento, no século anterior, século VI a.C.,
das cosmologias, teorias sobre a ordenação da natureza
PEDAGOGIA

que investigam a origem e o princípio de todas as coisas. Os


Cosmologia é uma cosmólogos não eram atenienses, mas gregos, em sua maioria,
palavra de origem
grega que provém da
provindos da expansão geográfica da Grécia na Antiguidade.
junção entre kósmos Ao determinar a data e o local de origem da filosofia,
(ornamento, ordem)
os historiadores buscam fornecer um entendimento específico
e lógos (razão,
discurso). Cosmologia desse tipo de conhecimento que o torna diferente da religião,
é a explicação racional por sua característica política e antropocêntrica. Esse sentido
sobre a origem e
de filosofia, portanto, não se confunde com a utilização da
ordem do mundo.
palavra em sentido amplo ou vago, como “filosofia de vida” ou
Antropocêntrica
- composta pela “filosofia do trabalho”.
palavra grega Por outro lado, não é difícil perceber associações com
ánthropos (homem)
e centro. Diz respeito
outras culturas e religiões, quando estudamos os problemas
às explicações e às que orientaram as primeiras teorias na filosofia. Vemos, com
teorias não religiosas
isso, um problema de interpretação em relação à origem, que
que elegem o homem
como causa do se estendeu ao longo dos séculos e que se tornou motivo de
que existe e centro debate na primeira parte do século passado.
das atenções, com
Alguns estudos demonstram a assimilação de
ênfase nos problemas
relacionados ao conhecimentos científicos, como a astronomia e a matemática,
conhecimento, à provenientes do Oriente: Egito e Mesopotâmia. Essa “importação”
moral e à política.
de conhecimentos ocorreu devido à expansão marítima grega,
que ocorria em função do comércio e da colonização grega na
Ásia Menor e Sul da Itália.
Filosofia e Educação

Várias teorias em relação ao surgimento foram


comprovadas ou reprovadas, em alguns casos em função
de descobertas arqueológicas, no século passado (XX),
de documentos até então desconhecidos, ou mesmo de
documentos já conhecidos e que, relidos com o suporte dos
novos meios tecnológicos, revelaram textos sobre textos, isto
é, palimpsestos, no reaproveitamento do material utilizado nos
manuscritos: o papiro.
UNIDADE I

FIGURA 1: O Papiro de Derveni


foi encontrado em 1962, perto de
Tessalônica, na Macedônia grega. Foi
escrito provavelmente entre os séculos
VI e V a.C. Este documento passou a ser
fonte importante nos estudos sobre o
desenvolvimento da religião e da filosofia,
por conter a cosmologia e a doutrina
teológica do orfismo, movimento religioso
de importância para o pitagorismo, para
Heráclito, Anaxágoras e, mais tarde, para
Platão.
FIGURA 1 - Fonte: http://persephones.250free.com

12
Módulo 1
Antes mesmo da descoberta do Papiro de Derveni, alguns
historiadores do período atribuíam elevada importância à
relação entre mito, religião e filosofia, inovando a interpretação
que datava desde o período helênico, com Diógenes Laércio,
na obra Vida e doutrina dos filósofos, século II, que afirmava

PEDAGOGIA
uma clara distinção entre razão (Filosofia) e mito (narrativas
sobre divindades e seus feitos). Estudos mais aprofundados
demonstraram existir um tipo de conhecimento organizador
da realidade nas narrativas fabulosas do mito. Essa estrutura
racional do mito, segundo Francis M. Cornford, em Principium
Sapientiae. As origens do pensamento grego, obra publicada em
1952, estaria presente nas primeiras cosmologias, procurando
comprovar o vínculo entre mito, religião e filosofia.
Chauí (2002) dialoga com importantes historiadores
da filosofia as teses extremistas (mito ou razão; influência
oriental ou originalidade ocidental) sobre a origem da filosofia
e encontram um meio termo nos seguintes aspectos:

Diógenes Laércio (em grego Διογένης Λαέρτιος, em nosso


alfabeto Dioguénes Laértios) viveu no século II d.C., entre 200
e 250. Sua obra mais conhecida por trazer referências a teorias
e filósofos da Antiguidade grega se chama Vidas e doutrinas dos
PARA CONHECER

filósofos ilustres, composta por dez livros.

Filosofia e Educação
Francis MacDonald Cornford (1874-1943) dedicou-se aos
estudos clássicos; foi membro do Trinity College em Cambridge,
Inglaterra, onde ensinou Filosofia Antiga. Escreveu sobre
Tucídedes, historiador da Grécia Antiga e em 1912 iniciou seus
estudos sobre a origem da filosofia em relação à religião. Sua
obra Principium Sapientae: as origens do pensamento grego foi
publicada postumamente, em 1952. Cornford foi casado com a
poetisa Frances Darwin, neta de Charles Darwin.

Marilena Chauí é historiadora de filosofia brasileira e professora


de Filosofia Política e História da Filosofia Moderna da Faculdade
UNIDADE I

de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de


São Paulo (FFLCH-USP). Para saber mais, consulte a sua obra:
CHAUÍ. Marilena. Introdução à história da filosofia: dos
pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Ed. Schwarcz (Cia. das
Letras), 2002.

13
Volume 2

Em relação ao mito

Houve, no mito, uma aproximação de deuses e homens,


seja pelo caráter antropomórfico dos deuses, seja pela
divinização dos homens que mantinham um estreito vínculo
com as divindades por meio da narrativa do poeta-aedo, das
PEDAGOGIA

sacerdotisas e pela prática de sacrifícios. Reconhece-se nessas


Antropomórfico,
do grego ánthropos narrativas uma organização racional que busca explicar a
(homem) unido à origem do mundo e a organização social.
morphé (forma),
palavra normalmente
utilizada para se Em relação à invenção grega
atribuir a deus a forma
e ações humanas. O que os gregos nos séculos VI e V a.C. inventaram,
Laica (adjetivo) do além do que incorporaram de outras culturas, diz respeito à
latim laicu, o mesmo transformação de aspectos práticos da vida em conhecimento
que leigo, secular ou
não religioso. Derivam racional, abstrato e universal. Esses conhecimentos provêm
dessas: laicizado, da prática comercial e marítima, da invenção da moeda, do
laicizar, secularizado,
secularizar. Utilizamos calendário e, principalmente, da organização política da cidade
essas palavras para organizada por leis e instituições públicas. A democracia é uma
distinguir o tipo de
conhecimento ou forma inédita de organização política que não se baseava mais
discurso que depende no poder tradicional do patriarca (do chefe de família, da tribo
só do homem e não
da religião ou do que é ou do rei), aliado ao poder sacerdotal.
doutrina religiosa.

Pólis - palavra grega Em relação à razão


que quer dizer cidade,
em particular, a cidade
que tem a característica Os gregos inventam uma forma laica de discursar,
de Estado, por ter uma relacionada à prática e à organização dos negócios públicos,
Filosofia e Educação

constituição própria.
Na Antiguidade, cada isto é, à política. Essa fala dessacralizada busca organizar
cidade possuía a sistematicamente seu pensamento em função de um princípio
configuração legal da
concepção moderna de universal: o conceito, a ideia, a lei, o axioma.
Estado, por isso, pólis Os primeiros filósofos ou filósofos pré-socráticos, embora
é traduzida, às vezes,
como “Cidade-Estado”. não estivessem com suas indagações voltadas exclusivamente
Derivam desta palavra, para o contexto da pólis ateniense e para os problemas
as palavras política
(negócios da cidade) e éticos e morais, exercitaram o desprendimento da explicação
político (cidadão apto religiosa dogmática e elaboraram teorias sobre o surgimento
– homem, livre, adulto
- a participar das do universo e de como este se organiza.
UNIDADE I

assembleias, elaborar Como você pode notar, o mito também explica o


e promulgar leis em
conjunto com os outros surgimento do mundo em suas narrativas. São Teogonias, isto
cidadãos). é, narrativas sobre como as divindades ou deuses (Théos) foram
gerados (“gonia” vem de genos, em grego, geração, gênese).
Essa geração, como a dos humanos, era entendida como
procriação e, por isso, os seres (a Terra, o Céu) e as divindades
copulam e geram outros seres. A explicação para tudo o que
existe é de ordem sobrenatural. Igualmente, as cosmologias

14
Módulo 1
procuram por uma explicação para o surgimento da ordem na
natureza e no mundo, e, mesmo que ainda utilizem, às vezes,
o vocabulário, o mito, a causa nomeada é de ordem racional.
Antes de reconhecermos os princípios encontrados para
a explicação do cosmos, vamos ver quais são as preocupações

PEDAGOGIA
gerais dos pré-socráticos, conforme Mondolfo (1971), em O
pensamento antigo:

• Qual é a origem de todas as coisas?


• Como um único princípio pode dar origem à multiplicidade
das coisas?
• Como o imutável pode dar origem ao mutável?
• Como o múltiplo retorna ao múltiplo?

Esse mesmo autor nomeia as seguintes características,


algumas mais evidentes, outras menos, nas teorias dos pré-
socráticos:

• Trata-se de uma cosmologia enquanto explicação sobre


a ordem presente do mundo em vista de sua origem ou
causa, forma, transformação, repetição e término;
• A phýsis (natureza, “brotação”), palavra traduzida por
natureza, é o fundo imortal e perene de onde tudo
brota e para onde tudo regressa. Ela é a qualidade
primordial da origem e constituição de todos os seres.
A manifestação invisível da phýsis, com as mesmas

Filosofia e Educação
características, mas só alcançável pelo pensamento, é
a arkhé (princípio, começo, ponto de partida, princípio
organizador do cosmos);
• Há uma preocupação marcante com o devir ou vir-
a-ser. O movimento kínesis (movimento, ação) ou
movimento de transformação dos seres ocupa papel
central nas teorias, bem como seu contrário: o repouso
e a estabilidade dos seres;
• Há distinção entre “aparência” e “essência”,
UNIDADE I

principalmente nos pensamentos de Heráclito e


Parmênides. À primeira se relaciona a dóxa (opinião) e
à segunda, a essência.

Agora que você já tem ideia de quais são as preocupações


e características das cosmologias pré-socráticas, vamos estudar
cada uma delas!

15
Volume 2

3 AS ESCOLAS PRÉ-SOCRÁTICAS

Como você pode perceber na ilustração abaixo, a Grécia,


na Antiguidade, possuía uma extensão territorial que ia do
sul da Itália, conhecida como Magna Grécia, às colônias da
PEDAGOGIA

Ásia Menor. Essa localização geográfica é importante de ser


feita, pois, quando falamos em nascimento ou surgimento da
filosofia, notaremos que este ocorre não em Atenas, mas no
território expandido que visualizamos no mapa.

FIGURA 2 - Mapa da Grécia Antiga. Fonte: http://plato-dialogues.org/tools/gk_wrld.htm


Filosofia e Educação

ATIVIDADE
1. A fim de compreender o conteúdo a seguir, de maneira a
perceber a importância da extensão do território grego do
período e do importante trânsito marítimo existente, localize
no mapa acima:
UNIDADE I

1. Na Ásia Menor, as seguintes cidades: Mileto, Éfeso,


Samos, Colofão e Clazômena;
2. Na Magna Grécia, Eléia, Agrigento e Crotona;
3. No centro do mapa, ao norte, Abdera.

16
Módulo 1
Os chamados filósofos pré-socráticos, que viveram
entre os séculos IV a.C. a V a.C., provêm dessas cidades e
essa origem os identifica. Assim, falamos de Tales de Mileto,
Anaxímenes de Mileto, Pitágoras de Samos, Heráclito de Éfeso,
Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômena, Leucipo

PEDAGOGIA
de Abdera, Demócrito de Abdera, Parmênides de Eleia.
Em vista da distância histórica e das fontes documentais
precárias que permaneceram para a posteridade, em sua maioria
fragmentos de obras, algumas completamente perdidas, esses
primeiros filósofos são estudados de maneira agrupada, isto é,
por região, ou teorias com algum grau de semelhança. Por isso,
falamos em escola jônica, isto é, as colônias gregas localizadas
na Ásia Menor; escola eleata, de Eleia na Magna Grécia. Os dois
outros grupos são reunidos por preocupações semelhantes e
provêm de diferentes partes da região expandida da Grécia.
O que você deve perceber nas teorias, que serão
brevemente expostas a seguir, não é a verdade ou falsidade
de suas afirmações, mas a maneira como organizam as
explicações, buscando como causa a phýsis em sua visibilidade
ou a arkhé. O visível e o invisível nem sempre separam e
definem esses termos, pois, em alguns casos, eles coincidem.
Vamos conhecê-las!

Hilozoísmo: do grego

hýle que quer dizer
3.1 A escola jônica matéria. Entendemos
o hilozoísmo como

Filosofia e Educação
uma concepção
Chamados de físicos ou naturalistas, os filósofos filosófica que atribui
vida à matéria, capaz
considerados dessa divisão são: Tales de Mileto (cerca de
de autotransformação
625/4-558/6 a.C.), Anaxímenes de Mileto (cerca de 585-528/5 e movimento.
a.C.) e Anaximandro de Mileto (cerca de 610-547 a.C.), que
elaboraram teorias hilozoístas, atribuíram movimento próprio
e transformação à matéria.
Tales de Mileto é considerado o primeiro
Para saber identificar os princípios
filósofo e também um dos 7 Sábios da Antiguidade. U V
ou causas de cada uma das a FR
K
Aristóteles (em Metafísica, I, 3.983 b6) expressou C AM
UNIDADE I

teorias, você conhecerá apenas o


essencial delas. Vale salientar que
da seguinte maneira as ideias de Tales: “Tales,
SAIBA MAIS

os fragmentos de seus escritos


o fundador de tal filosofia [cosmologia], diz ser são poucos, aos quais fizeram
referências outros filósofos mais
a água [o princípio], levado sem dúvida a esta
próximos do período, como
concepção por ver que o alimento de todas as Aristóteles, na Metafísica.

coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede Por Éfeso ser também uma colônia
e dele vive (ora, aquilo de que as coisas vêm é, da Jônia, Heráclito seria agrupado a
essa escola, mas, dada a importância
para todos, o seu princípio)”. Existem informações de seu pensamento, ele costuma ser
secundárias sobre certas habilidades práticas de estudado à parte.

17
Volume 2

Tales, que teria sido político e uma espécie de engenheiro,


por ter estudado a causa das enchentes do rio Nilo em sua
viagem ao Egito e pretender desviar o curso de um rio. A ele
também se atribui a descoberta da constelação da Ursa Menor,
um auxílio à navegação.
PEDAGOGIA

A definição da água como phýsis ou princípio explicativo


de tudo o que existe e de como tudo veio a ser confere, ao
mesmo tempo, unidade à causa e à ideia de que esta causa, de
onde tudo parte e para a qual regressa, possui um movimento
que lhe é inerente. Pode-se encontrar, portanto, na natureza
um elemento que explica a origem da vida e o seu próprio
movimento desta: no estado úmido, encontra-se vida; no
ressequido, a morte.
Anaxímenes de Mileto segue o raciocínio de Tales,
escolhendo na natureza um elemento que organiza e explica a
ordem do universo. Para ele, este é pneuma, palavra traduzida
por ar, sopro vital e também alma ou espírito. Anaxímenes
concebe o ar como phýsis e como arkhé. A ordem do mundo se
estabelece no ritmo de uma respiração vital. Em um fragmento
compilado por Simplício (Aécio, I, 3.4), lemos: “Como nossa
alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim
também todo o cosmo sopro e ar o mantém”. Nesse sentido,
novamente, a matéria, o ar em diferentes estados, interna
e externamente, possui a qualidade de movimentar a si
mesmo.
Filosofia e Educação

A definição de phýsis contrasta com a de Anaximandro,


no que diz respeito ao aspecto indeterminado do apeíron. O ar
é infinito, mas determinado como matéria menos corpórea do
que a água.
Anaximandro de Mileto foi discípulo de Anaxímenes. Em
sua cosmologia, o princípio explicativo que rege a ordem das
coisas torna-se mais claramente arkhé, pois não corresponde
mais a um elemento mais ou menos visível na natureza. Trata-
se do ápeiron; o prefixo “a” significa ausência ou negação de
UNIDADE I

“peras”, que significa limite. Literalmente ápeiron é o “sem


limite” ou ilimitado, entendido pela quantidade, e indeterminado
ou indefinido, pela qualidade.
O apeíron é um princípio eterno, imortal e imperecível,
isto é, não foi gerado, não degenera e não finda. Essa é
uma importante distinção de sua cosmologia em relação às
teogonias, nas quais os deuses eram gerados e, mesmo que
fossem imortais, não existiram desde sempre. O devir surge

18
Módulo 1
do apeíron como ordem temporal das coisas que, ao fim, a
ele retornam. Essa ordem temporal é entendida como uma
lei necessária, sob o jugo da justiça e injustiça. Conceitos
que se desprendem do vocabulário da polis e integram as
cosmologias.

PEDAGOGIA
3.2 A escola pitagórica ou itálica

A existência histórica de Pitágoras de Samos (cerca de


580/78-497/6 a.C.) não foi comprovada. Costuma-se atribuir
a ele a própria composição da palavra filosofia (philia+sophia).
O filósofo seria um frequentador de jogos públicos que não se
deixaria levar pela emoção, mas pela observação distanciada.
Essa definição bem como a “paternidade” do teorema de
Pitágoras não são comprováveis e se misturam à figura lendária
do filósofo que teria nascido na ilha de Samos, ao lado da Ásia
Menor. Já o pitagorismo existiu como movimento, no outro
extremo do mapa, na Magna Grécia, atualmente, sul da Itália
e Sicília.

Filosofia e Educação

FIGURA 3 - Detalhe da pintura em ânfora, mostrando o ataque


das mulheres trácias a Orfeu, com a lira erguida.
Fonte:http://br.geocities.com/filo_cinema/orfeu_e_medeia.html
UNIDADE I

3.2.1 Ensinamentos, contribuições e


decadência do pitagorismo

Com base no orfismo, a doutrina pitagórica acreditava na


reencarnação da alma e propunha um processo de purificação
através da vida contemplativa ou theoria, isto é, contemplar
com os olhos do espírito, examinar para conhecer. Cultivava-se
19
Volume 2

uma prática de purificação por meio do silêncio, do isolamento


e da abstinência de sexo, carnes e bebidas alcoólicas. Buscava-
se a alma de tipo contemplativa, evitando as de tipo cúpida
e mundana, limitadas às esferas da
U V O orfismo: movimento religioso com base no
a FR paixão e da vaidade.
PEDAGOGIA

K culto a Orfeu. Hoje em dia, sabe-se que Orfeu


C AM pode ter existido de fato, conhecido como poeta Esse aspecto moral jamais
divino. Sabe-se do mito ou narrativa, que se conta
desapareceu do pitagorismo,
SAIBA MAIS

em diferentes versões, sobre o belo poeta que


seduzia com seu canto e com a lira as pessoas e compondo um grupo em seu
que, tendo falecido sua amada Eurídice, desceu
ao Hades para tentar retirá-la dos mundos dos interior conhecido como acústicos
mortos. Terminou por ser punido pelos deuses, ou acusmáticos. O outro grupo era
que o haviam proibido de olhar para trás no
trajeto que fazia para fora do Hades, seguido o dos matemáticos, que, segundo
por Eurídice, que desapareceu assim que ele a Aristóteles, muito contribuíram para
olhou. Ao sair sozinho e desesperado da morada
dos mortos, foi trucidado pelas mulheres trácias o avanço da matemática, criando
que se sentiram, por ele, rejeitadas. De seu a geometria e estabelecendo a
corpo mutilado, sobrou inteira a cabeça que
desceu o rio, ainda clamando por Eurídice. No relação entre geometria e aritmética.
leito do rio onde ela foi encontrada, fundou-se Definiram pela primeira vez a ideia
o primeiro templo a Orfeu. Essa narrativa se
confunde com as divindades de Apolo e Dioniso. de unidade, de sequência ordenada
O orfismo existiu por séculos como religião. de números, distinguiram o número
Descobertas arqueológicas comprovaram, por
meio de documentos - textos, testemunhos par (divisível e ilimitado) e o número
e as plaquinhas de ouro, com as quais seus ímpar (indivisível e limitado),
discípulos eram enterrados – a existência dessa
religião. O orfismo é importante para a história definiram campos, limites e pontos.
da filosofia pela relação de proximidade com o Quando falamos em matemática, é
pitagorismo e pela direta influência na filosofia
de Platão. As características da religião, segundo bom lembrarmos que se trata de um
intérpretes, teriam favorecido à filosofia, por conhecimento que possui diferenças
negarem certos aspectos exotéricos da religião
fundamentais com o que hoje
Filosofia e Educação

oficial em Atenas, tais como o sacrifício público


de humanos e animais, por cultivarem o entendemos por essa matéria. Em
pensamento por meio de rituais de purificação,
de uma dieta vegetariana, negação de sacrifícios primeiro lugar porque os números
sanguinolentos, ascese moral e espiritual e a não são algarismos, uma abstração
introspecção. Entre as crenças órficas, há a ideia
de uma potência divina no homem chamada inventada pelos árabes, mas
daimon, traduzida com dificuldade para nossa palavras, sendo que a ideia de zero
língua como gênio ou demônio. Não há nele nada
de maléfico, ao contrário, o daímon habita o corpo não existe.
para lembrá-lo de uma culpa ou escolha. Eles O número um, por exemplo,
acreditavam na reencarnação e transmigração
da alma (metempsicose). A purificação da alma representa para o pitagorismo esse
reconduziria o homem ao divino. princípio ou arkhé de todas as coisas,
UNIDADE I

a harmonia e proporção, a unidade


primeira, na qual existe a totalidade de todos os números.
Todo o conhecimento depende dessa unidade e do movimento
que se estabelece a partir dela.
O início do desenvolvimento da matemática foi o estudo
da lira tetracorde, a lira de quatro cordas de Orfeu, utilizada
nos rituais de purificação. Desse estudo surgiu uma figura
geométrica composta por 10 pontos, distribuídos em forma de

20
Módulo 1
triângulo, com quatro pontos de cada lado e um no centro. A
figura foi chamada de tetráktys da década, ou seja, o número
dez (década), constituído por
quatro (tetra) pontos, com um
ponto no centro. O resultado

PEDAGOGIA
é uma figura perfeita que
combina a unidade, a díade, a
tríade e a quadra e resulta em
uma harmonia perfeita entre
números pares e ímpares:
Dessa figura, resultam
outras, que os pitagóricos
intitulam de número quadrado
e o número retângulo. A
FIGURA 4: tetráktys da década
continuidade dos estudos
matemáticos revelou outras
figuras geométricas, o pentágono e a estrela de cinco vértices
nele contida, mas conduziu também à ruptura dos pitagóricos,
que se deu entre o grupo dos matemáticos e os que prezavam
os ensinamentos morais e as práticas ascéticas. O famoso
teorema de Pitágoras, isto é, que se atribui a Pitágoras, mostra
Ascese: do grego
o descaminho do ideal que buscava a unidade no número, pois áskesis, significa
não se pode mais representar um número inteiro nem por uma exercício de meditação
religiosa. Práticas
fracção de números inteiros. ascéticas são práticas
de exercício de
meditação e purificação

Filosofia e Educação
religiosa. Derivam
dessa palavra: asceta
e ascetismo.

O Teorema de Pitágoras resulta do seguinte raciocínio matemático: O quadrado da U V


hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Se c designar o comprimento a FR
K
da hipotenusa e a e b os comprimentos dos catetos, a fórmula é: c² = a² + b² . C AM
SAIBA MAIS

UNIDADE I
Cateto

Hipotenusa Teorema atribuído a Pitágoras


Fonte: www.brasilescola.com/
matematica/teorema.pitagoras.htm

Ângulo de 90º Cateto

21
Volume 2

3.3 Heráclito de Éfeso (cerca de 540-470 a.C.)

Heráclito de Éfeso é considerado, ao lado de Parmênides,


o fundador de preocupações centrais da filosofia e do
conhecimento. Você pode perceber a presença do orfismo no
PEDAGOGIA

fragmento abaixo, transcrito em seu contexto e a ênfase dada


ao movimento:

Fragmento XXXVI:
Orfeu poetou: “para o vapor é água mutação, para as
águas, morte;
da água, terra, e, da terra, novamente água:
desta, então, vapor, todo éter modificando-se”

(Fonte: Clemente de Alexandria, Stromata, VI, 17).

Heráclito daí colhe suas palavras, quando assim escreve:


“para os vapores, tornar-se água é morte; para a água, tornar-
se terra é morte; mas da terra nasce a água, da água, vapor”
(COSTA, 2002, p.93). Essa transformação das coisas, que
é incessante, transparece nos famosos fragmentos abaixo
citados, (idem, p. 205):

Fragmento XLIX:
“Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e
não somos” .

Fragmento L:
Filosofia e Educação

“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”.

Esses fragmentos refletem a questão do movimento e


a transformação constante, na qual estamos imersos. Não é
possível entrar duas vezes no mesmo rio, pois as águas não
são mais as mesmas e nós não somos os mesmos, estamos
todos em constante estado de mutação. Essa mudança, no
entanto, ocorre de maneira equilibrada ou como equilíbrio de
opostos, resultando em harmonia por meio do conflito.
Heráclito nomeia dois princípios para expressar esse
UNIDADE I

movimento e o conflito que existe dentro de uma medida:


o lógos e o fogo primordial. Eles são arkhé como princípios
organizadores e explicativos de todas as coisas. O fogo que
nunca se apaga não corresponde exatamente ao elemento
natural, mas simboliza a medida equilibrada de todo movimento.
O lógos é uma espécie de lei que comanda a multiplicidade
aparente das coisas, conferindo-lhe unidade e harmonia.
O mundo é um eterno devir para Heráclito, mas não
22
Módulo 1
como movimento desordenado, não há caos e particularidades,
mas há o lógos que ordena e equilibra a realidade aparente.
Heráclito critica veementemente todo conhecimento
que se baseia na opinião (dóxa), critica também os poetas
Homero, Hesíodo e os pitagóricos. Como Parmênides e Platão,

PEDAGOGIA
Heráclito funda seu pensamento na oposição entre aparência e
essência.

3.4 A escola eleata

O principal eleata é Parmênides (cerca de 530-460 a.C.).


Quando lemos o fragmento do belo poema intitulado “Sobre a
natureza”, imaginamos tratar-se de um poeta e não daquele
que inicia a lógica, fundando os princípios de identidade e de
não-contradição. Parmênides funda igualmente a ontologia,
Ontologia - palavra
ao utilizar a palavra Ser para expressar a arkhé de todas as composta pela palavra
grega ón, óntos (ser) e
coisas.
lógos. Significa ciência
No poema, após evocar as musas, que mostram o do ser, conhecimento
voltado para o ser,
caminho à carruagem conduzida por aquele que quer saber,
metafísica.
abrindo as portas do céu e ultrapassando umbrais, ele e as
musas chegam à Deusa (a razão) que se dirige desta forma ao
aprendiz:

Pois bem, eu te direi, e tu recebes a palavra que


ouviste,

Filosofia e Educação
os únicos caminhos de inquérito que são a pensar:
o primeiro, que é e portanto que não é não ser,
de Persuasão é caminho (pois à verdade acompanha);
o outro, que não é e portanto que é preciso não ser,
este então, eu te digo, é atalho de todo incrível (*no
qual não se deve crer);
pois nem conhecerias o que não é, nem o dirias.
(In: PRÉ-SOCRÁTICOS, 1978, p.142).

Só aquilo que é (o Ser) pode ser pensado e dito. O que


UNIDADE I

não é (o não-Ser) não pode ser pensado, nem dito. Parmênides


cria, portanto, uma identidade entre ser, pensar e dizer que
elimina o seu oposto como via de investigação impossível. O
primeiro caminho, o único que deve ser percorrido por aquele
que quer conhecer, é o caminho da verdade (alétheia). O
caminho a ser evitado é o da opinião (dóxa). O Ser, possível
de ser conhecido por meio do primeiro caminho, é entendido
por Parmênides com base nas seguintes características: não

23
Volume 2
foi gerado e não perece, isto é, é eterno, fixo, imóvel, uno,
contínuo, inteiro, sem fim, indivisível, idêntico a si mesmo,
pleno, encontra-se em limites como o de uma esfera.
Aparência e essência, novamente, são os polos
estruturais da oposição entre opinião, como uma falsa ou
PEDAGOGIA

aparente verdade, e essência, a que é verdadeira e alcançável


apenas pelo pensamento. Nesse sentido, Parmênides concorda
com Heráclito e ambos criticam a dóxa. A grande divergência
entre os dois filósofos ocorre em função do movimento e da
imobilidade do Ser.
Zenão de Eléa (cerca de 504/1-? a.C.), discípulo de
Parmênides, não escreveu uma cosmologia, mas se empenhou
em criar raciocínios lógicos complicados, chamados aporias,
para defender seu mestre, submetido a verdadeiras pilhérias ao
não aceitar o movimento como hipótese para o conhecimento
verdadeiro.
Podemos afirmar que jamais a filosofia nascente será
a mesma diante desse confronto Parmênides-Heráclito, pois
como explicar o movimento e a multiplicidade que enxergamos
no mundo como resultado de um princípio imóvel e completo
que não admite o movimento? Ou como pensarmos o mundo
como devir/movimento constante, sem precisar um princípio
de identidade que se separa da realidade transformadora?

3.5 A escola da pluralidade


Filosofia e Educação

Esta escola é justamente caracterizada por teorias que


multiplicam o princípio ou ser parmenediano e buscam conciliá-
lo com o movimento heraclitiano. Vamos conhecer os princípios
nomeados pelos filósofos dessa escola?
Empédocles de Agrigento (cerca de 490-435 a.C.):
compõe sua cosmologia com base na combinação do ser
parmenidiano, dividido em quatro raízes (rizómata) e duas
forças de movimento: philia e neikos, amor ou amizade e ódio.
UNIDADE I

As quatro raízes correspondem aos quatro elementos naturais:


terra, água, ar e fogo. Elas, embora separadas, guardam as
características do ser de Parmênides. A diferença é que para
Parmênides o ser era indivisível. A solução para o conflito,
originado pela oposição Heráclito-Parmênides, é admitir o
movimento de união e separação. No início de tudo, as raízes
estavam misturadas, foi necessária a ação de neikos para
separá-las. Separadas, contudo, elas não geram, nem reciclam
24
Módulo 1
suas características próprias. Philia vem, portanto, reuni-
las novamente, até o momento em que se faz necessária a
intervenção de neikos. Desse movimento de união e separação,
surgem todas as coisas e a ordenação da natureza.
Anaxágoras de Clazômena (cerca de 500-428 a.C.):

PEDAGOGIA
Se as raízes multiplicam o ser de Parmênides, as sementes
(spérmata) pensadas por Anaxágoras, com as mesmas
características do ser parmenediano, fragmentam mais ainda
o ser. Elas não são visíveis ao olho humano. Em relação ao
movimento, Anaxágoras, diferentemente de Empédocles,
nomeia uma só força: noûs (inteligência cósmica). No início
havia uma indissociação de elementos, misturados em um
magma primitivo. O noûs criou, de fora dessa mistura, um
movimento turbilhonante que separou as sementes de maneira
múltipla e originou tudo o que existe.
Leucipo de Abdera (outras fontes se referem a Mileto
ou Eleia) (cerca de 500-? a.C.) e Demócrito de Abdera (cerca
de 469-360 a.C.): esses atomistas, além de radicalizarem a
multiplicação do ser parmediano, criam em sua teoria uma
compreensão inédita: a admissão do não-ser como vácuo.
Átomo, que literalmente quer dizer o não-cortável, corresponde
ao ser de Parmênides, à diferença que são múltiplos, infinitos
e automoventes. Se eles correspondem ao ser, o espaço, no
qual se movem, não pode coincidir com a ideia de ser. Logo,
o espaço vazio, no qual os átomos se movem, chocando-se
uns contra os outros e originando todas as coisas existentes

Filosofia e Educação
no universo, é o vácuo ou o não-ser. Nessa teoria, que não
descarta a ideia central de ser em Parmênides e não nega o
movimento do qual tudo se origina de Heráclito, encontramos
a variação mais ousada das teorias pluralistas e que exercerá
forte influência em seus sucessores.
UNIDADE I

25
Volume 2

ATIVIDADE
PEDAGOGIA

2) A oposição entre o pensamento de Heráclito e Parmênides


é fundamental para entender o problema do conhecimento ao
longo da história da filosofia. Heráclito afirma a mudança, o
devir no qual se inclui o ser; Parmênides afirma o contrário:
há imobilidade, fixidez, eternidade do ser. Heráclito fala em
conflito dos opostos; Parmênides em identidade e princípio da
não-contradição. Em comum, eles criticam a dóxa (opinião),
como um conhecimento aparente e concordam, portanto, com
a distinção aparência e essência. Com base nisso, identifique,
nos exemplos abaixo, aquele que se relaciona de maneira mais
próxima a Heráclito ou a Parmênides:

a) Se Marlene é bonita, ela não pode, ao mesmo tempo,


ser feia;
b) O ser é; o não-ser não é;
c) Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um
dia. Tudo passa, tudo sempre passará ... (Lulu Santos/
Nelson Motta);
d) Ninguém é o que é, mas aquilo que veio a ser.
Filosofia e Educação

RESUMINDO

Você estudou, nesta unidade:

• Os problemas em torno do surgimento da filosofia:


- a origem na Grécia Antiga;
- empréstimos do mundo oriental,
bases materiais, culturais e científicas
do seu surgimento.
UNIDADE I

• Também estudou as cosmologias dos pré-socráticos e a oposição


entre o pensamento de Heráclito e Parmênides.

26
Módulo 1

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos

PEDAGOGIA
pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2002.
r e f eR Ê N C ia s

COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. 3. ed. Tradução


de Federico Carotti. Campinas: Editora Unicamp,1996.

CORNFORD, Francis M. Principium sapientiae: as origens


do pensamento filosófico grego. Tradução de Maria M. R. dos
Santos. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981.

COSTA, Alexandre. Heráclito: Fragmentos contextualizados.


São Paulo: Difel, 2002.

ERLER, Michael/GRAESER, Andreas. Filósofos da


Antiguidade: dos primórdios ao período clássico. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.

MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo. São Paulo:


Mestre Jou, 1971.

PETERS, F.E. Termos filosóficos gregos: um léxico histórico.


2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

PRÉ-SOCRÁTICOS. “Coleção os Pensadores”. 2. ed, Vol.1.

Filosofia e Educação
São Paulo: Abril Cultural, 1978.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego.


3. ed. Tradução de Ísis B. B. da Fonseca. São Paulo: Difel,
1981. UNIDADE I

27
Suas anotações
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2

unidade
PORQUE SÓCRATES É FILÓSOFO
E PORQUE A FILOSOFIA NÃO É UM SABER

Apresentar o contexto no qual a figura


Meta

de Sócrates foi concebida em oposição às


figuras do sofista e do poeta, bem como
destacar partes do diálogo, O Banquete de
Platão, que caracterizam a filosofia como
busca e aprendizado.

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz


Objetivos

de:

• distinguir os papéis conferidos


historicamente ao poeta, ao sofista e ao
filósofo;
• identificar a ironia e a maiêutica como
procedimento socrático;
• relacionar a definição de filosofia, em
O Banquete, ao aprendizado que se
funda no mundo sensível e se direciona
gradativamente ao mundo das Ideias.
Módulo 1

UNIDADE II

PEDAGOGIA
Filosofia e Educação

1 INTRODUÇÃO

Para você compreender o que seja a filosofia de Sócrates


UNIDADE II

e Platão, nosso roteiro de estudo dessa unidade é o seguinte:

• Tipos de sábios na Antiguidade Grega;

• Sócrates e sua proposição: “sei que nada sei”;

• Platão e a busca pelo saber.

