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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Imagens
Mapas
LISTA DE ABREVIATURAS
Ϯ
INTRODUÇÃO
Quando em 332 a.C. Alexandre entrou com o exército greco-macedônio em Mênfis, capital
da então satrapia persa do Egito, o Delta inteiro os recebeu como libertadores de uma segunda
dominação persa. O governo extremamente opressor dessa dominação persa fez com que os
egípcios do Delta interpretassem positivamente essa nova alternativa de governo. Além disso,
aquela região do Egito possuía um passado de boas relações com a civilização helênica: os helenos
ajudaram o Delta a unificar o Egito sob o domínio de Sais (26ª dinastia), combateram juntos contra
a primeira invasão persa, lutaram para libertar o Egito da primeira dominação persa, e agora
libertavam o Egito de uma segunda. Nesse mérito, para visualizar corretamente o que era o “Egito”
contemporâneo à conquista macedônica vale lembrar que no momento da chegada de Alexandre ao
território, três grupos sociais possuíam alguma importância política em sua organização interna: os
militares, os burocratas e o sacerdócio1. Os militares proporcionariam o menor problema, posto que
o rei persa Dareios III, ao sufocar uma revolta nativa, anexou as tropas nativas às suas,
desmilitarizando o país. A burocracia foi parcialmente assimilada pelos macedônios, de modo que a
administração civil foi permitida a egípcios, embora nenhum comando militar o fosse.
Havia uma grande necessidade de restaurar a máquina administrativa e a economia egípcia,
contudo, mas não se tratava apenas de restauração da antiga administração nativa, como Rostovtzeff
comenta: “Com os Ptolomeus, um elemento novo foi inserido no País: os Gregos. Eles eram os
conquistadores e em sua força residia o poder dos Ptolomeus”.(1967:03). Com os gregos, vieram
também as suas leis, baseadas em seus costumes e hábitos tradicionais (o nómos).
Baseados no “Direito de Conquista” eles reivindicavam o direito de se tornar a “classe
dominante” no Egito. Por outro lado, restaurar a ordem e a prosperidade no Egito significava buscar
a centralização do país, e as instituições administrativas nativas eram perfeitas para tal objetivo.
Uma vez que a classe sacerdotal estava inserida em todos os setores da administração da terra,
finanças e militares, não era possível empreender uma tentativa macedônica ou nativa em demarcar
áreas de influências “justas”. Alexandre buscou “emoldurar” e não destruir os sacerdócios egípcios,
embora não se encerrasse aí a questão. Após a conquista do Egito, Alexandre seguiu de Mênfis para
o Templo de Amon do oásis de Siwa, na fronteira ocidental, onde o Oráculo o proclamou “Filho de
Amon”. Com a manutenção das cerimônias de coroação em Mênfis, segundo as tradições egípcias,
com o reconhecimento dos oráculos locais e com a aceitação de elementos da última casa real
1
Cf: W. Spielberg, Demotische Chronik, 30f.: “die Krieger, die Priester, die Schreiber Ägtptens”.
ϯ
nativa em seu exército, Alexandre repetiu2 no Egito uma política interna que seria amplamente
seguida por seus sucessores: legitimar-se no poder tornando-se simultaneamente faraó e basileus
para egípcios e gregos respectivamente.
Dieter Kessler observa que a política religiosa de Alexandre baseou-se na da XXX dinastia3
(autóctone, de 404 a 350 a.C.): “(...) Mandou reconstruir o santuário do templo de Luxor, ao qual se
seguiu já no governo de seu diádoco, ao santuário de Amon em Karnak”.(1998:291). Após a morte
de Alexandre e um período de guerras entre os diádocos, Ptolomeu, filho de Lagus proclamou-se rei
do Egito, e fez-se coroar faraó. Ptolomeu I convocou um conselho misto de sacerdotes egípcios e
sábios helênicos para elaborar um conjunto de regras e prescrições religiosas para que as duas
comunidades interagissem nas festas oficiais e no Ano Novo. Um sínodo como esse também
elaborou a criação do deus Serápis bem como sua elevação como patrono de Alexandria, nova
capital do reino. Ptolomeu II reivindicou antigos direitos faraônicos sobre o Chipre, o Levante (ou
“Celessíria”), estendendo a soberania do Egito helenístico por todo o Mediterrâneo oriental.
Os Ptolomeus prestavam homenagens aos templos e deuses egípcios, construíam,
reformavam ou ampliavam templos e se permitiam retratar como faraós. Durante toda a dominação
grega, os templos foram mantidos e ampliados em quase todo o Egito. Kessler comenta como “os
Ptolomeus aumentaram a produção de estátuas cultuais e pequenas capelas visando maior receita
para o Estado” (1998: 293). Segundo o autor, os reis Ptolomaicos ao se comportarem tanto como
faraós nativos como basilei helenísticos, visavam garantir a sobrevivência dessas instituições
sociais e culturais por questões estratégicas.
A despeito do controle real no início imposto sobre os Templos, a manutenção de suas
receitas, e, posteriormente das imunidades que lhe foram concedidas continuaram uma forma de
acumulação de riquezas. Nesse mérito podemos concluir a respeito da importância estratégica dos
templos egípcios com o ponto de vista de Préaux, que afirma que “como faraós, assumindo com
ostentação postos religiosos, prodigalizando domínios e receitas tarifárias aos Templos egípcios
para a manutenção de novos cultos4, os Ptolomeus asseguraram que a religião enquanto espinha
dorsal da civilização egípcia permanecesse forte na sociedade. Com isso se mantém uma classe de
eruditos e escribas nativos (…)” (1993:334).
2
Na realidade, a adoção da posição de “Faraó”, bem como a respectiva negociação política com os
sacerdotes, sempre foi adotada pelo dominador estrangeiro: Hiccsos, Núbios, Persas...
3
Essa dinastia se caracterizou pelo retorno dos privilégios sociais dos Templos e sacerdotes. Privilégios estes
que haviam sido custosamente abolidos, ou pelo menos bastante reduzidos durante a XXVI dinastia.
4
Vide a doação da Pedra de Roseta.
ϰ
Analisamos as dimensões da política interna dos Ptolomeus em prol do esforço civilizador-
helenizador do Egito. Consideramos as interações sociais entre estrangeiros e nativos, formando
uma identidade cultural particular para o caso de um “Egito Helenístico”, lugar onde as relações de
poder entre o dominador estrangeiro e o dominado nativo criaram um discurso ideal de
“compartimentação de identidades” (nómoi). Então, finalmente buscamos estabelecer como o
discurso de identidades se inseria na dimensão de uma prática cotidiana através das interações
sociais entre nativos e estrangeiros. Em nossa linha de abordagem, não trataremos as culturas
helenística e egípcia como dois blocos separados, estanques que ganham ou perdem substância
cultural, em decorrência de suas interações. Para este trabalho é de extrema importância perceber as
negociações com a cultura, com uma dimensão cultural dinâmica e não categorizada, sistematizada
em um conjunto de focos de cristalização, como os modelos e as instituições.
5
Verifique o mapa de situação em apêndice b).
ϱ
dimensão pouco explorada dessa segmentação das instituições impondo uma segmentação entre
gregos, romanos e egípcios, forças “civilizadoras” e “barbárie” nativa, é aquela da produção de uma
identidade cultural e da negociação entre culturas: é possível imaginar um total isolamento dos
egípcios? Houve justaposição de culturas? Quais são os níveis de interação entre gregos e nativos?
As populações helenizadas que habitavam o Egito Lágida tinham um contato muito mais
intenso com o nativo na chóra. Justamente por isso, o prestigio social dos templos e dos sacerdotes
– a elite nativa mais eficiente nas negociações de poder com o governo macedônico - era muito
melhor preservada na área rural. Na chóra, muitos colonos gregos e helenizados foram assentados,
majoritariamente como clerurcos, destacando-se a ocupação helenística na região do Fayum (nomos
Arsinoíta), de onde provém a maioria dos documentos helenísticos escavados.
O Fayum6, embora seja normalmente descrito como um oásis está ligado ao Nilo por um
braço de rio conhecido como Bahr Yusuf (em árabe “o Rio de José”). Trata-se de uma grande
depressão extremamente fértil com um lago conhecido pelos gregos como Moeris; ou She-resy
(lago meridional) e Mer-wer (grande lago), em egípcio antigo. O nome “Fayum” deriva do copta
Peiom. Durante o reinado de Ptolomeu II o lago foi artificialmente reduzido, de modo a obter-se
mais terreno arável, onde uma grande quantidade de novos colonos foi assentada – sobretudo
veteranos greco-macedônios. Como decorrência da colonização helenística, a chóra se tornou um
espaço intermediário, ou seja, de mediação onde segundo Gruzinski “se desenvolvem novos modos
de pensamento cuja vitalidade reside na aptidão para transformar e criticar o que as duas heranças
(…) tem de pretensamente autêntico”.(2001:48).
nossa pesquisa na teoria de Sahlins, segundo a qual uma cultura sofre uma transformação quando
idéias, objetos e práticas externas são confrontadas e assimiladas em um “ordenamento”, e enquanto
um processo de interações, um certo “limiar crítico” é ultrapassado, a cultura é “re-ordenada”, ou
seja, “atualizada”.
No primeiro capítulo, buscamos contextualizar e caracterizar o nómos enquanto conceito
particular grego de cultura correta, e como este é absorvido e instrumentalizado como discurso
social, devido ao surgimento de uma nova dimensão do senso comum em que uma minoria
estrangeira se estabelece como dominante, e precisa justificar socialmente tal hegemonia, através do
desenvolvimento de um projeto ideológico de dominação cultural helenística. Nesse sentido
“projeto” define uma coleção de interesses que conduz a um fim comum: o fortalecimento de uma
prática imperial, e não uma “agenda” de compromissos formalizados.
No segundo capítulo, analisamos as relações de poder presentes no projeto imperial
macedônico e sua política para com setores de uma elite sacerdotal mediadora, porém heterogênea.
Os confrontos entre os interesses políticos macedônicos com a ideologia real egípcia e interesses
políticos das elites sacerdotais que justificavam uma aliança com o dominador conseqüentemente
criaram um espaço de negociação de poder entre as duas instâncias. Abordaremos um desses
espaços com a análise dos decretos sinodais, e seu papel dentro de uma estrutura de discursos
autorizados.
No terceiro capítulo, inserimos a questão das práticas cotidianas entre as comunidades
helenizadas e não helenizadas, buscando estabelecer como uma realidade prática não está
necessariamente adequada a um ideal defendido pelas elites, de modo que através da vida cotidiana,
a cultura está constantemente se reinventando. Visamos demonstrar que a prática cotidiana reflete
uma realidade nova, nem grega, nem egípcia, embora detentora de elementos comuns a ambas. Isso
porque uma “fronteira”, ou um “limite” entre culturas tende a ser flexível, fluida. Desse modo ela
pode se deslocar ou ser deslocada ao longo do processo de interação e acabar sendo incorporada ao
cotidiano de ambas as partes em contato, re-formulando elementos antigos em um padrão novo.
ϳ
ϴ
1 “HELENIZAÇÃO”, “EGIPCIANIZAÇÃO” E A “RE-CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE”
Seria correto assumir a posição de que os gregos no Egito literalmente “se tornaram
egípcios”, como acusaram pejorativamente os pensadores do mundo romano? O que está em jogo
quando se desqualifica o helenismo no Egito? Para responder a tal acusação de “fracasso do
helenismo”, se faz necessário a construção de nosso conceito de helenização de forma clara. Desse
modo, justifica-se nossa necessidade ao especificar nossa análise no caso do Egito. Não da
helenização “do” Egito, mas sim da helenização “no” Egito. A diferença em estudar a helenização
no Egito consiste na análise de um processo de encontro, contato, interação e troca cultural. A
helenização do Egito limitaria o encontro a uma visão de que não houve diálogo, mas apenas uma
imposição unilateral mediante uso de força.
É comum que a historiografia do Egito no período helenístico estabeleça como dado que a
“Helenização do Egito fracassou”. Normalmente quando se remonta a essa afirmativa, imagina-se
que houve uma campanha pública “de porta em porta” pelo território egípcio para fazer com que a
população passasse a freqüentar ginásios, aprender grego, etc., enfim, que a Helenização fora uma
maquinação minuciosamente planejada e quando posta em prática, porém, não houvesse logrado
êxito. Préaux, por exemplo, afirma que:
“O Egito foi ‘usado’ pelos gregos, mas não disse que foi ‘helenizado’, pois
embora houvesse diversas áreas de contato, pode, penso eu, ser mostrado que o Egito
que, através de seus reis e imigrantes gregos, cumpriu alguns dos objetivos da Cidade-
estado clássica e o outro Egito que permaneceu centrado em seus templos e aldeias,
existiram lado a lado, sem de qualquer maneira misturarem-se estreitamente. Há,
ϵ
portanto, dois legados distintos que foram transmitidos, o de Alexandria e o do resto do
país, comparado com o qual, o legado que resultou de uma fusão dos dois é, na
verdade, tênue.” (1993: 334).
“Se o contágio continua a ser fraco nas cidades, onde os helenos conservam o
seu quadro tradicional e onde são relativamente numerosos, colonos e clerurcos, que
vivem muito mais isolados e não podem agrupar-se (...) adotam pouco a pouco os usos
indígenas, tanto mais que estes correspondem a um clima bastante diferente do da
Grécia ou da Anatólia e que os casamentos mistos se multiplicam a partir de 250”.
(1987: 90).
Haveria, então, segundo uma perspectiva mais tradicional, “dois Egitos” distintos: o de
Alexandria, com suas leis próprias e o da chóra (o resto do país), que teria permanecido isolado e
centrado em seus templos e aldeias, submetido às leis nativas7, sem se misturarem estreitamente,
embora existissem algumas “áreas de contato”. Assim, o Egito teria sido “usado” pelos gregos, uma
vez que foi conquistado por estes (evocando a idéia de poder oriundo do krátos). Porém não foi
“helenizado”, uma vez que o termo sugere uma “conquista moral” (hegemonia de um nómos sobre
o outro), e a população nativa não foi realmente submetida. Restaria então uma cidade pseudo-
egípcia, Alexandria, que destoaria do restante do território (chóra) que permanecia irredutivelmente
“bárbaro”. Contudo, embora Alexandria realmente constitua uma realidade à parte para os estudos
do Egito Helenístico, seria um erro acreditar que de helenização se possa entender apenas um
fenômeno decorrente de uma política de submissão do Outro.
Durante muito tempo a historiografia tratou do período Helenístico como se ele constituísse
uma fase de transição entre a cultura grega Clássica e a instalação do Império Romano. Uma das
afirmações mais comuns presentes em estudos mais tradicionais sobre o Egito Helenístico ou
Romano, diz respeito ao fato de os “colonizadores” terem se apoiado em instituições políticas e
administrativas nativas; como Rostovtzeff comenta que :
7
Ver S. Allan, 1991. Esse artigo faz um estudo do sistema legal nativo durante o domínio ptolomaico. Seus
comentários e a bibliografia sugerida permitem que se analise a administração nativa por esse viés.
ϭϬ
“sua preocupação mais urgente era a competição com os outros reinos helenísticos
recém-formados da Síria e Macedônia, havendo uma grande necessidade de restaurar a
máquina administrativa e a economia egípcias, (...)” (1967:03);
Aymard e Auboyer defendem que o contato entre as duas culturas era mediado por grandes
comunidades “bárbaras”, que falavam perfeitamente tanto o grego quanto o egípcio, e indicavam
como uma “lógica natural” que, entre governantes e súditos nativos, não houvesse muito
entrosamento. Os dois grupos étnicos permaneceriam assim rigorosamente divididos entre gregos-
mercadores-invasores e os egípcios, os zelosos guardiões de tradições milenares. (1958). Segundo
essa posição, o desejo de uma política helenística de não admitir nativos (que não falavam grego)
aos privilégios da cidadania de Alexandria ou de outras cidades contribuiu para manter o elemento
helênico e/ou helenizado (falante do grego) separado da população nativa.
Remeto a esta historiografia de cunho tradicional na medida em que, pelo menos quando
temos em mente a questão das interações culturais, ainda não se buscou alternativas a noções como
as de “sincretismo” e “aculturação”, e isso mesmo quando se coloca claramente o problema do
“encontro de culturas”, o que nem sempre é o caso. Talvez seja possível atribuir o certo “descaso”
para com o estudo do período helenístico em detrimento ao Clássico (anterior) e o Romano
(posterior) à razão de existir uma realidade de confronto entre civilizações durante o período em
que se compreende a produção historiográfica aqui tomada como tradicional: o período em que as
grandes potências européias perdem seus impérios coloniais na África e Ásia, o que possivelmente
influenciou a preferência de uma sociedade imperialista em crise a buscar compreender a realidade
de um Império como o romano, por uma questão de identificação. Isso conseqüentemente serviu
para uma determinada construção de um consenso sócio-cultural a respeito dos fenômenos da
Helenização e da Romanização
Podemos citar a título de exemplo uma interessante discussão a respeito do próprio conceito
de Mundo Helenístico. Pollit observa que:
maiores autoridades no assunto diferem drasticamente em seus pontos de vista. Para
W.W. Tarn ‘… não havia quatro dinastias Helenísticas – Seleucidas, Ptolomeus,
Antigônidas, Atálidas - mas cinco, e para tanto destaca os Euthydemidas, pois tanto
pela extensão de seu governo como pelo que eles tentaram fazer, foram largamente
mais importantes que os Atálidas… O império grego de Bactria e Índia foi um Estado
Helenístico… e como um Estado Helenístico deve ser tratado.’8 Para A.K. Narain, por
outro lado, a história dos Indo-Gregos é parte da história da Índia e não dos Estados
Helenísticos; eles vieram, eles viram, mas a Índia os conquistou.’9” (1986: 289).
Podemos refutar ambas teorias, concordando com Pollit ao estabelecer que “a verdade
poderia flutuar entre esses dois extremos” (1986: 289). Realmente parece um absurdo afirmar que
os reinos indo-gregos colaboraram mais para a cultura Helenística do que os Atálidas; da mesma
forma a numismática nos prova concretamente que os reinos indo-gregos mantiveram o olhar para
suas raízes gregas, de modo que sua ascendência grega os distinguia das outras populações ditas
“bárbaras”. Isso oferece um bom quadro de visões extremadas defendidas por antagonistas
modernos (ingleses e indianos), transferindo o choque de suas civilizações para suas contrapartes
históricas refletidas: a Grega-Euthydemida e a Indiana-Maurya. Os próprios termos utilizados pelos
estudiosos citados: Narain-Indiano-Colonizado: “Indo-Gregos” e Tarn-Anglo-Saxão-Colonizador:
“Império Grego de Bactria e Índia” além de emblemáticos quanto às posições teóricas,
transparecem também o quadro bem nítido em que se defende mais uma questão referente à história
recente das duas nações, ilustrando bem o papel das ideologias contemporâneas ao historiador como
influência norteadora de sua pesquisa.
8
Cf: Tarn, Greeks in Bactria, pp. xx-xxi.
9
Cf: Narain, Indo-Greeks, p.ii.
10
Autores antigos corroboram com essa visão. Notadamente em passagens de: Polibio, V 34; Strabo, XVII
I, II; Justino, XXIX, e Tito Lívio, XXXVIII, 17, que culpa o clima. Lewis cita Tito Lívio (XXXVIII, 17):
“Macedones...in...Aegyptios degenerarunt” (1993: 281).
ϭϮ
modos ‘efeminados’ do Egito Ptolomaico, e especialmente de sua corte real, iniciou-se muito antes
de Otávio, mas foi ele quem introduziu um caráter exacerbado de pura hostilidade”. (1993:281).
Esses autores da antiguidade se alinham ideologicamente com um discurso de hegemonia
moral romana, e de seu discurso de supremacia sobre a civilização, que fatalmente se estenderia
sobre o Egito, pondo termo à dinastia Lágida e ao último reino sucessor do império de Alexandre.
Para nossa abordagem acerca das interações culturais, partimos da proposta de Sahlins,
segundo a qual, as sociedades elaboram os consensos, segundo seus critérios e métodos específicos.