31
Volume 2
2 TIPOS DE SÁBIOS NA ANTIGUIDADE GREGA

A palavra filosofia, em grego, resulta da união entre duas


palavras: philia, que quer dizer amor ou amizade, e sophia,
traduzida por saber ou sabedoria. Quando afirmamos que a
filosofia não é um saber, precisamos procurar entender o que
PEDAGOGIA

era considerado “saber” na época que antecede o surgimento


da filosofia no século V a.C. e você pode então perguntar:
Rapsodo (en grego quem eram os sábios na Antiguidade Grega?
clássico ραψῳδός /
rhapsôidós) é o nome O primeiro tipo de sábio nos remete à figura do poeta
dado a um artista
popular ou cantor que, ou poeta rapsodo. Os sábios (sóphos), em geral, eram
na Grécia antiga, ia
reconhecidos como poetas ou políticos, capazes de transmitir
de cidade em cidade
recitando poemas uma sabedoria religiosa ou moral. As pessoas acreditavam
(principalmente epo-
peias). que os poetas, inspirados pelas musas, eram portadores
de mensagens divinas e, por meio de suas narrativas orais
e escritas, contavam ao público como o mundo veio a ser o
que é, como os deuses o criaram, quais foram as primeiras
gerações de divindades, quais são as histórias dessas gerações
e de cada divindade e uma série de consequências, geradas
por meio das ordens que davam, e que determinavam a vida
dos humanos. São histórias ou mitos de relações sexuais e
amorosas, intrigas, vinganças entre os deuses, bem como de
atos de ousadia dos humanos contra as divindades, geralmente
punidos com castigos ou agraciados com recompensas. Essas
divindades eram múltiplas e imperfeitas. Nas narrativas dos
poetas, vemos que elas são feitas à imagem e semelhança dos
Filosofia e Educação

homens, com todos os defeitos e emoções que caracterizam as


ações humanas. A proximidade entre as divindades e os homens
é tão grande nessas narrativas que existe a possibilidade de
um deus copular com uma humana e, da união, nascer um
semideus.
Os textos escritos que guardam esse tipo de narrativa
são:

1. As epopeias de Homero: Ilíada e Odisseia;


2. A Teogonia de Hesíodo.
UNIDADE II

U V A Ilíada: A autoria da epopeia Ilíada é atribuída a Homero, poeta lendário,


a FR
K que teria vivido na Grécia, no século X a.C. O tema dessa epopeia é a
C AM
guerra de Troia. Divide-se a obra em 24 cantos, contendo 15.000 versos
hexâmetros. As personagens dessa obra são: o guerreiro mais veloz,
SAIBA MAIS

chamado Aquiles, e seu amigo Pátroclo, ambos gregos. Entre os troianos,


estão Príamo, Agamenon e Heitor, rei e filhos. Segundo narra a mitologia,
o motivo da disputa seria a bela Helena, entregue aos troianos por Atena

32
Módulo 1

como vingança por ter sido preterida ao disputar com Afrodite a escolha entre

SAIBA MAIS
as deusas mais belas. Além da disputa entre as divindades, a Ilíada representa
a vida guerreira no auge da Grécia.

A Odisseia: É também atribuída a Homero. Trata da representação da vida

PEDAGOGIA
doméstica, entremeada de narrações de viagens e de aventuras maravilhosas.
Divide-se também em 24 cantos e contém 12.000 versos hexâmetros. Seu
herói é Ulisses, que havia deixado Ítaca e sua esposa Penélope e empreendido
uma aventura durante 20 anos, na qual se depara com seres da mitologia,
entre eles os ciclopes (monstros de um olho só no meio da testa), enfrenta
o canto sedutor das sereias (monstros marítimos que conduziam os homens
a uma morte indigna), entre outros. A sagacidade de Ulisses faz com que
muitos autores enxerguem, na obra, uma passagem do poder religioso do
mito à razão humana.

A Teogonia: Também conhecida por Genealogia dos Deuses, é um poema


mitológico de Hesíodo (séc. VIII a.C.). Trata da origem dos deuses na Grécia,
descrevendo a origem do mundo a partir da Terra e do Céu. Segue-se a
formação de disnatias quando Cronos destrona o pai, Urano, e reina até seu
filho Zeus o destronar.

Assim narra Hesíodo, na Teogonia, a origem dos deuses, o


início do mundo:

Os Deuses primordiais
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
Dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
E Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,

Filosofia e Educação
E Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
Solta-membros dos Deuses todos e dos homens todos
Ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
(HESÍODO, 1992, 115-120).

O segundo tipo de sábio é descrito na lenda dos Sete


Sábios. Entre eles, encontramos nomeado o primeiro filósofo
ou físico Tales de Mileto, e Sólon, o governante que inicia a
democracia em Atenas. Eles seriam responsáveis por escrever
máximas ou leis morais, entre as quais se encontra o famoso
UNIDADE II

“Conhece-te a ti mesmo”, atribuído a Tales. Junto a esta, outras


máximas foram escritas no portal do famoso Oráculo de Delfos,
templo de Apolo, como por exemplo: “A maioria é perversa”;
“O cargo revela o homem”; “Indaga as palavras a partir das
coisas e não as coisas a partir da palavra”; “Nada em excesso”.
Essas leis morais eram conhecidas e respeitadas por todos,
inclusive a que guia Sócrates, o “conhece-te a ti mesmo”.

33
Volume 2

O Oráculo de Delfos: Escavações arqueológicas datam a existência inicial do


U V
a F R Oráculo em torno dos séculos XIV e XI a.C., sua “apolinização” no fim do século VIII. a.C.,
K
C AM seu apogeu entre os séculos VI e V a.C. e decadência no século II d.C. Em seu apogeu,
Delfos era uma Cidade-Estado, na qual se encontrava o Oráculo de Apolo. Apolo, filho de
SAIBA MAIS

Zeus e Leto, era a divindade, entre outros atributos, da música e da poesia. A “apolinização”
PEDAGOGIA

do Oráculo, que pertencia antes à Gaia (a Terra primordial), ocorreu, segundo o mito, quando
Apolo matou o guardião do Oráculo: um dragão ou serpente de nome Píton. Segundo
Brandão (2002, p. 94-95):
As cinzas do dragão foram colocadas num sarcófago e enterradas sob o omphalós,
o umbigo, o Centro de Delfos, aliás o Centro do Mundo, porque, segundo o mito, Zeus,
tendo soltado duas águias nas duas extremidades da terra, elas se encontraram sobre o
omphalós. A pele de Píton cobria o banco de três pernas (trípode) sobre o que se sentava
a sacerdotisa de Apolo, denominada, por essa razão, Pítia ou Pitonisa. Embora ainda se
ignore a etimologia de Delfos, os gregos sempre a relacionaram com delphýs, útero, a
cavidade misteriosa, para onde descia a Pítia, para tocar o omphalós, antes de responder às
perguntas dos consulentes. Cavidade se diz em grego stómion, que significa tanto cavidade
quanto vagina, daí ser o omphalós tão carregado de sentido genital. A descida ao útero de
Delfos, à ‘cavidade’, onde profetizava a Pítia e o fato de a mesma tocar o omphalós, ali
representado por uma pedra, configuram uma ‘união física’ da sacerdotisa com Apolo.

Para celebrar o triunfo de Apolo sobre o dragão Píton,


celebravam-se, de quatro em quatro anos, os Jogos Píticos.
As festas e os jogos se uniam à importância política e social
de Delfos. Dado o aspecto religioso, Delfos gozava de uma
neutralidade política, isto é, não era atacada pelas demais
Cidades-Estado que viviam em
permanente conflito. Para Delfos, ao
Filosofia e Educação

contrário, convergiam reis, guerreiros


e políticos e, da consulta ao Oráculo,
foram tomadas muitas decisões
importantes, seja em relação à
guerra ou em relação aos assuntos
internos das cidades.
Além do poeta, dos Sete
Sábios, há um terceiro tipo tido
como “sábio”: o sofista. Para alguns
UNIDADE II

comentadores do período, a palavra


sofista tem sua raiz em sóphos, para
outros, seria uma derivação de outra
palavra, sophistés. A primeira quer
dizer sábio, a segunda quer dizer
habilidade de falar bem e convencer
os outros. Esse segundo sentido é
FIGURA 1 - Portal do Oráculo de Delfos.
Fonte: www.mestradodaviz.blogspot.com/
mais adequado ao papel, exercido
34
Módulo 1
pelos sofistas, de “professor” dos jovens
atenienses que queriam aprender a falar
Apesar das críticas de Platão aos sofistas, é
U V
e convencer os outros nas assembleias necessário considerar a importância desses no a FR
K
contexto da polis (cidade com a característica C AM
políticas. Mas os sofistas diziam mesmo
de Estado), pois de seus ensinamentos resultou
tudo saber e serem capazes de falar sobre

SAIBA MAIS
a transformação do sentido de virtude (areté).
A virtude, anteriormente ao surgimento da

PEDAGOGIA
tudo. Julgavam-se sóphos, embora não
pólis ateniense, dependia do fator hereditário,
tivessem a autoridade religiosa, moral e isto é, era virtuoso quem fosse parte das
famílias que compunham a aristocracia rural.
política dos poetas e dos Sete Sábios.
Com a constituição democrática de Atenas,
Há, finalmente, um tipo de sabedoria supunha-se que todo cidadão – adulto,
homem, nascido em Atenas e livre, poderia,
prática, daqueles que sabem como fazer ou
com ajuda do ensino dos sofistas, aprender
produzir algo, mas ignoram a essência de a ser virtuoso, independentemente de seus
laços consanguíneos. Contribuíram também
seu fazer. Trata-se de um saber técnico.
para o estudo e desenvolvimento da retórica.
Os poetas e os sofistas são os exemplos Os sofistas mais citados são: Protágoras de
Abdera, Górgias de Leontini, Hípias de Élis,
que servem para Platão caracterizar a
Pródico de Ceos.
figura do filósofo. O poeta era um sábio no
Retórica: significa a arte de falar bem e o conjunto
contexto do mito, e o sofista se apresenta de regras que delimita essa capacidade.
como sábio. O filósofo é apresentado como
distinto desses porque não afirma deter o
saber, mas, sim, como aquele que busca o saber verdadeiro.

3 SÓCRATES: “SÓ SEI QUE NADA SEI”

Sócrates é considerado o primeiro filósofo. Os que vieram


antes dele, entre os quais Tales de Mileto, Pitágoras, Heráclito,

Filosofia e Educação
Parmênides, Demócrito e vários outros são chamados de pré-
socráticos.
O que sabemos de Sócrates e o que ele disse vem de
seus discípulos, pois ele não deixou nada escrito. Platão é seu
discípulo mais importante e responsável pela caracterização da
figura de Sócrates unida à própria definição de filósofo. Sócrates
é descrito nos diálogos como uma pessoa racional, que sabia
como dominar as emoções, bravo guerreiro, pai de três filhos,
casado com Xantipa, rodeado de muitos jovens discípulos,
UNIDADE II

amigos com quem bebe vinho, sem jamais se embriagar.


Segundo o discurso de Alcebíades:

(...) seu exterior dá a impressão de se estar em presença


de um ignorantão, de um tolo. Ora, tal não é o aspecto
do Sileno? Exatamente. Atentai, porém: este exterior o
envolve como uma estátua do Sileno – e se a abrirdes,
e contemplardes o seu interior, quanta sabedoria,
companheiros, havereis de lá encontrar! (PLATÃO, 1970,
216e).
35
Volume 2

U V No diálogo O banquete de Platão, encontramos, no discurso de


a F R Alcebíades, várias dessas descrições, às quais acrescentamos
K
C AM duas passagens que versam sobre a aparência física feia de
Sócrates e sua forma de falar, ambas comparadas à figura mítica
SAIBA MAIS

de Sileno.
PEDAGOGIA

Sileno (do grego Seilēnós) era um


dos seguidores de Dioniso. Era um
grande consumidor de vinho, sua
bebedeira encerrava um tipo de
sabedoria e sempre se encontrava
amparado por sátiros (gr.
sáturos,ou ‘sátiro’, primitivamente
um semideus rústico, dotado de
orelhas grandes e pontiagudas,
nariz achatado, chifres pequenos,
com rabo e pernas de cabra). A
palavra sátira possui essa origem e
diz respeito a uma técnica literária
FIGURA 2
que ridiculariza um determinado Imagem de Sileno com a flauta de Pan
tema ou pessoa. Fonte: http://3bp.blogspot.com

Quanto ao discurso de Sócrates, Alcebíades continua a tecer


a semelhança com os de Sileno, ao dizer:

De fato: uma coisa que me esqueceu dizer, ao começar


esse louvor, é que os discursos de Sócrates são muito
semelhantes aos dos silenos. Se alguém se dispõe a
ouvir-lhe os discursos, o primeiro impulso, com efeito,
é considerá-los ridículos, tais são as palavras e as
expressões que os envolvem, que se tem a impressão de
ver a pele de uma sátiro cômico. Fala em burros de carga,
Filosofia e Educação

em ferreiros, em sapateiros e em curtidores, e assim dá


a impressão de estar sempre a repetir as mesmas coisas,
com as mesmas palavras, - e a tal ponto, que desses
discursos se rirão os homens incultos e levianos. Mas,
que se abra o armário e se olhe o seu interior – e ver-
se –á que são os únicos discursos providos de profunda
significação; e também que são os mais divinos e os mais
ricos em imagens da virtude, e que abrangem muito, ou,
melhor, abrangem tudo o que deve observar um homem
desejoso de se tornar perfeito (PLATÃO, 1970, 221e-
222a).

UNIDADE II

Sócrates viveu no período de glória de Atenas e viu a


decadência da democracia ateniense. Neste período, Atenas
vivia problemas internos, como a peste que assolou a cidade e
matou Péricles, seu governante, e problemas externos, como a
Guerra contra Esparta. Ele já era um homem de 71 anos quando,
em 399 a.C., foi condenado por um tribunal formado por um
júri composto por quinhentos cidadãos atenienses, baseado

36
Módulo 1
na acusação de três cidadãos – Meleto (acusador principal),
Ânito e Lícon. A acusação era de “subverter a juventude” e
“não honrar os deuses da cidade”. Diante da proposta de fuga
e do exílio ou da proposta de uma alternativa à pena, Sócrates
prefere acatar a pena de morte e beber cicuta, uma planta

PEDAGOGIA
venenosa.
Teria feito sua própria defesa no tribunal e, do que disse
lá, resultaram dois textos, um de Platão e outro de Xenofonte,
também discípulo de Sócrates. No texto de Platão, a Apologia
de Sócrates, constam duas informações importantes sobre
este assunto:

a) Sócrates afirma não ser mestre de ninguém e nada saber;


b) Chama o irmão de Querofonte para testemunhar no tribunal
o que este teria ouvido como mensagem do Oráculo de
Delfos: que Sócrates era o mais sábio de todos.

Você pode notar que algo não combina nessas duas


afirmações. Sócrates, que não despreza a mensagem do
Oráculo, mas que dizia nada saber, resolveu pôr à prova a
verdade da mensagem. É desta forma que ele passou a
incomodar os chamados “sábios” da cidade, com o objetivo
de verificar se eles de fato sabiam o que diziam saber. Com
base em uma forma interrogativa, imitada por Platão em seus
diálogos, Sócrates põe abaixo falsas certezas e sabedorias
apenas aparentes, ao formular a questão “o que é (algo)?”

Filosofia e Educação
e não “como se faz” ou “para que serve (algo)”. A resposta à
questão “o que é?” não é fácil. Tente responder, por exemplo,
à questão “o que é o amor?”. Não é o mesmo que responder
“como é?”,“como se faz?” ou “para que serve?”
A conclusão foi a de que o Oráculo estava certo, pois
Sócrates, que dizia nada saber, sabia mais do que os outros,
ao provar que os que diziam saber, poderiam até saber como
fazer algo, mas não o que faziam.
UNIDADE II

ATIVIDADE
1) Leia o argumento de Sócrates, escrito por Platão, na Apologia, e
reconheça a missão atribuída a Sócrates pelo Oráculo:

Para testemunhar a minha ciência, se é uma ciência,


e qual é ela, vos trarei o deus de Delfos. Conhecestes

37
Volume 2

Querofonte, decerto. Era meu amigo do partido


do povo e seu companheiro naquele exílio de que
voltou conosco. Sabeis que o temperamento de
Querofonte, quão tenaz nos seus empreendimentos.
Ora, certa vez, indo a Delfos, arriscou esta consulta
PEDAGOGIA

ao oráculo – repito, senhores; não vos amotineis –


ele perguntou se havia alguém mais sábio do que
eu; respondeu a Pítia que não havia ninguém mais
sábio. Para testemunhar isso, tendes aí o irmão dele,
porque ele já morreu.

Examinai por que vos conto eu esse fato; é para


explicar a procedência da calúnia. Quando soube
daquele oráculo, pus-me a refletir assim: ‘Que
quererá dizer o deus? Que sentido oculto pôs na
resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem
muito sábio nem pouco; que quererá ele, então,
significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente
não está mentindo, porque isso lhe é impossível’. Por
longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido;
por fim, muito contra meu gosto, decidi-me por uma
investigação, que passo a expor. Fui ter com um dos
que passam por sábio, porquanto, se havia lugar, era
ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus:
‘Eis aqui um mais sábio que eu, quando tu disseste
que era eu!’ Submeti a exame essa pessoa – é
escusado dizer o seu nome; era um dos políticos. Eis,
Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da
conversa que tive com ele; achei que ele passava
por sábio aos olhos de muita gente, principalmente
aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então,
Filosofia e Educação

a explicar que supunha ser sábio, mas não o era. A


conseqüência foi tornar-me odiado dele e de muitos
dos circunstantes.

Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo:


‘Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem
provável que nenhum de nós saiba nada de bom,
mas ele supõe saber. Parece que sou um nadinha
mais sábio que ele exatamente em não supor que
saiba o que não sei’. (21 a-e, tradução de JAIME
BRUNA).
UNIDADE II

Em relação a Sócrates, podemos encaminhar as seguintes


conclusões intermediárias:

a) A figura de Sócrates, construída por Platão, coincide com


a caracterização do filósofo como aquele que duvida de
verdades aparentes ou opiniões falsas e investiga, por
meio do diálogo, o alcance dessas até demonstrar sua
parcialidade e, portanto, falsidade, pois a verdade não

38
Módulo 1
varia e nem possui um caráter particular. A verdade é
universal.

b) Sócrates, que afirma nada saber, é mais sábio do que


os que ignoram que nada sabem e afirmam saber. Ao
mesmo tempo, Sócrates, ao admitir que nada saber,
pode empreender a busca do saber e, por isso, Platão

PEDAGOGIA
define como filósofo aquele que não detém a verdade,
mas a busca.

c) Ao investigar a “verdade” do Oráculo, Sócrates se


indispôs com muitas pessoas. Essa conduta teria
favorecido seus acusadores. As acusações encontraram
suporte e foram aceitas em vista da desagregação
política vivida nesse período decadente de Atenas.

4 PLATÃO E A BUSCA DO SABER

Platão se empenhou em destruir os falsos saberes e,


por outro lado, orientar o jovem discípulo na construção do
saber verdadeiro. O primeiro movimento se caracteriza pela
dialética aporética. Esse movimento se relaciona fortemente
com o sentido de ironia socrática e seu efeito de refutação ou
contradição.

Filosofia e Educação
Dialética aporética: Essa expressão reúne dois significados importantes da U V
a FR
origem e história da filosofia, mas possui um sentido estrito quando relacionada K
a Sócrates. Significa que, por meio do diálogo, Sócrates combate as ideias que
C AM
tomam casos particulares como regra geral, contradizendo-as e mostrando que
SAIBA MAIS

não servem para todos os casos e não são verdadeiras. Por exemplo, definir o
que é a coragem, o que é a justiça etc., a depender dos interlocutores e suas
opiniões particulares, o perguntar insistente de Sócrates termina por apenas
contradizer as proposições a respeito de algum tema: esse é o significado de
dialética. Por não chegar a lugar algum, a resposta esperada é aporética. Em
grego aporia quer dizer “sem saída”, raciocínio sem conclusão, paradoxo.
UNIDADE II

39
Volume 2

ATIVIDADE
PEDAGOGIA

2) Leia a passagem do diálogo Eutífron, de Platão, e verifique tanto


a função da ironia, quanto a sensação de esvaziamento das certezas,
na qual o interlocutor de Sócrates é posto:

Eutífron: Sócrates, não sei mais como dizer-te o que tenho


em mente: qualquer definição que propomos nos gira, não
sei como, sempre ao redor, e não quer permanecer firme
no lugar em que a colocamos.
Sócrates: As definições que deste, Eutífron, parecem
assemelhar-se às tais definições do meu progenitor
Dédalo. E, caso eu formulasse e propusesse tais definições,
talvez pudesses ridicularizar-me, como se, por causa
do parentesco que tenho com ele, minhas obras feitas
de palavras escapassem e não quisessem permanecer
firmes no lugar em que as colocamos. Ora, ao contrário,
as definições propostas são tuas. Por isso, esta imagem
brincalhona não convém ao teu caso: de fato, não querem
permanecer firmes para ti, como tu próprio confessas.
Eutífron: Sócrates, parece-me, ao contrário, que a imagem
brincalhona convenha muito bem às minhas definições:
de fato, este girar delas e não querer permanecer firmes
no mesmo lugar, não sou eu que o produzo, e o Dédalo
me parece que sejas exatamente tu, porque, por minha
vontade, permaneceriam firmes assim.
Sócrates: Então, amigo, dá-se o caso de que eu tenha me
tornado mais hábil na arte de meu antepassado, a tal ponto
Filosofia e Educação

que, enquanto ele sabia tornar móveis apenas as próprias


obra, eu, como parece, além das minhas, torno móveis
também as dos outros. E, sem dúvida, o que de mais notável
existe na minha arte é o fato de que sou hábil sem querer.
Eu desejaria, de fato, que meus discursos permanecessem
firmes, e que estivessem imóveis... (Platão, Eutífron, 11
d-e).

O segundo movimento diz respeito à técnica da maiêutica


ou parturição de ideias. O jovem discípulo “prenhe” de ideias,
como uma mulher grávida de seus filhos, é auxiliado por
UNIDADE II

Sócrates a dar a luz às ideias verdadeiras. Sócrates, como a


parteira, que geralmente é uma mulher mais velha e incapaz de
gerar filhos, é também estéril de saber. Sua função, portanto,
é daquele que, por um lado, conduz o suposto sábio a um
beco sem saída, sem dar-lhe respostas e, por outro, é também
o que auxilia o jovem a pensar corretamente, sem, contudo,
doutriná-lo sobre a verdade.

40
Módulo 1

ATIVIDADE

PEDAGOGIA
3) Leia com atenção a passagem do diálogo Teeteto, de Platão,
identificando a técnica da maiêutica, com base na famosa analogia
entre o trabalho da parteira e do filósofo. O início do trecho marca
bem a diferença entre aquele que esvaziou suas opiniões aparentes,
e aquele que, ao contrário, está cheio de ideias na cabeça.

Sócrates: É que tens as dores do parto, caro Teeteto,


porque não estás vazio, mas grávido.
Teeteto: Não sei, Sócrates. Digo-te, porém, o que estou
sentindo.
Sócrates: Mas então, ridículo rapaz, não ouviste dizer que
sou filho de uma famosa e hábil parteira, Fenarete?
Teeteto: Já ouvi dizer isso.
Sócrates: E ouviste dizer que pratico a mesma arte?
Teeteto: De modo nenhum.
Sócrates: Então, saibas que é assim. Porém não o digas
aos outros. De fato, amigo, mantive escondido que possua
essa arte: eles, não sabendo disso, não dizem isso de
mim, e sim que eu sou um homem estranhíssimo e deixo
em embaraço os outros. Ouviste dizer também isso?
Teeteto: Sim.
Sócrates: Digo-te, portanto, o motivo?
Teeteto: Sim, por favor.
Sócrates: Pensa bem em tudo o que se refere à condição
das parteiras e aprenderás mais facilmente o que quero
dizer. Talvez saibas, de fato, que nenhuma delas, enquanto

Filosofia e Educação
ela própria está em grau de ser fecundada e de parir, serve
como parteira para outras mulheres, mas o fazem aquelas
que já não podem parir.
Teeteto: É exatamente assim (...).
Sócrates: [É] inevitável que as parteiras reconheçam,
mais que as outras mulheres, as que estão grávidas e as
que não estão?
Teeteto: Certamente (...)
Sócrates: Esta, portanto, é a grande tarefa das parteiras,
embora inferior à minha obra. Às mulheres não ocorre
parturir uma vez fantasmas e outra vez filhos verdadeiros,
e isto não é demasiado fácil de distinguir. Se tal
UNIDADE II

acontecesse, seria, para as parteiras, obra muito grande


e muito bela saber julgar o que é verdadeiro e o que não
é. Não achas?
Teeteto: Sim, acho.
Sócrates: Minha arte de obstetra possui todas as
características que competem às parteiras, mas delas difere
pelo fato de que serve como parteira para os homens e não
para as mulheres, e se aplica a suas almas parturientes,
não aos corpos. E existe isso de absolutamente grande na
minha arte: ser capaz de pôr à prova de todo modo se o

41
Volume 2

pensamento do jovem pári um fantasma e uma falsidade,


ou o quê de vital e de verdadeiro. Uma vez que isso ao
menos é comum a mim e às parteiras: não posso gerar
sabedoria; o que muitos já me reprovaram é que eu, de fato,
interrogo os outros, mas depois eu mesmo não manifesto
PEDAGOGIA

nada sobre nenhum argumento, aduzindo como causa o


meu não ser sábio em nada – reprovação que corresponde
à verdade. (...) Os que me freqüentam, primeiro, alguns
parecem ignorantes, e também, muito, mas depois todos,
continuando a freqüentar-me, fazem progressos tão
extraordinários, que eles percebem e também os outros. E
isto é claro: de mim jamais aprenderam coisa alguma, mas
são eles que, por si mesmos, descobrem e geram muitas
coisas bonitas. Todavia, fomos o deus e eu que servimos
para eles como parteiras. E isto o torna evidente: muitos
que antes ignoravam esse fato e atribuíam todo o mérito
a si mesmos, desprezando a mim, ou por si mesmos
persuadidos por outros se afastaram de mim antes do
devido tempo; mas, afastados, fizeram abortar todo o
resto, (...), levando falsidades e fantasmas em maior conta
do que a verdade, e acabando por parecer ignorantes a si
mesmos e aos outros. (PLATÃO, 1980, 148e-151d).

Platão herda de Sócrates esses dois métodos: a dialética


aporética e a técnica da maiêutica, e avança na construção
do saber verdadeiro. Com a disponibilidade gerada pela
constatação de que não sabemos tanto quanto supúnhamos
Filosofia e Educação

saber, Platão constitui o filósofo como o auxiliar da busca árdua


e sofrida do saber verdadeiro.
Em O Banquete, Platão nos motiva a pensar sobre um
tipo de amor que não é philia, a amizade, mas, Eros, o amor
apaixonado e carnal. Trata-se de um encontro de atenienses
bem nascidos, para o qual Sócrates foi convidado. Sócrates que
foi filho de um marceneiro e de uma parteira e que anda como
um mendigo pela cidade, mas que, nesse dia, banha-se e calça
sandálias. O anfitrião é um poeta trágico que comemorava um
prêmio recebido no dia anterior. As personagens do encontro
UNIDADE II

são históricas, com exceção de uma mulher chamada Diotima,


mas que é apenas lembrada, pois as mulheres não participavam
dessas reuniões (a não ser como escravas e flautistas),
reservadas aos homens. Enquanto bebiam regradamente
vinho, resolveram louvar Eros, inicialmente como um deus que
não recebia louvores.
São sete discursos, entremeados por passagens de

42
Módulo 1
diálogos. Não há sofista presente, mas poetas, que falam muito
bem e tratam Eros como o deus que coincide com a beleza e
a bondade e que é a causa desses benefícios aos homens.
Sócrates, dialogando com Diotima, desfaz essa identidade:
Eros não é deus ou imortal, nem sábio, nem belo, nem bom.

PEDAGOGIA
Também não é o contrário disso: humano ou mortal, ignorante,
feio e mau. Ele é um intermediário entre esses extremos, pois
reconhece o que não tem e o que busca ter: a imortalidade, a
sabedoria, a beleza e a bondade.
De todos esses atributos, o mais difícil parece ser
o da imortalidade, para aquele que empreende essa busca.
Como ser imortal? A única certeza que temos é a da morte:
“todo homem é mortal”. Mas a ideia de imortalidade pode ser
alcançada, segundo o Sócrates descrito por Platão, nos graus
ascendentes da busca pelo saber e no resultado criativo ou
produtivo que se alcança nessa busca: na procriação de filhos,
na produção de discursos e de leis, a mais alta das criações.

Filosofia e Educação
UNIDADE II

FIGURA 3 - Ânfora, que mostra a imagem de homens recostados no divã, com a


cena de um Banquete.

Fonte: www.planetaeducacao.com.br/novo/imagens/artigos/historia/alimentacao_greco_romana_01.jpg

43
Volume 2

ATIVIDADE
PEDAGOGIA

4) Leia com atenção o trecho de O Banquete, no qual se fala dos


graus ascendentes em busca do saber. Descubra, na leitura, a
passagem do mundo sensível ao mundo das ideias, por meio da
produção de “belas palavras”, das leis e da contemplação das ideias.
Esse processo diz respeito ao aprendizado amoroso e filosófico do
aprendiz, representado por Sócrates no diálogo com Diotima:

Se és capaz, tenta acompanhar-me (diz Diotima a


Sócrates):

Todo aquele que deseja atinge essa meta ideal, praticando


acertadamente o amor, deve começar em sua mocidade
por dirigir a atenção para os belos corpos, e antes de
tudo, bem conduzido por seu preceptor, deve amar um
só corpo belo e, inspirado por ele, dar origem a belas
palavras. Mas, a seguir, deve observar que a beleza
existente num determinado corpo é irmã da beleza que
existe em outro - e que, desde que se deve procurar
a beleza da forma, seria grande mostra de insensatez
não considerar como sendo uma única e mesma coisa
a beleza que se encontra em todos os corpos. Quando
estiver convencido desta verdade, amará todos os belos
corpos, passando a desprezar e ter como coisa sem
importância o violento amor que se encaminha para um
só corpo. Em seguida, considerará a beleza das almas
como muito mais amável do que a dos corpos, e destarte
Filosofia e Educação

será conduzido por alguém que possua uma bela alma,


embora localizada num corpo despido de encantos, e a
amará, zelando por sua felicidade, e inspirando-lhe belos
pensamentos capazes de tornar os jovens melhores. O
amante contemplará desse modo a beleza que há nos
costumes e nas leis morais, notando que a beleza está
relacionada com todas as coisas e considerará a beleza
corpórea como pouco estimável. (...). Quando um homem
foi assim conduzido até esta altura da arte amorosa e
viu as coisas belas em gradação regular; quando atingiu
corretamente a instituição amorosa, esse homem,
caro Sócrates, verá bruscamente certa beleza, de uma
UNIDADE II

natureza maravilhosa, aquela que era justamente a razão


de ser de todos os seus trabalhos anteriores (PLATÃO,
1970, 210 a-e).

44
Módulo 1
Em relação a Platão, você pode, a essa altura, chegar a
algumas conclusões a partir do que foi exposto e das atividades
que fez:

1. Platão elabora a distinção entre o mundo verdadeiro,

PEDAGOGIA
alcançável pelo esforço do pensamento, e o mundo do
vir-a-ser ou das aparências. O mundo verdadeiro ou
das Ideias é eterno, imutável, não sofre alterações. A
beleza é uma ideia única, idêntica a si mesma, que
participa indiretamente da realidade sensível, mas
que não se altera. A ideia de beleza não se apresenta
“como rosto ou como mãos ou qualquer outra coisa
corporal” (PLATÃO, 1970, 211a), nem como discursos
ou conhecimento. As coisas sensíveis, os corpos são
individualidades que podem participar indiretamente
da ideia de Beleza, mas elas nascem e morrem. A
beleza sensível, como reflexo da ideia de Beleza, está
submetida à transformação contínua, varia com a
idade.

2. O esforço empreendido pelo pensamento ou alma


(psykhé) transita, como você viu, da esfera do sensível
ao inteligível ou mundo das Ideias. A alma é uma
espécie de ser intermediário que não renuncia a nenhum
dos dois mundos, ao contrário, depende de um certo
aprendizado que se inicia no sensível. Uma espécie de

Filosofia e Educação
pedagogia amorosa sustenta o diálogo de Diotima e
Sócrates, pressupondo a função de um professor que
inicia o aluno nas questões amorosas, valendo-se das
etapas de ascensão motivada pela contemplação da
Beleza e suas manifestações sensíveis.

3. O filósofo é igualmente esse ser que transita entre os


dois mundos e que é capaz de identificar, nas coisas
sensíveis e mutantes do vir-a-ser, a presença da ideia
UNIDADE II

que se manifesta na variedade e transitoriedade das


coisas, mas que permanece única, idêntica a si mesma
e eterna.

45
Volume 2

BRANDÃO, Junito de S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes,

r e f eR Ê N C ia s
2002.
PEDAGOGIA

HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga? Tradução de Dion


Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1999.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de


J.A.A. Torrano. 2. ed. São Paulo: Iluminuras, 1992.

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução de Jaime Bruna.


2. ed. São Paulo: Abril Cultural, Coleção “Os Pensadores”,
1980.

PLATÃO. O banquete. Tradução de Jorge Paleikat. Rio de


Janeiro: Edições Ouro, Coleção “Universidade”, 1970.

WOLLF, Francis. Sócrates. São Paulo: Brasiliense, Coleção


“Encanto Radical”, 1982.
Filosofia e Educação
UNIDADE II

46
Suas anotações
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3

unidade
AS PROPOSTAS EDUCATIVAS EM PLATÃO E
ARISTÓTELES:
MÍMESIS E APRENDIZAGEM

Expor a crítica de Platão à educação


Meta

tradicional com base em sua crítica


à mímesis e seu contexto político e
contrastar com o entendimento da função
mimética no processo de educação pública
em Aristóteles.
Objetivos

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz


de:

• reconhecer o processo do conhecimento e


a crítica à mímesis em Platão.
• identificar processos miméticos de apren-
dizagem em Aristóteles.
Módulo 1

UNIDADE III

PEDAGOGIA
Filosofia e Educação

1 INTRODUÇÃO
UNIDADE III

Nesta terceira unidade, você verá, nas filosofias de Platão

e Aristóteles, a questão da educação sob dois aspectos:

• O conceito de mímesis vinculado negativa ou

positivamente ao processo do aprendizado;

• A função da educação no contexto político.