Sahlins diz que “a comunicação social é um risco tão grande quanto às referências materiais. Os
efeitos desses riscos podem ser inovações radicais”.(1994:10). Daí, Sahlins considerar o político
como sendo o elemento mediador de todas as relações entre Homem e Natureza, Sociedade e
Cosmos. Podemos dizer também que a questão não reside em um problema de dominação e
resistência, mas constitui um processo que se desenvolve simultaneamente à ocorrência de
imposições oriundas de poderes socialmente dominantes. Sahlins diz que o consenso se dá então no
processo de comunicação e interação social. É através de um risco empírico dessas categorias, que
surge a possibilidade da cultura (que é inconsciente) ser tragada pela história. A ordem cultural é
vivenciada pelas pessoas. Da mesma forma, o signo é arbitrário, ele busca dar sentido a algo
específico.
O que devemos entender por uma “identidade cultural” no Egito Helenístico? No Mundo
Helenístico, a cultura dos helenos constitui um alicerce para uma identidade cultural adequada a
realidades específicas desses novos reinos helenísticos, que são resultado da conquista militar
macedônica sobre civilizações ditas “bárbaras”. Esses territórios “bárbaros” conquistados passaram
a ser governados por uma minoria estrangeira que se classificava positivamente como “grega”. Essa
identidade defendida pelas elites governantes se fundamenta inicialmente em um referencial étnico
como sinônimo de um valor cultural ideal. Assim, nas sociedades helenísticas, ser ou agir como um
heleno significa reproduzir o “valor cultural dos helenos” – o helenismo – como um conjunto de
significados característicos de um consenso cultural formulado por um nómos11 grego. Hall
complementa a discussão afirmando que:
“a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um
sistema de representação cultural (…) uma nação é uma comunidade simbólica e é isso
que explica seu ‘poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade.’” (2003: 49).
11
“Um nómos grego” não significa que não existissem variantes de uma leitura “helênica” de condutas,
reconhecidas e aceitas, circulando no Mundo Grego. Aqui o nómos grego será muitas vezes colocado em
oposição aos valores tradicionais egípcios, que nesse caso específico terão o valor simbólico de um “nómos
egípcio”. Para uma leitura mais aprofundada a respeito de “nomói bárbaros”, ver Hartog (1999).
ϭϯ
Para Geertz, a significação é cultural e remonta ao senso comum, uma vez que para qualquer
indivíduo “tais símbolos são dados, na sua maioria. Ele os encontra já em uso em sua comunidade
quando nasce e eles permanecem em circulação após sua morte, com alguns acréscimos, subtrações
e alterações parciais dos quais ele pode ou não participar”.(1989: 57). A cultura é um fenômeno tão
específico quanto dinâmico, sendo concebida como processos de comunicação e mecanismos de
controle, por um lado, e dependendo das formas de interpretação e apropriação, por outro lado. O
senso comum constrói uma identificação a partir do reconhecimento de uma origem em comum, ou
de características partilhadas com outros grupos de pessoas, ou ainda a partir do reconhecimento da
presença de um mesmo ideal. Assim, forma-se uma rede de solidariedade para com um grupo, no
caso o Grego.
A helenização constitui, portanto, um discurso ideológico que joga com modos de perceber
as identidades e alteridades. Esse discurso se torna presente devido à necessidade originada pela
formação de uma nova dimensão de relações no cotidiano: uma minoria étnica caracterizada por
uma visão de pertença à única forma de civilização possível precisando justificar e legitimar sua
presença em território estrangeiro conquistado assume uma posição hegemônica na sociedade.
Buscamos, enfim, estudar o resultado das inúmeras negociações decorrentes desse processo de troca
cultural. Como Burke observa,
“os historiadores da Antiguidade, (...) estão se interessando cada vez mais pelo
processo de ‘helenização’, que estão começando a ver menos como uma simples
imposição da cultura grega sobre o império romano e mais em termos de interação entre
o centro e a periferia”.(2003:20).
O Autor cita entre outros exemplos, a contribuição de Momigliano, que assume uma
abordagem crítica fundamental na análise das interações culturais no mundo antigo, embora
deixasse de lado, voluntariamente o caso do Egito. Para justificar tal postura, Momigliano observa
que o Egito sempre esteve presente no imaginário grego, desde os tempos de Homero, como um
lugar de costumes intrigantes e detentor de um conhecimento muito antigo e por vezes mágico, e
afirma que “durante o período helenístico, não houve, portanto, alteração notável na avaliação grega
do Egito, embora fosse nova a ascensão de Hermes Trismegisto como deus do
conhecimento”.(1975: 11). Mas nosso desacordo com Momigliano advém a partir de sua colocação
de que:
“A cultura nativa declinou durante o período helenístico porque estava sob
controle direto dos gregos e passou a representar um estrato inferior da população. O
ϭϰ
caráter ‘hermético da língua e da escrita’, como Claire Préaux denominou (Chron.
D’Égypte 35, p. 151, 1943), tornou o sacerdote que falava egípcio — para não falar do
camponês — singularmente incapaz de se comunicar com os gregos. A criação da
literatura copta nas novas condições da cristandade indica a vitalidade dessa cultura
oculta. Mas os gregos helenísticos preferiam as imagens fantasiosas de um Egito
eterno ao pensamento egípcio de sua época”. (1975: 11).
Não parece correto concordar com a afirmativa de que “a cultura nativa declinou”, devido
ao fato do Egito estar sob dominação estrangeira. Toda sociedade exerce uma influência sobre o
outro, tanto no tempo quanto no espaço. As trocas culturais e as influências de tradições de fora dos
limites de uma determinada sociedade ou dos limites do presente da mesma parecem emergir da
interpretação de Momigliano como possíveis ameaças à “integridade” de uma “cultura dominada”.
Sendo assim uma cultura só poderia subsistir se ela pudesse impedir o questionamento de suas
próprias estruturas tradicionais ao longo das gerações. De qualquer modo, interessa-nos realmente
compreender a “vitalidade desta cultura oculta”.
Como pode a cultura de uma sociedade “declinar”? Se for um fato que a cultura é
inconsciente, enquanto ação simbólica, Geertz observa que os sistemas simbólicos devem ser
orientados pelos atos, já que eles dão o sentido por trás do ato. Busquemos então compreender o
que é interpretação antropológica, ou ainda, o que é a compreensão exata do que ela se propõe – ou
não se propõe – dizer. Nesse espírito, nossas formulações dos sistemas simbólicos de outros povos
devem ser orientadas pelos seus atos. Concordamos com a visão de Veyne, que estabelece que “um
grupo social ou político é capaz de mudar de valores, de modo de vida, de tornar-se o oposto de si
mesmo desde que, ao fazer isso, não se coloque em nível mais baixo na pirâmide”. (1982: 111).
Assim, por exemplo, as elites egípcias se permitiam uma helenização necessária o bastante
para desenvolverem com o poder helenístico as negociações políticas vitais para a permanência de
sua categoria enquanto elite mediadora. Portanto, para iniciarmos nossa análise a respeito da
helenização no Egito, cabe aqui levantar a seguinte questão: o que significa ser grego no Egito
Helenístico? Ou da mesma forma: o que significa ser egípcio no Egito Helenístico? Eis a questão…
Embora o presente trabalho não possua nem condições nem pretensões de solucionar tal
questão, é nossa proposta segui-la como norte e lançar novos elementos à discussão de um tema tão
polêmico quanto atual, que é o da identidade cultural e das relações sociais no contexto das trocas
culturais. A compreensão de relações interculturais é natural em um período como o nosso,
marcado por encontros culturais cada vez mais freqüentes e intensos.
ϭϱ
1.1 Cultura-Identidades-Nómos12
Mas o que podemos entender pelo conceito de Helenização? Iniciando pela resposta mais
simples, podemos classificar como helenização toda prática que busque dar um caráter “grego” a
algo, ou seja, é um processo em que se busca caracterizar como grego algo que originalmente não é
“grego” (sendo conseqüentemente, “bárbaro”). Nos aprofundando na resposta, podemos adicionar
que a helenização de que tratamos aqui é uma iniciativa derivada do imperialismo helenístico.
Sendo assim, aproximar algo inicialmente não-grego (logo, “bárbaro”) de algo positivamente
reconhecível como grego, traduz em sua raiz uma prática etnocêntrica, reproduzindo os termos da
polarização das culturas entre “gregos” e “bárbaros”, cuja formulação remonta pelo menos ao
século V a.C., e é constituinte da forma como os “gregos” compreendem-se como nómos.
Fazia parte da identidade cultural grega se perceber como detentora de um grau superior de
civilização: aquele da organização das cidades, póleis. Viver em cidades, constituir uma politeía,
era a condição da liberdade e, assim, ser “bárbaro” era estar sob o jugo de outrem, como um rei, por
12
Há uma discussão mais profunda e mais completa sobre esse tema em: Pereira, R. G. G. “Greek Nomos
and Egyptian Religion: Cultural Identity in Hellenistic Egypt” in Res Antiquitatis – Journal of Ancient
History, 2, Lisbon, 2011, pp. 103-131.
13
Cf: Politica: 1256b 26; 1324b 37 ff.; 1334a 1 cf. N. 42.
14
Idem: 1252b 5ff., cf. 1285a 18 ff., 1327b 23 ff., E complementa: “porém ele reconhece que alguns
bárbaros são beligerantes, 1324b 5-23”.(1997:298).
ϭϲ
exemplo15. No período helenístico essa concepção acabou imiscuindo-se na formação de hierarquias
sociais, introduzindo assim um elemento de graduação de posições sociais. O helenismo impôs-se
como um padrão. Como entender “civilização” era literalmente entender a “Civilização Helênica”,
logo, um povo era mais ou menos civilizado se o juízo de valor grego assim o considerasse mais ou
menos próximo de sua própria noção (grega) de cultura, de religiosidade, de política. Contudo é
imprescindível frisar que essa mesma noção de cultura utilizada pelo juízo grego era uma
construção de sua própria cultura e sociedade helênica. Essa percepção hierarquizante da diferença
irá justificar a superioridade cultural “grega”, e conseqüentemente legitimar um discurso social de
dominação do “bárbaro”.