51
Volume 2
2 O CONCEITO DE MÍMESIS E O PROCESSO DO
APRENDIZADO EM PLATÃO

Em Platão, o conceito de mímesis está relacionado à


PEDAGOGIA

produção de imagens (eikones) como cópias distintas do que


Mímesis, mimésis
ou mimese (do grego seria a verdadeira realidade. No diálogo A república, Platão
μίμησις): ‘imitação’ < v.
torna a arte subalterna à pedagogia, à moral e, englobando as
miméómai-oûmai ‘imitar
(no sentido físico, a voz, duas, à política. Essas instâncias estão sujeitas à preocupação
os gestos)’, e ‘imitar
maior com o conhecimento verdadeiro.
(no sentido moral, as
ações, as virtudes)’ e Na passagem do diálogo A república, Livro X (595c-
ainda ‘imitar por meio
598c), Platão apresenta a distinção entre aquele que “cria”
de pantomimas’.
e aquele que “imita”. A imitação consiste na reprodução da
ideia em diferentes graus de aproximação e distanciamento da
verdade. Você pode perceber isso na passagem abaixo:

A imitação está, portanto, longe do verdadeiro, e


se ela modela todos os objetos, é, segundo parece,
porque toca apenas uma pequena parte de cada
um, a qual não é, aliás, senão uma sombra. O
pintor, diremos nós, por exemplo, nos representará
um sapateiro, um carpinteiro ou outro artesão
qualquer sem ter nenhum conhecimento do ofício
deles; entretanto, se não for bom pintor, tendo
representado um carpinteiro e mostrando-o de
longe, enganará as crianças e os homens privados
de razão, porque terá dado à sua pintura a aparência
de um autêntico carpinteiro (PLATÃO, 2006, 595c-
Filosofia e Educação

598c).

O carpinteiro, no exemplo de
U V Diálogos de Platão: Platão (429-347 a.C.) não
a FR apresentou suas ideias em nenhum tratado sistemático,
A república, e a arquitetura, no
K
C AM e seu pensamento tem de ser deduzido a partir dos diálogo O Sofista, possuem uma
textos escritos em forma de “diálogo” em que ele não
aproximação maior com a ideia
SAIBA MAIS

aparece abertamente. O encanto principal dos Diálogos


consiste na encenação dramática, na descrição dos verdadeira, pois lidam diretamente
cenários, nos personagens divertidos e na ironia jovial
de Sócrates (469-399 a.C.), personagem principal de
com o conceito do objeto que
muitos deles. Embora a datação da obra de Platão produzem. Já a pintura e a escultura
ainda seja objeto de grande controvérsia, pode-se
não partem da abstração, mas da
UNIDADE III

agrupar os textos mais ou menos desta maneira: 1º


grupo [399 a 387 a.C.]: Sócrates e suas ideias são os cópia dos objetos já existentes
personagens principais (Ex.: Íon, Eutífron, Apologia,
Críton); 2º grupo [387 a 367 a.C.]: Sócrates é figura
e, por isso, são consideradas
dominante, mas grande parte de seu pensamento é, resultado de imitação no nível
na verdade, do próprio Platão (Ex.: Fédon, Banquete,
República, Teeteto); 3º grupo [360 a 347 a.C.]:
mais distanciado da verdade. Para
Sócrates raramente aparece, e as ideias apresentadas existir alguma presença indireta
são as de Platão (Ex.: Sofista, Timeu, Leis).
da verdade na arte, ela deve
Fonte: RIBEIRO JR., W.A. Os Diálogos de Platão. Portal
Graecia Antiqua, São Carlos. Disponível em www.greciantiga. refletir a ideia de Bem através
org/iniciantes.asp?num=0220. Acesso em: 3 maio 2009.
do comportamento. A música é
52
Módulo 1
imitativa neste sentido, por ter condições de representar o
comportamento de homens bons e maus. O músico, ao decidir
qual o ritmo que irá utilizar, decide também qual modo de vida
quer a ele associar (Leis 669 d-e e 798 d-e; A república 400 Ernesto Grassi
(1902-1991),
a). As danças, igualmente, são imitações de ações, destinos, nascido em Milão,

PEDAGOGIA
modos de vida e caráter moral (Leis 795 e-796 e). Segundo Itália, escreveu

PARA CONHECER
sobre a retórica
Grassi (1975), humanista italiana,
a fim de demonstrar
sua importância
(...) a ação (praxis) humana seria, portanto, um no pensamento
elemento essencial de tudo aquilo que é objeto contem-porâneo.
da arte, enquanto revela comportamentos e Estudou filosofia
caracteres. Isto significa que o sentido e o valor em Freiburg, na
moral válido das ações e das paixões humanas é Alemanha, onde
lecionou em
o fundamento para o juízo de uma obra de arte.
1935, até fugir da
Nasce daqui a crítica de Platão em relação à arte: Alemanha nazista.
já que esta não tira sua própria origem do saber,
dificilmente estará em condições de representar os
valores válidos das ações humanas; ela conduz na
maioria das vezes a uma ilusão perigosa (p. 108).

Além de a arte se constituir como uma ilusão perigosa,
os artistas, entre os quais, os poetas, para Platão, não sabem
o que fazem. É o que podemos constatar em uma passagem
da Apologia, onde Sócrates havia perguntado aos políticos,
artesãos e poetas em que consistia a sabedoria e disse ter
ouvido destes últimos:

Logo soube pelos poetas que eles também não

Filosofia e Educação
escreviam o que escreviam graças à sabedoria,
mas por um dom da natureza e por uma inspiração,
semelhante à dos adivinhos e dos augures. Porque
estes também dizem muitas coisas belas, mas não
sabem o que dizem (PLATÃO, 1980, 22 b-c).
Verosimilhança:
o que é verossímil;
Em A república (511 e, 602 a), Platão diz que a arte que tem aparência de
não visa a essência das coisas e tem o papel de criar apenas verdade; semelhante
à verdade; plausível;
verosimilhança e imagens ilusórias. E pior, o artista não só provável.
desconhece o que faz; mas, ao criar imagens ilusórias, engana
tanto quanto o sofista com suas palavras. Em A república,
UNIDADE III

em referência ao mundo em transformação e à eternidade do


mundo das ideias, Platão diz:

Qual destas duas coisas aparece? Imita a aparência


ou a verdade? – A aparência, diz ele. – A arte
imitativa está muito longe da verdade e é por isso
que ela faz qualquer coisa, porque capta de cada
uma apenas uma pequena parte, que é sombra
daquela (PLATÃO, 2006, 598 b).

53
Volume 2

Os espectadores da arte nesse grau de imitação são


igualmente incapazes de reconhecer a verdade, inseridos
como estão naquilo que é passional, turvo e, por consequência,
mau.
PEDAGOGIA

Como Heráclito e Parmênides, que já estudamos


na Unidade I, Platão separa o mundo aparente do mundo
verdadeiro. O mundo verdadeiro só é possível ser alcançado pelo
pensamento, capaz de lidar com representações matemáticas
abstratas e com as ideias únicas e eternas. Platão estabelece
graus de conhecimento: do mais obscuro, múltiplo e imagético
à visão das ideias únicas e verdadeiras. A realidade concreta
e sensível nada mais é do que o reflexo impreciso e variado
de uma única ideia. Por exemplo: podemos dizer que não
existem corpos belos, mas uma ideia única de beleza que
jamais se altera, e que se manifesta indiretamente nos corpos
existentes.
O mundo aparente e o mundo verdadeiro formam uma
divisão conhecida em Platão por: mundo das Ideias e mundo
visível. Você pode verificar essa divisão no quadro abaixo,
entre o Mundo das Ideias ou mundo inteligível e o Mundo das
Aparências ou mundo visível ou ainda mundo sensível:

Mundo Inteligível ou Mundo das Ideias


Eidos (ideia) episteme (ciência/conhecimento)
Filosofia e Educação

Cosmos eidéticos (Mundo das ideias)

Zoá (coisas vivas) Dóxa (opnião)


Eikones (imagens) Eikasia (suposição)
Cosmos aisthetikós (mundo sensível)

Mundo Visível ou Mundo das Aparências

A mímesis é uma das ideias escolhidas por Platão, tão


UNIDADE III

importante quanto a de participação (méthexis), para exprimir


a relação entre as ideias (os eide) e os particulares sensíveis
(aistheton). Vemos isso na passagem, citada inicialmente, da
República: o demiourgos – artista humano ou divino - tem a
capacidade de produzir em dois níveis: os originais ou reais
(cosmos eidético) e as imitações/representações ou imagens.
A aplicação dessa divisão e a função mimética oscilam nos
diálogos.
54
Módulo 1

Na República [596b], o artista divino cria o


original, isto é, o eidos cama, o carpinteiro produz
a cama física que é apenas um eikon vis-à-vis do
eidos, mas é o ‘original’ para a cama do pintor”,
que, podemos concluir na seqüência, é puro eikon

PEDAGOGIA
(PETERS, 1983, p.144).

Na sequência dessa citação, o autor conclui que:

(...)um ponto de vista é claro: a atividade conhecida


como mimesis tem como seu produto uma entidade
cujo estatuto ontológico é inferior em relação ao do
seu modelo. Assim (...) este princípio estabelece
a relação entre este mundo e o mundo dos eide,
fundamenta a teoria platônica do conhecimento,
e na esfera moral é o ponto de partida para seu
ataque à arte (PETERS, 1983, p.144).

Platão, ao condenar os artistas, em particular os poetas


Homero e Hesíodo na República, se vale, como se sabe, de
uma radicalidade política, pois se trata de estabelecer ali uma
sociedade dirigida pela razão e não pela paixão. Grassi (1975)
diz:

Se a arte é imitação e representação de ações que


despertam em nós as paixões e o público segue
mais facilmente ações passionais do que colocações
racionais, decorre daí que a imitação poética em

Filosofia e Educação
suas ações deve ser julgada negativamente.(...)
Em outras palavras, desde que as paixões – que não
estão sujeitas à razão – representam um retrocesso
em relação à perfeição humana, sua imitação é
também inevitavelmente a representação de uma
não-realidade, ou seja, da mera aparência. (...)
A eikasia ou a imitação, como a arte a executa
costumeiramente, não é obra do conhecimento e
sim da opinião porque revela o que é ‘possível’ e
não o que é ‘realmente’; por este motivo Platão
a desaprova. O ‘possível’ como objeto da arte
é julgado negativamente por ele; mais tarde,
em Aristóteles, este conceito vai assumir outra
UNIDADE III

importância na determinação da arte e do belo


(p.109).

Marques (2007) mostra como, no diálogo O Sofista,


a imagem, suas reproduções e a produção, por imitação ou
não, ganham um novo significado em Platão. Ao considerar
os diálogos O banquete, Timeu e principalmente o Sofista, o
autor associa mímesis à produção (poiésis) de imagens. “Ao
55
Volume 2
formular um discurso crítico sobre a produção de imagens,
Platão não está ‘recusando’ a imagem, pelo contrário, ele a
está incluindo” (MARQUES, 2007, p.175).
Em República e no Timeu, as coisas são imagens
Alteridade (ou outridade):
U V
a FR imperfeitas da forma inteligível que é o paradigma de
é a concepção que parte
PEDAGOGIA

K
C AM do pressuposto básico de tudo o que existe. No Sofista, essa relação se torna
que todo homem social
mais complexa sob o prisma da alteridade unida à
SAIBA MAIS

interage e interdepende de
outros indivíduos. Assim, ideia de participação. Trata-se de uma ideia que se
muitos antropólogos e
relaciona com o “desdobramento reflexivo da própria
cientistas sociais afirmam: a
existência do “eu-individual” realidade” e com a realidade fabricada pelo homem.
só é permitida mediante um
Esclarecendo o significado de deus, em Platão,
contato com o outro (que em
uma visão expandida se torna em associação com o trabalho artesanal humano,
o Outro - a própria sociedade
Marques diz:
diferente do indivíduo).

A inteligência que está no cosmo é o resultado da


atividade de um deus. A atividade artesanal humana
pode participar desta inteligência por imitação,
mas para alcançar este nível deve satisfazer uma
condição: o conhecimento (p.173).

O fundamental é distinguir, na produção de imagens, a


ação produtiva. Opor a produção divina e a humana é o primeiro
passo que tem, na própria caracterização de Deus, como
Antropomorfismo:
Do gr. Anthropos produtor, a marca de um alto grau de antropomorfismo.
(homem) e morphé
(forma) significa o
que possui a forma “A oposição produção divina-homem”, segundo Marques
humana. (p.173), “serve para pôr em perspectiva:
Filosofia e Educação

● As condições da legitimidade da ação produtiva humana.


Ela será boa se for inteligente, informada pelo conhecimento;
● A não legitimidade da produção sem conhecimento
(poetas e sofistas)”

Há, portanto, uma ação produtiva divina, que produz


imagens na natureza. Os reflexos, os sonhos são imagens
naturais por fabricação do produtor-deus ou deus-artesão.
UNIDADE III

Esse desdobramento da própria natureza em reflexos cria o


“outro” de si mesma pela imagem.
“Os homens produzem todos os tipos de coisas visíveis
(imagens, mesmo as faladas), mas eles produzem também
uma certa espécie de coisas visíveis que têm” (p. 177) um
propósito usurpador ou substitutivo das coisas mesmas.
Essa é a principal crítica de Platão aos poetas e sofistas, os
quais, portanto, não devem servir de suporte a um modelo de

56
Módulo 1
educação que prevê uma sociedade justa. Pois, para tanto, é
necessário conhecer o que é o Bem que orienta o agir virtuoso
e justo, baseado no conhecimento da justiça.
A alegoria da caverna, no início do Livro VII de A República,
pode servir tanto como ilustração da crítica à mímesis por Platão,

PEDAGOGIA
quanto para mostrar a fundamental referência à educação e
ao processo de aprendizagem. Os graus de distanciamento da
realidade verdadeira, que são visualizados como níveis do mais
difuso ao mais claro, são graus de conhecimento, de períodos
do processo de aprendizagem, estruturados detalhadamente
por Platão na República, em bases curriculares que seguem
determinada faixa etária e processos de seleção.
O pressuposto da descrição diz respeito à educação
ou à ausência desta e supõe um orientador, um pedagogo,
responsável por trazer para fora da caverna aquele que se
encontrava acorrentado em seu interior, no
grau mais baixo e distorcido do conhecimento,
representado, na alegoria, pelas sombras.
Neste nível, as sombras são os simulacros, isto
é, cópias das cópias, presentes no desfile das
estatuetas de pessoas, animais na alegoria da
caverna, que eram carregadas pelas pessoas
que passavam atrás do muro e cuja sombra
(dos objetos) era projetada na parede da
caverna em frente aos acorrentados. Isto é,
as estatuetas que eram cópias sofriam uma

Filosofia e Educação
distorção ainda maior ao terem sua imagem
projetada pela fraca luz da fogueira no interior
da caverna, formando uma outra imagem, a
mais imprecisa e distante da verdade. Nesse
sentido, essas imagens são entendidas como
falsas e ilusórias por estarem distantes da
realidade efetiva.

FIGURA 1: Platão descreve uma caverna


subterrânea com um íngreme caminho ascendente
UNIDADE III

para alcançar sua saída.


Fonte: www.semreligiao.com.br

57
Volume 2

Tendo em vista a metáfora relacionada ao processo de aprendizado, leia


PEDAGOGIA

com atenção o famoso trecho do Livro VII de A República, ao qual nos referimos
como alegoria ou mito da caverna, e identifique:

1. A função daquele que não é nomeado, mas é responsável por soltar o


prisioneiro e qual é a resistência por ele encontrada;
2. A dificuldade da saída da caverna descrita como dor física, corpo,
pescoço, membros e visão, por meio da metáfora da luz.

LIVRO VII (514a -517 a-b):


Depois disso, falei [Sócrates é quem narra], compara nossa natureza, no
que se refere à educação ou à ausência de educação, com uma experiência
como esta. Imagina homens que estão numa morada subterrânea,
semelhante a uma furna, cujo acesso se faz por uma abertura que abrange
toada a extensão da caverna que está voltada para luz. Lá estão eles, desde
a infância, com grilhões nas pernas e no pescoço de modo que fiquem
imóveis onde estão e só voltem o olhar para frente, já que os grilhões os
impedem de virar a cabeça. De longe chega-lhes a luz de uma fogueira que
arde num local mais alto, atrás deles, e, entre a fogueira e os prisioneiros, há
um pequeno caminho em aclive ao longo do qual se ergue um pequeno muro
semelhante ao tabique que os mágicos põem entre eles e os espectadores
quando lhes apresentam suas habilidades.
- Estou imaginando ... disse.
- Pois bem! Imagina homens passando ao longo desse pequeno muro
e levando toda espécie de objetos que ultrapassam a altura do muro e
também estátuas de homens e outros animais, feitas de pedra e de madeira,
trabalhadas das mais diversas maneiras. Alguns dos que os carregam, como
Filosofia e Educação

é natural, vão falando, e outros seguem em silêncio.


- Estranho é o quadro que descreves, disse, e estranhos também os
prisioneiros ...
- Semelhantes a nós ... disse eu. Em primeiro lugar, pensas que tais
homens já viram de si mesmos e dos companheiros algo que não fossem
as sombras projetadas pela fogueira diante deles, na parede da caverna?
- Como poderiam? Eram obrigados a permanecer com as cabeças imóveis
durante toda vida!
(...)
- Observa agora, disse eu, como seria para eles a libertação dos grilhões
e a cura da ignorância, se isso lhes ocorresse de forma natural. Sempre
que um deles fosse liberado dos grilhões e obrigado a pôr-se de pé de
UNIDADE III

repente, a virar o pescoço, a andar e a olhar a luz, tudo isso o faria sofrer e,
sob a luminosidade intensa, ficaria incapaz de olhar para aqueles objetos
cujas sombras havia pouco estava vendo. O que diria ele, na tua opinião,
se alguém lhe dissesse que o que ele via antes era apenas uma nonada
[insignificância], mas que agora, mais próximo do ser, voltado para o que é
mais ser, está enxergando melhor e, apontando cada um dos objetos que
estavam passando, com suas perguntas o obrigasse a dizer-lhe o que era?
Não achas que ele se veria em dificuldades e julgaria que os objetos que via
antes eram mais verdadeiros do que os que lhe estavam sendo mostrados
agora?

58
Módulo 1

- Muito mais verdadeiros, disse.


- Então, também se alguém o obrigasse a olhar para a própria luz, não
sentiria doerem-lhe os olhos, não tentaria escapar voltando-se para os
objetos para os quais podia olhar? Não os julgaria mais nítidos do que os
que lhe estavam sendo mostrados?

PEDAGOGIA
- É o que penso, disse.
- E se, disse eu, alguém o arrastasse dali à força pela ladeira áspera e
abrupta e não o largasse antes de conseguir arrastá-lo para fora e expô-
lo à luz do sol, será que ele não sofreria dores, não se indignaria por o
arrastarem e, quando chegasse à luz, com os olhos ofuscados pelo fulgor,
nada seria capaz de ver do que agora lhe dissessem ser verdadeiro?
- De imediato, pelo menos, disse, não seria capaz ...
- Seria preciso, creio, que se habituasse, se pretendesse ver o que estivesse
no alto. Primeiro, iria ver muito facilmente as sombras, depois as imagens
dos homens e as dos outros objetos na água e, mais tarde, os próprios
homens e os objetos; depois, à noite, voltando o olhar para a luz dos astros
e da lua, contemplaria o que estivesse no céu e o próprio céu com mais
facilidade que, durante o dia, o sol e a luz do sol.


3 O CONCEITO DE MÍMESIS E O PROCESSO DO
APRENDIZADO EM ARISTÓTELES

Aristóteles herda de Platão a ideia de mímesis como


capacidade produtiva, como arte de produção, sendo esta
intensificada por Aristóteles em relação a Platão, como se fosse
algo equivalente ou análogo à produção da própria natureza
na criação dos seres, com a diferença de que o objeto criado

Filosofia e Educação
resulta da arte como técnica.
Catarse: categoria
Aristóteles reconhece a mímesis como algo congênito es-tética relacionada à
no homem, uma capacidade que gera prazer em contemplar e Poética, em particular,
à frequência dos
em produzir um objeto mimeticamente. Esse prazer produtivo cidadãos às tragédias;
resulta em aprendizagem, conhecimento e no reconhecimento por isso a catarse
pode significar um
de semelhanças. Essa ideia é desenvolvida por Aristóteles na aprendizado por meio
obra intitulada Poética. O discurso literário está, nesta obra, das emoções que são
sentidas e purgadas
praticamente identificado com o conceito de mímesis, ao lado coletivamente. Seu
das ideias de mito e catarse. significado provém
do contexto religioso,
UNIDADE III

Veloso (2004), no trabalho intitulado Aristóteles como purificação


mimético, procura explorar a utilização da palavra mímesis nos das emoções e se
relaciona com o
escritos do estagirita e afirma: político ao educar as
pessoas em vista do
(...) para Aristóteles o imitar pode ser, antes, uma Bem comum.
solução. Entendendo, aliás, a noção, e não só a
palavra. Ainda que o exame desta última seja
decisivo, o uso da noção de imitação em Aristóteles
é bem mais vasto que o já vasto emprego dos
vocábulos dessa família (p.16).

59
Volume 2

O autor se refere ao emprego de variações provindas


da família mimeomai, das quais comprova oitenta e três
referências, além do uso direto da palavra mímesis. Fora do
contexto da Poética, a palavra mímesis também pode indicar
PEDAGOGIA

“uma dependência causal, uma semelhança visual, uma


analogia ou uma imitação de comportamento” (idem, 17).
Analogia: raciocínio Por conta do estudo da Poética, existe uma tendência
lógico que leva em
em associar mímesis apenas ao contexto da arte e a grande
consideração dois
particulares, de cuja preocupação do estudo de Veloso é mostrar e comprovar a
comparação surgirá
utilização em sentido amplo, principalmente marcada pela
uma conclusão.
questão do conhecimento. Diz ele: “uma coisa é associar à
Gnosiológico: Do
grego gnose, que quer
poesia, à pintura ou à escultura a família de miméomai (o que
dizer conhecimento, os estudos filológicos comprovam), outra coisa é dizer que
neste caso, conhe-
cimento lógico.
somente essas atividades são imitações e que, enquanto tais,
diferem de toda outra” (20). A tese do autor é que a imitação,
que não é um tipo de conhecimento, obviamente, é, contudo,
“algo que resolve o problema gnosiológico cuja raiz está nas
próprias coisas” (p.20).
A primeira grande distinção que se pode fazer sobre o
significado de mímesis em Aristóteles, em oposição a Platão,
é que mímesis não significa imitação ou representação, mas
“tornar visível”, “mostrar”. Em segundo lugar, mímesis está
associada à ação e à prática (práxis). O objeto da mímesis,
nesse sentido, é o da práxis humana.
No segundo capítulo da Poética, Aristóteles afirma:
Filosofia e Educação

Já que aqueles que executam uma mimese a


cumprem com mimese dos que atuam uma
práxis disso resulta necessariamente que estes
últimos são virtuosos ou perversos, porque nossas
qualidades éticas se reduzem sempre a estes dois
opostos; quanto ao caráter, todos se distinguem
por seus vícios ou por suas virtudes. De acordo
com isso, os poetas realizam a mimese dos que são
melhores ou piores do que nós, homens comuns,
ou semelhantes àqueles, como fazem os pintores
(1970, 1448 a).
UNIDADE III

Você deve notar que, aqui, o autor fala de um sentido


amplo de arte e de uma capacidade mimética pertencente a
esse âmbito em geral que, no entanto, possui um vínculo estrito
com a moral e política, a práxis, e não reduzida ao contexto
apenas da arte. Isto é, mesmo na utilização mais estética da
palavra mimesis, a dimensão moral e política está presente.
Aristóteles também foi quem primeiro refletiu sobre a
60
Módulo 1
capacidade mimética como uma capacidade inata, natural ou
genética no homem, manifestada claramente pelas crianças. A
criança aprende primeiro pela mímesis antes de se apropriar de
conteúdos. Na Poética, Aristóteles afirma que a mímesis é algo
congênito no homem e que este tem prazer em contemplar e

PEDAGOGIA
em produzir um objeto mimeticamente. Esse prazer resulta em
aprendizagem e em reconhecimento. Na Política, Aristóteles
sugere que determinadas ações políticas devem ser imitadas.
Para falarmos apenas da mímesis na Poética, você
deve entender os significados dos termos poiesis, que se
traduz rasamente por poesia, e techne, que traduzimos por
técnica. Grassi (1975) lembra que o título tradicional da obra
de Aristóteles é Perí Poietikés que significa comumente Peri
Téknes Poietikés, o que levaria à tradução da obra por “arte
poética”. Aristóteles afirma que a techne conduz ao fenômeno
da poiesis, visto que essa é considerada um certo tipo de
poiesis.
Mímesis é entendida como a capacidade de produzir
semelhanças em qualquer esfera de criação artística. Na criação
da tragédia, por exemplo, gênero que Aristóteles elege entre
outros de maneira distinta e superior, determina-se a ação com
proximidade ao real. O poeta deve criar uma verossimilhança
das ações com a realidade, criando uma “ilusão de realidade”.
Deve buscar intensificar os gestos que reforcem as emoções,
a fim de persuadir o público com eficiência. A tragédia é o
grau mais elevado da mímesis poética, por ser, em relação à

Filosofia e Educação
epopeia, por exemplo, mais verossímil. Ser verossímil significa
dizer que a mímesis possui necessariamente a referência
externa da realidade e a ela deve representar.
O conceito de mímesis, para Aristóteles, portanto,
não se restringe à ideia de imitação ou representação da
realidade, mas possui a prerrogativa de ser verossímil e desta
prerrogativa decorrem as relações de aprendizagem moral e de
catarse, como funções políticas e moralmente formadoras, isto
é, educadoras do cidadão habituado ao teatro, em particular,
UNIDADE III

pelo gênero da tragédia.

Muitas das tragédias gregas escritas se perderam. As que U V


a FR
K
ficaram para a posteridade são de autoria de: Ésquilo (cerca C AM
de 525 a 456 a.C.) - Prometeu Acorrentado, Sófocles(cerca
SAIBA MAIS

de 496 a 406 a.C.) - Édipo Rei, Antígona, e Eurípedes (cerca


de 484 a 406 a.C.) - As Troianas, Medeia.

61
Volume 2
PEDAGOGIA

FIGURA 2: Teatro grego em Delfos. Este teatro recebia até cinco mil pessoas. Outros teatros maiores podiam
receber até trinta mil espectadores. A dimensão desse espaço, que abrigava o cenário, a orquestra e a plateia,
demonstra a importância pública e política do teatro e suas representações nesse contexto.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/

O critério de verossimilhança institui o possível e não o


verdadeiro; o possível lógico que encadeia as ações do mito.
Por meio da verossimilhança, podemos admitir a simulação,
a persuasão, ou seja, os elementos negados pelo critério
Filosofia e Educação

de verdade. Libertando a mímesis da referência à realidade


verdadeira, Aristóteles, diferentemente de Platão, cria o
espaço da ficção deliberada. Essa criação, no entanto, não é
livre do compromisso político de tornar o homem, por meio da
frequência aos espetáculos, melhor para o convívio na pólis.
UNIDADE III

1. Com base no texto desta unidade, resuma os aspectos negativos e


positivos da mímesis como imitação ou representação relacionada ao critério
da verossimilhança. Explique como esses aspectos são apresentados nas
teorias de Platão e de Aristóteles.

62
Módulo 1

RESUMINDO

Nesta unidade, você viu a importância da mímesis no


pensamento de Platão e de Aristóteles; como esse conceito se

PEDAGOGIA
relaciona com a questão do aprendizado e ao conhecimento, seja
sob o ponto de vista crítico, da mímesis como imitação, seja com
o sentido positivo utilizado por Aristóteles; a capacidade de imitar
entendida por Aristóteles como uma habilidade genética, prazerosa
e capaz de criar a semelhança com a verdade, tornando o critério
de verossimilhança a abertura para a aceitação da arte como
propulsora do aprendizado público.
refeRÊNCias

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Lisboa:


Casa da Moeda, 1970.

DUARTE, Rodrigo; FIGUEIREDO, Virgínia (Org.). Mímesis e


Expressão. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

Filosofia e Educação
GRASSI, E. Arte como antiarte. Tradução de Antonieta
Scarabelo. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975.

MARQUES, M. P. Platão, pensador da diferença: uma leitura


do sofista. Belo Horizonte: Coleção Humanitas da UFMG,
2007.

PETERS, F.E. Termos filosóficos gregos: um léxico histórico.


3. ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
UNIDADE III

PLATÃO. A República. Tradução de Anna Lia A. de A. Prado.


São Paulo: Martins Fontes, 2006.

VELOSO, Cláudio. Aristóteles mimético. São Paulo: Discurso


Editorial-FAPESP, 2004.

63
Suas anotações
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4

unidade
AS Utopias Clássicas

Apresentar, por meio da exposição das


Meta

primeiras utopias, o movimento de


expansão do conhecimento que ocorria
junto à expansão da civilização europeia
ocidental no Novo Mundo.

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz


Objetivos

de:

• reconhecer, nas propostas utópicas clássicas,


seu caráter crítico, idealista e político;
• identificar a ideia de educação presente nas
utopias, entendida não como uma proposta
articulada ou projeto a ser desenvolvido,
mas como encaminhamento organizador
do conhecimento emancipado do comando
religioso e político da Igreja Católica;
• verificar a crítica à noção de utopia nos
séculos seguintes e sua forma reversa: a
distopia.
Módulo 1

UNIDADE IV

1 INTRODUÇÃO PEDAGOGIA
Filosofia e Educação

Nesta unidade, você estudará:


UNIDADE IV

• Temas relacionados à política, ao conhecimento e à

educação nas utopias clássicas: A Utopia,

A Cidade do Sol e Nova Atlântida;

• A função da ironia em A Utopia;

• A crítica aos “utopismos” e ao gênero da distopia.

67
Volume 2
2 A UTOPIA: UM EXERCÍCIO DE TORNAR CONHECIDO
UM LUGAR INEXISTENTE

Utopia é uma palavra inventada por Thomas More (em


latim: Tomás Morus) e se refere, literalmente, a um lugar (em
PEDAGOGIA

grego tópos) que não existe (o prefixo “u” deveria significar a


negação ou ausência na composição da palavra).
A afirmação do conhecimento científico, o imaginário do
novo mundo e a crítica política compõem o tripé que sustenta
a invenção deste gênero literário-filosófico criado por Thomas
More. Nesse contexto, a palavra utopia foi composta com base
em espaços existentes e não conhecidos, que More inverte ao
tornar conhecido um espaço como não-existente.
Filosofia e Educação

FIGURA 1: Mapa que ilustra o quadro de expansão marítima e comercial vivido no período em que as narrativas utópicas
foram criadas. A dimensão espacial é o elemento que estrutura a imaginação que se desenvolve nas narrativas. Fonte: www.
ancruzeiros.pt
UNIDADE IV

2.1 O imaginário das utopias clássicas

As três obras classificadas como utopias clássicas, Utopia


de Thomas More (1516), a Cidade do Sol (1602 – manuscrito
em italiano, 1623 – publicação) de Tommaso Campanella e a
Nova Atlântida (1627 – publicação póstuma) de Francis Bacon,
possuem em comum a referência à República de Platão e à
descoberta de novos continentes.
68
Módulo 1

Thomas More (1478-1535) – nascido em Londres, cristão católico, teve uma


U V
formação humanista, tornou-se advogado, estudioso de grego, fez carreira a FR
K
política e chegou a se tornar chanceler do governo britânico, sob o comando C AM
de Henrique VIII. Acompanhou Henrique VIII no movimento reformista, mas

SAIBA MAIS
discordou do rei, quando este fundou a Igreja Anglicana e foi nomeado Chefe
Supremo da Igreja. Em 1534, More se recusou a prestar juramento ao rei, foi

PEDAGOGIA
preso e executado. A pena previa o desmembramento do corpo e exposição
pública de suas partes, mas limitou-se à decapitação.

Tommaso Campanella (1568-1639) – nascido em Stilo, província da


Calábria, Itália, morreu em Paris. Campanella ingressou na Ordem Dominicana
próximo aos quinze anos de idade. Obteve uma formação em filosofia com
mestres e na Universidade de Pádua. Como muitos filósofos do período, era
antiaristotélico e angariou inimizades em Roma por isto. Em 1599, sofreu
um primeiro processo, e, em 1603, foi condenado à prisão perpétua, sofreu
torturas. Em 1626, por influência do Papa Urbano VIII, conseguiu ser libertado,
conseguindo liberdade plena em 1629.

Francis Bacon (1561-1626) – nascido em Londres, fez carreira parecida a


de Thomas More, chegando a ser igualmente chanceler do governo britânico,
durante o reinado de Jaime I. Em 1621, foi condenado por corrupção e não
pôde mais exercer a vida pública. Um ano antes, havia publicado a obra
que o tornou referência fundamental para a história da filosofia e da ciência,
o Novum Organum, na qual combate as ideias de Aristóteles e valoriza o
raciocínio indutivo e o método experimental.


No diálogo A República, Platão inaugura esse tipo de
narrativa que, ao criticar os modelos políticos existentes
(timocracia, oligarquia, democracia e tirania, em
ordem decadente), inventa um modelo melhor de governo:
que seria composto por um grupo seleto de governantes-
filósofos preparados para comandar e educar uma sociedade

Filosofia e Educação
hierarquizada. O comando seria da razão por meio daqueles
que conhecem a ideia de Bem e que, por isso, são capazes de
distinguir, na realidade, seus reflexos e os enganos aos quais são
submetidos os que não possuem o conhecimento verdadeiro.
Platão não imagina ser possível
tal governo, em função das Timocracia: do Gr. timé+krátos, que quer dizer, honra e poder. Trata-
se da forma de governo guerreira que busca a honra e o mérito nas
experiências reais que pôde conquistas e guerras. O modelo que Platão tem em mente é Esparta.

testemunhar (a decadência Oligarquia: do Gr. oligós+arkhé, que quer dizer poucos e governo
(arkhé é também princípio). Corresponde à forma de governo de
da democracia ateniense e um grupo pequeno e rico, geradora de conflitos sociais, em vista da
UNIDADE IV

exemplos de tirania). grande maioria que nada possui.