A legalidade por trás do nómos decorre de uma construção baseada em relações sociais,
costumes comuns que promovem o entendimento de um consenso ou convenções. Desse modo, o
nómos promove, através de seu consenso, um processo de identificação social e cultural entre os
grupos que reconhecem sua validade e se submetem a seu arbítrio simbólico. Então o nómos
promove conseqüentemente um instrumento delimitador da diferença, através de um juízo de valor
permeado no senso comum de um grupo caracterizado pela adoção de uma “verdade” contida pelo
nómos. Desse modo, os discursos de validação, justificação e legitimação tornam o nómos o único
15
Podemos citar “A Política”, de Aristóteles, quanto a justificativa natural para com a escravização do
“bárbaro” devido a uma inferioridade imutável: “Por isso, aquele que pode antever, pela inteligência, as
coisas, é senhor e mestre por natureza; e aquele que com a força do corpo é capaz de executá-las é por
natureza escravo. Portanto entre senhor e escravo existem forças em comum. (…) Mas entre os bárbaros
nenhuma distinção é feita entre mulheres e escravos; isso porque não existe entre eles aquela parte da
comunidade destinada por natureza , a governar e a comandar; são uma sociedade composta unicamente de
escravos, tanto os homens quanto as mulheres. Por isso o poeta diz: ‘É sabido que os helenos podem dominar
os bárbaros!’, significando isso que bárbaros e escravos são da mesma natureza. Fora essas duas afinidades,
o primeiro ponto a considerar é a família. Hesíodo tem razão ao dizer: ‘ Primeiro o lar, a esposa e um boi
para o arado’, uma vez que o boi é o escravo dos pobres.” (I, 2 4-6).
ϭϳ
mediador verdadeiro/positivo aceitável pelo senso comum, para promover a continuidade e zelo das
tradições culturais do grupo.
A noção de nómos se traduz de diversas formas: desde cultura, costume, leis, tradições,
artifícios humanos (pólis), até distribuição de dom, repartição e diferença (Beneviste, 1966).
Interessa-nos aqui uma noção mais restrita, que se liga à forma como Heródoto, ao investigar os
“costumes dos bárbaros”, contribuiu para a formação de um discurso em que não apenas polarizam-
se os povos entre “gregos” e “bárbaros”, mas particularmente comparam-se um nómos grego e um
“nómos egípcio” (Hartog, 1999), e distribui-se nessa comparação parâmetros de diferenciação. Por
isso, é possível compreender o nómos como algo compatível com a definição de Bourdieu de
cultura enquanto “jurisdição de habitus” (1980). Entenda-se “jurisdição” no contexto de esferas
idealmente distintas, ou ideologicamente propostas de universos simbólicos e habitus a mediação
entre as estruturas e a prática. A helenização é um tema que necessariamente nos remete à discussão
do que diferencia o “grego” do “bárbaro”. De fato era uma constante do pensamento grego - ao
menos desde o período Clássico – o debate acerca dessa diferença. Tudo aquilo que não fosse
considerado grego era conseqüentemente “bárbaro”. E se os costumes e leis que definiam o “nómos
grego” era por definição superior aos “nomói bárbaros” era compreensível a necessidade em se
estabelecer um consenso a respeito dessa diferença, bem como suas conseqüências. Segundo
Cassim,
definir-se como grego em relação ao nascimento, antepassados ou laços sanguíneos, ao passo que
aqueles que se definem gregos devido ao respeito às leis discordariam. Cassim cita o Orestes de
Eurípedes para demonstrar essa discussão; em que Tíndaro dirige-se a Menelau e diz: “Eis-te
tornado bárbaro (bebarbarôsai) por ter permanecido muito tempo entre os bárbaros!” (v.485,
1993:110). Ao passo que este responde: “É grego respeitar sempre quem tem a mesma
origem”.(v.486, 1993:110). E por fim Tíndaro responde “E quanto às leis, de qualquer modo, não
querer ficar acima delas”. (v.487, 1993:110). Cassim comenta que:
Heródoto não considera ofensivo ou negativo o reconhecimento de uma origem externa para
certos costumes dos helenos. De fato, seu discurso parece justificar esse fato definindo que “todos
os helenos cultivavam incansavelmente todos os ramos do conhecimento humano” (Heródoto, IV,
77). Notamos também que a influência cultural externa a Hélade também permeou os objetos de uso
cotidiano:
ϭϵ
“Na minha opinião, o escudo redondo e o capacete vieram do Egito para os helenos”.
(Heródoto, IV, 180).
E também:
“Os trajes e a égide das imagens de Atena foram copiados pelos helenos dos líbios, (...).
Foi ainda dos líbios que os helenos aprenderam a atrelar quatro cavalos juntos”.
(Heródoto, IV, 189).
Embora Heródoto demonstre que o período Clássico admitisse uma influência estrangeira
para inúmeras características culturais helênicas, desde os ritos órficos e báquicos até versões
complementares dos mesmos mitos, no entanto não existe um questionamento a respeito de um
indício de barbarismos dos helenos. Isso pode ser devido ao fato de que tais conhecimentos originais
passaram todos por uma adaptação às necessidades helênicas, mas também pode remontar ao fato de
que o “helenismo” e o “barbarismo” não estavam sendo instrumentalizados em um discurso político
de hegemonia cultural como de fato veio a ocorrer durante o período Helenístico.
O discurso visa estabelecer uma proposta para o consenso. Este é alcançado socialmente pela
aceitação do senso comum e reproduzido através das relações sociais, então passa a ser utilizado
como artefato político pelo discurso ideológico-social, consolidando uma noção cultural de justiça,
mediante o respeito ao nómos. Cassim cita Antífonte em que este observa que “cada grupo
conformemente ao que lhe convém chegou a um acordo e eles estabeleceram as leis (…) A justiça é
então não transgredir as prescrições da cidade da qual encontramo-nos cidadãos”.(1993: 102). Um
dos elementos distintivos entre gregos e bárbaros é a capacidade do heleno para viver em póleis. O
espaço delimitado pelas cidades gregas é definido diretamente pelo que Cassim denomina “nômico”
(nomimom, nomima (…), nomous (…), nomôm). (1993:117). A autora prossegue afirmando que
“esse nômico é resultado de uma imposição suplementar (epitheta, (…)) de um acordo
(homologêthenta, homologêsantas)”. (1993: 117). Desse modo, o cidadão grego se define por sua
preocupação em não transgredir (mê parabainen) as leis, para não se colocar fora da esfera política
(da cidade), e conseqüentemente arcar com algum castigo ou a vergonha.
Como vimos, as prescrições (ta nomina) de uma cidade são o resultado de um acordo. As
prescrições da cidade determinam aquilo que deve ser positivamente ou negativamente medido em
um juízo de valor. Contudo nem sempre algo útil ou agradável estaria localizado no “espaço”
positivo desse critério, e vice-versa. Segundo Cassim,
“É então que a lógica do uso fornece o cálculo do útil, uma regra de conduta em
caso de conflito: trata-se sempre de preferir o menor mal. (…) Em público de fato eu
cidadanizo; se transgrido, castigam-me: o menor mal (entre por exemplo, arriscar-se a
ϮϬ
morrer pela pátria ou morrer como desertor) é obedecer à lei. Mas é possível que eu aja
‘sem testemunhas’: na idiotia do privado tenho escolha”. (1993:118)
Ser um cidadão seria, portanto agir publicamente de acordo com as expectativas do seu
nómos, enquanto sinônimo do consenso de um grupo (grego) para a noção positiva de
“normalidade”. O privado recairia conseqüentemente em um papel secundário, devido à ausência de
testemunhas, ou possibilidade de controle social, o que traduz uma questão do “público” como a
jurisdição natural do nómos.
Isso dá-se uma vez que este busca uma harmonia no convívio social, torna-se por excelência
uma característica da esfera pública, logo, política. Essa idéia se mantém ao longo do período
Helenístico. Conforme se admite16 no período helenístico que o conceito de “bárbaro” denota antes
uma inferioridade cultural, e não uma “natural”, torna-se possível “ensinar” o helenismo ao não-
heleno. Cassim estabelece a relação entre a natureza e a lei (nómos), através de duas visões
possíveis para uma definição de identidade positivamente helênica/civilizada ou helenística: uma a
partir do heleno (cidadanizar), e outra a partir do “bárbaro” (barbarizar)17.
Desse modo, admite-se que o “bárbaro” possui a condição de ascender à civilização grega.
Isso torna possível que a dominação política greco-macedônica assuma um discurso civilizador, não
só legitimando sua superioridade como também justificando sua presença em território estrangeiro
através de um discurso ideológico helenizador. Para tanto se fazia necessário a aplicação de um
projeto de dominação cultural, e a imposição do idioma grego seria uma das mais básicas e
aparentemente eficientes formas de fazê-lo. Garantir o uso do idioma grego era necessário para
sustentar a hegemonia social das elites helenísticas. Além desse elemento político, cabe acrescentar
que o ideal Grego era realmente creditado como valor cultural (nómos) superior18. Portanto as elites
helenísticas não admitiriam voluntariamente ou conscientemente a “perda de substância” de sua
cultura. Assim, o ato de barbarizar, ou seja, deixar de ser grego/civilizado consiste não exatamente
16
A discussão sobre diferença natural ou cultural nunca foi completamente encerrada.
17
“Se partimos de “cidadanizar”, a natureza é aquilo que escapa ao político no próprio político. Mas ela
constitui o próprio modelo da lei: ninguém a transgride sem ser punido. Se partimos de “barbarizar”, a
natureza é desqualificada como fundamento das diferenças, “bárbaro” é aquele que acredita em uma
diferença natural entre grego e “bárbaro”, grego é aquele que se relaciona com a lei não como idiossincrasia,
mas como universal. Mas é ainda, lendo-se bem o papiro, a natureza que constitui o modelo dessa
universalidade.” (1993:122).
18
Vale citar Momigliano, que afirma: “para todo falante de grego, a única língua da civilização permanecia
sendo o grego. Mesmo no século I a.C., o autor de Periplus Mare Erythraei não consegue achar um feito
maior para um rei da Etiópia – a fim de contrabalançar sua avidez por dinheiro – do que seu conhecimento
de grego. Fílon, o Judeu, louvou Augusto por expandir o território do helenismo (Leg. Ad Gaium 147)”.
(1990:14).
Ϯϭ
na apropriação ou não de costumes não-gregos, mas muito mais quanto à forma como é feita essa
adaptação. Para manter a legitimidade de uma noção de si grega, era necessário que as relações do
cotidiano permitissem a esses indivíduos se reconhecerem “gregos o bastante”. Se um costume
egípcio é assimilado pelas populações helenizadas, esse costume precisa ser “traduzido” para o
universo simbólico grego.