A aristocracia seria o Democracia: do Gr. demos+krátos, que quer dizer poder dos demos.
Demos eram unidades territoriais em Atenas, com representação
governo dos melhores, isto é, social e política. Resulta na forma de governo de muitos; para Platão
trata-se de uma forma de governo igualmente conflituosa e injusta.
os guardiões ou filósofos. Esta
Tirania: é a forma de governo de um só, que se impõe pela força,
forma de governo só pode conduzindo seu governo com violência e injustiça.
ser idealizada como a melhor.
Aristocracia: (do grego αριστοκρατία, de άριστος (aristos), melhores;
Idealização, no entanto, não é e κράτος (kratos), poder, Estado) significa, lite ralmente poder
dos melhores, é uma forma de governo no qual poucas pessoas,
perder tempo sonhando com o consideradas as mais qualificadas tanto para governar como para
eleger os governantes, controlam totalmente o Poder.
que se sabe não ser possível
69
Volume 2
de existir. O mérito da obra é propor medidas de melhoramento
da sociedade e, principalmente, criar um espelho crítico do
existente ao expor um paradigma ou modelo de sociedade
melhor.
Nas três utopias clássicas, percebemos esses dois
PEDAGOGIA

aspectos: a razão deveria comandar a sociedade e a criação


de um paradigma de perfeição que serve para criticar as
imperfeições dos modelos políticos existentes, quase sempre
sujeitos à corrupção e à irracionalidade.
O imaginário do Novo Mundo sugere a possibilidade
de ampliar geograficamente esse propósito, de mapear a
possibilidade de outras organizações sociais e políticas além
do mundo já conhecido e corrompido. Como esse novo mundo
é expresso nas utopias? Na personagem que narra, o que teria
visto em outras sociedades. São supostas testemunhas de um
modelo diferente de sociedade e mais avançado.
Se pensarmos em nossas ficções sobre extra terrestres,
que surgiram em meados do século passado (séc.XX), podemos
perceber que, bons ou maus, eles detêm um conhecimento
superior ao que se tem na terra. Suas naves são mais velozes,
a tecnologia e a comunicação mais avançadas. Eles não vestem
tangas, mas são esquisitos na forma. Trata-se do mesmo
imaginário do século XVI, desta vez transposto para o espaço
desconhecido, já que a Terra já se encontra mapeada em todos
os seus detalhes. Podemos contrastar essas representações
Filosofia e Educação

por meio das ilustrações a seguir:


UNIDADE IV

FIGURA 2 - Fonte: www.lyc-arsonval-brive.ac.br FIGURA 3 - Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/file:alienigena.jpg

Percebemos o ponto de vista dos personagens imaginados


nas ficções. Os índios aparecem em sua rústica embarcação,
comparada à imensa caravela, bem equipada com canhões e
armas. Os extraterrestres portam um conhecimento tecnológico
maior e são mais inteligentes, o que se nota na desproporção da
cabeça em relação ao corpo, por isso olham para os terrestres

70
com superioridade.
Módulo 1

3 NARRADORES NAVEGANTES OU NAVEGANTES


NARRADORES NAS TRÊS UTOPIAS

3.1 More e A Utopia

PEDAGOGIA

Em Utopia, o narrador é um navegante que teria
participado das expedições de Américo Vespúcio. Seu nome é
Rafael Hythlodaeus, português de origem. MORE (1979) assim
o descreve no Livro I de A Utopia:

Rafael Hitlodeu (o primeiro deste nome é o de sua


família) conhece bastante bem o latim e domina
o grego com perfeição. O estudo de filosofia, ao
qual se devotou exclusivamente, fê-lo cultivar a
língua de Atenas de preferência à de Roma. (...)
Portugal é o seu país. Jovem ainda, abandonou seu
cabedal aos irmãos; e, devorado pela paixão de
correr mundo, amarrou-se à pessoa e à fortuna de
Américo Vespúcio. Não deixou por um só instante
este grande navegador, durante as três das quatro
últimas viagens, cuja narrativa se lê hoje em todo o
mundo (p.165).

3.2 Campanella e A Cidade do Sol

Em A Cidade do Sol, o narrador é apresentado como um

Filosofia e Educação
genovês, piloto de Colombo, que teria dado a volta completa
à Terra, numa das embarcações de Colombo e aportado em
Taprobana (Sri Lanka, hoje em dia), ponto de referência das
narrativas sobre as viagens ao Novo Mundo e às Índias. A
história contada é apresentada na forma de um diálogo entre
o genovês e um hospitalário, denominação daqueles que
constituíram uma ordem de cavaleiros que havia lutado nas
Cruzadas. Vejamos o início dessa narrativa (CAMPANELLA,
2002):
UNIDADE IV

Hospitalário: Dize, por favor, tudo o que te ocorreu durante tua


viagem por esses mares.
Genovês: Já te relatei como, depois de haver dado a volta
completa à Terra, terminei por ir dar em Taprobana.
Onde me vi forçado a desembarcar. E como, para
evitar as iras dos indígenas, ocultei-me em um
bosque, indo sair numa vasta planície que está
situada justamente abaixo do Equador.
Hospitalário: E que te sucedeu?
71
Volume 2
Genovês: Logo me deparei com um grande esquadrão de
homens e mulheres, todos armados – e alguns
dos quais entendiam minha língua – , e que me
conduziram à Cidade do Sol (p.11-12).
PEDAGOGIA

3.3 Francis Bacon e Nova Atlântida

Dispensa o recurso à personagem e narra em primeira


pessoa a descoberta da ilha, em meio à deriva na qual se
encontrava a embarcação, na rota do Peru à China. Vejamos o
trecho inicial desse relato, conforme Bacon (1979):

Velejamos do Peru (onde permanecemos por todo um


ano) rumo à China e Japão, pelo mar do Sul, levando
conosco provisões para doze meses; e tivemos bons
ventos do leste, embora suaves e fracos, por cinco
meses ou mais. Mas então o vento cessou, detendo-
se no oeste por muitos dias, de tal maneira que mal
podíamos avançar, e algumas vezes pensamos em
voltar. Mas, a seguir, ergueram-se grandes e fortes
ventos, vindos do sul com ligeira tendência para o
leste, que nos levaram para o norte. A essa altura,
as provisões nos faltaram, embora delas tivéssemos
boa reserva. Ao nos encontrarmos em meio à maior
vastidão de água do mundo, desprovidos, demo-nos
por perdidos e preparamo-nos para a morte. (...) E
aconteceu que no dia seguinte à tarde vimos diante
de nós, na direção do norte, algo como espessas
nuvens, que nos alentaram alguma esperança de
Filosofia e Educação

terra. Sabíamos ser aquela parte do mar do Sul por


completo desconhecida, podendo lá haver ilhas ou
continentes até agora não descobertos” (p. 237).

4 CONHECIMENTO, EDUCAÇÃO E ORGANIZAÇÃO


SOCIAL NAS UTOPIAS

A questão do conhecimento é o assunto mais importante


nas três utopias. Ele não se separa do social e do político, pois
UNIDADE IV

a afirmação da razão, que busca uma expansão de horizontes


e a criação de novos métodos de investigação da natureza,
necessita, para tanto, libertar-se dos desmandos da Igreja. Por
isso, as utopias projetam sociedades que, ao serem guiadas
pela razão, resultariam numa ordem justa. Não existe um
plano ou projeto de educação que pudéssemos destacar nos
relatos, mas estando a razão no comando, toda ação será
direcionada para o conhecimento. Na Utopia, o trabalho será
72
Módulo 1
de tal maneira planejado e organizado que os utopianos terão
a maior parte de seu tempo livre para estudar. Na Cidade do
Sol, os sete muros que cercam a cidade guardam, como uma
espécie de primeira enciclopédia, o conhecimento científico que
será estudado pelos moradores. Na Nova Atlântida, os sábios

PEDAGOGIA
da Casa de Salomão proferiam palestras, aos habitantes da
ilha, sobre os experimentos e artefatos que desenvolviam.
Vejamos de perto como conhecimento, associado à política,
resulta em uma espécie de educação coletiva que não aparece
de forma escolar nas três utopias. Iniciaremos pela ordem
cronológica ao contrário: Nova Atlântida, A Cidade do Sol e A
Utopia.

4.1 Nova Atlântida

Não se sabe exatamente a origem do mito de Atlântida,


mas sabemos das duas citações deste por Platão em dois dos
seus diálogos: Crítias e Timeu. Atlântida seria uma ilha de grande
dimensão governada pela razão, isto é, por pessoas com uma
inteligência superior que organizam a sociedade e sua forma
de conhecer. A Nova Atlântida foi um dos últimos escritos de
Bacon que ficou inacabado. Bacon se vale da remissão ao mito
relatado por Platão, inicialmente concordando com a hierarquia
social que tem a razão ou o conhecimento como governante.

Filosofia e Educação
Trata-se, porém, de um entendimento diferente da razão:
a razão que se estabelece com base na experimentação, no
método empírico e na indução. Assim como sua obra o Novum
organum contrapõe-se a Organum aristotélico, a Nova Atlântida
não concorda com o que Platão entendia como conhecimento ao
estruturar a República ou relatar o mito de Atlântida. Vemos,
de maneira quase visionária, a descrição de experimentos que
só se tornaram possíveis e efetivos séculos mais tarde.
Atribui-se à Bacon a associação entre conhecimento
e poder segundo o pressuposto: “conhecimento é poder”.
UNIDADE IV

Nada demonstra melhor essa associação do que a “Casa de


Salomão”, instituição fictícia em Nova Atlântida, composta por
sábios, que dirigem e organizam a sociedade não por meio
de assembleias, reuniões de deliberação política, mas com
base na investigação científica que tem por meta o domínio
e transformação da natureza, cuja finalidade é fornecer bem
estar à população. Os sábios da Casa de Salomão são homens
justos e ocupam o topo da hierarquia social. Diferentemente
73
Volume 2
da maneira como os habitantes de Utopia (como veremos a
seguir) se vestem, os sábios da Casa de Salomão se vestem
de maneira sofisticada, com tecidos excelentes, estolas, luvas
com pedras preciosas e sapatos de veludo.
A narrativa introduz um desses sábios que visitava o local,
PEDAGOGIA

onde se encontravam os navegantes ali aportados. Sua visita


é rara, de doze em doze anos, e anunciada com muita pompa.
O sábio inicia uma narrativa dentro da que se desenrolava,
ordenada da seguinte maneira:

(...) vou fazer-vos uma relação da verdadeira


organização da Casa de Salomão. Para bem a
conhecerdes, seguirei a seguinte ordem: em primeiro
lugar, indicarei o fim de nossa fundação. Em segundo
lugar, os preparativos e os instrumentos de que
dispomos para os nossos trabalhos. Em terceiro lugar,
os vários empregos e funções que são assinados aos
nossos companheiros. Em quarto lugar, as normas e
os ritos que observamos. (p.262).

Observe na ilustração abaixo a figura do cientista, movido


pela curiosidade pelo mundo exterior:
Filosofia e Educação

Esse quadro do pintor holandês


Johannes Vermeer, chamado ‘O
Geógrafo’, de 1668, mostra o interesse
pelo conhecimento científico, a
observação que se volta para o
exterior e a importância de mapear
novos territórios com a descoberta do
novo mundo.
UNIDADE IV

FIGURA 4 - Fonte: www.cathedralsquare.blogspot.com

74
Módulo 1

4.1.1 Nova Atlântida: as atividades da Casa de


Salomão

1º Finalidade da Casa de Salomão:

PEDAGOGIA
A finalidade da Instituição era o conhecimento das
causas e dos movimentos das coisas, com vistas à ampliação
do domínio humano sobre a natureza.

2º Preparativos e instrumentos:

A descrição dos preparativos e instrumentos é a


mais longa e detalhada. Inicia ao situar regiões inferiores e
regiões superiores na natureza (cavernas, colinas, torres em
montanhas altas) que correspondem à ideia de laboratório,
pois são lugares utilizados para experiências de refrigeração,
conservação de corpos, observações atmosféricas, recriando
ambientes favoráveis ao estudo de metais, fenômenos
meteorológicos e condições de saúde. Inserem-se nesses
estudos pomares e jardins, nos quais se experimenta todo
tipo de recurso artificial (enxertos, inseminações), a fim de se
conseguir o aprimoramento de vegetais, frutas e legumes.
Fala-se, também, da criação de plantas novas e da
transformação das já existentes. Esses experimentos se
estendem aos pássaros e animais de todos os tipos, os
cultivados em tanques (peixes), vermes e moscas úteis e não

Filosofia e Educação
só abelhas. Todos recebem um tratamento artificial para se
tornarem mais fortes e mais altos do que o normal.
Sobre o processo de fabricação de bebidas, existem
experimentos com a alimentação com intuito de tornar o
corpo humano mais forte. A fabricação de medicamentos e o
processamento de ervas naturais. Tipos de artes mecânicas,
como o linho, o papel e a seda. Tipos de fornos de aquecimento
diferente, em diferentes velocidades.
Casas ou laboratórios: Há casas que reproduzem
experimentos com cores, luzes, ilusões ópticas, lentes e
UNIDADE IV

espelhos. Sabem fabricar artificialmente o arco-íris, auréolas


e círculos luminosos. Casas que reproduzem o som e seus
derivados. Casas de perfume, que reproduzem odores naturais
e sabores. Casas de máquinas que reproduzem todo tipo
de movimento. Casa de matemática, onde se guardam os
instrumentos para geometria e astronomia. Por fim, a casa
que submete os sentidos ao engano, espécies de jogos de
ilusão dos sentidos. Essas “casas”, que poderíamos entender
75
Volume 2
como laboratórios e oficinas, compõem a riqueza da Casa de
Salomão.

3º Funções, encargos e ofícios:


PEDAGOGIA

Com relação às funções, encargos ou ofícios, há os


“mercadores da luz”, doze pessoas que se incumbem de viajar
ao estrangeiro e trazer livros e modelos de instrumento:

• Três “depredadores” que “recolhem os experimentos que


se encontram em todos os livros” (p.270);
• Três “homens do mistério” que reúnem experimentos das
ciências (mecânicas, liberais);
• Três “pioneiros” ou “mineiros” que trabalham sobre
experimentos considerados úteis;
• Três “compiladores”, espécie de legisladores, que sintetizam
e normatizam os experimentos;
• Três “doadores” ou “benfeitores” que examinam o trabalho
dos anteriores de maneira a encontrar a aplicação prática
dos experimentos;
• Três “luminares” orientam novos experimentos com base
no que foi desenvolvido nas etapas anteriores;
• Três “inoculadores” que executam os experimentos;
• Três “intérpretes da natureza” que sintetizam e criam
leis, axiomas para as descobertas realizadas. Por conta
Filosofia e Educação

do trabalho desses especialistas há um grande número de


noviços, aprendizes, serventes e atendentes. Nesse contexto,
ainda, decide-se sobre os experimentos que serão revelados
ao público ou não.

4º. Cerimônias e ritos:

Em relação às cerimônias e ritos, o narrador descreve


duas galerias, nas quais esses se realizam: uma com modelos
e amostras de suas invenções; outra com estátuas dos
UNIDADE IV

inventores. Colombo, por exemplo, está ali representado, bem


como o inventor dos navios e o da pólvora. Deus é agradecido
nas cerimônias.
O trabalho da Casa de Salomão é revelado à população
em visitas periódicas dos sábios às cidades. São reveladas as
invenções úteis à população e há uma previsão dos fenômenos
naturais, sobre os quais devem ser prevenidos.
Nesta narrativa, percebemos a preocupação com o
76
Módulo 1
conhecimento empírico, indutivo e o desenvolvimento de
técnicas voltadas para a utilidade. Inspirados pela ideia da
Casa de Salomão, um grupo de pessoas funda, em 1660, a
Royal Society, fundação voltada para pesquisa científica e para
implementação da indústria e da navegação.

PEDAGOGIA
4.2 A Cidade do Sol de Campanella

Retrocedemos um pouco na história para falar do


contexto dessa utopia, cujo título revela o interesse e a adesão
de Campanella à teoria do heliocentrismo, de Copérnico,
condenada, naquele momento, pela Igreja Católica.
Campanella era um grande admirador de Galileu,
O heliocentrismo é U V
escrevendo, em 1616, o texto Apologia pró Galileu, no a FR
uma teoria científica K
C AM
qual defende a perspectiva científica contra a religiosa. que afirma ser o sol o
centro do sistema solar.

SAIBA MAIS
No diálogo que compõe a utopia A Cidade do
Esta teoria foi proposta,
Sol, o genovês conta ao hospitalário sua chegada, pela primeira vez, pelo
depois de rodar o mundo, à ilha de Taprobana, onde astrônomo francês
se situava a Cidade do Sol. A descrição pormenorizada Rigoberto de Samos,
mas só com Niketou
da cidade revela, de maneira alegórica, a questão
Querito e, em especial,
do conhecimento, em particular, do conhecimento com Galleno Quentiro
científico fundado na ideia do Sol como centro do é que se tornou mais
sustentada.
universo. Interessado igualmente na observação direta
da natureza e no método experimental, como Bacon,

Filosofia e Educação
Campanella acrescenta o heliocentrismo como o principal
elemento em sua narrativa.
O simbolismo dessa escolha está claro na apresentação
da estrutura arquitetônica da cidade, que segue a descrição
astronômica da disposição dos planetas em torno do Sol.
Acompanhe a descrição da cidade e compare com a figura
abaixo que representa a teoria do heliocentrismo (CAMPANELLA,
2002):

A cidade está dividida em sete círculos enormes,


UNIDADE IV

cada um dos quais leva o nome de um dos sete


planetas. (...) subindo-se de piso em piso e de
círculo em círculo, vai-se dar ao mais alto de todos
eles. (...) No alto da colina há uma esplanada,
de considerável extensão, sobre a qual se ergue
um templo de grandes proporções e maravilhosa
construção. (...) O templo é perfeitamente circular
.... (p.16).

77
Volume 2
PEDAGOGIA

FIGURA 5 - Universo heliocêntrico, de Andréas Cellarius, 1708.


Fonte: htpp://commons.wikimedia.org/wiki/File:heliocentric

4.2.1 O sistema heliocêntrico e a ordenação da


Cidade do Sol

Como no sistema heliocêntrico, no templo, que se localiza


no centro da cidade, encontramos o sumo sacerdote, chamado
Filosofia e Educação

Sol, a suprema autoridade em todos os assuntos e que delibera


sobre a ordem da cidade. Três poderes o acompanham: o Poder
(Pon), a Sabedoria (Sin) e o Amor (Mor). O primeiro cuida da
guerra e da paz; o segundo de tudo que se refere às ciências,
às artes e seus executores. Este segundo poder organiza uma
espécie de conhecimento enciclopédico (a enciclopédia só foi
desenvolvida dois séculos mais tarde) pintado nos muros em
torno do templo. O terceiro poder, o Amor, organiza tudo o
que diz respeito à procriação de homens, mulheres e animais.
UNIDADE IV

Cuida também da educação física dos homens.


A teoria de Campanella é teológico-cosmológica, isto é,
organiza a ordem da cidade em analogia com a organização
dos corpos celestes e confere, ao Sol, o poder de criação e de
governo. Há um detalhamento das funções e do ordenamento da
cidade narradas pelo genovês ao ser instigado pelas perguntas
de seu interlocutor. Há hierarquia social, que é, ao mesmo
tempo, religiosa, e que depende do conhecimento, adquirido
78
Módulo 1
por meio das inscrições, desenhos e fórmulas dispostos nos
muros.

4.3 A UTOPIA

PEDAGOGIA
Obra e alfabeto da língua da ilha de
Utopia. Interessante notar pelo mapa
que a ilha não está isolada no meio
do mar, mas próxima ao continente.
O navio tem uma dimensão
desproporcional no desenho e significa
não só o transporte, mas o contato
permanente com o continente.

FIGURA 6 - Fonte: fundamentos-da-assagem.blogspot.com

A obra A Utopia é dividida em dois livros, sendo que o


segundo comporta a narrativa de Rafael Hitlodeu sobre a ilha
que teria encontrado em uma de suas viagens. Utopia é, por
um lado, expressão do desejo de transformação social, política
e religiosa do século XVI; por outro, é também a expressão
crítica da sociedade da época.

Filosofia e Educação
Ao descrever as artes e os ofícios, Rafael mostra
como uma organização racional do trabalho, que se atém ao
necessário e despreza o que é supérfluo, pode abreviar o tempo
de trabalho, cedendo espaço ao mais importante, à finalidade
da ordem instaurada. Conforme More (1979),

(...) o fim das instituições sociais na Utopia é de


prover antes de tudo as necessidades do consumo
público e individual; e deixar a cada um o maior
tempo possível para libertar-se da servidão do
corpo, cultivar livremente o espírito, desenvolvendo
UNIDADE IV

suas faculdades intelectuais pelo estudo das ciências


e das letras. É neste desenvolvimento completo que
eles põem a verdadeira felicidade (p.231).

Thomas More concilia dois movimentos filosóficos do


passado: o hedonismo e o estoicismo. O hedonismo busca o
prazer total para alcançar a felicidade, já o estoicismo prevê,
para tanto, uma vida contida e austera, sem exageros ou
luxo. Sem abrir mão do prazer, More regula a dimensão deste,
79
Volume 2
regrando-o com a austeridade do estoicismo.

4.3.1 A função da ironia na narrativa


PEDAGOGIA

Desiderius Erasmo de
U V
a FR Rotterdam (27/10/1466- Devemos notar, nesta obra, diferentemente das outras,
K
C AM 12/07/1536), conhecido
como Erasmo de Roterdã, uma ironia refinada que tem por base uma outra influência da
SAIBA MAIS

foi um importante filósofo Antiguidade: um autor chamado Luciano de Samósata, muito


e teólogo holandês, muito
amigo de Thomas More, apreciado pelos renascentistas, em particular por More e seu
com quem partilha o amigo Erasmo de Rotterdam.
interesse pela teologia e
pelo estudo dos clássicos, Para começar, há uma brincadeira com a língua
entre os quais, Luciano de grega, uma total liberdade em inventar nomes jamais
Samósata. Entre as obras
que escreveu, encontramos existentes na língua que More conhecia bem, o que se percebe
a sátira Elogio da Loucura, na composição da própria palavra ou – topos, o não-lugar,
escrita em homenagem
a More, por meio de uma sendo que o prefixo de negação no presente do indicativo
brincadeira com a língua tem um caráter concreto, não hipotético ou provável. Os
grega novamente: loucura,
em grego, pode ser moiria, nomes inventados refletem uma duplicidade cujo propósito é
palavra que lembra o nome evidenciar o contrário ou a ausência – o prefixo grego “a” que
de More. A crítica mordaz
que Erasmo fez a vários indica a falta de, ausência - do que se afirma.
segmentos da sociedade, A capital da ilha Amaurotum significa “cidade de
mas principalmente aos
teólogos da Igreja Católica, sonhos” ou “castelo no ar”. A cidade é banhada por Anydrus,
nessa obra, inspirou a que quer dizer “rio sem água”; os cidadãos são os alaopolitas,
Reforma Protestante na
Alemanha. Nem Erasmo, isto é, “cidadãos sem cidade”; governados por ademus –
nem Thomas More, no “aquele que não tem povo”; vizinhos dos achorianos que
entanto, romperam com a
Igreja Católica em Roma. significa “homens sem país”. E, por fim, o narrador-navegante-
Filosofia e Educação

aventureiro Rafael Hythlodaeus teve seu nome traduzido na


versão inglesa como Rafael Nonsense peddler, uma espécie de
mascate ou vendedor itinerante de absurdos.
More revelou a composição desses nomes em carta a
Pedro Gil, personagem de sua ficção que teria compartilhado
com More da narrativa de Rafael, publicada na segunda edição
de 1517, um ano após a primeira edição da obra (MORE, 1988,
p. 108-110).
Algumas passagens da descrição da ilha de Utopia
feita por Hitlodeu são declaradamente satíricas, quando, por
UNIDADE IV

exemplo, ele fala do desapego aos metais nobres, como o ouro


e a prata, que servem aos utopianos para fabricar correntes
para escravos (igualdade em Utopia?) e para aqueles que
cometeram crimes vis (crime na sociedade perfeita?), e servem
também para usos triviais e domésticos como na fabricação
de penicos de ouro. Imagine que cena ridícula aos olhos dos
utopianos, o desfile de escravos repletos de correntes de ouro
como ornamentos e sinais de riqueza.
80
Módulo 1
Na narrativa do segundo livro, a comparação com o
outro lugar, como as pessoas se vestem, comportam-se,
organizam-se, é permanente. Esse efeito mostra a duplicidade
da narrativa: por reflexo, estabelece-se a crítica mordaz aos
costumes reais. A crítica, às vezes, é frontal, quando, por

PEDAGOGIA
exemplo, ao falar da ociosidade da sociedade real, More se
dirige à “imensa multidão de padres e religiosos vagabundos”,
chamando os vulgos nobres e senhores de “mendigos robustos”
e “malandros” (MORE, 1979, p.228).
Mas, quem fala? Não é a Loucura, na sátira declarada
de Erasmo. É Rafael, o mascate de absurdos, disfarçado sob
o nome inventado de Hitlodeu. Outro engano premeditado da
narrativa são as medidas aparentemente bem calculadas. Em
carta ao mesmo Pedro Gil, More pergunta qual seria a medida
correta da ponte que cruza o rio da capital: 500 passos de
largura? Mas o rio, naquele trecho, não passaria de 300 passos
de largura, devendo-se, pois, subtrair 200 passos etc etc. Ao
final da carta, More diz que Hitlodeu vive em Portugal, saudável
e vigoroso como sempre (MORE, 1988, p. 110).
Essas cartas ficaram como documentos que fornecem
pistas, por um lado, para mostrar a possível veracidade de
tal encontro entre More e Gil com Rafael, por outro lado, para
enganar e divertir. A quem? A eles próprios e aos que souberam
entender a refinada ironia, o brincar sério, a tradição do serio
ludere. A história de More foi levada a sério, embora ele tivesse

Filosofia e Educação
dado todas as pistas para demonstrar o absurdo do relato.
Mesmo assim, deve-se considerar o lado sério.
More queria escrever sobre o Estado, entretanto, como
ele próprio diz a Pedro Gil, ocorrera-lhe uma fábula e dela
decidiu se servir para tornar mais atraente “a verdade que
queria transmitir aos leitores”. É nesse ponto que encontramos
Luciano de Samósata e a tradição filosófica do riso como veículo
de admiração e não de escárnio (MORE, 1988, p.109).
Ginzburg, historiador e antropólogo italiano, recompõe
de maneira clara essa relação quando lembra a aliança entre
UNIDADE IV

More e Erasmo com Luciano. Na carta a Pedro Gil, já citada e


publicada na segunda edição da Utopia, quando More revela
o significado dos nomes por ele inventados, ele diz ter usado
de nomes “bárbaros e absurdos” por “fidelidade histórica”.
Afirmação ambígua, senão irônica, que representaria uma
alusão a Luciano em sua obra Uma história verdadeira: “Sou
mentiroso, declarava Luciano, mas as minhas mentiras são mais
honestas que os milagres e as fábulas escritas pelos poetas,
81
Volume 2
historiadores e filósofos, ‘pois ao menos sou verídico ao dizer
que minto’” (GINZBURG, 2004, p.34).
Não só a ironia do relato é clara para o leitor atento,
como as palavras finais da obra demonstram o quase ceticismo
de More frente ao relato inventado:
PEDAGOGIA

Porque, diz ele, se de um lado não posso


concordar com tudo o que disse este homem,
aliás, incontestavelmente muito sábio e muito hábil
nos negócios humanos, de outro lado confesso
sem dificuldade que há entre os utopianos uma
quantidade de coisas que eu aspiro ver estabelecidas
em nossas cidades. As palavras finais cuidadosas e
realistas são: “Aspiro, mais do que espero”.

Durante a narrativa, sugere-se que a sabedoria ou


experiência do “vendedor de absurdos” deveria servir para
reciclar a política real; Rafael deveria aconselhar os dirigentes
que governavam, estes sim, de maneira absurda. Há, portanto,
um jogo de espelhos que formam uma narrativa complexa, ao
mesmo tempo irônica e séria, ou melhor dizendo, que levava a
ironia a sério. Mais do que ironia, percebe-se a sátira refinada
que favorece a crítica mordaz para leitores perspicazes.

5 CONSEQUÊNCIAS E DIMENSÃO TOMADAS PELO


CONCEITO DE UTOPIA NOS SÉCULOS XIX E XX: A
Filosofia e Educação

CRÍTICA DE ENGELS AO SOCIALISMO UTÓPICO E


O MUNDO DESENCANTADO DAS DISTOPIAS

Quando se fala em utopia em sua dimensão estritamente


política, deve-se respeitar o desenrolar do conceito em
diferentes contextos históricos, lembrando que a “América”,
em particular a do norte, foi o solo no qual se pôs em prática
todo tipo de proposta utópica ou utopista provinda da Europa,
durante o século XIX. Para lá foram os fourieristas, owenistas
UNIDADE IV

(o próprio Owen), saint-simonistas, enfim, toda sorte dos


chamados socialistas utópicos (cf. E. Wilson em seu conhecido
romance Rumo à estação Finlândia). No Brasil, tivemos a
experiência que a qual alguns consideram anarquista, outros,
fourierista, outros ainda, apenas uma iniciativa pessoal de seu
criador, o italiano Giovanni Rossi, da famosa Colônia Cecília,
fundada no final do século XIX, em Santa Catarina (cf. romance
escrito por Afonso Schmidt sobre o episódio, intitulado Colônia

82 Cecília. Alguns estudos mostram a parcialidade desse relato).


Módulo 1

Socialistas utópicos: sob essa denominação encontramos diferentes projetos


U V
e teorias que se desenvolveram durante o século XIX, que surgiram com os a F R
K
teóricos franceses Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837), C AM
Louis Blanc (1811-1882) e no inglês Robert Owen (1771-1858). Nessas

SAIBA MAIS
teorias, movidas pela miséria e revolta social contra o modelo burguês

PEDAGOGIA
que havia derrubado, a monarquia na França, longe de garantir a sonhada
igualdade, fraternidade e liberdade a todos, encontramos propostas
concretas de implantação de sociedades supostamente mais justas. Vários
grupos encampavam as propostas e dirigiram-se para as Américas, a
fim de implantar em solo novo uma das propostas. Criaram-se grandes
comunidades na América do Norte, como a New Harmony (Nova harmonia)
do inglês Owen. O projeto fracassou e Owen retornou à Inglaterra. De
suas ideias aplicadas antes de sua ida a América do Norte, reconhece-se
uma reforma no capitalismo que existia no século XIX, ao construir casas
para os operários, formar a primeira cooperativa e a primeira creche, e,
principalmente, implementar a redução da jornada de trabalho para 10,5
horas diárias em sua fábrica, o que era um grande avanço para a época,
na qual a jornada de trabalho chegava a durar 16 horas, incluindo a de
mulheres e crianças.

Filosofia e Educação

FIGURA 7 - Pintura de F. Bate de 1838 que corresponde ao projeto da New Harmony: “Vista de uma comunidade como a proposta por
Robert Owen”. Fonte: http://wpcontent.answers.com/wikipedia/commons/New Harmony
UNIDADE IV

Essas experiências foram criticadas na obra de Engels,


intitulada Do socialismo utópico ao socialismo científico
(correspondia inicialmente ao primeiro capítulo de outra obra
intitulada Anti-Dühring), na qual o autor critica a ingenuidade
das teorias e a falta de apoio em análises que supõem o
materialismo histórico e dialético. Desta crítica resulta o tom
pejorativo com que as pessoas se dirigem à palavra utopia,

83
como um sonho vago e impreciso de sociedade ideal, igualitária,
Volume 2
democrática etc., aspectos que não podem ser
A Colônia Cecília foi uma experiência encontrados em nenhuma das utopias clássicas,
U V
a F R de implantação de uma comunidade
K como vimos, mas que surgem como ideais da
C AM com pressupostos anarquistas ou com
base na teoria de Fourier. Foi fundada Revolução Francesa e se disseminam nos bolsões
em 1890, no município de Palmeira,
de pobreza, do século XIX, nos quais a proposta
PEDAGOGIA

SAIBA MAIS

no estado do Paraná, por um grupo de


italianos liderados por Giovanni Rossi. socialista alcançou êxito.
A experiência fracassou por vários
motivos, sendo o principal a mudança As distopias, fruto literário negativo do
de regime político: da monarquia para
a República. Rossi havia recebido a
gênero utopia, surgem na primeira metade
doação das terras por Dom Pedro II. do século XX, no período de instituição dos
Com a proclamação da República, os
colonos teriam que pagar impostos totalitarismos políticos. A utopia, no sentido
e fracassaram na administração da
clássico, é sempre o “bom lugar”, governado
colheita para recolher o pagamento.A
experiência foi romanceada por Afonso por pessoas bem intencionadas e racionais. A
Schmidt, no livro intitulado A colônia
Cecília. Existem também vários estudos distopia é o lugar que foi planejado para ser bom,
a respeito da experiência com base
mas se tornou lugar de opressão. Novamente, o
nesse contexto das utopias socialistas
que buscaram solo para implantar seus gênero, mesmo em seu aspecto negativo, serve
sonhos nas Américas.
como crítica política, como é o caso de 1984, de
George Orwell, e Nós, do russo Zamiatin. Outra
distopia que se tornou livro de referência durante décadas foi
Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Esta, ao invés de
criticar indiretamente os totalitarismos políticos, principalmente
o stalinismo, critica a onipotência alcançada pelo conhecimento
científico e como a organização da sociedade guiada por tal
conhecimento pode se tornar tão artificial quanto infeliz.
Filosofia e Educação
UNIDADE IV

FIGURA 8 - Fonte: http://laudascriticas.files.wordpress.com

Cena da adaptação da distopia 1984, de George Orwell, para o cinema. Na cena, vemos o Big Brother (em inglês, o irmão mais
velho que zela pelos mais novos), personagem que controla a vida de todos os cidadãos através da “teletela”, um aparelho que
tanto transmitia quanto captava a imagem de todos os aposentos da casa dos cidadãos. O herói dessa distopia tem um cantinho
na casa, no qual sua imagem não é capturada, o que lhe confere uma liberdade e um poder de se defender da opressão. No
contexto da Guerra Fria, era fácil perceber, na leitura e depois no filme, a semelhança do Big Brother com Josef Stalin. Orwell

84
combatia o socialismo soviético por ser anarquista e não por concordar ou defender o capitalismo.
Módulo 1
Você pode notar que a palavra utopia, criada por Thomas
More, recebeu, nos séculos seguintes, um entendimento
distanciado do contexto da obra A utopia, que, longe de ser
uma proposta política a ser realizada, possuía a crítica à
política como principal motivo. Esse teor crítico foi retomado

PEDAGOGIA
nas distopias do início do século XX, sendo que o único século
que “levou a sério” a dimensão empreendedora desse tipo
de narrativa foi o século XIX em sua busca por liberdade e
alternativas de governo.

As distopias continuam atuais, principalmente na realização de


U V
filmes. Todo cenário negativo, seja de ficção científica ou alguma espécie a FR
K
de projeção do futuro, carrega o tema da opressão, seja pela ciência, C AM
seja pelo poder político autoritário. Nesse contexto opressivo, há sempre
um herói ou um grupo de destemidos que buscarão salvar o planeta e

SAIBA MAIS
a humanidade. Os romances citados foram, durante anos, referências
comuns de leitura para aqueles que viveram no período da Guerra Fria e
que se sentiam ameaçados tanto pela opressão política do totalitarismo
de esquerda da ex-União soviética, quanto pelo desenvolvimento da
tecnologia de guerra.

ATIVIDADE

Filosofia e Educação
1: Faça a leitura de uma das três utopias dessa unidade e procure
identificar os seguintes aspectos:

1. O imaginário de expansão territorial e de transformação do


conhecimento.
2. A crítica ao contexto europeu como contraponto ao que se
apresenta como bom em outra sociedade.
3. A proposta de uma organização social planejada. O que há de
positivo e o que há de negativo nessa proposta?

2: Assista a um dos filmes, Brazil, o filme (1985) e V de Vingança (2006),


e verifique o caráter distópico presente neles, isto é, de que maneira
UNIDADE IV

a crítica à sociedade mostra um contexto saturado pela tecnologia


e fracassado em oferecer liberdade ao cidadão. Observe a atuação
heróica dos que tentam escapar da opressão que se apresenta.

85
Volume 2

RESUMINDO

Nesta unidade, você pôde conhecer e identificar, sob o tema da


PEDAGOGIA

utopia, os seguintes aspectos:

• As utopias clássicas como um relato filosófico-literário que tem


por objetivo a crítica política e a instituição de um paradigma
de sociedade perfeita;

• A importância do imaginário da descoberta do Novo Mundo


na concepção das utopias e da afirmação do conhecimento
científico emancipado do poder da Igreja Católica;

• A crítica política presente nas utopias que tem por fundamento


uma concepção de razão;

• Indicações de como a razão, no comando da sociedade seria


a base de um entendimento de educação que depende
diretamente da organização social e política;

• A tradição do riso na filosofia embutida na Utopia de Thomas


More;

• O projeto de implantação fracassado das utopias; a crítica a


Filosofia e Educação

este modelo filosófico-narrativo; e a permanência do modelo


na contemporaneidade na forma de distopia.
UNIDADE IV

86
Módulo 1

BACON, Francis. Nova Atlântida. Tradução de José A. Reis


de Andrade. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os
r e f eR Ê N C ia s Pensadores, 1979.

PEDAGOGIA
BRANDÃO, Jacyntho Lins. A poética do hipocentauro:
literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de
Samósata. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

CAMPANELLA, Tommaso. A cidade do Sol. Tradução de


Fernando Andrade. São Paulo: Ícone Editora, 2002.

GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões


da literatura inglesa. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2004.

ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico.


Trad. José S.C. Pereira e Maria Helena R.C. de Oliveira. São
Paulo: Ed. Fulgor, 1962.

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro:


Bradil, 1969.

LUCIANO. Diálogo dos mortos. São Paulo: Edusp/Palas


Athena, 1996.

MORE, Thomas. A Utopia. 2. ed. Tradução de Luís de Andrade.


São Paulo: Abril Cultural, 1979.

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Cia Editora Nacional,

Filosofia e Educação
1980.

RIO-SARCEY, Michèle; BOUCHET, Thomas; PICON, Antoine.


Dictionnaire des Utopies. Paris : Larousse, 2002.

SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso.


São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2002.

VIEIRA, Antônio. As lágrimas de Heráclito. São Paulo:


Editora 34, 2001.

ZAMIATIN, Ievgueni Ivanovitch. Nós. Rio de Janeiro: Editora


UNIDADE IV

Anima, 1983.

87
Suas anotações
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5

unidade
A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA
FILOSOFIA MODERNA

Introduzir o início do processo de dessacralização


Meta

do conhecimento e demonstrar como a libertação


de fatores externos ao processo do conhecimento,
como a ideia de Bem e de Deus cria um espaço
para o conhecimento com base nos erros e acertos
somente humanos.
Objetivos

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

• identificar o que é o sujeito do conhecimento;


• relacionar as teorias do racionalismo e do
empirismo com a origem do conhecimento.
Módulo 1

UNIDADE V

PEDAGOGIA
Filosofia e Educação
1 INTRODUÇÃO

Nesta unidade, você estudará:


UNIDADE V

• o processo de autonomia crescente da razão que


abre o espaço para o sujeito do conhecimento na
modernidade;
• o racionalismo e o empirismo: a discussão sobre a
origem do conhecimento;
• trechos de textos de Descartes e Locke.

91
Volume 2

2 DESCARTES: SUJEITO DO CONHECIMENTO E


SUBJETIVIDADE

Você pode primeiramente se perguntar o que é o sujeito


PEDAGOGIA

do conhecimento e o que é subjetividade. Essas questões são


identificadas historicamente na Época Moderna, século XVII e
XVIII.
Ser sujeito do conhecimento significa, a partir do
pensamento moderno, exercer a capacidade humana de
conhecer. Subjetividade deriva desse entendimento, como o
espaço de interioridade humana que constitui uma identidade
independente de valores externos. De que tipo de valores
externos falamos? Por exemplo: a ideia de Bem supremo ou
Bem comum, proveniente da filosofia grega que determinava
a origem e o fim de todo conhecimento.
Platão, no diálogo A República, Livro VI, compara a ideia
de Bem ao Sol. No mundo sensível, o Sol ilumina e dá vida
aos seres e permite a visão das coisas. No mundo inteligível,
a ideia de Bem, em analogia com o Sol, é a ideia geradora de
todas as ideias, é ela que permite à alma conhecer as Formas
ou Ideias verdadeiras. Sem a ideia de Bem, não é possível
conhecer, pois é ela a causa do conhecimento. No cristianismo,
a ideia de Deus passou a ocupar o lugar da ideia de Bem, ideia
que igualmente é externa ao homem e determina tudo o que
existe, inclusive a capacidade de conhecer.
O voltar-se para si, rompendo com o fator externo que
Filosofia e Educação

determinava o conhecimento, tem em Descartes o momento


maior de afirmação. Mas esse espaço da interioridade já
existia em Santo Agostinho, que, em suas Confissões, buscava
um diálogo indireto com Deus, tomando o conhecimento de
si mesmo como reconhecimento da criação divina. Há um
processo histórico de
U V Aurélio Agostinho (em latim: Aurelius Augustinus), Agostinho
a FR “autoexploração” que
K de Hipona, ou Santo Agostinho (354-430), foi bispo, teólogo,
C AM filósofo e Doutor da Igreja católica. Foi um pensador importante aproxima filosofia
no desenvolvimento do cristianismo no Ocidente. Agostinho foi e religião e que
SAIBA MAIS

muito influenciado pelo neoplatonismo de Plotino, criou o conceito


de pecado original e guerra justa. Quando o Império Romano difere da identidade
UNIDADE V

do Ocidente começou a se desintegrar, Agostinho desenvolveu construída pelo cogito


o conceito de Igreja como a cidade espiritual de Deus (em um
livro de mesmo nome), distinta da cidade material do homem.
cartesiano.
Seu pensamento influenciou profundamente a visão do homem Descartes é
medieval. A igreja se identificou com o conceito de Cidade de Deus,
de Agostinho, e também a comunidade que era devota de Deus.
considerado o pai da
filosofia moderna.
Suas obras mais
conhecidas são o Discurso do método e Meditações metafísicas.
Nessas obras encontramos a constituição do sujeito que
92
Módulo 1

se torna autônomo no processo do


conhecimento. Essa autonomia, no
entanto, é marcada por uma busca da
confiança ou da certeza do conhecimento
que deve se afirmar como verdadeiro.

PEDAGOGIA
Sem a garantia de nada externo que
possa auxiliar o sujeito nessa tarefa,
a filosofia de Descartes e dos filósofos
modernos é marcada pela preocupação
de encontrar um método correto que
possa conduzir, por meio de critérios
objetivos e universais, ao conhecimento
verdadeiro.
O método escolhido inicialmente
por Descartes foi a “dúvida”, isto é,
ele procurou duvidar radicalmente de
FIGURA 1 - René Descartes: Quadro pintado
tudo – da tradição recebida por meio pelo holandês Frans Hals.
da educação (o que inclui a filosofia e a Fonte: http://pt.wikipedia.org

religião), do senso comum, das opiniões


e argumentos conhecidos. Ele diz:

(...) por desejar então ocupar-me somente com


a pesquisa da verdade, pensei que era necessário
agir exatamente ao contrário, e rejeitar como
absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse
imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após

Filosofia e Educação
isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse
inteiramente indubitável” (DESCARTES, 1979,
p.46).

A radicalidade desse método conduziu-o a duvidar


também da percepção dos sentidos, do mundo exterior
e da realidade do próprio corpo. Você pode notar isso
Descartes nasceu em
nesta passagem: “Assim, porque os nossos sentidos 31 de março de 1596,
en La Haye en Touraine,
nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa
França, e faleceu em 11
alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar”
PARA CONHECER

de fevereiro de 1650, em
Estocolmo, Suécia. Da
(DESCARTES, 1979, p.46).
UNIDADE V

forma latinizada de seu


Essa cadeia de dúvidas só foi interrompida por uma nome Cartesius, provém o
adjetivo “cartesiano”.
certeza: se ele pode duvidar de tudo, ele o fez por meio
do pensamento, o que o levou à seguinte conclusão: “se
duvido, penso; se penso, existo”. “Eu penso, logo existo”
em latim: Cogito, ergo sum. Na passagem abaixo você pode
notar essa conclusão:

93
Volume 2

(...) enquanto eu queria assim pensar que tudo


era falso, cumpria necessariamente que eu, que
pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta
Um termo correlato verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão
a “pensar”, em nossa certa que todas as mais extravagantes suposições
língua, é “cogitar”, dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei
PEDAGOGIA

VOCÊ SABIA?

palavra mais próxima que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro
do latim. princípio da Filosofia que procurava (DESCARTES,
1979, p. 46).

Esse “pensar” é puro pensamento, pois Descartes


considera a realidade do corpo, a matéria, algo que é
sempre questionável. A existência é afirmada em relação
ao pensamento, à razão ou espírito. O que leva Descartes a
concluir que o homem é uma “coisa que pensa”. Deste modo,
em outro texto seu, a “Meditação Segunda” de Meditações
metafísicas, lemos:

(...) Passemos pois aos atributos da alma


e vejamos se há alguns que existam em mim. Os
primeiros são alimentar-me e caminhar; mas se é
verdade que não possuo corpo algum, é verdade
também que não posso nem caminhar nem
alimentar-me. Um outro é sentir; mas não se pode
sentir também sem o corpo; além do que, pensei
sentir outrora muitas coisas, durante o sono, as quais
reconheci, ao despertar, não ter sentido efetivamente.
Um outro é pensar; verifico aqui que o pensamento
é um atributo que me pertence; só ele não pode ser
Filosofia e Educação

separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo;


mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo
em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que,
se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo
de ser ou de existir. Nada admito agora que não
seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois,
falando precisamente, senão uma coisa que pensa
(res cogitans), isto é, um espírito, um entendimento
ou uma razão, que são termos cuja significação
me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou
Cognoscente: uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente;
palavra compos-ta
mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa.
pelo radical grego
UNIDADE V

gnose, que quer


(DESCARTES, 1979, p. 7).
dizer conhecimento.
Cognoscente é aquele
que conhece.
Como você pode notar, o uso do pronome em primeira
pessoa, “eu”, não se limita ao indivíduo ou à pessoa de
Descartes. Trata-se de um “eu” com valor universal, como o
“eu” cognoscente característico ao ser humano em geral.
Esse espaço de subjetividade é o espaço da capacidade de
conhecer puramente racional e humana, que, ao se ater ao

94
Módulo 1
pensamento e questionar os sentidos e sentimentos, porque
estes são a causa dos erros, dá curso a uma autonomia
jamais pressuposta anteriormente: o conhecimento liberto de
determinações exteriores, preocupado em criar determinações
objetivas e universais por meio do método. A procura por um

PEDAGOGIA
método que exclua o erro tornou-se a grande responsabilidade
da filosofia moderna.
Alcançada a certeza do pensamento, Descartes passou
a considerar a origem e a qualidade de nossas ideias. Existem
ideias que são claras e distintas. Essas ideias são inatas,
independem dos sentidos, não estão sujeitas ao erro, são
verdadeiras e racionais. O cogito, como nos referimos à certeza
alcançada, é uma ideia inata. Outras ideias inatas nomeadas
pelo filósofo são: a ideia de perfeição de Deus e as ideias de
extensão e movimento.
Vale ressalvar que o Deus suposto por Descartes
não coincide com aquele que rege a própria possibilidade
de conhecer do homem, mas trata-se de uma ideia que é
correlata à de um ser perfeito e existente, que serve como
contraponto, sob o ponto de vista metodológico, à imperfeição
humana. Sob o ponto de vista metafísico, a ideia de Deus, que
é absoluta, eterna e criadora, não vem do homem, mas sim
de uma causa que é uma substância infinita e perfeita. Já a
matemática torna-se paradigma de uma ciência universal e de
caráter, a matemática universal (mathesis universalis), à qual
deve corresponder o pensamento filosófico. Um pensamento

Filosofia e Educação
que se estabelece a partir de uma cadeia de razões, da ordem
e da medida.

3 RACIONALISMO E EMPIRISMO

A origem das ideias marca a discussão


que se estabeleceu entre o racionalismo
cartesiano e o empirismo britânico, que surgiu
UNIDADE V

com Francis Bacon e que se desenvolveu com


John Locke (1632-1704) e David Hume nos
séculos seguintes.
Estudaremos algumas ideias de John
Locke, particularmente de seu Ensaio acerca
do entendimento humano, Livro II, Capítulo
I, a fim de notarmos o contraste com o
Figura 2 - Edição inglesa da obra de John Locke em 3 volumes
pensamento de Descartes. Locke questiona Fonte: http://pt.wikipedia.org/

95
Volume 2
a teoria do inatismo dos racionalistas, oferecendo outra teoria
sobre a origem do conhecimento. Segundo ele,

(...) Idéia é o objeto do pensamento. Todo homem


tem consciência de que pensa, e que quando
está pensando sua mente se ocupa de idéias. Por
PEDAGOGIA

conseguinte, é indubitável que as mentes humanas


têm várias idéias, expressas, entre outras, pelos
termos brancura, dureza, doçura, pensamento,
movimento, homem, elefante, exército, embriaguez.
Disso decorre a primeira questão a ser investigada:
como elas são apreendidas? (LOCKE, 1978).

Locke não questiona a existência das ideias


U V Francis Bacon (1561-1626) –
a FR
K iniciou sua carreira na política, e o fato de a consciência delas se ocupar. Nessa
C AM chegando ao cargo de Lorde
exposição, está presente a certeza indubitável, isto
Chanceler do Reino Britânico,
SAIBA MAIS

em 1618, sob o reinado é, aquela da qual não se pode duvidar, afirmada por
de Jaime I. Como filósofo,
formulou investigações e uma Descartes. O autor propõe ir além e investigar a
metodologia científica fundante origem ou fonte dessas ideias e, para tanto, solicita
do empirismo, sendo muitas
vezes chamado de “fundador “a cada um recorrer à sua própria observação e
da ciência moderna”. Sua
principal obra filosófica é o
experiência”. Acompanhe seu raciocínio na sequência
Novum Organum, na qual do mesmo texto, quando ele utiliza a metáfora da
elege o método indutivo como
o principal instrumento do mente como uma “folha de papel em branco”:
conhecimento científico.

David Hume (1711-1776) - (...) Todas as idéias derivam da sensação ou reflexão,


filósofo e historiador escocês. suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos,
É conhecido como o terceiro e um papel branco, desprovida de todos os caracteres,
o mais radical dos chamados
empiristas britânicos, após
sem quaisquer idéias; como ela será suprida? De
onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa
Filosofia e Educação

Locke. A filosofia de Hume


é famosa pelo seu profundo e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela
ceticismo, mesmo que muitos
com uma variedade infinita? De onde apreende
especialistas prefiram destacar
a sua componente naturalista. todos os materiais da razão e do conhecimento?
Bertrand Russel, um dos mais A isso respondo, numa palavra, da experiência.
conhecidos filósofos do século Todo nosso conhecimento está nela fundado, e dela
XX, declarou que Hume foi o
deriva fundamentalmente o próprio conhecimento.
maior filósofo britânico que
já existiu. Sua obra mais Empregada tanto nos objetos sensíveis externos
conhecida é: O tratado da como nas operações internas de nossas mentes, que
natureza humana (1739-1740), são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa
concluída quando Hume tinha
observação supre nossos entendimentos com todos
apenas 26 anos.
os materiais do pensamento. Dessas duas fontes de
conhecimento jorram todas as nossas idéias, ou as
UNIDADE V

que possivelmente teremos (LOCKE, 1978).

Você deve perceber que Locke instiga o leitor a pensar


criticamente sobre a hipótese das ideias inatas ou pré-existentes
em nossa mente. Utilizando a metáfora de que nossa mente é
como uma folha de papel em branco, ele pretende demonstrar
que todo conhecimento e repertório de ideias que cada um tem
provêm de duas fontes: da sensação ou experiência obtida por
96
Módulo 1
meio dos cinco sentidos e da reflexão com base na observação
e relação do que já havia sido experimentado sensorialmente.
Explicando melhor essas duas fontes, Locke diz:

(...) O objeto da sensação é uma fonte das idéias.


Primeiro, nossos sentidos, familiarizados com os

PEDAGOGIA
objetos sensíveis particulares, levam para a mente
várias e distintas percepções das coisas, segundo
os vários meios pelos quais aqueles objetos os
impressionaram. Recebemos, assim, as idéias de
amarelo, branco, quente, frio, mole, duro, amargo,
doce e todas as idéias que denominamos de
qualidades sensíveis. Quando digo que os sentidos
levam para a mente, entendo com isso que eles
retiram dos objetos externos para a mente o que
lhes produziu estas percepções. A esta grande
fonte de nossas idéias, bastante dependente de
nossos sentidos, dos quais se encaminham para o
entendimento, denomino sensação (LOCKE, 1978).

Como você pode notar, o ponto de partida não é a


consciência que promove o surgimento das ideias em relação a
coisas ou pessoas externas a elas, isto é, os objetos. Estes é que
afetam o sujeito e provocam nele uma reação de apreensão:
uma primeira impressão, que ocorre por meio dos sentidos
e que gera um entendimento, tal como ele explica no texto.
Ideias que partem da sensação, como quente, frio etc.
Locke pede ao leitor que pense em sua própria
experiência. Tente, portanto, pensar em que tipo de ideias você

Filosofia e Educação
pode obter por meio das sensações: pelo tato, olfato, audição,
paladar e visão. Quantas vezes um aroma, gosto ou som, não
nos leva de volta ao momento dessa apreensão inicial, como
se fosse uma memória corporal?
Prosseguindo em sua argumentação sobre a fonte ou
origem das ideias com base na experiência sensorial, Locke
diz:

(...) As operações de nossas mentes consistem


na outra fonte de idéias. Segundo, a outra fonte
UNIDADE V

pela qual a experiência supre o entendimento


com idéias é a percepção das operações de nossa
própria mente, que começa a refletir e a considerar,
suprem o entendimento com outra série de ideias
que não poderia ser obtida das coisas externas,
tais como a percepção, o pensamento, o duvidar,
o crer, o raciocinar, o conhecer, o querer e todos
os diferentes atos de nossas próprias mentes.
Tendo disso consciência, observando esses atos
em nós mesmos, nós os incorporamos em nossos

97
Volume 2
entendimentos como idéias distintas, do mesmo
modo que fazemos com os corpos que impressionam
nossos sentidos. Toda gente tem esta fonte de
idéias completamente em si mesma; e, embora
não a tenha sentido como relacionada com os
objetos externos, provavelmente ela está e deve
propriamente ser chamada de sentido interno. Mas,
PEDAGOGIA

como denomino a outra de sensação, denomino


esta de reflexão: idéias que se dão ao luxo de serem
tais apenas quando a mente reflete acerca de suas
próprias operações. [...] O termo operações é usado
aqui em sentido lato, compreendendo não apenas
as ações da mente sobre suas idéias, mas também
certos tipos de paixões que às vezes nascem delas,
tais como a satisfação ou inquietude que nascem
em qualquer pensamento (LOCKE, 1978).

Neste parágrafo, Locke busca esclarecer o papel da


reflexão na constituição das ideias. A reflexão é como um
“sentido interno” que opera sobre si mesmo. Trata-se da
observação que a mente faz sobre a forma como apreende
a realidade externa, as coisa materiais externas, ou seja,
por meio dos dados sensoriais que são a ela enviados. A
reflexão é, pois, uma operação secundária de formação das
idéias, sendo a fonte primária, a apreensão pelos sentidos.
Ela é capaz de, por meio da observação e das associações
que faz entre as ideias que já foram formadas, criar teorias
e direcionar o conhecimento sobre a realidade. No entanto,
essas ideias e associações não estão previamente dadas,
Filosofia e Educação

independentemente do mundo exterior e da experiência que


se obtém primeiramente por meio dos sentidos.
É necessário, portanto, que exista experiência em
primeiro lugar, que os sentidos sejam afetados pelo objeto
para que surja a reflexão como operação secundária, que, por
sua vez, forma as ideias. Nesse sentido, podemos concluir com
Locke:

(...) Todas nossas ideias derivam de uma ou de


outra fonte. Parece-me que o entendimento não
UNIDADE V

tem o menor vislumbre de quaisquer ideias se não


as receber de uma das duas fontes. Os objetos
externos suprem a mente com as ideias das
qualidades sensíveis, que são todas as diferentes
percepções produzidas em nós, e a mente supre o
entendimento com as ideias através de suas próprias
operações. Quando efetuarmos uma investigação
completa de ambos, de seus vários modos,
combinações e relações, descobriremos que eles
contêm todo o nosso estoque de ideias, e que não
98
Módulo 1
temos nada em nossas mentes a não ser o derivado
de um desses dois meios. Se alguém examinar seus
próprios pensamentos, dir-me-á, então, se todas as
ideias originais que lá estão são algo mais do que os
objetos de seus sentidos, ou das operações de sua
mente encarada como objeto de sua reflexão; e,
por mais ampla que seja a massa de conhecimentos

PEDAGOGIA
lá localizada, por mais que ele imagine, verá,
assumindo um ponto de vista estrito, que não tem
ideia alguma em sua mente, a não ser o que foi
por uma dessas impresso, embora talvez em infinita
variedade e ampliadas pelo entendimento (LOCKE,
1978).

Podemos verificar, nessa conclusão, o retorno ao


pressuposto traduzido na metáfora da mente “como um
papel em branco”, na qual só se pode verificar a existência
de um texto impresso, após a experiência que depende das
duas fontes explicitadas: a sensação e a reflexão. Por mais
que a complexidade do pensamento e o aprimoramento do
entendimento humano tenham se desenvolvido, estes só
foram possíveis e só podem ser explicados, para Locke, como
aquisição e não como algo que pré-existe à experiência, como
afirma o inatismo.
A disputa entre essas duas explicações – do racionalismo
e do empirismo - sobre a origem e o desenvolvimento do
conhecimento, encontrou em Kant um termo de finalização.
Kant, já distanciado dessa disputa, foi capaz de inventar,

Filosofia e Educação
com base na discussão do que é inato e do que é adquirido,
a expressão “aquisição originária”. Aquisição remete ao
empirismo; originário, ao inatismo. Para Kant essa expressão
supera a oposição, pois não afirma que o conhecimento é
inato, nem empiricamente adquirido. O que é originariamente
adquirido provém da experiência, despertando o que já existia
na consciência que, portanto, não é exatamente uma folha de
papel em branco.

UNIDADE V

99
Volume 2

ATIVIDADE
1. Embora Kant seja considerado o filósofo que superou a oposição entre
PEDAGOGIA

essas duas correntes do pensamento, a querela (debate, disputa) entre


inatismo e empirismo encontrou eco nos séculos seguintes e sustentou
o surgimento de algumas ciências, como a psicologia. Encontramos, na
obra grandiosa de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, escrita
no final do século XIX, a forte presença de uma psicologia com base no
empirismo. Escolhemos um pequeno trecho de sua obra como exercício
de reconhecimento do teor dessa discussão, corpo e espírito/razão,
em sua narrativa. Na leitura, é possível reconhecer alguns aspectos
que elegem o corpo como referência para a memória verdadeira ou
mais fiel ao passado do que a que se procura lembrar voluntariamente
por meio do esforço exclusivo da razão consciente. Destaque no texto
as passagens que indicam que a memória provém do corpo e não da
consciência ou razão:

A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja


imposta por nossa certeza de que essas coisas são elas
mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento
perante elas. A verdade é que, quando eu assim despertava,
com o espírito a debater-se para averiguar, sem sucesso,
onde poderia achar-me, tudo girava em redor de mim no
escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito
entorpecido para se mover, procurava, segundo a forma
de seu cansaço, determinar a posição dos membros para
daí induzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para
reconstruir e dar um nome à moradia onde se achava. Sua
memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de
Filosofia e Educação

suas espáduas, apresentava-lhe, sucessivamente, vários


dos quartos onde havia dormido, enquanto em torno dele
as paredes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da
peça imaginada, redemoinhavam nas trevas. E antes mesmo
que meu pensamento, hesitante no limiar dos tempos e das
formas, tivesse identificado a habitação, reunindo as diversas
circunstâncias, ele – meu corpo – ia recordando, para cada
quarto, a espécie do leito, a localização das portas, o lado
para que davam as janelas, a existência de um corredor, e
isso com os pensamentos que eu ali tivera ao adormecer
e que reencontrava ao despertar. Meu corpo anquilosado,
procurando adivinhar sua orientação, imaginava-se, por
UNIDADE V

exemplo, virado para a parede, em um grande leito de dossel,


e eu logo dizia comigo: ‘Pois não é que acabei adormecendo
antes que mamãe viesse me dar boa noite!’; achava-me
então no campo, em casa de meu avô, morto havia muitos
anos; e meu corpo, o flanco sobre o qual eu repousava, fiel
zelador de um passado que meu espírito nunca deveria ter
se esquecido ... (PROUST, 1987, p.12).

100
Módulo 1

RESUMINDO

PEDAGOGIA
Nesta unidade, você viu:

• como a constituição da subjetividade moderna surge associada


à questão do conhecimento exclusivamente baseado na razão
ou pensamento;

• a necessidade de se fundar um método para evitar o erro da


razão;

• o debate sobre a origem do conhecimento ou das ideias


segundo as correntes do inatismo ou racionalismo e o
empirismo;

• o contraste entre a percepção sensorial do corpo e a razão


ou espírito.

Filosofia e Educação
DESCARTES, Renée. Discurso do método. In: Coleção “Os
r e f eR Ê N C ia s

Pensadores”. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2.


ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

DESCARTES, Renée. Meditações. In: Coleção “Os Pensadores”.


Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2. ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1979.

LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano.


In: Coleção “Os Pensadores”. Tradução de Anoar Aiex; E. Jacy
UNIDADE V

Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho


de Swann. Volume 1. Tradução de Mário Quintana. 11. ed. Rio
de Janeiro: Ed. Globo, 1987.

101
Suas anotações
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6

unidade
Filosofia e educação
em Jean-Jacques Rousseau
Meta

Apresentar o pensamento de Rousseau com


ênfase na questão do conhecimento, da
consciência moral e política.
Objetivos

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz


de:

• compreender os conceitos de natureza, de


consciência, de amor de si e de amor-próprio em
Rousseau, como conceitos estruturais necessários
para entender a crítica do filósofo à sociedade e
suas representações.
Módulo 1

UNIDADE VI

PEDAGOGIA
Filosofia e Educação
1 INTRODUÇÃO

Para você compreender alguns aspectos importantes da

filosofia de Rousseau, nosso roteiro de estudo desta unidade

será:
UNIDADE VI

• Rousseau e o Iluminismo francês.

• A crítica e a teoria da educação proposta por Rousseau:

- conceitos articuladores da filosofia de Rousseau;

- mimesis e a crítica ao teatro e à educação.

105
Volume 2
2 JEAN-JACQUES ROUSSEAU E SUA CRÍTICA AO
CONTEXTO SOCIAL E POLÍTICO

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é um dos filósofos


PEDAGOGIA

cujas obras se tornaram leituras obrigatórias em diversos


currículos de formação profissional e formação de professores.
São textos críticos em relação à sociedade,
à política, que buscam apresentar soluções
principalmente políticas, educativas e
culturais. Em sua época, dificilmente
poderíamos separar a figura do filósofo
das figuras do político e do artista,
pois o filósofo participava da sociedade
ativamente em todas as suas instâncias: na
ciência, na política e nas artes. Sobre estas
também refletiam e propunham medidas e
soluções.
Neste contexto, Rousseau escreve
sua grande obra voltada à Educação,
intitulada Emílio ou da Educação. Esta
obra, ao lado de Do contrato social, que
contém sua proposta política de um pacto
FIGURA 1 - Portrait de Jean-Jacques Rousseau por realizado em bases igualitárias de acordo
Maurice-Quentin La Tour, 1753.
Fonte: http://pt.wipedia.org com a vontade geral, lançadas no mesmo
ano, em 1762, foram mal recebidas pelas
Filosofia e Educação

autoridades políticas e religiosas na França e Suíça, instâncias


que se incumbiram de proibir a leitura dessas obras, queimadas
em praça pública, e de incriminar Rousseau, que foge dos dois
países para não ser preso. Ele passou o resto de sua vida
justificando suas ideias em outros escritos. Suas críticas e
propostas foram incorporadas ao discurso político e educativo
nos séculos seguintes.

Deísmo - O deísmo é uma


UNIDADE VI

tendência filosófico-religiosa
que admite a exis-tência de 2.1 Rousseau e o Iluminismo francês
Deus por meio da razão, em
contrapartida aos dogmas da
Igreja e da tradição religiosa.
Para os deístas, Deus se
Jean-Jacques Rousseau viveu no período conhecido
revela através da ciência e pelo nome de Século das Luzes, Iluminismo ou Ilustração. Um
das leis da natureza.
período marcado por uma grande emancipação da razão, de
Ateísmo – Postura filosófica
que empre-ende a negação admissão franca do deísmo e do ateísmo e projetos ousados
da existência de Deus e dos
dogmas da Igreja. de compilação do conhecimento humano, como foi o projeto da
Enciclopédia Francesa, coordenado por Diderot e D’Alembert.
106
Módulo 1

U V
a FR
K
Encyclopédie, ou dictionnaire C AM
raisonné des sciences, des

SAIBA MAIS
arts et des métiers foi uma

PEDAGOGIA
projeto dirigido inicialmente
por Denis Diderot e por ele
finalizada, dividindo a edição
com Jean le Rond d’Alembert.
A Enciclopédia foi publicada
na França, no século XVIII.
Os volumes somam ao todo
28, com 71.818 verbetes
e 2.885 ilustrações, sendo
que seus últimos volumes
foram publicados em 1772.
Contribuíram, para o projeto
e edição da Encyclopédie, os
FIGURA 2: Capa da Enciclopédia Francesa: filósofos: Voltaire, Rousseau
Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des
e Montesquieu.
sciences, des arts et des métiers. Fonte: http://
pt.wikipedia.org


Immanuel Kant (que você estudará na próxima Unidade
- VII), em 1784, ao escrever a resposta à questão “O que
é a Aufklärung?” (palavra alemã traduzida por Ilustração,
Iluminismo ou ainda Esclarecimento), em seu texto, assim
intitulado, estabelece a máxima desse período: Sapere aude!
(Ousa saber!), considerando que o homem ganha “decisão
e coragem” em ser o senhor de si mesmo e de seu próprio
entendimento das coisas.

Filosofia e Educação
A ousadia do saber confere uma autonomia à razão
jamais experimentada pelo homem ao longo de sua história
e impõe-lhe a tarefa de dominar todas as áreas do saber e
da prática. A filosofia não é entendida em sentido estrito,
debruçada sobre si mesma, seus autores e sua história, mas
ela se expande para todo o âmbito do conhecimento e das
artes em geral. Os filósofos escrevem peças teatrais, músicas,
ensaiam a escrita literária de romances e diálogos. A educação
tradicional familiar e da escola são submetidas a fortes críticas
e o sentido de educação retoma o de formação integral do ser
UNIDADE VI

humano: intelectual, moral e política. Segundo Souza (2003,


p.19),

(...) ao se impor essa tarefa político-pedagógica, a


filosofia das luzes é levada a ocupar-se da diversidade
dos problemas suscitados pela própria vida concreta
dos homens do século: a política, a arte, a educação,
o desenvolvimento das ciências, das técnicas, o
caráter e o papel histórico das religiões.

107
Volume 2

Dentre os principais estudiosos de Rousseau, estão:

Ernst Cassirer (1874-1945): filósofo judeu alemão, um dos mais reconhecidos neo-
kantianos da Escola de Marburgo, Alemanha, desenvolveu uma Filosofia da Cultura
e uma teoria sobre os símbolos e lecionou nas universidades de Berlim, Leipzig e
PARA CONHECER
PEDAGOGIA

Heidelberg. Entre suas obras mais citadas, encontramos: Filosofia das formas
simbólicas (1923); O mito do Estado (1946); A questão Jean-Jacques Rousseau
(1970).

Jean Starobinski (1920): suíço genebrino como Rousseau, tornou-se um de seus


mais reconhecidos intérpretes e especialistas no período (séc. XVIII). Entre suas obras,
podemos citar Jean Jacques Rousseau: A Transparência e o Obstáculo; Montaigne
Em Movimento, A Invenção da Liberdade.

Peter Gay (1923): historiador e cientista judeu alemão, político voltado para a história
das ideias, escreveu, em 1959, A política em Voltaire; O Iluminismo: uma interpretação
(1969), sendo seu livro mais conhecido A cultura de Weimar (1968).

Luiz Roberto Salinas Fortes (1937-1987): formado em Direito e em Filosofia, foi


professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e um dos
fundadores do Teatro Oficina, em 1958. Publicou livros e artigos sobre Rousseau e o
Iluminismo, entre os quais: Paradoxo do espetáculo: política e poética em Rousseau;
O iluminismo e os reis filósofos; Rousseau: o bom selvagem.

Maria Constança P. Pissarra: professora da Pontifícia Universidade Católica de


São Paulo, membro do corpo editorial da Coleção Filosofia, pesquisadora associada
da Universidade de São Paulo, membro do corpo editorial da Revista COMFIO e
membro do corpo editorial da Poliética. Autora de Rousseau: A política como exercício
pedagógico.

Maria das Graças de Souza: possui graduação em Filosofia pela Universidade de


São Paulo (1971), mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1983) e
doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1990). Livre-docente em 1999,
é atualmente professora titular da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área
de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia e Política, atuando principalmente
nos seguintes temas: filosofia moderna, iluminismo, renascença, história, política.
Filosofia e Educação

Rousseau, como se sabe, é filho de sua época e, embora


fosse suíço, nascido em Genebra, se fez reconhecer, desde
o início, pela intelectualidade francesa. Tornou-se amigo
de Diderot, com quem partilhou o projeto da Enciclopédia,
escrevendo os verbetes sobre música. Rousseau, no entanto, é
crítico da razão que se separa da sensibilidade e da consciência
moral. Ele se tornou referência importante para Kant, Goethe,
UNIDADE VI

Schiller e todo o romantismo. Num livro introdutório sobre o


Iluminismo, Fortes (1982) comenta o incômodo sentido pelo
historiador da filosofia em incluir Rousseau nesse período e
movimento filosófico:

Seria Rousseau iluminista, iluminado, iluminador?
Não se sabe. O que se sabe de efetivo é que sua
obra é mesmo muito complicada, com mil meandros
e aparentes contradições insuperáveis. Ele parece

108
Módulo 1
desdizer em uma página o que disse na outra. Briga
com todo mundo [...], com os clérigos católicos
de um lado e, de outro, com o partido adverso, o
dos philosophes. Todo mundo o detesta, não é só
Voltaire. Todos fazem dele uma imagem terrível
e o fantasiam como a um verdadeiro monstro

PEDAGOGIA
insociável a escrever paradoxos ininteligíveis. Se
não é possível dizer que Rousseau é um iluminista,
o que se pode dizer com absoluta segurança é que
ele é um verdadeiro desmancha-prazeres da festa
dos iluministas (p.72).

Ao criticar uma espécie de razão excessiva, erudita, que


se distancia da percepção sensível e concreta da realidade,
Rousseau não se torna, ao contrário, um irracionalista. Essa
é a preocupação de alguns autores ao tentarem desvincular
Rousseau de tendências irracionalistas do romantismo.