O potencial da dominação helenística residia em uma noção de nómos como lei e artifício
cultural. Este modo de ver está mais próximo da abordagem de Clastres (1978) 19, segundo a qual, as
sociedades indígenas são positivamente etnocêntricas, de modo que não visam a intervenção na
natureza do outro, este é apenas ignorado quanto sua importância. O “etnocentrismo” dos gregos
baseava-se numa visão positiva quanto ao artifício do seu nómos. Isto quer dizer que, para os gregos
que pensaram no assunto, “ser grego” representa o clímax das civilizações, enquanto simplesmente
não é preciso se ocupar com as outras. Então, não há um projeto de dominação cultural; há uma
projeção hegemônica do nómos grego que não quer “aculturar” o “bárbaro” e sim reproduzir a
dicotomia. Assim, embora a helenização do “bárbaro” colabore com a dominação helenística em sua
tentativa de homogeneizar o habitus dos dois “universos” (grego e egípcio), podemos considerá-la
de duas formas, de acordo com as questões que nos colocamos: do ponto de vista do Projeto
Imperial, a projeção de dois nomói distintos serve às relações de poder; na perspectiva das
interações cotidianas, a presença de dois nomói entra no jogo das negociações práticas como moeda
de conta, num modo de proceder e num processo que ainda precisam ser historicamente pensados.
À medida que os colonos helenísticos se fixam no território egípcio e suas gerações se
sucedem, torna-se cada vez mais difícil para o Poder helenístico manter uma noção ideal de
distinções entre os grupos. Da Silva diz que “a identidade que se forma por meio do hibridismo não
é mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas”.(2000: 87).
Contudo, as identidades podem também funcionar ao longo da história, como pontos de apoio
referencial, de identificação e apego devido a sua característica capacidade de excluir o diferente e
torna-lo exterior, marginal, negativo ou mesmo abjeto, como o discurso etnocêntrico da helenização
estabelece em relação aos “barbarismos”. Os helenos por sua vez não concebiam deixarem de ser
gregos através da adoção de certos costumes egípcios. Notamos que as práticas funerárias-
19
“Limitar-nos-emos a recusar a evidência etnocêntrica de que o limite do poder é a coerção, além ou aquém
da qual nada mais haveria; que o poder existe de fato (não só na América, mas em muitas outras culturas
primitivas) totalmente separado da violência e exterior a toda a hierarquia; que, em conseqüência, todas as
sociedades, arcaicas ou não, são políticas, mesmo se o político se diz em múltiplos sentidos, mesmo se esse
sentido não é imediatamente decifrável e se devemos desvendar o enigma de um poder “impotente”.” (1978:
17).
ϮϮ
religiosas-mágicas egípcias são as que maior aceitação alcançou entre as populações helenizadas no
Egito. Pode-se especular se as recompensas oferecidas pelo pós-vida dos egípcios eram
possivelmente consideradas mais atraentes, e no entanto, isso não fazia com que os gregos que se
permitiam mumificar após a morte não encontrassem uma forma grega de fazê-lo. Tal assimilação
bem sucedida de práticas funerárias egípcias pelos habitantes gregos e/ou helenizados atesta-se
pelas inovações estéticas das múmias greco-romanas com retratos pintados sobre os rostos dos
sarcófagos, uma técnica artística romana denominada encáustica; ou o uso de modelos egípcios para
estelas funerárias com inscrições em grego dedicadas a divindades egípcias.
Esses casos não definem uma população que “barbariza” devido à convivência com os
bárbaros, adotando o costume de bárbaros. Uma vez que o nomos helenístico desenvolvido no
Egipto adotou tais práticas, não se pode dizer que ocorreu o abandono do nómos dos helenos. Isso
porque não se abandonou nem a identidade positiva helênica nem o próprio conceito de que o modo
de vida grego representava o sinônimo de civilização perfeita. Manter-se fiel a um nómos, ainda que
adaptado a uma realidade social específica do Egito Helenístico, significava manter-se fiel ao
acordo que unia os gregos como um grupo. Tentemos então contextualizar a civilização
desenvolvida no Egito durante a dominação helenística.
Uma vez que o Império propõe a assimilação das diferenças, visando a pacificação, o
alargamento e a legitimação da sua soberania/autoridade, o governo macedônio precisou lançar mão
de uma política estratégica de negociação com o poder local. Não existe poder absoluto, sem
negociações. E em meio a tais negociações, ambas as instâncias de poder acabam cedendo e fazendo
concessões para o estabelecimento de um espaço de negociações, e a manutenção destas.
Conseqüentemente, o discurso dentro de um projeto político cria uma idéia de esferas de
influências, como se fossem blocos, onde atuam o governo helenístico sobre as populações
helenizadas e um poder nativo mediador para legitimar a autoridade estrangeira perante as
populações não helenizadas. Mas então como manter coesa a identidade grega, e sua visão de
superioridade, sem uma dominação total e absoluta do nativo? Ou seja, como evitar que caia no
vazio o discurso de reprodução da dicotomia entre os nomói?
A identidade grega das elites helenísticas do Egito Lágida se enquadra no que Hall definiu
por “identidade mestra” (2003: 20). Pode existir um projeto ideológico de identidade mestra
independente de uma “vontade de dominar a natureza do outro”. Nesse caso, a identidade mestra
busca um ideal de universalismo da cultura grega, onde todos seriam, se não unanimemente
helenizados, pelo menos positivamente helenizados. O nómos é parte integrante e indissociável da
Ϯϯ
identidade mestra, uma vez que são suas leis positivas e sua constituição etnocêntrica que fazem
com que seja compulsivamente valorizado e cultivado. As identidades existentes em uma sociedade
podem ser contraditórias, considerando a relação entre os interesses de grupos políticos
estabelecidos e uma “percepção prática” individual. Segundo Hall, nenhuma identidade singular
poderia alinhar todas as diferentes identidades como uma ‘identidade mestra’ única e abrangente, na
qual se pudesse, de forma segura, basear uma política.”(2003:20). Sendo assim, a identidade grega
poderia ser defendida como “mestra”, em um discurso etnocentrado de identidade, baseado em uma
premissa de superioridade cultural como instrumento político de manutenção de um discurso
legitimador de uma política de dominação cultural estabelecido por uma minoria étnica dominante.
Como o discurso de identidade helenístico obedece interesses políticos, este não subsiste na esfera
da prática cotidiana, uma vez que ao longo das interações sociais entre nativos e estrangeiros foram
sendo gradativamente incorporados elementos culturais característicos do “outro”. Este processo
decorre o que Hall (2003) denominou “erosão da identidade” e da emergência de novas identidades.
Burke observa que a “adaptação cultural pode ser analisada como um movimento duplo de dês-
contextualização e re-contextualização, retirando um item de seu local original e modificando-o de
forma que se encaixe em seu novo ambiente”. (2003: 91).
Podemos tentar definir o “encontro” cultural entre “helenos20” e egípcios, como um encontro
de detentores de duas esferas culturais distintas, ou seja, duas formas socialmente convencionadas,
20
As aspas são necessárias uma vez que nem todos os estrangeiros participantes da condição de dominantes
no Egito eram de “raça” (ethnós) helênica. A própria nobreza era macedônica, e inúmeros persas, judeus,
trácios, etc, também participaram do fluxo migratório para o Egito Helenístico. Contudo ainda assim são
considerados helênicos desde que estejam reconhecidamente “helenizados”.
Ϯϰ
e, portanto diferentes de um grupo compreender o mundo, interagir, expressar, escolher, enfim,
duas jurisdições de habitus que têm sua demarcação de atuação bem como a idéia de normalidade
que lhes for características, perturbadas. Esse “campo” de delimitação de um habitus trataremos por
nómos. Portanto, a noção de nómos significa, em nosso estudo, uma forma histórica de perceber a
cultura como um bloco separado de uma outra cultura. Não significa, porém, o uso de um conceito
ou modelo de cultura, posto que, se este fosse o caso, estaríamos optando pela definição de Geertz:
“a cultura, (…) não são cultos e costumes, mas estruturas de significado através
das quais os homens dão forma à sua experiência, e a política não são golpes e
constituições, mas uma das principais arenas na qual tais estruturas se desenrolam
publicamente”. (1989: 207).
O nómos, enquanto um conceito particular grego de cultura, é responsável por uma visão de
si e do outro etnocêntrica e, portanto hierarquizante. Essa visão de mundo peculiar grega, uma vez
instrumentalizada por uma autoridade de identidade grega, passa a integrar um discurso de
legitimidade do exercício do poder sobre o dominado — “bárbaro” (enquanto não-grego). Para
entender como os contatos entre as civilizações helênica e egípcia geraram atualizações em graus
diversos em ambas sociedades, é necessário considerar que de fato não são as “culturas”
literalmente se encontrando, mas sim pessoas. Os contatos entre esses agentes dominadores gregos
e os dominados bárbaros geraram inúmeras apropriações (e conseqüentemente adaptações) das
noções originais das tradições culturais uns dos outros, diminuindo a distância responsável por um
estranhamento do outro e, por conseguinte, da idéia essencial da Diferença. A essas sociedades em
que se ambientaram os contatos e as trocas culturais, classificamos como “Sociedades
Helenísticas”, integrando o chamado “Mundo Helenístico”.
Enfim, o Egito Helenístico é um local onde os indivíduos se posicionam e atualizam
elementos de suas relações sociais, formulando, ou re-formulando uma identidade/ideologia cultural
que em função da realidade em que se encontram. Para nós, historiadores contemporâneos
desenvolvermos uma questão como a de “construção da identidade” no Egito Helenístico, podemos
nos valer de dados obtidos através de fontes oficiais, responsáveis pelo governo e pelas relações de
poder, e que estão ideologicamente comprometidas com um projeto de dominação imperial. Assim,
o Egito Helenístico procura ser “construído” como um reino de gregos por ser um reino
“civilizado”; por ser governado por greco-macedônios; por não ser bárbaro, enfim, limitando nossa
análise a “como as elites dominantes gostariam de ser vistas”. Portanto não podemos entender a
sociedade egípcia helenística de modo unitário. Ela é tanto egípcia quanto grega, uma vez que ela é
formada por elementos essenciais comuns aos dois referenciais, enquanto a visão de si não é
Ϯϱ
comprometida, por um lado; contudo a apropriação de gregos e egípcios de elementos inseridos no
cotidiano mútuo possibilitou um uso grego da cultura egípcia, ou um uso egípcio da cultura grega.
Se buscarmos interpretar o Egito helenístico apenas pela leitura da linguagem oficial do discurso,
obtemos um resultado necessariamente parcial e incompleto.
Os relatos Homéricos também nos atestam que os portos egípcios faziam parte do
conhecimento dos gregos. Bresciani comenta como “na Odisséia, das tentativas de desembarque de
Ulisses, um pirata idêntico aos “Povos do Mar”, mas no século VIII.” (1994: 212). Na “Escrita
Linear B”, surge com freqüência o nome Aigyptiu, de onde deriva o termo Àigyptos, o nome grego
do Egito. A fundação de Naucratis22 no delta do Nilo, importante centro de ligação do comércio
grego já bem organizado no século VII, constitui-se como mais um fator de aproximação.
Podemos mencionar também os mercenários jônios e cários citados por Heródoto (II, 152-
153), aliciados pelo faraó Psamético com promessas de altos salários a terras para se fixar
(stratòpeda). Prosseguindo com Bresciani,
“Para o mundo grego, o Egito Saíta23 era o país onde um mercenário podia
enriquecer: em Priene, descobriu-se recentemente uma estátua egípcia com um texto
grego, dedicado por um soldado jônio da época de Psamético I, e que é um documento
extraordinário do precoce bilingüismo cultural greco-egípcio e dos contatos entre o
21
Há uma exposição maior sobre esse mesmo tema em Pereira, R. G. G. The Hermetic Logos: The Hermetic
Literature from the Hellenistic Age to Late Antiquity, Saarbrücken, 2011.
22
Onde os faraós reuniam os representantes de algumas póleis gregas, sobretudo da Ásia Menor, que
conduziam o comércio com o Egito.
23
Segundo a convenção adotada pelo autor, o Período Saíta está como XXV dinastia. (664-525 a.C.). Em
outras listas, consta o mesmo período como XXVI dinastia, com o que concordamos. Podemos acrescentar
que durante a dinastia Saíta, reunificou-se politicamente o território egípcio e iniciou-se um período de
restauração de costumes e templos abandonados, além de iniciar uma fase de forte cooperação com os
gregos, mandando oferendas para a Hélade, concedendo Náucrartis aos helenos, etc.
Ϯϲ
Egito e o meio helênico da Ásia Menor, tão cheios de conseqüências para a Grécia
Arcaica. O Egito da 26ª dinastia24 conservava ainda um prestígio cultural que tornava a
sua visita obrigatória para intelectuais e filósofos gregos.” (1994: 212).
“Após sua instalação no Egito nós, helenos, através de nossa convivência com eles
adquirimos um conhecimento acurado de todos os eventos relativos à história do Egito, a
partir do reinado de Psaméticos (eles foram os primeiros homens de língua estrangeira a
instalar-se no Egito)”. (Heródoto II, 154). Podemos acrescentar que o período atualmente
conhecido como “Renascimento Saíta” é também caracterizado por uma forte
aproximação artística e estética à helênica. Os mercenários jônios e cários
permaneceram no Egito, em Mênfis, mesmo nos tempos posteriores. De tal modo,
Alexandre encontrou na região seus descendentes, os “Helenomenfitas” e os
“Cariomenfitas”. (Heródoto II, 178).
A relação entre helenos e egípcios é descrita muito detalhadamente por Heródoto, que
descreve o governo da dinastia Saíta como uma fase de grande aproximação e influência do Egito
para com a Hélade como podemos comprovar pelas seguintes passagens:
“Âmasis deu também aos egípcios uma lei segundo a qual todos eles eram
obrigados a declarar anualmente ao governador de sua província os recursos com os
quais asseguravam sua subsistência. (…) Sólon, o ateniense, trouxe essa lei do Egito
para ser observada pelos atenienses; eles a seguem sempre, pois se trata de uma lei
perfeita”. (Heródoto II, 177);
Heródoto ainda descreve uma série de oferendas que o faraó Âmasis consagrou a Hélade (II,
182), demonstrando um forte laço de solidariedade e familiaridade entre o Egito Saíta e os helenos.
Todavia, o Egito por onde andou Heródoto já era de fato uma satrapia do império Persa25. Durante a
24
Segue-se a mesma justificativa. Aqui se trata do Egito submetido ao primeiro domínio persa (521 a 404
a.C.).
25
Vale a pena comentar que mesmo nesse momento em que o Egito é conquistado pelo império persa, o
exército do derrotado faraó Psamético III é composto por uma grande porcentagem de mercenários gregos.
Ϯϳ
presença persa o Egito se tornou pluriétnico e plurilíngüe: desde a corte administrativa persa
residente em Mênfis, a multidão de escribas, juízes chefes de províncias (fratarak), até as
guarnições militares, mercenários, comerciantes. A língua oficial passara a ser o aramaico, língua
do império aquemênida, chamado em egípcio de “escrita síria”. As zonas das guarnições de
fronteira, desde Migdo a Marea e a Elefantina, no sul, albergavam gentes de várias nacionalidades,
de vários cultos e religiões, e os templos e capelas para as divindades estrangeiras surgiam um
pouco por todo o Egito.
Durante o primeiro Período Persa, uma grande rebelião ocorrera liderada por dois príncipes
egípcios (Inarus da Líbia e Armitaios de Sais). Os atenienses e seus aliados (a Liga de Delos)
enviaram uma grande força expedicionária entre os anos de 460 e 454 a.C., e cujo fracasso da
campanha resultaria no início do chamado “Império Ateniense”. Apesar do fracasso do esforço
helênico, a luta contra os persas prosseguiu até 404 a.C., quando a restauração do Egito foi
garantida por duas dinastias (XXIII e XXIX), até uma nova invasão persa em 380 a.C. Durante esse
período, o Egito se tornaria um aliado e referencial para todo inimigo dos persas.
Em muitos aspectos a obra de Heródoto nos serve de grande valia para compreender o
respeito que o Egito despertava no imaginário grego do período Clássico. A ênfase na descrição do
Egito, dos costumes, da geografia e história, indica uma obra com grande afinidade grega para com
os egípcios. Existe inclusive uma busca por parentesco entre as culturas, datado de um passado
remoto, mas que se notavam ainda através das coincidências religiosas e científicas. Ao cabo, a
imagem que Heródoto produz configura-se como um estereótipo, que classifica o egípcio como
mais um povo “bárbaro” na geopolítica de um mundo não-grego. (Hartog, 1999).
Dessa maneira, vemos como o Egito está presente tanto no imaginário como no cotidiano
dos gregos desde os tempos mais remotos: Fraser comenta que “o Egito de Elefantina ao Delta era
Ϯϴ
familiar aos gregos das mais variadas origens, sobretudo os da profissão das armas no quinto e
quarto séculos a.C. Eles deixaram seus nomes e origens inscritas em templos desde o período
arcaico em diante, do Médio Egito à Núbia e além pelo Deserto Oriental”.(1996: 180). O que a
conquista macedônica introduziu no Egito foi um governo legitimado pela premissa do “direito de
conquista”, e em certa medida pela promessa de libertação dos persas. Estabelecia-se então no
Egito, mais uma presença cultural estrangeira sob a forma de dominador.
de determinados valores sócio-culturais, costumes considerados como sendo “os costumes
corretos”, enfim, baseados na premissa de superioridade cultural.
ϯϬ
2 RELAÇÕES DE PODER ENTRE OS TEMPLOS EGÍPCIOS E O DOMINADOR
HELENÍSTICO
O objetivo do presente capítulo é abordar as negociações entre a monarquia helenística e os
sacerdotes egípcios. A classe sacerdotal egípcia permeava com sua presença e influência todos os
setores da administração da terra, finanças e militares. Diante dessa realidade política específica,
Alexandre buscou “emoldurar” e não destruir os sacerdócios egípcios. Essa estratégia de
“emoldurar” uma instância de poder nativo pretende o estabelecimento de um poder mediador,
legitimador e consolidador da autoridade imperial estrangeira-helenística no território nativo-
egípcio. Como conseqüência dessa aproximação política entre as duas instâncias de poder, uma
nova rede de negociações políticas se desenvolve na sociedade egípcia helenística. Essa nova “rede”
precisa construir um novo campus de atuação (Bourdieu, 1980), para então desenvolver suas
negociações.
Nesse espírito, optamos por investir num estudo a respeito das relações de poder entre o
basileus-faraó (o Poder imperial estrangeiro instalado) e os templos nativos (o poder administrativo
e social nativo) através de fontes oficiais, principalmente, decretos sacerdotais para compreender
esse processo de construção de um campo novo de atuação e deliberação política, analisando as
relações políticas entre as duas instâncias de poder. Tais decretos são particularmente úteis em
identificar aspectos da política religiosa dos Lágidas, bem como suas negociações com os templos.
2. 1 Formas de Cooperação
Para uma boa compreensão da situação social e da política interna helenística no Egito
ptolomaico torna-se indispensável ter consciência de uma espécie de repartição tradicionalmente
aceita entre duas estruturas feita naquela sociedade: de um lado a família real greco-macedônia,
com a administração econômica; do outro lado a população egípcia nativa com sua elite sacerdotal à
frente. Tal representação omite elementos influentes, como os casamentos mistos entre gregos e
ϯϭ
egípcios, ou mesmo a realidade de uma convivência diária entre as populações. Contudo torna
compreensível a situação politicamente delicada do basileus.
A partir de um primeiro momento de uma presença helenística conquistadora no Egito,
passam a existir duas “realidades”, duas visões ou concepções de mundo e normalidade presentes
no território governado pela dinastia Lágida. Tais Realidades são estruturas definidas legitimadas e
sustentadas pelos dois universos simbólicos específicos de ambas sociedades (nativa e estrangeira).
Os universos simbólicos são por sua vez, frutos das especificidades culturais das mesmas, que por
sua vez se reproduzem historicamente, dando um sentido de continuidade para cada sociedade ao
seu senso comum, ou habitus. O habitus pode ser definido, segundo Bourdieu, como um “sistema
de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a atuar como estruturas
estruturantes”. (1980: 88).