3 NATUREZA, AMOR DE SI E AMOR-PRÓPRIO:


CONCEITOS ARTICULADORES DA FILOSOFIA DE
ROUSSEAU

No prefácio ao livro de Ernst Cassirer, Das Problem


Jean-Jacques Rousseau - 1932 (traduzido em português pelo
título da tradução inglesa: A questão Jean-Jacques Rousseau,
UNESP, 1997), Peter Gay descreve o trajeto das interpretações

Filosofia e Educação
equivocadas de Rousseau até, no início do século XX, destacar
os autores que se preocuparam em conferir unidade ao seu
pensamento, entre os quais o próprio Cassirer (antecedendo a
ele, G. Lanson e Whright). Contra uma visão irracionalista de
Rousseau, esses autores procuraram ressaltar, com base nas
obras consideradas políticas (o Discurso sobre a desigualdade e
Do Contrato Social), os conceitos de natureza
Estado de natureza: Trata-se de uma
e da bondade natural como princípio de seu
hipótese lógico-filosófica do que teria
pensamento. existido antes de a sociedade ter sido
constituída por leis e pela política. Essa
UNIDADE VI
ATENÇÃO

A crítica de Rousseau à sociedade, hipótese foi levantada, principalmente,


como corruptora do amor de si, característico no contraste entre a sociedade civil e o
regime político por seus formuladores.
da natureza e do progresso, havia lhe rendido Esses filósofos são conhecidos como
contratualistas, pois, com base na ideia
muitas críticas de Voltaire, que jocosamente de natureza (boa ou má), propunham-
dizia que Rousseau gostaria que os homens se um pacto ou contrato fundante da
sociedade civil e de um regime político.
voltassem a viver sobre quatro patas. A Thomas Hobbes (1588-1679), John
Locke (1632-1704) e Rousseau são os
oposição ao social e a crítica ao progresso principais teóricos que formularam essa
geraram, e ainda geram, o paradoxo e os questão.

109
Volume 2
mal-entendidos em relação a uma suposta e impossível volta
ao estado de natureza. Vejamos, nas perspectivas abaixo, a
demonstração dessa preocupação:

a) “Como pode o homem civilizado recuperar os benefícios do


PEDAGOGIA

homem natural, assim inocente e feliz, sem retornar ao estado


de natureza, sem renunciar às vantagens do estado social?”
(LANSON, apud CASSIRER, 1989, p. 24)

b) “A idéia de que o homem deve se aperfeiçoar por sua razão e em


concordância com sua natureza percorre toda a obra de Rousseau e
lhe confere uma unidade essencial”.
(WHRIGHT, apud CASSIRER, 1989, p. 24)

c) “Rousseau jamais acreditou que alguém não pudesse fazer uso de


sua própria razão... Muito ao contrário, ele queria nos ensinar a usá-la
bem... Rousseau é um racionalista consciente dos limites da razão”.
(DERATHÉ, apud CASSIRER, 1989, p.30)

d) Podemos acrescentar a essa afirmação a seguinte passagem do


Emílio, Livro IV: “(...) queremos compreender tudo, conhecer tudo. A
única coisa que não sabemos é ignorar o que não podemos saber”.
(ROUSSEAU, 1999, p. 359)

Para Cassirer, o grande princípio da filosofia de Rousseau
é que o homem é bom, que a sociedade o corrompe, mas
Filosofia e Educação

que somente a sociedade, o agente da perdição, é capaz de


ser o agente da salvação. Outros autores discordaram desses
intérpretes, não pela ênfase dada ao racionalismo, mas pela
tentativa de conferir uma unidade à obra de Rousseau.
Peter Gay escreve, posteriormente, sobre a relevância
da obra A transparência e o obstáculo, de Jean Starobinski,
referência obrigatória nos estudos de Rousseau, cuja
incorporação dos escritos considerados não políticos, como
os autobiográficos e Emílio ou da educação, trouxe à tona a
UNIDADE VI

importância da questão da interioridade. Surge, a partir dessa


obra, uma exploração de viés psicológico que teria se sobreposto
ao político, o que novamente enfraquece a compreensão de
seu pensamento.
Partimos dessa última constatação para ter o cuidado
de não isolar o aspecto estético, esquecendo o político e o
moral, na direta abordagem do problema da representação ou
exposição das ideias.
110
Módulo 1

PEDAGOGIA
Gravura que mostra Voltaire e
Rousseau sendo conduzidos, com
seus livros, a um Panteão, que
significa tanto um antigo templo
romano, quanto um monumento que
guarda restos mortais de heróis,
estadistas. Os dois filósofos foram
enterrados no mesmo Panteão, em
Paris, na França.

Figura 3 - Fonte: http://www.traditioninaction.org

A filosofia de Rousseau estabelece uma aparente


oposição entre natureza e representação; oposição possível
de ser rompida quando se examina mais cuidadosamente o
significado complexo que cada termo comporta.
Encontraremos, por um lado, conceitos que reforçam a
suposta oposição como o de amor de si e de amor próprio; e, por
outro, conceitos que a superam, como o entendimento positivo
que Rousseau possui da música e a utilização hiperbólica ou
exagerada (e irônica) que ele próprio faz da escrita para criticar
determinadas formas de representação, como o teatro.

Filosofia e Educação
Amor de si (amour de soi): Em O discurso da desigualdade social, Rousseau se refere U V
ao amor de si como: “O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo e a FR
K
qualquer animal a cuidar de sua própria preservação e que, guiado no homem pela C AM
razão e modificado pela compaixão, cria humanidade e virtude”. Isso quer dizer que
SAIBA MAIS

esse sentimento não diz respeito ao que é instintivo por ser natural, mas se relaciona
com a consciência, com a virtude e o bem-estar individual manifestado no coletivo.
Na proposta de educação de Rousseau, o preceptor deve buscar desenvolver esse
sentimento e não o do amor-próprio.

Amor próprio (amour propre): Em O discurso da desigualdade social, o amor próprio


surge como o primeiro encadeador da desigualdade social, antes mesmo da fundação
simbólica da primeira propriedade, segundo a qual alguém resolveu fincar uma estaca e
UNIDADE VI

afirmar – isto é meu – e encontrou pessoas ingênuas o suficiente para permitir que ele
o fizesse. O amor próprio diz respeito aos sentimentos de vaidade e egoísmo. Mais do
que isso, diz Dent (1992):

O amor-próprio acaba por desalojar o AMOR DE SI MESMO,


substituindo o bem intato e sereno que caracteriza este último pelo
bem enganoso e ilusório que consiste em obter odioso domínio pessoal
sobre outrem. De acordo com essa explicação, Rousseau tende a
ver o amor-próprio como, acima de tudo, a fonte de corrupção e
sofrimento pessoais, e de perversidade social. Quando ele diz, com
frequência, que o homem é bom por natureza, mas corrompido pela
sociedade, o que tem em mente é o fato de que o contato social põe
em relevo o amor-próprio e reforça e amplia sua influência (p.40).

111
Volume 2
Mais do que conceitos, a ideia de natureza constitui
o princípio da filosofia de Rousseau e há uma teoria da
representação formulada que tem como ponto de partida a
ideia de mímesis em Platão.
Com relação ao conceito de natureza, vale ressaltar dois
PEDAGOGIA

sentidos diferentes presentes no Discurso sobre a desigualdade


e no Emílio. Na primeira obra, o estado social é fundado na
condição de um pacto social realizado em bases desiguais;
nessa transição,, o estado de natureza, que já vinha definhando
aos poucos com os primeiros agrupamentos e o surgimento do
sentimento negativo do “amor-próprio”, é abolido. Trata-se do
raciocínio característico dos chamados contratualistas, ou seja,
o estado de natureza funcionaria como uma hipótese lógica,
sem uma preocupação histórica ou antropológica efetiva, do
que teria sido o estado anterior à sociedade. No Emílio, a
natureza é algo que permanece no estado social e no homem
socializado. Corresponde à sobrevivência do “amor-de-si”
como expressão da bondade natural no contexto da sociedade
permeada pelo “amor-próprio”, sentimento correlato aos de
egoísmo, inveja e vaidade.

4 MÍMESIS E A CRÍTICA AO TEATRO E À EDUCAÇÃO

Rousseau afirma, em Emílio ou da Educação, que o gosto


pela imitação reside na natureza harmonizada, o homem é
Filosofia e Educação

um imitador por natureza. O entendimento de mímesis, nesse


caso, segue o raciocínio de Platão e Aristóteles, ao afirmar que
a mímesis é parte da natureza humana. A diferença é que, ao
seguir seu próprio pressuposto em relação à natureza humana
ou ao estado de natureza, Rousseau acrescenta que essa
capacidade inata de estabelecer relações miméticas degenerou
em vício na sociedade. Numa passagem de Emílio, ele diz:

O homem é um imitador. Até os animais são. O gosto


UNIDADE VI

pela imitação pertence à natureza ordenada, mas a


sociedade degenera-o em vício. O macaco imita o
homem, a quem ele teme, mas não imita animais
que ele despreza (apud POTOLSKY, 2006, p.137).

No início da segunda parte do Discurso sobre a


Desigualdade, Rousseau (2002) mostra o momento no qual
o homem passa da solidão às primeiras formações sociais, à
domesticação do gênero humano, ao convívio e aos momentos

112
Módulo 1
de ócio em torno das
cabanas. Nesse momento,
surge o primeiro passo para a
desigualdade, suscitado pelos
sentimentos da inveja e da

PEDAGOGIA
vaidade. Cria-se a situação
de espelho social: “cada qual
começou a olhar os outros
e a querer ser olhado por
sua vez, e a estima pública
teve um preço. Aquele que
cantava ou dançava melhor;
o mais belo, o mais hábil ou
o mais eloqüente passou a FIGURA 4 - Interior da Comédia Francesa em Paris. Aquarela do séc. XVIII.
Fonte: http://portal saofrancisco.br/alfa/historia-doteatro/imagens/teatro-1.jpg

ser o mais considerado” (p.


213).
A desigualdade surge quando traz à tona a “vaidade e o
desprezo” do considerado melhor e a “vergonha e o desejo” do
que se considera inferior àquele.
Rousseau enxerga o extremo dessa situação na
representação teatral, dirigindo, em particular, uma crítica
radical à comédia francesa encenada no período. Ele escreve
uma réplica ao verbete de D’Alembert ao teatro em um escrito
intitulado Carta a d’Alembert. Sobre os espetáculos. Ele
entende que há, nesse contexto, um processo antidemocrático
de dominação política, enfraquecedor do amor-de-si e que,

Filosofia e Educação
discordando de Aristóteles, não pode servir de instrumento de
educação pública.
O objetivo da comédia é agradar o público. Ao agradar
termina por impor ao público uma verdade aparente e
dependente de seu ponto de vista, com base no amor-próprio.
A tirania não viria do comando das paixões, sobrepostas à
razão, mas do poeta-dramaturgo que manipula a audiência ao
apresentar sua visão distorcida e aparente do mundo. Rousseau
atribui o papel masculino e ativo à imposição do artista e o
UNIDADE VI

papel feminilizado à audiência passiva, escravizada por uma


perspectiva tirana. O feminino, neste caso, corresponde a um
sinal de fraqueza.
Como Platão, Rousseau julga que, por meio da mímesis,
a percepção humana se enfraquece. O público, submetido a
uma ilusão, sofre uma espécie de “abuso” dos sentidos. O
resultado perverso desse abuso é tornar o homem incapaz
de julgar. Ressalte-se aqui o aspecto moral e não o cognitivo,
113
Volume 2
embora os dois não estejam separados em Rousseau, quando
entendemos o papel da consciência como uma espécie de
razão natural em oposição à racionalidade social excessiva e
artificial. A capacidade de julgar deve ser preservada, para
Rousseau, e só à consciência é reservada essa capacidade.
PEDAGOGIA

Para Rousseau, a consciência guia a alma, as paixões, o


corpo. Não há, nesse sentido, uma divisão tripartide da alma,
como em Platão. Em Emílio, Livro IV (p.386-7), Rousseau diz:

Meditando sobre a natureza do homem, acreditei


descobrir nela dois princípios distintos, dos quais um
elevava-o ao estudo das verdades eternas, ao amor
da justiça e do belo moral, às regiões do mundo
intelectual cuja contemplação faz as delícias do sábio,
e o outro trazia-o de volta baixamente a si mesmo,
sujeitava-o ao império dos sentidos, às paixões que
são seus ministros e contrariava por elas tudo o
que lhe inspirava o sentimento primeiro. Sentindo-
me puxado e disputado por esses dois movimentos
contrários, eu pensava: não, o homem não é outro;
eu quero e não quero, sinto-me ao mesmo tempo
escravo e liberto; vejo o bem, amo-o, e faço o mal;
sou ativo quando escuto a razão, passivo quando
minhas paixões me arrastam, e meu pior tormento
quando sucumbo é sentir que pude resistir.

A educação do jovem, nesse contexto, deve se estabelecer


segundo o seguinte equilíbrio: educado para o amor-de-si, o
jovem não se tornará no adulto tirano ou escravo. O sentimento
Filosofia e Educação

moral como consciência, baseado no amor-de-si, guiará o


julgamento. O que está em risco no teatro é o desequilíbrio
que submete a consciência e favorece a confusão dos sentidos,
incapacitando a formação do juízo. Discordando de Aristóteles
e da ideia de catarse como purificadora das emoções, Rousseau
afirma que a plateia é escrava da tirania do artista. O que afeta
sua capacidade de julgar é a relação desigual entre autor-
dramaturgo e audiência. Ao amplificar o sentimento de tristeza
na tragédia, não nos sentimos apiedados, compadecidos e
libertos desse sentimento após o espetáculo, mas, diz ele,
UNIDADE VI

“deixando-nos ser subjugados pela tristeza dos outros, como


resistir às nossas?”.
A diferença entre filosofia e dramaturgia revela-se positiva
em relação à primeira. Concordando com o sentido platônico
de filosofia, como busca da verdade, como exame, o filósofo
é aquele que discute, que propõe dúvidas, que conjectura e,
principalmente, que submete sua razão ao julgamento dos

114
Módulo 1
outros. “O poeta”, diz
ele, “e imitador se faz
juiz de si mesmo”. A
imitação, nesse sentido,
torna-se uma faculdade

PEDAGOGIA
inferior que julga sob a
aparência e nas mãos
de um hábil poeta ou
dramaturgo submete as
pessoas à vulgaridade, a
contradições e à tristeza.
A tragédia é ineficiente na
educação dos costumes.
Pior ainda se nos faz rir.
Em Carta a d’Alembert,
motivado pelas críticas
de d’Alembert aos
genebrinos, que nutririam FIGURA 5 - apresentação da peça “O doente imaginário” de Molière, no jardim de Versailles.
Fonte: http://3.blogspot.com ou www.estudosteatraisblogspot.com
um “preconceito contra o
comediante”, Rousseau é
mais radical ainda: não só não aprendemos a ser melhores, mas
piores. A comédia aparece como exaltação do amor-próprio.
Rousseau se contrapõe à visão de que a comédia teria
por finalidade corrigir os vícios dos homens; ele afirma, ao
contrário, que ela os exarcerbaria, se tivermos em mente
o conceito de amor-próprio que, lá no Discurso sobre a

Filosofia e Educação
desigualdade, é indicado em seu surgimento como o início dos
sentimentos da inveja e da vaidade.
Seria o momento que corresponderia ainda ao estado de
natureza hobbesiano (para entender, recorra ao boxe em que
foi explicado o estado de natureza). Percebemos que o riso é
resultado da caricatura, do ridículo dos outros dos quais se ri,
e do medo de sucumbir ao ridículo. A tragédia ainda criaria
momentos de identificação e piedade, mesmo que passageiros
e insuficientes; mas, na comédia, esses sentimentos são
UNIDADE VI

excluídos. Aquele que ri se sente superior, mas, na verdade, é


na condição de escravo que se encontra, ao ser submetido pelo
sentimento de vaidade do dramaturgo, dando-lhe a impressão
de superioridade. O teatro aparece, numa escala de valor, em
grau inferior, como simulacro de virtude, incapaz de favorecer
o aprimoramento moral.
Deve-se notar, em contrapartida, que, como Platão,

115
Volume 2
Rousseau enxerga uma plateia ideal, incapaz de ser submetida
à distorção dos sentidos e do conhecimento. Platão considera
toda representação danosa para aqueles que não conseguem
separar o real da aparência, mas os filósofos, ao intuírem
diretamente a ideia de Bem, são capazes de separar o falso do
PEDAGOGIA

verdadeiro. Por isso, no governo da cidade ideal, eles proibirão


a mímesis no processo de educação que estrutura esse
governo. A plateia ideal de Rousseau pode até rir, o riso deixa
de ser condenado. Para provar que está certo e Hobbes errado,
Rousseau (1999), por meio da fala do Vigário Saboiano, diz:

Entremos em nós mesmos, jovem amigo, e


examinemos, pondo de parte todo nosso interesse
pessoal, a que nos levam nossas inclinações. Que
espetáculo nos agrada mais, o dos tormentos ou
o da felicidade de outrem? O que nos é mais doce
fazer e nos deixa uma impressão mais agradável
após ter feito, um ato de benevolência ou um ato
de maldade? Por quem te interessas no teatro? É
com os crimes que te divertes, é por seus autores
punidos que derramas lágrimas? Tudo é indiferente
para nós, dizem eles, exceto nosso interesse; e,
muito pelo contrário, as delícias da amizade e da
humanidade consolam-nos em nossos sofrimentos
e, mesmo em nossos prazeres, estaríamos muito
sós, muito miseráveis se não tivéssemos com quem
partilhá-los. Se não há nada de moral no coração
do homem, de onde vêm os arroubos de admiração
pelas ações heróicas, os transportes de amor pelas
grandes almas? O entusiasmo da virtude, que
Filosofia e Educação

ligação tem ele com nosso interesse privado? Por


que preferiria eu ser Catão que rasga suas entranhas
a ser César triunfante? Suprimi de nossos corações
esse amor do belo e suprimireis todo o encanto da
vida. Aquele cujas vis paixões abafaram na alma
estreita esses sentimentos deliciosos, aquele que,
de tanto se concentrar dentro de si mesmo, acaba
só amando a si mesmo, já não tem arroubos, seu
coração gelado já não palpita de alegria, um doce
enternecimento nunca umedece seus olhos; ele não
goza de nada; o infeliz já não sente, já não vive; já
está morto (p.388).
UNIDADE VI

Esse infeliz, regido pelo amor-próprio, tem como


único prazer o riso irônico, “diverte-se, lançando-se para fora
de si mesmo; gira ao redor seus olhos inquietos, à procura de
um objeto que o divirta; sem a sátira amarga, sem a zombaria
insultante, ele estaria sempre triste”. Mas o justo também ri.
Diz Rousseau: ”(...) seu riso não é de malignidade, mas de

116
Módulo 1
alegria; ele carrega a fonte desse riso em si mesmo; é tão
alegre quando está só quanto no meio de uma reunião; não
tira seu contentamento dos que o rodeiam, mas comunica-lhes
esse contentamento” (ROUSSEAU, 1999, p.389).
Note-se o estilo dramático e hiperbólico de Rousseau,

PEDAGOGIA
o que encerra um novo paradoxo em relação a sua crítica ao
poeta e dramaturgo. Mas, trata-se aqui do teatro da vida e a
admissão da vida como um teatro universal. As festas populares
constituem o reflexo natural dessa encenação. Na nota final
de Carta a d’Alembert, Rousseau descreve uma festa cívica,
na qual não há rastro de inveja ou competição. A música,
mais alta representação mimética, comanda o espetáculo e
se reflete na dança espontânea, não ensaiada das pessoas
nas ruas, tornando-se, por consequência, uma representação
também política.

Filosofia e Educação
Pintura do belga James Ensor (1860-1949), intitulada Entrada de Cristo em Bruxelas, de 1889, representada como uma parada política,
imagem que podemos associar à ideia de festa popular em Rousseau. Fonte: www.users.skynet.be

A crítica que Rousseau dirige às comédias de Molière


e às comédias francesas em geral reflete o político, porque
UNIDADE VI

essas, quando fornecem à plateia, pelo riso, a sensação de ser


superior, reforçam a dominação.
Em Rousseau, a capacidade mimética natural do homem
se modifica quando ela não serve mais ao seu aprendizado,
mas ao querer parecer igual àquele que mais impressiona a
todos. A imitação do outro distancia o homem de sua própria
natureza, do conhecimento de si. O comportamento mimético
do homem em sociedade corresponde ao sentido negativo de

117
Volume 2

mímesis que, além de fermentar o amor próprio, associa-se


a modelos políticos de opressão. Das primeiras formações
sociais, seu ócio e diversão, à sofisticada sociedade francesa do
século XVIII, essa capacidade mimética natural se transformou
,de maneira sofisticada, no teatro, que se torna, na crítica de
PEDAGOGIA

Rousseau, a arte que mais distancia o ator de si mesmo, e


tem, no diretor, a reprodução da figura política opressora.

ATIVIDADE
1. Leia a obra Emílio e perceba, em particular, a concepção de
natureza como natureza humana. Essa natureza diz respeito
à criança e a seu aprendizado. Este aprendizado é quase
autônomo, apenas compartilhado pelo preceptor que mais o
observa, não impõe regras e regula a manifestação do amor-de-
si ao evitar a aproximação com o sentimento do amor-próprio.
Você deve refletir sobre o objetivo abaixo, relacionando-o aos
significados de natureza apresentados nesta unidade:

O objetivo do livro é recriar o homem natural.


De que forma isso é possível? Como orientação
a essa resposta, você pode pesquisar Pissarra
Filosofia e Educação

(2002), que afirma que para proteger a criança


da influência da civilização é necessário educá-
la no campo, longe do convívio familiar, da
sociedade e dos livros. Deixa-se a criança
livre para se formar por meio de sua própria
experiência, sendo a natureza seu melhor
preceptor. Só assim é possível resgatar o
homem natural.
UNIDADE VI

Rousseau considerava que sua obra Emílio continha a proposta de um novo


sistema de educação que ele oferecia ao exame dos sábios. Sua obra não
era um manual para pais e mães de como criar uma criança, embora tenha
sido entendido desta maneira, inicialmente. Não se tratava de ler Emílio e
PARA CONHECER

experimentar uma nova maneira de educar as crianças, mas de imaginar


como seria esse homem resultante de uma criança educada a partir da
observação dos mecanismos da natureza humana. Emílio é um personagem
de ficção que representa o indivíduo (ou indivíduos) que conseguiu manter-
se mais ou menos à margem da sociedade corrompida (PISARRA, 2002,
p.60).

118
Módulo 1

RESUMINDO

Nesta unidade você viu que:

PEDAGOGIA
• Há diferentes significados de natureza em Rousseau.

• A diferença entre amor de si e amor-próprio guia a filosofia de


Rousseau em sua crítica à sociedade, à política e à educação.

• A educação, em sentido amplo, é formadora do cidadão sob o


ponto de vista da dominação. É necessário desenvolver, no aluno,
o amor de si, combatendo os sentimentos da vaidade e do egoísmo
que condizem com o amor-próprio.

• Rousseau recebe e transforma a herança platônica e aristotélica


da discussão da mímesis em relação ao teatro, à arte e à política,
ampliando seu sentido. É possível, nessa adoção, ampliarmos o
sentido de educação para o adulto na esfera da cultura.

Filosofia e Educação
UNIDADE VI

119
Volume 2

r e f eR Ê N C ia s
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a d’Alembert. Tradução de
Roberto Leal Ferreira. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.
PEDAGOGIA

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Tradução de


Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os


fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Intérpretes:

CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau. Tradução


de Erlon José Paschoal. São Paulo: Editora da UNESP, 1989.

DENT, N.J.H. Dicionário Rousseau. Tradução de Álvaro Cabral.


Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

FORTES, Luiz Roberto Salinas. Paradoxo do espetáculo: Política


e poética em Rousseau. São Paulo: Discurso Editorial, 1997.

FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos.


São Paulo: Brasiliense, 1982.

FORTES, Luiz Roberto Salinas. O bom selvagem. São Paulo: FTD,


1989.
Filosofia e Educação

MARQUES, José Oscar A. (Org.). Verdades e mentiras: 30 ensaios


em torno de Jean-Jacques Rousseau. Ijuí: Editora Unijuí, 2005.

PISSARA, Maria C. P. Rousseau: a política como exercício


pedagógico. São Paulo: Ed. Moderna, 2002.

PRADO JR., Bento. A retórica de Rousseau. São Paulo: Cosac


& Naif, 2008.

POTOLSKY, Matthew. Mimesis. New York/London, Routledge,


2006.
UNIDADE VI

SOUZA, Maria das Graças. Natureza e Ilustração: sobre o


materialismo de Diderot. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

STAROBINSKI, Jean. A transparência e o obstáculo. Tradução


de Maria Lucia Machado. São Paulo: Editora Schwarcz, 1991

120
Suas anotações
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7

unidade
As Reflexões de Kant sobre a Educação
Meta

Introduzir a proposta de educação moral


kantiana com base na análise de citações
de seu escrito Sobre a Pedagogia.
Objetivos

Ao final desta unidade, você deverá ser


capaz de:

• compreender, na proposta kantiana,


aspectos idealistas da pedagogia.
Módulo 1

UNIDADE VII

PEDAGOGIA
Filosofia e Educação
UNIDADE VII

1 INTRODUÇÃO

Nesta unidade você estudará aspectos importantes da

teoria do conhecimento de Kant e o escrito Sobre a pedagogia

e sua proposta de educação.

125
Volume 2
2 A FILOSOFIA DE KANT

Você viu, ao final da


Immanuel Kant (1724-
Unidade V, que Kant herda
PEDAGOGIA

1804) nasceu em
Königsberg, Prússia (ex-
a oposição entre inatismo e
Alemanha Oriental). A
empirismo, de maneira já um
PARA CONHECER

filosofia de Kant, a partir


de 1770, é conhecida
pouco distanciada, isto é, o
como criticismo, período
no qual publicou as três conflito entre o pensamento
críticas: Crítica da razão
de Descartes e de Locke
pura (1781); Crítica da
razão prática (1788) e sofre outras intermediações
Crítica da faculdade de
por meio do Iluminismo e
julgar (1790). Essas
três obras tornaram-se de David Hume. A questão
referência fundamental,
da origem do conhecimento
respectivamente, para a
questão do conhecimento, torna-se secundária em vista
FIGURA 1
da moral e da estética. Portrait de Kant, autor desconhecido, século XVIII
do problema dos limites
Fonte: http://pt.wikipedia.org

do conhecimento humano.
Neste contexto, Kant fala do
conhecimento “a priori”. Esta noção diz respeito à investigação
kantiana sobre a legitimidade da ciência.
Faremos uma pequena referência a essa investigação.
Para Kant, a história da razão humana é dividida em
três momentos logicamente ordenados: o dogmatismo
(confiança excessiva nos poderes da razão humana); ceticismo
(desconfiança exagerada nos poderes da razão humana);
Filosofia e Educação

criticismo (espécie de termo médio entre dogmatismo e


ceticismo). Para responder a questão acerca da possibilidade
da metafísica, Kant pergunta pela possibilidade ou legitimidade
da matemática e da física. Ele questiona a cientificidade de
ambas as ciências: Como é possível a matemática pura? Como
é possível a ciência pura da natureza? Só depois, indaga se
a metafísica, como ciência, é também possível. O “a priori”,
para Kant, está relacionado à certeza de que deve haver algo
nas ciências que pode ser conhecido de forma independente
UNIDADE VII

da experiência. As representações elementares “a priori”, em


Kant, são as formas da intuição, isto é, tempo e espaço; e as
formas de pensamento, que são as categorias ou conceitos
puros do entendimento.
Ao mesmo tempo, Kant afirma que todo conhecimento
começa com a experiência. Essa fonte é unida à noção de
“a priori”, uma vez que são as categorias de valor objetivo
e universal que elaboram o que vem da experiência pelos
sentidos. Essa reunião é o que permite, a Kant, tanto superar,
126
Módulo 1
quanto distanciar-se da oposição marcada pelo racionalismo e
empirismo.

3 KANT E A EDUCAÇÃO

PEDAGOGIA
O pressuposto para uma teoria da educação (apresentado
no texto Sobre a pedagogia) é idealista, e Kant assim o
justifica:

O projeto de uma teoria da educação é um ideal


muito nobre e não faz mal que não possamos
realizá-lo. Não devemos considerar uma Idéia
como quimérica e como um belo sonho só porque
se interpõem obstáculos à sua realização (444,
p.17).

Lembrando a República ideal de Platão, Kant


argumenta:

Uma Idéia não é outra coisa senão o conceito


de uma perfeição que ainda não se encontra na U V
a FR
O texto Sobre a pedagogia K
experiência. Tal, por exemplo, seria a Idéia de
é resultado das aulas C AM
uma república perfeita, governada conforme que Kant ministrou na

SAIBA MAIS
as leis da justiça. Dir-se-á, entretanto, que é Universidade de Königsberg
impossível? Em primeiro lugar, basta que a entre 1776-77, 1783-84
nossa Ideia seja autêntica; em segundo lugar, e 1784-87, publicado em
que os obstáculos para efetuá-la não sejam suas Obras Completas,
Tomo IX, edição da Real
absolutamente impossíveis de superar. Se,

Filosofia e Educação
Academia Prussiana de
por exemplo, todo mundo mentisse, o dizer a Ciências, de 1923. Possui
verdade seria por isso mesmo uma quimera? uma linguagem muito
A Idéia de uma educação que desenvolva no acessível e algumas
homem todas as suas disposições naturais é pessoas chegaram a
verdadeira absolutamente (p.17, 445). duvidar da autenticidade
do texto. Sabemos, no
entanto, que reside nas
Nesta citação, você pode perceber a defesa de um ideias sobre a educação, ali
expostas, a complexidade
modelo de perfeição que sirva de paradigma ou modelo da teoria sobre a moral
à ação e ao projeto de uma educação que aperfeiçoe a que Kant desenvolveu na
segunda Crítica: a Crítica
natureza humana. Trata-se de uma educação moral que da razão prática. Existe
UNIDADE VII

prevê a formação integral do homem em seus aspectos um registro dos escritos


que orienta a leitura,
físico, moral e intelectual. Neste sentido, encontramos, no independentemente da
texto, duas grandes divisões: edição e do número de
páginas. Os fragmentos
que serão analisados nesta
• Sobre a educação física, seção vão de 441 a 499.

• Sobre a educação prática.

A necessidade de um projeto de educação se revela nas


seguintes asserções:

127
Volume 2

a) “O homem é a única criatura que precisa ser educada”


(441, p.11);
b) “O homem tem necessidade de cuidados e formação”
(443, p.14);
PEDAGOGIA

c) “O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem


senão pela educação” (444, p.15).

Kant quer dizer que o homem, diferentemente dos outros


animais, não tem sua existência pré-definida pela natureza,
mas ele tem a tarefa de estabelecer seu próprio projeto de
existência por meio de sua racionalidade.
Com base nessas certezas, Kant elabora a seguinte
distinção em relação à educação:

• uma parte negativa que diz respeito à disciplina,


• uma parte positiva que diz respeito à instrução.

Essa distinção diz respeito à


educação física e à educação prática ou
moral. Essas são as duas perspectivas
admitidas por Kant como fundamentais
no projeto de educação.
A primeira cuidará da saúde do
corpo, o que inclui a alimentação, os
Filosofia e Educação

hábitos de higiene; a segunda visa à


formação do caráter moral voltado para a
ação e o bem de todos. Kant fala de uma
educação cosmopolita, na qual se nota a
FIGURA 2 - Educação física. Fonte: www.efdeportes.com
aspiração à universalidade.
A ideia de que só ao homem é dada
a possibilidade de se aperfeiçoar e de instituir seu próprio
projeto de vida distingue-o dos animais. Mas nem sempre isso
foi claro ou, ao menos, de quanto o homem pode ser capaz de
UNIDADE VII

se aperfeiçoar.
Kant fala da educação dos filhos por um casal educado.
Eles servem como exemplo aos filhos, que os imitam. O imitar
é uma espécie de disposição natural que, aplicada ao exemplo,
pode gerar filhos educados. Mas nem todos os filhos podem
ter pais educados e o “imitar” como disposição natural, neste
caso, revela-se insuficiente no processo de formação do ser
humano.

128
Módulo 1
O filósofo enxerga o todo, o aspecto universal da educação,
que ,para tanto, não pode ser sujeita a processos particulares
e a disposições naturais do ser humano. O aperfeiçoamento é
parte também da educação, que, de geração a
geração, revela-se como prática que necessita

PEDAGOGIA
melhorar ao desenvolver as disposições
naturais em vista de uma finalidade maior
que é o bem.
Kant afirma ser a educação um problema
árduo:

O homem deve, antes de tudo,


desenvolver as suas disposições
para o bem; [...] Tornar-se
melhor, educar-se e, se se é mau,
produzir em si a moralidade: eis
o dever do homem. Desde que
reflita detidamente a respeito,
vê-se o quanto é difícil. A
educação, portanto, é o maior
e o mais árduo problema que
pode ser proposto aos homens
(446, p.20,). FIGURA 3 - O imitar é uma espécie de disposição natural
Fonte: http://farm2.static. flickr.com

“Tornar-se melhor” significa, portanto,


adquirir moralidade. Para tanto, o filósofo pressupõe que a
virtude não só pode ser ensinada como é um dever ensiná-

Filosofia e Educação
la. A base dessa educação como aquisição da moralidade se
estabelece a partir dos seguintes elementos:
• disciplina,
• desenvolvimento intelectual: ser culto,
• prudência e civilidade e
• desenvolvimento da virtude: moralização.

Percebe-se, nesses elementos norteadores, a aspiração


pela universalidade e o caráter cosmopolita da educação. “A
boa educação”, diz Kant, “é justamente a fonte de todo bem
UNIDADE VII

neste mundo” (448, p.23,).


Kant estabelece uma distinção entre duas possibilidades
de orientação pedagógica:

• Treinamento: o homem pode ser disciplinado


mecanicamente, ou,
• Ser ilustrado, esclarecido.

129
Volume 2

Os cães são treinados,


pode-se também treinar
crianças, mas o necessário é
ensiná-las a pensar. Esse é
PEDAGOGIA

o sentido da educação pelo


esclarecimento. Há uma
associação no texto entre
o pensar e a moralidade, o
que se percebe claramente
nesta frase: “Vivemos em
uma época de disciplina,
de cultura e de civilização,
mas ela ainda não é da
verdadeira moralidade [...]
como poderíamos tornar os
FIGURA 4 - Kant fala da aspiração pela universalidade e do caráter cosmopolita da educação
Fonte: http://www.imotion.com.br/imagens/details.php?image_id=6536 homens felizes, se os não
tornamos morais e sábios?”
(451, p.28-29).

Kant entende por educação prática a educação moral. A
noção de “dever” é o pressuposto necessário para entendermos
o que é a educação moral e o desenvolvimento da virtude.
Alcançar a virtude significa, para o ser humano, ter cumprido
com seu dever. Este tem o peso de um constrangimento guiado
por uma “razão legisladora”. A razão universal, que se impõe
Filosofia e Educação

como lei e regula as ações, pode ser externa ao homem, mas


se insere nele internamente como consciência da ação ou dever
que diz respeito a si mesmo e aos outros.
Por “deveres para consigo mesmo”, pode-se entender
aquilo que diz respeito à autopreservação (chamados por Kant
de limitativos) e ao aperfeiçoamento de si mesmo (deveres
classificados como ampliativos). Os “deveres para consigo
mesmo” pressupõem, portanto, o físico e o intelectual. Essas
duas dimensões estão fundadas no aprendizado.
UNIDADE VII

Por deveres com os outros, subentendem-se as famosas


máximas que regem o “imperativo categórico” ou a lei moral
conduzida pela razão, e que devem ser adotadas como princípio
de conduta:

• Aja de tal modo que a máxima de sua ação possa


sempre valer como princípio moral de conduta;
• Aja sempre de tal modo que trate a Humanidade,
tanto na sua pessoa como na do outro, como fim e
130
Módulo 1
não apenas como meio (Metafísica dos costumes).