As respostas a cada habitus se definem em contrapartida, independentemente de todo
cálculo estratégico, por reportar às potencialidades objetivas, gravadas no presente. Desse modo, as
transformações sociais sofridas por ambas “realidades”, em decorrência dos contatos mútuos e
constantes, no Egito, não precisam ser necessariamente percebidas explicitamente como
“transformações” de suas “estruturas sócio-culturais tradicionais” (ou, simplesmente: suas
tradições) pelos agentes sociais. Isso porque as sociedades estão constantemente re-interpretando
e/ou re-formulando os significados de suas estruturas tradicionais.
Esse processo se reporta a um futuro provável, ao invés de futuro de “possibilidades
absolutas”, propondo uma existência enquanto algo que continua o normal e a normalidade. O
habitus dissemina e propaga a realidade de forma naturalizada excluindo deliberações. Ele é
simplesmente algo que “é” porque “sempre foi”, segundo a consciência histórica do senso comum.
Assim, o mundo prático que se obtém através da relação com o habitus como sistema de estruturas
cognitivas e motivadoras é justamente um mundo de metas já realizadas.
Insere-se então à discussão, as elites representantes das duas culturas envolvidas nas
negociações de poder no Egito. Normalmente as elites têm o maior interesse em manter a ordem
estabelecida de suas respectivas sociedades. Através dessa manutenção, eles preservam não só sua
posição social privilegiada, com todas as conseqüências sócio-econômicas, pragmaticamente
falando; como, por outro lado buscavam justificar o sentido social de suas existências enquanto
elites dominantes. Não bastava aos Ptolomeus o mero reconhecimento de seu senhorio enquanto
líder de ocupação estrangeira. O objetivo maior era tornar-se o rei aceito por todos os egípcios. Para
tanto, era necessário um esforço entre ambos os lados para se aproximarem. Por isso eles estarão
ϯϮ
sempre interessados na manutenção de um discurso ideológico que permita alguma delimitação de
esferas de influência. Nesse caso, aos sacerdotes nativos coube a administração, o prestígio e a
manutenção das tradições egípcias na maior parte do território (chóra), uma vez que a autoridade
helenística era mais restrita aos núcleos urbanos (capitais dos nomos e Alexandria, por exemplo).
Isso contribuiu não somente para a sobrevivência, mas também da prosperidade de uma elite
mediadora organizada com quem negociar a soberania sobre o Egito.
Para promover uma associação com o Religioso, buscou-se promover a criação sincrética de
divindades para gregos e egípcios, como Serápis27 e integrantes da Família Real deificados28 - cujo
objetivo era a sacralização da autoridade imperial. Além disso, os basilei ptolomaicos precisavam
procurar o sacerdócio egípcio para obter simpatia. Como observa Hoffmann, “somente através deles
(os sacerdotes egípcios) podia ele (o governante ptolomaico) se tornar legítimo a partir dos dogmas
reais egípcios”. (2000: 154). Dentro da sociedade egípcia, o sacerdote é o maior símbolo de ordem
(enquanto não-caos), prestígio social e poder temporal e espiritual, abaixo do faraó. Toda sociedade
egípcia se estrutura em sua forte religiosidade, o que torna a questão do sacerdote muito mais
relevante do que um mero poder local nativo.
Cabe a esta autoridade lançar mão de um poder simbólico para atingir uma construção de
realidade que possa estabelecer uma ordem/sentido de mundo social. Os símbolos são instrumentos
de integração social, uma vez que são instrumentos de comunicação e conhecimento. Eles tornam
possível o consensus, acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a
reprodução da ordem social. Bourdieu afirma que
“Enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento os
‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de legitimação da dominação
que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica)
dando o reforço da sua própria força às relações de poder que as fundamentam e contribuindo assim
para uma ‘domesticação dos dominados’, segundo uma expressão de Weber”. (2001: 11).
27
Segundo Huss, provavelmente Ptolomeu quis que gregos e macedônios abandonassem suas pátrias e de
certa forma, até seus deuses ao imigrarem para o Egito e, sobretudo, para Alexandria, “oferecendo um culto
que (...) satisfazia suas necessidades religiosas, e (...) possuía uma certa função unificadora. As expectativas
dos homens desse tempo eram satisfeitas em um deus que fosse senhor do Submundo e distribuidor da
fertilidade; e isso indica o caráter unificador do deus, já que ele era (...) deus da cidade de Alexandria e
também o deus protetor da dinastia Lágida”. (1994: 66).
28
Isto é bem ilustrado pela tabela 02.
ϯϯ
Seria um princípio fundamental para a administração Ptolomaica a tentativa exercer um
controle efetivo do governo sobre a esfera religiosa egípcia. Esse objetivo serviu para que todos os
sacerdócios egípcios fossem igualmente envolvidos por uma organização coletiva de sacerdócio
com uma estrutura hierárquica definida. Huss nos dá um panorama a esse respeito caracterizando a
estrutura com um número definido de phylái (phýlarchoi) e um número definido de bouleutaì
hiereis, “cuja organização realizava sínodos sacerdotais anuais, e possivelmente fiscalizava o
empenho do acesso ao sacerdócio”. (1994: 56).
Para alcançar uma política religiosa mais efetiva, o governo determinou conferências
obrigatórias e regulares, realizadas por ocasião dos sínodos anuais de sacerdotes. Nesses sínodos
sacerdotais eram tratadas todas as questões acerca de cultos, da organização dos templos, bem como
problemas de finanças e direitos e privilégios dos sacerdotes. Portanto devem ser compreendidos
como parte das negociações entre Monarquia e Sacerdócio. Sua função era a de prestar contas das
medidas tomadas pelo faraó-basileus no Egito o que na prática equivale a uma tentativa de
estabelecer um “clero egípcio organizado”.
Assim, a partir do século III a.C., os sacerdotes mais importantes dos templos egípcios
precisavam se reunir perante o basileus uma vez por ano. Durante esses sínodos eram tratadas
questões a respeito dos cultos, da organização dos templos, bem como problemas de finanças e
direitos e privilégios dos sacerdotes. As determinações mais importantes dos principais encontros
de sacerdotes foram registradas em inscrições, ainda que restritas aos limites do átrio de cada
templo egípcio. Era habitual a divulgação dessas inscrições em um texto trilíngüe em escrita
hieroglífica, demótica e grega.
Pode-se perceber de imediato, que tal costume insere os decretos sinodais no contexto das
negociações entre o basileus e os sacerdotes, articulando o Sacerdócio egípcio e o Governo grego.
Durante o período de 243 a 162 a.C., os decretos honoríficos promulgados pelos sacerdotes egípcios
se difundiram. Todos os decretos remontam aos reinados de três basilei: Ptolomeu III Evergeta,
Ptolomeu IV Philopator e Ptolomeu V Epiphanes – uma única exceção para o decreto do ano
162/161 a.C. (Cairo 22184), atribuído a Ptolomeu VI – somando ao todo onze decretos, nos mais
variados estados.
ϯϰ
A seguir reproduzimos uma tabela com os decretos sacerdotais conhecidos, visando
estabelecer um panorama a respeito do assunto, bem como localizar no contexto dos decretos a
posição dos decretos que serão analisados no presente trabalho.
ϯϱ
3d 238, 7 Cairo 17/3/46/1 Grés Frag. Hierog. + grego
março (lateral).
29
Possivelmente apenas um erro de digitação. Essa data notadamente pertence ao “Decreto do ano 23”.
ϯϲ
6d 196, 27 Alexandria 21352 Basalto grego sobre as laterais
março
30
Essa versão permanece inédita.
31
Baseados na pesquisa de Huss em “Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik” 88, 191, pp.189-208.
ϯϳ
Graças ao poder de mobilização, o poder simbólico promove a visão e a crença
determinadas para se confirmar ou transformar toda uma visão de mundo. O poder simbólico reside
na própria estrutura do campo em que se produz e/ou reproduz a legitimidade e aceitação. Os
símbolos do poder – trajes, cetros, etc. – são apenas “capital simbólico objetivado”, e sua eficácia
está sujeita às mesmas condições. Segundo Bourdieu entende-se por capital simbólico todo tipo de
capital, “qualquer que seja sua espécie, quando reconhecido como algo de óbvio”. (2001: 145).
Porém, é importante mencionar que cada sacerdócio culminava na pessoa do faraó. Isso porque o
soberano delegava a sua função no sumo-sacerdote de cada organização templária, que não passava,
portanto de um mero substituto do rei. Isso explica o porque o soberano ser o único que podia
nomear e destituir as pessoas por ele designadas, podendo inclusive interromper a sucessão
hereditária do cargo.32
Sendo assim, os sacerdotes são um grupo político extremamente relevante para o poder
imperial helenístico. São os sacerdotes os agentes responsáveis, dentro da sociedade egípcia, pela
manutenção tanto da Ordem Cósmica quanto da ordem vigente na sociedade. Eles são aqueles que
zelam pela continuidade das tradições33. Justamente por isso interessa ao grupo a permanência de
uma “categoria-faraó” dando sentido à própria estrutura social.
Em nossa pesquisa, damos ênfase ao papel dos decretos sacerdotais na formação de uma
nova dimensão de negociações entre as instâncias cooperativas: Governo X Sacerdotes. Isso porque
os sínodos sacerdotais manifestam uma transformação pacífica na estrutura tradicional política e
social na sociedade egípcia. “Pacífica” uma vez que foi aceita pelos setores positivos e/ou neutros à
dominação greco-macedônica. Os decretos sacerdotais são, antes de qualquer coisa, textos que nos
fornecem provas materiais da cooperação entre governo e templos, também são veículos de
expressão de uma perspectiva egípcia da dominação helenística, e como tal, nos revelam uma
posição política da elite sacerdotal egípcia (embora limitada a um partido específico: elite
colaboracionista).
32
O culto era prerrogativa do soberano. Pernigotti comenta a relação entre os sacerdotes e o faraó
observando que esse sistema funcionou bem até o momento em que o sacerdócio “teve tendência a sobrepor
o poder real e para lhe subtrair parte de suas prerrogativas é que o sistema entrou em crise, e deu lugar (…) a
um conflito aberto entre a monarquia e o clero (…)”. (1994:119).