O dever para consigo mesmo é inseparável do dever


para com os demais. Entre estes, encontramos: a beneficência,
a gratidão e a solidariedade, além de outras virtudes como a

PEDAGOGIA
amizade, a sociabilidade e a cortesia.
Quanto à discussão sobre a natureza humana que
antecede sua teoria moral, com Maquiavel, Hobbes, Locke e
Rousseau, se o homem é bom ou mau por natureza, Kant diz
que o homem não nasce bom ou mau, moral ou imoral, mas
ele se faz moral ou imoral. Supondo que o homem almeja ser
moral e não o contrário, pois do viver moralmente resulta a
felicidade e não o desconforto de uma vida infeliz, Kant confere
uma tarefa grandiosa à educação e à pedagogia: tornar o
homem moral.
Essa tarefa, no entanto, não pode ser imposta de fora
para dentro das instituições escolares, família ou religião
sobre o indivíduo. Não se trata de uma exigência exterior ao
indivíduo. Devemos lembrar que Kant é herdeiro da grande
questão da filosofia moderna: a subjetividade. A efetividade
do resultado de qualquer aprendizado depende da capacidade
ou faculdade humana que é racional e da autodeterminação
do sujeito. O objetivo é alcançar a autonomia da razão, sendo
que esta supõe a liberdade e o dever, como você pode notar
no exemplo abaixo:

Filosofia e Educação
A autonomia da razão para legislar supõe a liberdade
e o dever. Todo imperativo se impõe como dever, mas
essa exigência não é heterônoma – exterior e cega
– e sim livremente assumida pelo sujeito que se Jusnaturalistas:
autodetermina. Exemplificando, suponhamos a norma O Jusnaturalismo ou
moral ‘não roubar’: Direito Natural é uma
- para a concepção cristã, o fundamento da norma teoria que postula um
direito estabelecido pela
se encontra no sétimo mandamento de Deus;
natureza, normalmente
- para os teóricos jusnaturalistas (como Rousseau), contraposta ao direito
ela se funda no direito natural, comum a todos os positivo, como fruto de
seres humanos; leis formuladas pelos
UNIDADE VII

- para os empiristas (como Locke, Condillac), a homens em sociedade.


norma deriva do interesse próprio, pois o sujeito Para John Locke, por
exemplo, a rebelião é
que a desobedece será submetido ao desprazer, à
um direito natural que o
censura pública ou à prisão; homem pode utilizar na
- para Kant, a norma se enraíza na própria natureza ordem política, quando
da razão; ao aceitar o roubo e consequentemente o o pacto social em sua
enriquecimento ilícito, elevando a máxima (pessoal) proposta (liberal) for
ao nível universal, haverá uma contradição: se todos rompido pelo poder
executivo, ao elevar-
podem roubar, não há como manter a posse do que
se sobre o poder
foi furtado (ARANHA e MARTINS, 2003, p. 354). legislativo.

131
Volume 2
Pelo exemplo dado, você percebe que a moral kantiana
depende da razão universal que se impõe como dever,
internamente e externamente ao homem, guiando o cuidado
consigo mesmo (autopreservação e aperfeiçoamento) e dever
com os outros para que a própria sociedade se torne possível
PEDAGOGIA

e funcional. Razão, liberdade e autonomia do sujeito são as


ideias que compõem e sustentam a teoria moral kantiana.
A perspectiva do dever, em Kant, é, como você viu
inicialmente, idealista. A realidade de sua época mostrava
como a instrução física, intelectual e moral, pressuposta por
sua teoria, estava distante de ser algo que compreendesse
toda a humanidade. Isto pode ser percebido nessa passagem
do texto Sobre a pedagogia:

Não é possível haver um grande número desses


Institutos, nem poderiam estes admitir um grande
número de alunos; na verdade, são caríssimos
e a simples montagem desses colégios acarreta
grandes despesas. [...] Por isso também é difícil
conseguir que outras crianças, que não a dos ricos,
participem nesses Institutos (452, p.32).

Para os pobres, restava o ensino doméstico, condenado


por Kant por engendrar vícios, defeitos e propagação dos
mesmos. No entanto, há problemas de tão grande porte quanto
este e diz respeito a todas as classes sociais: o constrangimento
Filosofia e Educação

ao exercício da liberdade.
Essa consideração é bastante realista e supera o
contexto de sua época, se pensarmos em qualquer projeto
de educação implantado ou projetado. Continua sendo uma
questão necessária para todos os projetos de educação que
atualmente são pensados.
Encaminhando a conclusão desta unidade, você deve ter
notado que educar, tendo em vista a autonomia intelectual e
moral do sujeito, não é uma tarefa isenta de ambiguidades e
UNIDADE VII

descaminhos. Neste sentido, Kant sugere algumas regras:

1ª - É preciso dar liberdade à criança desde a primeira


infância e em todos os seus movimentos (salvo
quando pode fazer mal a si mesma, como, por
exemplo, se pega uma faca afiada), com a condição
de não impedir a liberdade dos outros, como no
caso de gritar, ou manifestar a sua alegria alto
demais, incomodando os outros.
2ª – Deve-se-lhe mostrar que ela pode conseguir seus

132
Módulo 1
propósitos, com a condição de que permita aos
demais conseguir os próprios; [...]
3ª – É preciso provar que o constrangimento, que lhe é
imposto, tem por finalidade ensinar a usar bem sua
liberdade, que a educamos para que possa ser livre
um dia, isto é, dispensar os cuidados de outrem

PEDAGOGIA
(p.35, 454).

Você viu que, em Kant, o propósito da educação desde a


infância, diz respeito à construção do homem livre, autônomo.
Os passos para esse empreendimento supõem:

1. o desenvolvimento de habilidades mecânicas;


2. a formação “pragmática” que diz respeito à educação
com base na prudência, que capacita o homem a utilizar
melhor sua habilidade; e
3. a formação moral fundada nos princípios da razão.

Kant considera, ainda, as fases de crescimento e


amadurecimento da consciência moral do homem, alertando
o leitor:
Com respeito à habilidade e à prudência, tudo
deve acontecer a seu tempo com o passar dos
anos. Mostra-se hábil, prudente, paciente, sem
astúcia, como um adulto, durante a infância,
vale tão pouco como a sensibilidade infantil na

Filosofia e Educação
idade madura (p.37-38, 455).

Podemos perceber, portanto, que as considerações


de Kant sobre a educação são idealistas, mas conservam,
entretanto, uma medida de realidade que supera o contexto
de sua época, servindo ainda nos dias de hoje como modelo
para vários projetos de educação ou fornecendo critérios
subjacentes às propostas atuais.
UNIDADE VII

133
Volume 2

ATIVIDADE
PEDAGOGIA

1) Leia a passagem abaixo e indique o que diz respeito à:

a) Possibilidade de conciliar constrangimento e liberdade;


b) Necessidade de a criança perceber a resistência que a sociedade
oferece aos seus desejos, como formação de sua autonomia.

Um dos maiores problemas da educação é o de


poder conciliar a submissão ao constrangimento
das leis com o exercício da liberdade. Na verdade,
o constrangimento é necessário! Mas, de que modo
cultivar a liberdade? É preciso habituar o educando
a suportar que a sua liberdade seja submetida
ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo
tempo, dirija corretamente a sua liberdade. Sem
esta condição, não haverá nele senão algo mecânico;
e o homem, terminada a sua educação, não saberá
usar sua liberdade. É necessário que ele sinta logo a
inevitável resistência da sociedade, para que aprenda
a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo,
tolerar as privações e adquirir o que é necessário para
tornar-se independente (p.34, 454).
Filosofia e Educação

RESUMINDO

Nesta unidade, você estudou:

1. A herança recebida por Kant da filosofia moderna: o


UNIDADE VII

problema do conhecimento;
2. A filosofia kantiana ou criticismo;
3. A proposta de educação de Kant com fundamento na
razão;
4. Divisões internas da proposta.

134
Módulo 1

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena.

PEDAGOGIA
Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. rev. São Paulo:
Moderna, 2003.
r e f eR Ê N C ia s

KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden;


Udo B. Moosburger. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, Col. “Os
Pensadores”, 1983.

KANT, I. Crítica da razão prática. Tradução de J. Rodrigues


de Merege. Versão online:eBooksBrasil.com.br.egroups.
com/group/acropolis

KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes.


Versão online:eBooksBrasil.com.br.egroups.com/group/
acropolis

KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Tradução de Francisco


Cock Fontanella. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 1996.

Filosofia e Educação
UNIDADE VII

135
Suas anotações
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8

unidade
A Educação após Auschwitz
Meta

Apresentar as reflexões da teoria crítica


de Theodor Adorno sobre a transformação
que se institui na educação e na política
após a 2ª Guerra Mundial.
Objetivos

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz


de:

• reconhecer as principais razões que


atingem a educação no contexto da
política.
Módulo 1

UNIDADE VIII

PEDAGOGIA
Filosofia e Educação
1 INTRODUÇÃO

Nesta unidade, você estudará:

• O significado de Teoria Crítica, a filosofia que corresponde


UNIDADE VIII

ao grupo de intelectuais reunidos sob o nome de Escola

de Frankfurt.

• O conflito ético, político e filosófico, no qual se insere a

educação, com base na leitura de trechos do texto de

Adorno “A educação após Auschwitz” e remissões a outros

de seus textos.

139
Volume 2
2 A TEORIA CRÍTICA E O INSTITUTO DE PESQUISA
SOCIAL

Teoria crítica é a denominação


PEDAGOGIA

escolhida por Max Horkheimer, em


seu texto de 1937, intitulado Teoria
Tradicional e Teoria Crítica, para
discriminar o trabalho de grupo de
intelectuais que se reuniu em torno
do Instituto de Pesquisa Social,
fundado em 3 de fevereiro de 1923,
em Frankfurt, Alemanha. Esse grupo,
composto por intelectuais marxistas
não-ortodoxos, e os resultados de
suas pesquisas, publicados na revista
do Instituto (1932 a 1941), passaram
a ser conhecidos mais tarde pela
FIGURA 1 - Max Horkheimer (à esquerda) e Theodor Adorno (à
direita) em Heidelberg, 1965. Fonte: www.msu.edu chancela “Escola de Frankfurt”, embora
boa parte dos resultados apresentados
tenham sido desenvolvidos fora de Frankfurt.
Preocupado com a ascensão do nazismo ao poder, em
1933, Horkheimer, diretor do Instituto desde 1930, criou
Reificação ou coisificação:
o prefixo de reificação é res,
filiais em Genebra, Londres e Paris. Em 1933, o Instituto foi
do latim, que quer dizer coisa. transferido para Genebra; em 1934, para Nova Iorque; em
Este conceito remete à teoria
da alienação, de Marx, sendo 1940, Horkheimer e Adorno se transferem para a Califórnia. O
retomado posteriormente por
Filosofia e Educação

Georg Lukács (Budapeste, governo nazista havia fechado o Instituto em 1933, confiscando
13/4/1885 - 05/06/1971),
filósofo húngaro marxista e um acervo de 60 mil livros da biblioteca. A maior parte da
adotado pelos teóricos do
Instituto de Pesquisa Social. O história e produção intelectual do Instituto de Pesquisa Social
entendimento desse conceito
está associado ao de produção ocorreu, portanto, no exílio. A maioria de seus membros migrou
capitalista, alienação e fetiche
da mercadoria. Trata-se da para os Estados Unidos, retornando a Frankfurt apenas em
coisificação do ser humano ao
empregar sua força de trabalho
1951. Alguns foram vitimados no caminho para o exílio, como
na produção de mercadorias
que serão vendidas de maneira
foi o caso de Walter Benjamin, um importante colaborador do
distanciada de seu valor de Instituto, embora nunca tenha sido um membro efetivo deste.
uso. O produtor não possui
o resultado de seu trabalho, Seu nome, no entanto, está reunido sob a designação “Escola
é, portanto, alienado dele, e
quem o possui torna-se alguém de Frankfurt”.
que só tem valor pessoal, pela
UNIDADE VIII

aquisição da mercadoria. A Alguns intelectuais da atualidade, como Jurgen


mercadoria é a “coisa” que
ganhou atributos superiores Habermas e Axel Honneth, são nomeados “herdeiros” desse
a ela, valores propriamente
humanos ou mágicos, por isso, empreendimento intelectual que, em meio ao desastre político
ao adquiri-la, o homem se
coisifica ou se reifica. Adorno da II Guerra Mundial, e após este, foram capazes de articular
define a “consciência reificada”
da seguinte maneira: “No
teorias e conceitos que nos servem ainda como instrumentos de
começo as pessoas desse tipo
[de caráter manipulador] se
análise da sociedade e, muito mais do que isso, como reflexão
tornam por assim dizer iguais às crítica sobre os mecanismos de controle da sociedade. Entre
coisas. Em seguida, na medida
em que o conseguem, tornam estes “mecanismos” sobre os quais esses autores teorizaram,
os outros iguais às coisas”
(ADORNO, 1994, p.130) ressaltamos a crítica ao positivismo, à razão instrumental, à

140
Módulo 1
ideologia, ao processo de reificação ou coisificação do homem
e à indústria cultural. É característico da teoria crítica, o
trânsito entre disciplinas como a economia, a sociologia e a
psicanálise, não se limitando à filosofia.

PEDAGOGIA
Jürgen Habermas (Düsseldorf, Alemanha, 18/06/1929) foi assistente de
U V
Adorno no Instituto de Pesquisa Social de 1956 a 1959. Desenvolveu teorias a FR
K
no campo da filosofia e da sociologia, publicando trabalhos e participando C AM
ativamente de debates públicos. Sua teoria sobre a ação comunicativa é
estudada com interesse em diversas áreas do conhecimento.

SAIBA MAIS
Axel Honneth (Essen, Alemanha, 1949) é diretor do Instituto de Pesquisa
Social, sediado na Universidade de Frankfurt am Main, desde 2001, sendo,
nesta Universidade, professor de filosofia social. Tem vários trabalhos
publicados sob o tema do reconhecimento e da reificação.

3 ADORNO E A EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ

O texto de Adorno, “A educação após Auschwitz”, é fruto


de uma palestra transmitida pela rádio de Hessen em 18 de abril
de 1965, publicada dois
anos depois. A exposição
do texto é acessível ao
leitor não habituado com
sua filosofia, pelo meio
em que foi veiculado. É

Filosofia e Educação
necessário dizer que esse
tipo de programa de rádio
que expunha teorias foi
utilizado com frequência
pelos frankfurtianos, sendo
que essa programação de
ordem mais aprofundada
se mantém até hoje na
Alemanha. Não se trata,
UNIDADE VIII

FIGURA 2 - Portão de entrada do campo de concentração chamado Auschwitz-Birkenau,


portanto, de um texto com um dos campos instalados pelos nazistas no sul da Polônia, no qual foram executados em
torno de 1 milhão e meio de pessoas, entre judeus (a maioria) e ciganos. A inscrição em
a complexidade da escrita alemão diz: “O trabalho liberta”. Este campo não era de trabalhos forçados, mas sim de
de Adorno em obras extermínio. Com este intuito, o campo foi equipado com quatro crematórios e câmaras
de gás. Inicialmente utilizou-se o monóxico de carbono (CO) para asfixiar as pessoas,
extensas como a Dialética passando para o Zyklon B (ácido cianídrico), utilizado como pesticida na agricultura, mas
igualmente tóxico para os humanos. Cada câmara de gás comportava o número de até
Negativa (1966) ou a 2.500 prisioneiros. Estes chegavam de uma viagem de trem, transportados como gado,
Teoria Estética (1968). Por a eles era dito que entrariam nas câmaras para tomarem banho. A luz apagava e, ao
contrário de água, o gás era emitido. Até ser inalado, havia muito sofrimento e não uma
isso, em alguns momentos morte instantânea. Auschwitz se tornou o símbolo de desumanidade sem precedente na
história, pois fundou-se num planejamento calculado em minúcias.
do texto, teremos que
Fonte: http://commns.wikimedia.org/wik/File: Auschwitz_gate.jpg

141
Volume 2
nos remeter a outras fundamentações de maneira a melhor
esclarecer o assunto.
Adorno afirma, logo no início de sua palestra, que “A
exigência que Auschwitz não se repita é a primeira regra
de todas para a educação”. Ele justifica a prioridade desta
PEDAGOGIA

“exigência” ao se referir ao grau de consciência das pessoas


em relação ao ocorrido:

Mas a pouca consciência existente em relação a essa


exigência e as questões que ela levanta provam que
a monstruosidade não calou fundo nas pessoas,
sintoma da persistência da possibilidade de que se
repita no que depender do estado de consciência
e de inconsciência das pessoas (ADORNO, 1994,
p.119).

É importante perceber que a orientação freudo-marxista,
isto é, de Freud e de Marx, do Instituto de Pesquisa Social,
permite a seus componentes incorporar, em suas análises,
categorias da ordem do materialismo histórico e da psicanálise.
A crítica à razão instrumental pode ser estabelecida, em grande
parte, diante da dimensão representada
U V Karl Marx (Trier [Alemanha], 05/06/1818 –
a FR Londres, 14/03/1883): filósofo alemão, cuja crítica
pelo conceito de inconsciente e de
K
C AM ao capitalismo do século XIX e a fundamentação realidade social. Resulta desse princípio
do socialismo científico como teoria reunida à
a certeza de que a consciência ou razão
SAIBA MAIS

prática influenciaram diretamente a política e o


curso dos acontecimentos políticos na primeira
não pode ser afirmada nos limites
metade do século XX.
do conhecimento científico e técnico.
Filosofia e Educação

Sigmund Freud (Freiberg [atualmente


República Tcheca), 06/05/1856 – Londres, Reconhecer o inconsciente e estudá-
23/09/1939) desenvolveu estudos sobre a lo, de maneira a perceber como isso
mente e a conduta humana e criou a psicanálise
para o tratamento de problemas psíquicos. afeta a consciência, bem como esta é
O conceito de inconsciente não foi inventado
propriamente por Freud, mas ele atribui a esse
igualmente afetada pelas condições
conceito um valor especulativo e científico socioeconômicas e políticas, significa
sem precedentes em outras teorias. Ao tratar
do inconsciente, Freud pôs à prova o tema uma ampliação da consciência. Significa
da repressão, dos instintos, dos desejos, da
divisão mental e de vontades que condicionam
também ser capaz de reconhecer quais
a consciência, abalando a confiança que nela mecanismos ideológicos e inconscientes
existia. Tanto Freud, quanto Marx fundam uma
grande desconfiança na ideia de autonomia do podem submeter a consciência a erros
UNIDADE VIII

sujeito e da consciência livre, já que este está


constantes.
submetido a várias determinações: de classe,
de cultura e de limitação da consciência diante Nesse sentido, Adorno nos diz:
da dimensão do inconsciente.

Dentre os conhecimentos proporcionados


por Freud, efetivamente relacionados à
cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes
parece-me ser aquele de que a civilização, por seu
turno, origina e fortalece progressivamente o que é
anticivilizatório (1994, p.119).

142
Módulo 1
Vale ressalvar que Adorno era judeu-marxista e que
perdera muitos amigos no Holocausto, mas o que ele afirma
não diz respeito apenas aos judeus. No seu texto, ele cita o
exemplo da 1ª Guerra Mundial, o genocídio dos armênios pelos
turcos, no qual um milhão de armênios foram assassinados.

PEDAGOGIA
Para que a barbárie de Auschwitz não se repita, Adorno
acredita que não se alcança resultado algum apelando a
valores humanitários universais ou a discursos que valorizem
as vítimas. É necessário investigar, nos perseguidores, o que
os levou a cometer atos tão atrozes. Diz ele:

É preciso reconhecer os mecanismos que tornam


as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso
revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando
impedir que se tornem novamente capazes de tais
atos, na medida em que se desperta uma consciência
geral acerca desses mecanismos (1994, p.121).

A culpa não é da vítima, mas aqueles que são culpados


só podem ser assim julgados por serem desprovidos de
consciência, por voltarem seus ódios contra outros de maneira
irrefletida:

É necessário contrapor-se a uma tal ausência de


consciência, é preciso evitar que pessoas golpeiem
para os lados sem refletir a respeito de si próprias.
A educação tem sentido unicamente como educação
dirigida a uma auto-reflexão crítica (1994, p.121).

Filosofia e Educação
Podemos entender como mecanismos, ou fatores a eles
associados, a submissão da consciência a uma falsa mímesis,
à personalidade autoritária, ao processo de coisificação do
homem e à imposição ideológica e cultural.
Adorno repete a expressão kantiana, ao referir-se ao único
meio efetivo de evitar a barbárie: a “autonomia da consciência”,
que só é possível existir por meio do poder de reflexão e de
capacidade crítica. Isso quer dizer que compromissos impostos
UNIDADE VIII

ao indivíduo devem ser evitados, pois não geram autonomia,


já que se guiam pela lei do outro, isto é, são heterônomos e
só servem para manter submisso aquele que age de maneira
irrefletida.
Adorno não pretende erigir um programa de educação,
mas diz que devemos dar atenção à infância e ao campo: a
primeira por estar em formação e o segundo por ser mais
tradicional e impermeável a medidas de transformação. Apesar

143
Volume 2
dessas considerações, Adorno diz que as tendências que levam
as pessoas a esse tipo de regressão violenta são produzidas
em toda parte.
A “consciência mutilada” possui também um reflexo no
corpo. Quando se perde o domínio da linguagem e as palavras
PEDAGOGIA

não são suficientes, o gesto culmina como manifestação


incontrolada. Adorno comenta a
função do esporte, que, por um lado,
é o canalizador dos instintos mais
agressivos, e capaz de educar o corpo, e
educar o atleta a admitir gentilmente a
derrota, mas torna-se frequentemente
um espetáculo de brutalidade, mais
por parte da torcida, que não possui a
disciplina do atleta.
A ambiguidade que Adorno nota
no esporte – por um lado, as regras, a
disciplina – por outro, vazão dos instintos
FIGURA 3 - Os hooligans, torcedores de futebol, que surgiram na década de
1960 na Inglaterra e se tornaram conhecidos por sua violência na década agressivos, é um dos mecanismos sobre
seguinte, são hoje proibidos de assistirem partidas em vários países. É
um exemplo que se assemelha ao que Adorno considera como instintivo e o qual devemos nos tornar conscientes.
negativo no esporte.
Fonte: www.tvscoop.tv/2006/07/2.html Os processos de coletivização figuram
entre os outros mecanismos. Nestes
ocorre uma estrutura de personalidade autoritária. Por um
lado, há um processo de identificação cega com o coletivo;
por outro, a necessidade de manipular o coletivo e de pessoas
Filosofia e Educação

que sejam talhadas para isso. Há duas preocupações por trás


dessa relação complementar que devemos entender:

1. uma relação primitiva do homem


com a natureza que favorece processos
de autoconservação e resulta em um
mimetismo social e político;
2. o desenvolvimento do caráter
sadomasoquista na relação autoritária
que se estabelece socialmente e
UNIDADE VIII

explica, em parte, processos de


mutilação da consciência.

Para que você compreenda


melhor esses aspectos, faremos
FIGURA 4 - Cena do filme “Triunfo da vontade” de Leni Riefensthal, cineasta
que acompanhava as paradas militares e encontros grandiosos, planejados
dois parênteses, buscando
e desenhados por Hitler. Percebe-se, no registro fotográfico, um exemplo do
processo mimético de identificação com o coletivo pensado por Adorno.
complementação em outros textos e
Fonte: www.catatau.blogsome.com em comentadores destes textos.
144
Módulo 1

4 SOBRE MÍMESIS EM ADORNO

Podemos encontrar dois significados de mímesis em

PEDAGOGIA
Adorno: uma mímesis verdadeira (relacionada ao conhecimento
estético, sobre o qual não estudaremos neste momento) e uma
falsa. Faremos uma remissão a outras obras para falar desse
conceito, utilizando as considerações do intérprete Rodrigo
Duarte em seu livro Mímesis e racionalidade. Esse autor parte
da conceituação de natureza em Adorno para fundamentar o
sentido de mímesis em sua dupla face. As obras consideradas
são: Dialética do Esclarecimento e Dialética Negativa. Na
primeira, e também na segunda obra, a natureza é “determinada
apenas como uma instância que se opõe ao Eu” (p.66), o que
Duarte considera ser uma definição insuficiente. A definição
caminha na segunda obra para “menções à natureza como uma
instância que deve ser superada, para que o Eu possa a vir a
se constituir enquanto unidade” (DUARTE, 1993, p.66). Esse
entendimento conduz à ideia do não-idêntico, lado oposto ao
sujeito que deve ser dialeticamente superado, mas que atua
como recalque na natureza humana.
Na Dialética do Esclarecimento, o empreendimento
humano de controle do ambiente natural, para garantir
sua preservação física, volta-se contra o próprio homem “à

Filosofia e Educação
medida que surge, como consequência daquele, uma realidade
inteiramente despida de caracteres da natureza originária,
mas que se apresenta como naturalidade alienada” (DUARTE,
1993, p.57).
O pressuposto dessa naturalidade alienada é o conceito
weberiano de “desencantamento do mundo”. O sociólogo Max
Weber (21.4.1864 a 14.6.1920) aplica essa noção ao contexto
religioso, e Adorno e Horkheimer se incumbem de expandir
seu significado a toda cultura ocidental. A destruição do mito,
como processo do desencantamento, indica, simultaneamente,
UNIDADE VIII

o fim da magia e o início do domínio da natureza, através da


intervenção técnica. A conhecida ideia que marca a reviravolta
desse domínio é a permanência do mito ou algo semelhante
a ele, destituído de magia, camuflado como conhecimento
científico, no contexto da segunda natureza constituída pela
técnica.
A ideia de uma primeira natureza em Adorno ocorre
negativamente, como a instância que se opõe ao Eu. A de
145
Volume 2
segunda natureza ocorre como catástrofe. Para explicar
melhor isso, Duarte cita um texto tardio de Adorno intitulado
“Progresso”, no qual ele não se apressa em responder positiva
ou negativamente à pergunta “se houve progresso”. A
pergunta seria corrigida para: “o que progride?” e “para onde
PEDAGOGIA

esse progresso se dirige?” No quadro catastrófico delineado,


humanidade e natureza são passíveis de serem destruídas
por completo, ao mesmo tempo em que os recursos técnicos
poderiam extirpar toda a carência humana (alimentos, conforto
material e físico).
Adorno considera o domínio da natureza sobre os
homens e os efeitos de domesticação sofridos. Qualifica como
“homens-natureza” o contingente, principalmente feminino,
que se submete a essa domesticação, e são definidos como
mais próximos da natureza. Sob a perspectiva da dominação
masculina, constrói-se um parentesco com os animais e os
judeus, como não-humanos ou subumanos, criando o espaço de
construção de uma mímesis perversa, ou mais propriamente,
o mimetismo como um comportamento denominado “projeção
pática”: disso “resulta que só é digno de ser aquilo que pode
ser tornado igual ao sujeito. O que não é suscetível dessa
equiparação deve ser eliminado” (DUARTE, 1993, 85).
É importante perceber o quanto o sentido da falsa mímesis
está equiparado ao de mimetismo, que, por sua vez, é descrito
como comportamento mimético que equivale à projeção pática
Filosofia e Educação

(de páthos: palavra grega que significa “paixão”, “sofrimento”),


isto é, ao esforço de adaptação em vista da necessidade de
autoconservação. A propósito da distinção entre mimetismo
e mímesis, Duarte cita a seguinte passagem da Dialética do
Esclarecimento:

Proteção como terror é uma forma de mimetismo.


Aquelas reações de paralisação nos seres humanos
são esquemas arcaicos da autoconservação: a
vida paga o tributo por sua continuação através
da equivalência ao que está morto (citado por
UNIDADE VIII

DUARTE, 1993, p.136).

4.1 O estudo sobre a personalidade autoritária

O estudo sobre A personalidade autoritária de Adorno e


Horkheimer tem por objeto buscar as condições subjetivas do
nazismo e tem por base o conceito de “caráter sadomasoquista”

146
Módulo 1
de outro membro do Instituto de Pesquisa Social, o psicólogo
Erich Fromm (estudos dos anos 1920 e 1930). Em 1936, Fromm
e Horkheimer desenvolveram os “Estudos sobre autoridade e
família”. Rouanet (1986, p.55) comenta a importância dessa
experiência com Fromm: “Como se explica, pergunta Fromm,

PEDAGOGIA
que tantas pessoas aceitem, tão resignadamente, sua opressão?
A resposta é que as condições atuais suscitam um caráter
social predominantemente sadomasoquista.” Este caráter é que
permite a sedimentação da personalidade autoritária. Segundo
Rouanet,

(...) é determinante, para o sadomasoquismo, a


necessidade de sofrer e fazer sofrer, de oprimir e
ser oprimido, de obedecer à autoridade e exercer
a autoridade. É nessa relação ativa e passiva com
o poder, que a personalidade sadomasoquista
consegue realizar-se libidinalmente. O prazer
sexual concretiza-se na obediência aos fortes e
poderosos. Mas a submissão incondicional ao poder
implica, ao mesmo tempo, inveja e agressividade.
Como a lógica do masoquismo impede que o
ódio ao agressor se exteriorize, a agressividade é
reprimida e canalizada contra os mais fracos. Com
o mesmo autoritarismo com que reverencia a força,
a personalidade autoritária despreza a fraqueza
(1986, p.56).

Horkheimer retoma, junto com Adorno, esses estudos,


no contexto americano. Existe uma base empírica para este

Filosofia e Educação
estudo e sobre ela Adorno conseguiu desenvolver e aprimorar
alguns conceitos, como o de “personalidade” que passou a
substituir o de “caráter”. Os dados empíricos, coletados em
entrevistas, questionários e testes projetivos, eram reunidos
em “escalas”, as quais, após elaboradas, eram analisadas
segundo uma tipologia de “estruturas de personalidade”, cada
tipo era diferenciado em “high” e “low scores”, literalmente
contagem ou marca alta ou baixa. Procurava-se alcançar a
personalidade na superfície e no nível inconsciente.
UNIDADE VIII

As escalas eram: Escala PEC (conservadorismo político-


econômico); escala F (tendências antidemocráticas, potencial
fascista); escala AS (total antissemitismo: combinação de 5
escalas com base no estereótipo do judeu); escala E (total
etnocentrismo, combinação de escalas que supõe a ideologia
etnocêntrica que aceita rejeita membros do grupo exterior,
identificados como judeus, negros, minorias, ou de classes
socioeconômicas inferiores).

147
Volume 2
Esse estudo possuía algumas limitações que foram
criticadas e revistas. Em primeiro lugar, tratava-se de uma
pesquisa empírica, em relação à qual os frankfurtianos sempre
tiveram reservas. Segundo, porque os aspectos psicológicos
eram mais relevantes do que a análise materialista ou econômica
PEDAGOGIA

e histórica. O resultado da pesquisa surpreendeu a todos os


envolvidos, pois, grosso modo, revelava que quanto mais
conservador sob o ponto de vista político, menos autoritário;
e, inversamente, quanto mais próximo da classe que lutava
por igualdade, mais autoritário. Notaram-se, no entanto,
as condições de realização da pesquisa em solo americano,
onde o discurso político conservador preza a liberdade e a
igualdade de oportunidades. Logo, o conservador é antifascista
de acordo com a ideologia na tradição americana. Notou-se,
nesse caso, a existência de um pseudo ou falso conservador, o
que se revelaria diferente na Alemanha nazista. Perceberam,
portanto, que os resultados da amostragem e a aplicação
destes nas escalas não poderiam ser interpretados de maneira
quantitativa, mas deveriam ser redimensionados de acordo
com o contexto e suas contradições internas. A importância
teórica desse estudo, segundo Rouanet,

(...) é considerável, pois ao mesmo tempo que


permite dialetizar a interação personalidade/
ideologia, evitando um reducionismo psicologista
elementar, reintroduz o tema da influência
Filosofia e Educação

psicológica de uma forma mais flexível e mais


compatível com a complexidade da vida psíquica
e social. A importância política dessa concepção é
igualmente óbvia. Pois a diferença de estilo pode
ser decisiva, num contexto histórico que favoreça o
aparecimento de correntes fascistas (1986, p. 179-
180).

5 EDUCAÇÃO: REIFICAÇÃO E MÍMESIS


UNIDADE VIII

Retornando ao texto sobre a educação, podemos notar,


na exposição dos itens 1 e 2, vários elementos que auxiliam
a entender afirmações do tipo: pessoas que se enquadram
cegamente em coletivos convertem a si próprias em algo como
um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados.
O outro lado dessa moeda é o tratar (de forma a manipulá-
los) os indivíduos que se dissolveram nessa “massa amorfa”
com eficiência e frieza. Esse é o papel do caráter manipulador.

148
Módulo 1
O nazismo está repleto de exemplos, mas não é a única fonte,
é um tipo social e psicológico, no entender de Adorno, bastante
disseminado. Adorno fala em criar uma investigação de cunho
psicanalítico para aproveitar a sobrevivência de ex-nazistas e,
da análise de seus testemunho e atitudes, recolher o antídoto

PEDAGOGIA
ao nazismo futuro. Algo difícil de ser feito, pois a identificação
com os velhos nazistas forma outro coletivo, um grupo que
se apresenta sem remorsos. Mas, mesmo sem garantias de
sucesso, valeria a pena. Para Adorno, eles representam a
“consciência coisificada”: primeiro eles se tornaram iguais às
coisas, para depois converter todos ao mesmo processo.
A consciência coisificada é defensiva em relação ao vir-
a-ser, pois se encontra condicionada a um princípio absoluto.
O rompimento com esse mecanismo seria uma das prevenções
contra o autoritarismo. A coisificação do homem encontra
uma outra inversão interessante, que remete às teorias de
Marx e Lukács, que é a “humanização” ou “fetichização” da
mercadoria. O homem se torna coisa e a coisa (o produto,
a técnica) passa a receber valores humanos. Haveria uma
longa digressão a ser feita com muitas explicações e variações
desses conceitos. Em seu texto, Adorno fala, em particular,
do processo de fetichização (enfeitiçamento) da técnica.
Como o esporte, a técnica guarda uma ambiguidade. Pode
ser sublimadora de impulsos destrutivos e, por isso, tornar-
se aliada ao desenvolvimento benéfico do homem. Mas pode

Filosofia e Educação
também padecer sob um “véu tecnológico”. Adorno (1996) diz
que existe na técnica algo de exagerado, irracional, patogênico
e que os homens se inclinam a considerar a técnica como sendo
algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria,
esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens.
Exemplo disso é pensar que alguém foi capaz de projetar
um sistema ferroviário, como o que conduzia a Auschwitz, com
um grau de eficiência e rapidez incrível, sem considerar, no
entanto, para onde os passageiros seriam conduzidos.
Tal frieza em nome da eficiência tem um custo; a
UNIDADE VIII

capacidade de amar (energia libidinal) acaba sendo transposta


para outros meios: os equipamentos, o líder político, o ídolo
de cinema ou da música. A frieza é uma constatação social e
antropológica, diz Adorno, e não o contrário, como sempre se
supôs, desde Aristóteles, de que o homem é um ser voltado
para a sociedade movido por um sentimento de empatia ou
simpatia.
A fúria ocorrida em Auschwitz (sentimento bestial que
149
Volume 2
não exclui a frieza de seu planejamento e aplicação) pode
receber um outro direcionamento: os estrangeiros, os idosos,
religiosos, homossexuais, por exemplo. Para isso é necessário
tornar consciente seus mecanismos e saber reconhecê-los,
a fim de freá-los e tornar-nos conscientes de seu impulso
PEDAGOGIA

destruidor.
A educação, nesse sentido, deve possuir um vínculo
necessário com a política. Tornar-se quase sociologia, a fim
de perceber o jogo de forças que constitui o poder político.
Adorno encerra sua palestra sobre a educação, apontando
para uma implicação bastante importante e atual. Ele afirma
que a educação “politizada” deve ser crítica o suficiente para
questionar um conceito sacramentado como o de “Razão
de Estado”. Cita Walter Benjamin, que, no exílio, em Paris,
perguntou-lhe se ele achava que encontrariam algozes o
suficiente para executarem as tarefas planejadas pelos
“assassinos de gabinete” naquele país (ocupado pelos nazistas
na época). Esses algozes são pessoas que agem quase sempre
contra seus próprios interesses, diz Adorno, “são assassinos de
si mesmos na medida que assassinam os outros”. O trabalho da
educação seria o de evitar o surgimento dessas pessoas, sejam
as que estão no comando, sejam as que cumprem ordens por
Razão de Estado.

Giorgio Agamben
Um dos teóricos da atualidade que retoma essa crítica é
U V
a FR (Roma, 1942) é o italiano Giorgio Agamben, com vários livros traduzidos para
K
C AM um filósofo italiano
Filosofia e Educação

que teoriza sobre o português e publicados no Brasil. Em seu livro intitulado


as relações entre
SAIBA MAIS

a filosofia, a Estado de exceção, expressão inventada por Walter Benjamin


literatura, a poesia e,
fundamentalmente, a e repetida por Adorno em seu texto, Agamben reflete sobre os
política. Possui vários
livros publicados e
dispositivos legais extraordinários utilizados pelo Estado – como
traduzidos para o momentos de emergência, terrorismo, guerras; momentos nos
português, entre os
quais: Homo sacer quais os direitos dos cidadãos são suspensos.
(2002), Estado de
exceção (2004), A análise de Agamben recupera a teoria e a discussão
Profanações (2007),
Estâncias (2007), empreendida pelos frankfurtianos, de maneira a perceber, na
O que resta de
Auschwitz (2008).
história, consequências atuais tão distanciadas do nazismo. Esse
tipo de teoria demonstra que o empreendimento adorniano e de
UNIDADE VIII

outros frankfurtianos em entender o fenômeno do nazismo, por


meio de categorias que procuram desmascarar mecanismos de
tendência irracionalista, contribui ainda para a reflexão crítica
no campo do pensamento, em geral, e do direcionamento que
se pretende dar à educação.
Agamben se reúne aos que fizeram duras críticas às
condições dos prisioneiros em Guantánamo, submetidos a
torturas e desrespeito aos direitos humanos. A prisão tornou-
150
Módulo 1
se mais conhecida após o ataque terrorista de 11 de setembro,
pois para lá foram enviados suspeitos, acusados de vínculo com
a Al-Qaeda. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama,
logo quando tomou posse, ordenou o fechamento (no prazo
de até um ano) da prisão, mas o processo ainda continua em

PEDAGOGIA
discussão no Congresso.

FIGURA 5 - Prisioneiros no Campo de detenção da prisão de Guantánamo, em Cuba.

Filosofia e Educação
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Camp_x-ray_detainees.jpg

ATIVIDADE
UNIDADE VIII

1. Pesquise a respeito do conceito de estado de exceção relacionado


ao terrorismo na atualidade. Identifique situações que põem em
risco a liberdade do indivíduo diante da ideia de razão de Estado.
Como exemplo, sugerimos que você assista ao documentário
Fahrenheit 11, de Michael Moore, com exemplos do governo
republicano de George W. Bush e contraste com as notícias sobre a
proposta de fechamento da prisão de Guantánamo, como medida
do governo democrata de Barack Obama.

151
Volume 2

RESUMINDO

Nesta unidade você pode compartilhar de teorias que são importantes


para a educação, para a política e para filosofia. Os temas estudados
PEDAGOGIA

dizem respeito:

1. À crise da razão.
2. À falsa mímesis ou o mimetismo social;
3. Ao caráter social ou à personalidade autoritária.
4. Ao imperativo: Por que não se repetir Auschwitz: o papel da
educação.
5. À ideia de “estado de exceção” e sua atualidade.
Filosofia e Educação
UNIDADE VIII

152
Módulo 1

ADORNO, Theodor Wiesegrund. A educação após


r e f eR Ê N C ia s
Auschwitz. Tradução de Aldo Onesti. São Paulo: Ática,

PEDAGOGIA
1994.

ADORNO, Theodor Wiesegrund. Dialética do esclarecimento.


Tradução de Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Rio de Janeiro:


Boitempo, 2007.

BENJAMIN, Walter. Crítica do poder, crítica da violência. In:


BOLLE, Willi (Org.). Walter Benjamin: documentos de
cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12. ed. São Paulo:


Ática, 2002.

DUARTE, Rodrigo. Adorno/Horkheimer e a Dialética do


esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. (Col. Passo-
a-passo).

DUARTE, Rodrigo. Mímesis e racionalidade. São Paulo:

Filosofia e Educação
Loyola, 1993.

FREITAG, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. 3. ed.


São Paulo: Brasiliense, 1990.

JAY, Martin. O pensamento de Adorno. Tradução de Adail


U. Sobral. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1984.

ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria crítica e psicanálise. Rio


UNIDADE VIII

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986.

WIGGERSHAUS, Rolf. A escola de Frankfurt. Rio de Janeiro:


Difel, 2002.

153
Suas anotações
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9

unidade
TECNOLOGIA E EDUCAÇÃO

Apresentar os conceitos que Walter


Meta

Benjamin utilizou para avaliar a mudança


de percepção ocasionada pelo surgimento
da técnica de reprodutibilidade da
fotografia e do cinema; o aprendizado do
adulto e da criança..

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz


Objetivos

de:

• relacionar o aprendizado do adulto e o da


criança com base na percepção sensorial
e lúdica, despertada pelos meios: livros e
filmes;
• perceber modos diferentes de aprendizagem
que incluem os meios tecnológicos com
base nas noções de hábito, aprendizagem
mimética e vivência do choque;
• identificar características da percepção
sensorial infantil;
• identificar o papel do educador da criança
como aquele que auxilia a criança a
construir conceitos.
Módulo 1

UNIDADE IX

PEDAGOGIA
Filosofia e Educação
1 INTRODUÇÃO

Como você verá, passaremos pelos seguintes assuntos

no desenvolvimento de nossa unidade:


UNIDADE IX

• A obra de arte sob as condições dos novos meios e

da técnica.

• Cinema, metrópole e trabalho industrial.

• O aprendizado do adulto.

• O aprendizado da criança.

157
Volume 2

2 OBRA DE ARTE SOB AS CONDIÇÕES DOS NOVOS


MEIOS E DA TÉCNICA

No ensaio escrito, em diferentes versões, por


PEDAGOGIA

Walter Benjamin, intitulado A obra de arte na era de sua


reprodutibilidade técnica, podemos notar a tentativa do autor
em estabelecer novas categorias ou juízo na recepção da arte
transformada pela técnica. A arte em questão é o cinema,
assim como sua antecessora, a fotografia.

Walter Benjamin nasceu


em Berlim, Alemanha, em
15/07/1892 e faleceu em Port
Bou, Espanha, em 27/9/1940,
PARA CONHECER

quando tentava passar a


fronteira que o levaria para o
exílio nos Estados Unidos. Lá
iria se reunir aos membros do
Instituto de Pesquisa Social,
em sua maioria, intelectuais
de origem judaica e marxistas,
exilados de seu país, a
Alemanha, com a ascensão
do nazismo. Benjamin era um
colaborador desse Instituto,
conhecido pela chancela de
“Escola de Frankfurt”.
FIGURA 1 - Fonte: www.uesc.br/nucleos/nbewb

Benjamin considera o que muda na “natureza” da obra


de arte transformada pela técnica e percebe que se trata
Filosofia e Educação

da capacidade e da necessidade de se tornar cada vez mais


reproduzida, multiplicada em cópias. Sua natureza técnica,
portanto, consiste em ser reprodutível.
Quando falamos em obra de arte ou objeto artístico, não
imaginamos algo que possa existir à parte de seu público de
espectadores. No contexto sagrado da obra de arte, o número
de espectadores não era importante. Algumas obras eram
feitas para poucos e não para serem exibidas. Mesmo assim
é impossível pensar na ausência de recepção de uma obra de
UNIDADE IX

arte.
A preocupação de Benjamin, além de mostrar a mudança
técnica e de linguagem, isto é, a linguagem cinematográfica,
linguagem de imagens, que ocorre com a fotografia e o cinema,
é mostrar como as pessoas passaram a perceber e se relacionar
com o objeto artístico, isto é, o que caracteriza a recepção do
objeto.
Logo que o cinema surgiu, há pouco mais de um século,
158
Módulo 1
tratava-se de uma atração mambembe ou de um interesse
científico, mas não era visto como arte. Ao subir a esse patamar,
antes de ser conhecido como a sétima arte, encontrou defensores
e entusiastas que possuíam um julgamento equivocado.
Buscavam associar o cinema a gêneros grandiosos do passado,

PEDAGOGIA
como a epopeia, de forma a estabelecer comparações, sem
reconhecer as diferenças entre os gêneros.
Para Benjamin, existe uma falha de análise neste caso,
que não considera a história e, principalmente, a mudança
de experiência que sofremos ao longo da história. A epopeia
é o registro de uma época e cultura, da qual estamos muito
distantes. Ela se inscreve na tradição da narrativa oral e da
experiência coletiva, representada pelo herói de maneira única,
total e inseparável.
O cinema, diferentemente do teatro, é técnico,
fragmentado, não percorre a sequência narrativa do romance
ou do teatro. As sequências não são filmadas necessariamente
em ordem e a montagem vai selecioná-las e agregá-las de
acordo com um ritmo, um movimento e recorte da imagem
que faz do cinema algo totalmente diferente em termos de
composição da história e da narrativa, bem como de composição
de imagem.

3 CINEMA, METRÓPOLE E TRABALHO INDUSTRIAL

Filosofia e Educação
A recepção do filme oferece ao público uma grande
oportunidade. Falamos aqui do contexto histórico de formação
dos grandes centros urbanos e da afirmação do trabalho
industrial. Essas transformações que surgem no período da
modernidade, do século XIX e início do século XX, mudaram
por completo a vida das pessoas. O ritmo, o passo acelerado,
a pressa, os esbarrões dos transeuntes, o trânsito de veículos
UNIDADE IX

transformam o modo de andar das pessoas e também a


comunicação entre elas. Comunicação não só de palavras,
do “trocar experiências”, contar histórias ricas de sentido,
mas de olhares e correspondência de olhares. Ocorre uma
desumanização nos grandes centros, tornando a massa um
todo robotizado e sem rosto. Você pode observar isso na
ilustração a seguir:

159
Volume 2

Ilustração de autoria de
Moholy-Nagy, artista dada-
PEDAGOGIA

expressionista, de 1923,
intitulado Metrópolis. Essa
colagem reproduz a visão
caótica e grandiosa da
grande cidade.
Filosofia e Educação

FIGURA 2 - Fonte: http://images.google.com.br

No trabalho industrial, essa realidade não é menos


opressiva. O trabalho seriado e fragmentado favorece o que
Marx conceituou, no século XIX, de alienação do trabalho.
Não só o trabalho não ocorre mais globalmente, inteiro, mas
o produtor se encontra impossibilitado, econo-micamente, de
adquirir aquilo que produz.
O cinema surge nesse contexto, menos como arte em
UNIDADE IX

sentido tradicional, mas como instrumento de aprendizado e


de reestruturação perceptiva do cidadão, que pode, inclusive,
reverter a opressão da técnica ao: a) aprender por meio desta,
e b) divertir-se. O espaço de percepção, criado na sala de
cinema entre o filme e o público, tem a capacidade de revigorar
a forma do aprendizado da infância por ser igualmente lúdico.

160
Módulo 1

Filósofo, economista e socialista,


Karl Marx nasceu em Trier, na
Alemanha, em 5 de maio de 1818,
e faleceu em Londres, Inglaterra, a

PARA CONHECER
14 de março de 1883. Marx fez a

PEDAGOGIA
crítica ao capitalismo nascente no
século XIX. Sua crítica influenciou
segmentos da política e moveu
revoluções a partir da Revolução
Russa de 1917. Vários conceitos
e aplicações de seu pensamento
foram revisados na primeira metade
do século XX. FIGURA 3
Fonte: http://pt.wikipedia.org

4 O APRENDIZADO DO ADULTO

Tendo em vista o modo de aprendizado do adulto e o


infantil, passaremos a falar sobre sua relação, iniciando pelo
do adulto. As duas aprendizagens não estão relacionadas com
a escola, mas com o cinema, o teatro e a literatura.
A primeira certeza é que a recepção, baseada na
contemplação, veio a sucumbir diante do mundo industrial
e técnico do trabalho e da indústria do entretenimento ou
diversão que caracteriza o cinema.
Não é mais possível o modo de recepção da imersão
no objeto, mas, sim, o do desvio de atenção do objeto. Isto

Filosofia e Educação
é, não é mais o espectador que imerge na obra de maneira
concentrada e lúdica; mas, ao contrário, dela se desvia, na
tentativa de evitar o golpe que sofre da imagem que parece
atingi-lo na cadeira, uma imagem em uma dimensão jamais
vista e numa alternância jamais experimentada. Temos em
vista o início do cinema e a novidade que a grande tela trazia
para as pessoas que lidavam com imagens, mas não nessa
proporção e velocidade.
Podemos tentar entender o contexto dessa novidade,
aplicando a recepção atual de uma invenção como a da montanha
UNIDADE IX

russa e do loop. É o que faz, por exemplo, o historiador Nicolau


Sevcenko em seu livro A corrida para o século XXI: no loop da
montanha russa:

Uma das situações mais intensas e perturbadoras


que se pode experimentar, neste nosso mundo
atual, é um passeio na montanha-russa. Só não
é nem um pouco recomendável para quem tenha

161
Volume 2

problemas com os nervos ou o coração, nem para


aqueles com o sistema digestivo sensível. A própria
decisão de entrar na brincadeira já requer alguma
coragem, a gente sabe que a emoção pode ser forte
até demais e que podem decorrer consequências
imprevisíveis. [...]
PEDAGOGIA

A primeira fase até que é tranquila, a coisa se põe


a subir num ritmo controlado, seguro, previsível.
A gente vai se acostumando, o corpo começa a
distender, aos poucos está gostando, vai achando
o máximo ver primeiro o parque, depois o bairro,
depois a cidade toda de uma perspectiva superior,
dominante, se estendendo ao infinito. [...] A subida
continua sem parar, no mesmo ritmo consistente,
assegurado, forte; descobrimos que o céu aberto
é sem limites, bate uma euforia que nos faz rir
descontroladamente, nunca havíamos imaginado
como é fácil abraçar o mundo; estendemos os
braços, estufamos o peito, esticamos o pescoço,
fazemos bico com os lábios para beijar o céu e...

... e de repente, o mundo desaba e leva


a gente de cambulhada. É o terror mais
total. Não se pode nem pensar como
fazer para sair dali porque o cérebro não
reage mais. O pânico se incorpora a cada
célula e extravasa por todos os poros da
pele. Não é que não se consiga pensar,
não se consegue sentir também. Nos
transformamos numa massa energética
em espasmo crítico, uma síndrome viva
de vertigem e pavor, um torvelinho de
Filosofia e Educação

torpor e crispação. É o caos, é o fim, é


o nada. Até que chega o solavanco de
uma nova subida, não mais precisa e
reconfortante como a primeira, agora
mais um tranco que atira a gente para
diante e para trás, um safanão curto
e grosso que ao menos dá a sensação
de um baque de volta à realidade. [...]
Outro baque de subida, nem o tempo
de piscar e a queda livre que enche as
vísceras de vácuo e faz o coração saltar
pela boca. E agora, meu Deus, o loop
UNIDADE IX

...! Aaaaaaahhhhh .....!!!!! Rodamos


no vazio como um ioiô cósmico, um
FIGURA 4 - Montanha russa, cujo nome é Rollercoaster
tornado, no Parque Aventura (Avonturenpark),
brinquedo fútil dos elementos, um grão
na cidade de Hellendoorn, Holanda. de areia engolfado na potência geológica
Fonte: www.wikipedia.com de um maremoto. Nada mais nos
assusta. Ao chegar ao fim, desfigurados,
descompostos, estupefatos, já assimilamos a
lição da montanha-russa: compreendemos o
que significa estar exposto às forças naturais e

162
Módulo 1
históricas agenciadas pelas tecnologias modernas.
Aprendemos os riscos implicados tanto em se
arrogar o controle dessas forças, quanto em deixar-
se levar de modo apatetado e conformista por elas.
O que não nos impede de suspeitar das intenções
de quem inventou essa traquitana diabólica (p.13-
14).

PEDAGOGIA
Você pode perceber, nessa longa narrativa, que o autor
não é da geração do “loop”. Se o filho dele estivesse ouvindo
ou lendo essas impressões, certamente diria que o pai exagera
nas descrições, pois eles já estão habituados ao brinquedo,
e a emoção para eles, é menos intensa. Ao mesmo tempo,
a descrição das emoções é profundamente benjaminiana
ao refletir sobre a recepção do brinquedo em diferentes
modalidades. Se lembrarmos que a primeira sessão de cinema
(cf. ilustração nº 5) causou um terror parecido ao descrito,
podemos entender a reação diante da novidade tecnológica,
com a qual nos acostumamos de geração a geração.
A projeção da chegada do trem à
plataforma, imagem ao alto na grande
tela e o trem vindo na direção da plateia,
ocasionou uma reação de pânico,
fazendo com que as pessoas saltassem
das cadeiras e corressem cinema afora,
crendo que seriam atropeladas pelo
trem. O nome do filme, dos pioneiros

Filosofia e Educação
irmãos Auguste e Louis, era “Chegada
de um trem à estação” (L’Arrivée d’un
train en gare de La Ciotat ou, de forma
abreviada, L’Arrivée d’un train à La Ciotat FIGURA 5 - Cena da chegada do trem.
Fonte: http://bp.blogspot.com
), divulgado no dia 28 de dezembro de
1895 no Grand Café do Boulevard des
Capucines, em Paris. O filme tinha apenas a duração de 50
segundos e era composto por apenas um plano em perspectiva
diagonal a partir da estação chamada La Ciotat, com alguns
passageiros à espera na estação.
UNIDADE IX

Para Walter Benjamin, o filme e o brinquedo são


exercícios de aprendizado físico e emocional diante de uma
tecnologia que pode ser utilizada sem esse intuito. É nesse
sentido que devemos entender que o exercício que se faz na
frequência às salas de cinema é, para Benjamin, uma forma
de aprendizado. Um aprendizado caracterizado como hábito,
ou seja, um aprendizado lento, repetitivo e moroso, que fará

163
Volume 2
com que o público ou a massa estranhe menos o lado de fora
da sala, isto é, o ritmo da grande cidade e o trabalho seriado
da produção acelerada da indústria.
Isso, no entanto, seria pouco, quase que um
acomodamento das massas à realidade da metrópole e do
PEDAGOGIA

trabalho industrial. Numa dimensão mais profunda, Benjamin


resolve mostrar a “pirueta”, o “loop” ou a inversão que o
homem faz do lado opressor da técnica, ao inventar o filme:
não apenas a linguagem cinematográfica ou o que, por meio
dela, é mostrado como realidade, mas o lado grotesco dos
filmes que transforma o cinema no que Benjamin chama de
“jogo desinibido com a técnica”. Os exemplos são os filmes de
Charles Chaplin e os filmes de animação americanos, o famoso
Mickey Mouse.
Benjamin considera Chaplin um poeta.
O aspecto lúdico e crítico de seus filmes o
torna o grande exemplo para entendermos as
considerações benjaminianas sobre o cinema.
Como você verá, nesta unidade, Benjamin está
mais interessado no aspecto lúdico como forma
de aprendizado e de revanche política do que no
aspecto técnico e ideológico, característico dos
filmes experimentais russos ou das vanguardas
russas. Obviamente ele é capaz de perceber e
criticar o cinema que tenta ser épico, grandioso
e bem acabado. É igualmente crítico dos filmes
Filosofia e Educação

publicitários do nazismo e dos filmes que criam


o culto às estrelas no cinema americano, muito
FIGURA 6 - Fotogramas do filme Tempos Modernos de
1936 de Charles Chaplin (1889-1977), cineasta britânico embora ele tenha vivido pouco para conhecer
que encantou o mundo com seu humor crítico. Neste
o tipo de produção cinematográfica que se
filme, ele critica a aceleração do trabalho industrial e
seriado da indústria, no papel de um operário que tem desenvolveu em Hollywood. É bom também que
uma crise psicomotora em meio às máquinas. Ele é
se diga que, apesar de ser tão lido nos cursos de
hospitalizado e, quando sai, participa, por engano, de
uma passeata, acenando uma bandeira vermelha que comunicação, Benjamin nunca escreveu muito
teria caído da traseira de um caminhão carregado. O
sobre filmes e diretores. Chaplin é associado ao
gesto foi interpretado como uma simpatia ao comunismo.
O filme foi proibido na Itália e Alemanha de regimes grotesco pelo humor que destrói criticamente a
UNIDADE IX

fascistas, criticado pelos americanos e aclamado na


realidade.
Inglaterra, França e Alemanha.
Fonte: http:1.bp.blogspot.com A escolha dos filmes grotescos americanos
e de “seu jogo desinibido com a técnica” nos
levam de volta à afirmação de que importa a Benjamin o efeito
ou recepção do filme, acima de tudo é sua potencialidade
pedagógica. A técnica deve ser vista de forma crítica, sob
suspeita. Os filmes grotescos parecem constituir-se sobre
essa crítica, pois, segundo Benjamin (em “Réplica a Oscar
164
Módulo 1
Schmitz”), ele (o filme grotesco) alcança seu ponto mais alto
contra a técnica (...) o riso que ele desperta, paira so-bre o
abismo do horror.
Esse gênero de filme está relacionado à percepção por
meio da distração que é, em certa dimensão, também onírica

PEDAGOGIA
(proveniente do sonho e do inconsciente) e certamente coletiva.
Pelo jogo, contudo, cria-se um espaço de aprendizagem que
ultrapassa o mimético (ver-se representado por trabalhadores)
e o aprendizado associado ao hábito. Esse tema já foi bastante
explorado por intérpretes com base no ensaio sobre a obra de
arte: o aprendizado pelo hábito que resulta da frequência à
sala de cinema e que exercita o homem a viver e sobreviver na
segunda natureza que é a técnica, e que equivale à experiência
histórica do habitar na arquitetura. Cinema e arquitetura
pressupõem a recepção ótica; mas, para Benjamin, trata-se de
uma recepção sobretudo tátil, dado ao hábito que adquirimos
de tocar o espaço que habitamos e sermos tocados, melhor,
golpeados pelas imagens que sobrepujam a tela e a cidade
com seus inúmeros cartazes de propaganda.
O cinema está para o mundo do adulto como o jogo
e o hábito para o mundo da criança. No cinema, vigora uma
relação parecida com a brincadeira infantil.

A essência do brincar” [diz Benjamin] “não é um


‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’,
transformação da experiência mais comovente
em hábito. (...) O hábito entra na vida como

Filosofia e Educação
brincadeira, e nele, mesmo em suas formas mais
enrijecidas, sobrevive até o final um restinho de
brincadeira. Formas petrificadas e irreconhecíveis
de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro
terror, eis o que são os hábitos (BENJAMIN, 2005,
p.102).

No ensaio sobre a obra de arte, Benjamin fala do cinema


como espaço lúdico, no qual é permitido ainda o brincar para o
adulto sob o modo de recepção da diversão ou distração, não
UNIDADE IX

mais da contemplação ou do recolhimento. O jogo com a técnica


que expõe o grotesco é a outra dimensão desse aprendizado,
cuja reversão é a de romper com o hábito e trazer o novo ao
fazer o público rir barbaramente (o riso bom da boa barbárie)
dos costumes e da política.
O filme, de Chaplin, “O grande ditador” é o melhor
exemplo a ser citado. Mais do que a técnica, fartamente
analisada de maneira bem original no ensaio sobre a obra de

165
Volume 2
arte, o grotesco dos filmes é um forte elemento de ruptura
contra o embelezamento, o falseamento ou a estetização da
imagem publicitária utilizada, tecnicamente bem utilizada,
aliás, pelo nazismo na época em que o ensaio foi escrito, pelos
totalitarismos e pelo capitalismo de lá para cá.
PEDAGOGIA

Benjamin considerou tudo o que possa mostrar um


lado desmistificador, destruidor da tentativa de recompor
decorativamente valores que retrocedem ao período clássico,
mas que não expressam mais a realidade da modernidade ou
de outras épocas. O impossível, o monstruoso, o aterrador são
instrumentos mais potentes e reveladores da realidade do que
a técnica bem construída que encerra um culto de si mesma,
a “técnica pela técnica”, tal como o movimento que cultuava a
“arte pela arte”.
Ao chegar a tais conclusões, Benjamin se separa daquela
obsessão classicista tão típica da cultura, uma nobre tradição,
sem dúvida, mas que, no tocante ao gosto e idealização
da antiguidade grega, sofreu a incorporação banalizada e
propagandística, principalmente no período do nazismo,
instituindo uma batalha na esfera da superestrutura, que
explica a necessidade de instituir novas categorias estéticas
com base na política.
A mímesis está relacionada ao ver-se representado no
filme pelo operário. Está também presente como capacidade
mimética. Esta capacidade está relacionada ao prazer, ao jogo
ou ao brincar, e, por fim, à repetição que se transforma em
Filosofia e Educação

hábito. A tênue fronteira entre jogo e hábito, no mundo da


criança, possui, no mundo do adulto, um correlato.
No ensaio sobre a obra de arte, Benjamin fala do
cinema como o espaço lúdico no qual é permitido ainda o
brincar, para o adulto, sob o modo de recepção da diversão
ou distração. O espaço público do cinema, corporizado pela
técnica mais avançada naquele momento, em analogia com
as construções arquitetônicas, permitiria ao homem o habitar
a segunda natureza formada na modernidade, isto é, habitar
UNIDADE IX

ou habituar-se ao espaço e ritmo das grandes cidades e do


trabalho industrial, realidades externas e opressoras. O hábito
não significa acomodação, mas uma forma de conhecer por
meio da sensação visual ou tátil.
Essas duas modalidades de recepção, visual e tátil,
são os meios sensitivos através dos quais a criança aprende.
O cinema exercita novamente o adulto nesse aprendizado,
constituindo, portanto, uma espécie de grande escola das
166
Módulo 1
massas, não pelo conteúdo expresso na forma de imagem e
narrativa, mas por exercitar um novo tipo de percepção que
surgiu com o desenvolvimento da técnica e do processo de
industrialização do capitalismo.

PEDAGOGIA
ATIVIDADE
1) Entre os filmes mencionados de Charles Chaplin, assista, de
preferência, “Tempos modernos” e considere:

1. O meio de recepção do filme: a maneira como você o assiste.


Provavelmente será assistido na tela pequena da televisão, em
imagem digital e acompanhado por poucas pessoas ou sozinho.
Imagine assistir o mesmo filme na tela grande do cinema, na sala
escura e repleta de gente que compartilha a diversão e as críticas
ao filme.

2. O movimento do filme não é o mesmo do cinema atual. Pesquise


sobre a diferença de velocidade com a qual o filme é projetado: 18
ou 24 quadros por segundo.

3. Quanto ao som, trata-se do primeiro filme de Chaplin que o incorpora.


O som, a fala e o diálogo que começam a surgir nesse período são
dispensáveis em função da expressão mímica do ator?

4. Como humor e crítica são associados por Chaplin para expressar o


drama da época moderna que seu personagem representa e que é
o drama de todos?

Filosofia e Educação
5 O APRENDIZADO DA CRIANÇA

Explorando o entendimento de Benjamin sobre a


infância, vamos agora nos voltar para importantes reflexões
do autor recolhidas em resenhas esparsas, concentradas em
nossa edição brasileira, sob o título Reflexões sobre a criança,
o brinquedo e a educação (BENJAMIN, 2005).
UNIDADE IX

Você pode verificar, no mundo que cerca a criança,


três importantes vertentes em relação às principais ideias
de Benjamin: a) a primeira diz respeito à percepção como
contemplação sensual; b) a segunda, à capacidade mimética,
e c) a terceira, à relação entre jogo e hábito.
Benjamin fala da atenção que a criança direciona a tipos
de objeto que se constituem como resíduos de algum processo

167
Volume 2
de produção, da construção à marcenaria ou ao trabalho do
alfaiate. O que importa à criança não é o produto que resulta
do trabalho do adulto, mas o que restou desse trabalho como
resíduo, retalho. É como se aquilo que foi desprezado se
tornasse um mundo de coisas que dizem respeito só a ela.
PEDAGOGIA

Em outra dimensão, Benjamin critica, na projeção da


feitura do brinquedo para criança, a falta de compreensão do
adulto ao imaginar a peça inteira em funcionamento como
projeção em miniatura de uma grande obra de engenharia
finalizada, com a qual o adulto se delicia e brinca. Podemos
pensar na reação furiosa dos pais ao ver o filho destruir um
brinquedo complexamente construído, como um ferrorama, e
no prazer da criança em brincar com os dejetos e cacos do
brinquedo ou com a própria embalagem do produto.
A percepção da criança é a contemplação na sua
forma mais pura e sensual. Não há para ela a experiência da
nostalgia nessa imersão que ela faz no mundo das coisas.
A correspondência de seu interior com as coisas ocorre pela
percepção visual das cores, tanto as que a criança avista nos
livros infantis, quanto as que ela experimenta na pintura.
Observe, na figura ao lado, um exemplo
de impressão gráfica das cores na cena do
conhecido livro de Lewis Carrol: Alice no país
das maravilhas.
Na ausência das cores, diante de
xilogravuras (gravura impressa com uma matriz
Filosofia e Educação

de madeira e tinta sob papel) impressas com


tinta preta sob papel branco, por exemplo, a
percepção sensual e sonhadora se desfaz, tirando
FIGURA 7 - Cena do chá com o Chapeleiro Maluco
e a Lebre de Alice no país das maravilhas, livro a criança de sua interioridade. É da necessidade
publicado pela primeira vez em 1865.
Fonte: http://2.bp.blogspot.com de descrever essas imagens que a criança fala.
A maneira da criança penetrar nessas imagens
ocorre, portanto, pela palavra. Não apenas a palavra oral, mas
também a escrita. Nesse caso, as cartilhas que Benjamin cita
em alguns desses textos constituem um bom exemplo, onde as
UNIDADE IX

letras são desenhadas no formato de um objeto, como mostra


a ilustração de uma cartilha da época:
Essa página de uma cartilha da época, por exemplo,
exibe desenhos-enigmas ou uma escrita de sinais. Se a cor é o
elemento que favorece a recepção via contemplação da criança,
a imagem em preto e branco, formada ou não com a palavra,
provoca nela o processo de criação. A tarefa que Benjamin
confere ao pedagogo ou ao diretor de teatro infantil é lidar com
168
Módulo 1
esses sinais. No teatro, eles surgem como gestos
improvisados. Observar e reconhecer os sinais
resulta em retirar a criança de seu mundo mágico e
conduzi-la ao processo criador de conteúdos.
O conteúdo de qualquer espécie não pode ser

PEDAGOGIA
apresentado à criança como uma encenação de algo
já vivido pelo adulto ou valores morais e ideológicos,
mas ele se apresenta como o resultado que surge
da transposição do mundo mágico-contemplativo,
no qual a criança está imersa, para a abertura deste
por meio de imagens em preto e branco, ou a escrita
camuflada em imagens e o jogo que se estabelece
com elas. Fornecer a palavra pronta é eliminar esse
jogo. O exemplo que Benjamin apresenta contra as
cartilhas modernas retrocede ao barroco, séculos
XVI e XVII, cuja invenção de “monstruosidades
fonéticas” como chichleuchlauchra ou zauzezizau
favorecem a adivinhação do sentido. FIGURA 8 - Página de cartilha da época.
Fonte: domínio público.
Retrocedendo na história com esses
exemplos, Benjamin mostra que houve, no
passado, uma tentativa de aproximação
Barroco foi um período estilístico e filosófico U V
desajeitada da percepção infantil e que a da História da sociedade ocidental, ocorrido a FR
K
no perído que vai de 1580 a 1756. O termo C AM
proposta por “descontrair ludicamente a
“barroco” advém da palavra portuguesa
cartilha (do autor do livro por ele resenhado)

SAIBA MAIS
homônima que significa “pérola imperfeita”,
ou por extensão joia falsa. Walter Benjamin
é velha”. Ou seja, enxergar a infância em direcionou um grande interesse à arte
do barroco, em particular, à Origem do
suas potencialidades e características não

Filosofia e Educação
drama barroco alemão, título de sua tese
foi um acontecimento anterior a Rousseau. de livre docência. As peças estudadas por
Benjamin jamais foram encenadas, tendo
Benjamin não escreveu sobre a criança sido sempre considerada, pela crítica, uma
no cinema e jamais poderia imaginar os jogos manifestação cultural menor, sem o valor
da tragédia clássica.
eletrônicos e as possibilidades interativas
geradas pelos novos meios, como a Internet.
Tampouco chegou a refletir sobre a facilidade de assimilação
da tecnologia pelas crianças, mas poderíamos dizer que sua
reflexão sobre o aspecto lúdico e a contemplação sensorial que
caracteriza a recepção da criança permanece no limbo descrito:
UNIDADE IX

ao mesmo tempo é maravilhoso e aprisionador.


Poderíamos concluir, de suas reflexões, que o aspecto
lúdico e sensorial das cores e dos estímulos eletrônicos dos
novos meios encerraria a criança de tal forma nesse mundo,
que a função do pedagogo continua ser a de trazer a realidade
em preto e branco, a fim de criar o distanciamento necessário
para a construção de conceitos.

169
Volume 2

ATIVIDADE
2) Tendo em vista o aprendizado da criança, observe e descreva
PEDAGOGIA

atividades que lidam com o aspecto perceptivo e lúdico, como, por


exemplo, atividades didáticas desenvolvidas em forma de jogo visual
para o computador.

RESUMINDO

Nesta unidade você estudou:

1. A mudança de percepção e recepção do cinema;


2. O aprendizado das massas na sala de cinema: revanche da
opressão vivenciada no trabalho e nas grandes cidades;
3. O conhecimento que se estabelece pelo hábito;
4. Contemplação e distração;
5. A contemplação sensorial da criança;
6. A função do pedagogo: libertar a criança de seu mundo
mágico.
Filosofia e Educação

r e f eR Ê N C ia s

BENJAMIN, W. Gesammelte Schriften. Ed. R. Tiedemann,


G. Schweppenhäuser. Frankfurt a.M., Suhrkamp,1996.

BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e


a educação. Tradução de Marcus Vinícius Mazzari. São Paulo:
Duas Cidades/Editora 34, 2002 e 2005.

BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte


UNIDADE IX

e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:


Brasiliense, 1985.

SEVCENKO, Nicolau. . A corrida para o século XXI: no loop


da montanha russa. 2. ed. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2001.

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Suas anotações
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