33
Além da prerrogativa dos sacerdotes receberem todo o conhecimento dos mais antigos, os próprios
templos egípcios também atuavam como registros históricos. Literalmente, os muros e colunas dos templos
possuíam inscrições registrando eventos e personagens históricos. De fato, o sacerdote egípcio Mâneton ao
escrever sua “História do Egito”, o fez consultando os registros privados de inúmeros templos.
Anteriormente, Heródoto atribuiu grande parte das informações sobre a história ou mesmo os mitos egípcios
à conversas com sacerdotes dos templos egípcios.
ϯϴ
Compreendemos um decreto sacerdotal como um texto. E como tal este precisar ser
contextualizado, ou seja, inserido em um contexto determinado, para então assumir a dimensão de
“discurso”. O “contexto” por sua vez pode ser definido pelas condições sociais da sua produção.
Todos os participantes da produção circulação e consumo das práticas sociais condicionadoras do
discurso estão sujeitos a esses contextos. Assim, a contextualização passa sempre por mediações.
Dessa forma, um texto, sendo um elemento definido desse discurso social, contém uma proposição
dirigida a uma sociedade, e assim é uma forma de ação social. Mas a fim de tornar possível a
projeção do sentido sobre uma prática discursiva, sobre o discurso em sua capacidade de mobilizar
as relações sociais, é preciso exercitar uma leitura analítica, objetivando compreender a relação
entre o “fato” dialógico do texto e do discurso do qual ele é instrumento. Se nos torna possível
compreender aspectos dessa sociedade é porque o texto é uma forma de ação social, uma proposta
dirigida à sociedade, cuja leitura tem o poder de mobilizar as relações sociais.
Dentre os decretos apresentados, faremos uma breve exposição daqueles que compõe o
corpus documental explorado na pesquisa, seguida por uma análise de fontes. Os decretos de
Canópus, Ráfia e Mênfis foram selecionados devido ao excelente potencial como fonte, além de
serem os decretos mais publicados e comentados no meio da egiptologia e ciências afins. Através da
comparação dos textos selecionados para a presente pesquisa, nota-se rapidamente uma progressiva
“egipcianização” da dinastia ptolomaica, um crescimento constante da influência política dos
templos egípcios bem como necessidade crescente em se conciliar com o poderoso sacerdócio
nativo.
ϯϵ
a) “Decreto de Canópus” (238 a.C.) - Decreto de sacerdotes egípcios em honra de Ptolomeu III e
Berenice:
Promulgado no sínodo de Alexandria em 237 a.C., o decreto instaura uma quinta phylè
(tribo) sacerdotal, mas é mais célebre por ter introduzido um calendário novo aumentando o ano
egípcio de 365 dias para 365 dias e um quarto, e que foi solenemente proclamado no sínodo. Essa
inovação permaneceria “letra-morta” até os tempos do imperador romano Augusto. Clarisse
comenta que “pode-se constatar pela não aplicação imediata dessa decisão à existência de uma
oposição tácita do clero egípcio contra toda mudança imposta pelo governo grego”. (2000: 45).
Podemos nesse sentido citar outra determinação do sínodo desrespeitada na prática: a adoção do
título de “sacerdotes do rei” em documentação pública.
Façamos então uma análise formal da narrativa, buscando elementos “significativos”, ou tópicos,
segundo a tabela sugerida abaixo:
Quadro 1a
Com as Estátuas
Sagradas:
* Trouxe de volta para
ϰϬ
o Egito as Estátuas
Sagradas levadas pelos
persas;
Com os Animais
Sagrados:
* Constante respeito a
todos os animais
sagrados à grandes
custos e despesas;
ϰϭ
O exercício de leitura proposto nos auxiliou a isolar características específicas dos agentes
envolvidos no texto (monarquia x sacerdotes), estabelecer o contexto da confecção do decreto
estudado, bem como compreender suas relações políticas no momento da confecção deste decreto, o
qual lista todas as medidas reais a favor dos interesses sacerdotais. Verificamos um maior
enriquecimento do texto quando seu mérito recai sobre a política religiosa Lágida. Como síntese
desse primeiro exercício de leitura, articulamos os sacerdotes e a monarquia, adiando um momento
mais oportuno o aprofundamento no mérito do decreto. Propomos então o segundo quadro, abaixo:
Quadro 1b
Por fim, a respeito do decreto de Canópus vale a pena frisar que a política religiosa
desenvolvida por Ptolomeu III recebe maior dimensão do que a listagem de feitos realizados pelo
faraó-basileus em seu reinado. Essa listagem de feitos assume uma conotação simbólica, a partir do
momento em que os sacerdotes retratam o monarca como um faraó promotor da Ordem Cósmica,
ϰϮ
ou “maat” 34, uma vez que ele mantém a paz e a justiça no Egito. Podemos então considerar que
mesmo quando o texto não menciona explicitamente um valor espiritual ou sagrado, este está
presente nas entrelinhas dos significados, e compõe o quadro de virtudes religiosas privilegiadas
pelo escopo da obra.
Quanto a sua relação com os sacerdotes, observa-se ao longo do texto que o reconhecimento
sacerdotal se baseia em duas características centrais: o oferecimento de vantagens econômicas e
uma certa “freqüência” na demonstração de “zelo” para com os interesses sagrados35. A análise
desse decreto constata que essencialmente o texto é uma resposta oficial dos templos a uma política
religiosa Lágida, o que nos oferece uma forma eficiente de compreensão da dinâmica das relações
políticas entre as duas instâncias de poder que dominavam o Egito: o Governo macedônio e as elites
sacerdotais nativas.
b) “Decreto de Ráfia”: (Decreto de Mênfis: 217 a.C.) - Decreto de sacerdotes egípcios em honra a
Ptolomeu IV Philopator:
Celebra a vitória militar de Ptolomeu IV sobre o rei selêucida Antiocos III em 217 a.C., e
principalmente a subseqüente volta das estátuas sagradas saqueadas pelos persas aos seus templos
de direito. A respeito desse caráter belicoso do decreto, inserimos que a parte superior de uma cópia
deste decreto, conhecida como “Estela de Pithom” (Cairo 31088), possui uma cena iconográfica
interessante: o basileus é representado montado a cavalo (e não na tradicional biga), trajando uma
armadura grega e portando uma lança macedônica (e não as tradicionais maça ou cimitrra) para
aniquilar seus inimigos.
Embora não seja objetivo do presente trabalho realizar uma análise iconográfica, fez-se
necessário uma exceção devido à sua excelente contribuição na composição do quadro de
34
No Egito antigo, não há uma religião-instituição-filosofia definidas. Existe o conceito de maat (ou maat),
que para nós não possui tradução. Trata-se de um ideal de justiça, de ordem social e cósmica, de equilíbrio,
enfim. Trata-se de um verdadeiro mito fundador da sociedade egípcia, tendo o faraó o encargo de defender a
ordem social e evitar o caos em todos os sentidos. Não confundir com a deusa de mesmo nome: Maat (ou
Maat), filha de Rá, embora esta incorporasse atributos do maat-conceito.
35
Daí a observação por parte do decreto em salientar uma preocupação “constante” do faraó para com os
deuses, ou o aumento “crescente” de honrarias aos deuses.
ϰϯ
transformação inevitável sofrida pela sociedade egípcia em decorrência do encontro com a cultura
helenística; isso a despeito do nativo se tornar conscientemente ou não helenizado.
“A figura do faraó que é pintada (sic) na Estela, e que deve ser pintada (sic) sobre o
texto (do decreto), deve representa-lo montado sobre um cavalo, trajando uma armadura,
e ele deverá aparecer portando uma coroa de faraó. E ele deverá ser representado no ato
de atingir com a lança uma figura ajoelhada de um rei com a sua lança longa em sua
mão, que lembrará a lança que o faraó vitorioso usou em batalha.” (Linhas 35-36).
Podemos comentar a esse respeito que embora Ptolomeu esteja sendo retratado com os
atributos macedônios (armadura, cavalo e lança), o fato dele estar portando a coroa de faraó aliado
ϰϰ
ao fato de que o decreto atribui sua vitória à vontade dos deuses egípcios impede qualquer
descaracterização sua como governante divino e de direito do território egípcio. As alterações
recomendadas na estética deste decreto podem simplesmente se resumir a uma retratação do fato de
que o faraó lutou à moda dos macedônios.
Quadro 2a
concedeu vitórias;
* A Imagem viva de Com as Estátuas
Amon; Sagradas:
* O faraó Ptrumis, o * Trouxe de volta para
Sempre Vivo, Amado o Egito (outras)
de Ísis; Estátuas Sagradas
levadas pelos persas;
* Deus que ama seu pai
(theos philopator)
Com as Estátuas
Sagradas:
* Trouxe de volta para
o Egito (outras)
Estátuas Sagradas
levadas pelos persas;
* Restaurou todas as
estátuas sagradas com
algum defeito;
Com os Animais
Sagrados:
* Transferiu todas as
múmias de animais
sagrados encontrados
de volta ao Egito e
proporcionou um novo
funeral com todas as
honras e rituais;
* Estes (sacerdotes) basileus e sua irmã;
tendo juntos se reunido
no templo de Mênfis
declaram (o decreto);
Quadro 2b
ϰϳ
Notadamente, ao verificarmos as relações do monarca com os assuntos sagrados egípcios,
notamos uma ênfase muito maior a respeito de benefícios materiais neste decreto em relação ao
anterior. Perdão de dívidas, concessão de receitas, e outros benefícios enriquecedores preenchem
um destaque novo para o corpus do texto.
O Decreto de Ráfia nos oferece um valioso acréscimo devido a uma presença maior de
aspectos religiosos e sagrados no texto. Novamente o texto se prende mais aos benefícios
concedidos aos sacerdotes e toda uma postura piedosa por parte do monarca dando um caráter
secundário à sua vitória em batalha – a razão oficial para o sínodo. O decreto não menciona os
machimoi, que foram recrutados entre os egípcios e que tiveram um papel fundamental na vitória
Lágida. Ao invés disso, os sacerdotes retratam a grande piedade do faraó-basileus como
determinante da vitória.
Podemos verificar que as elites sacerdotais egípcias não buscavam em seus decretos atingir
qualquer forma de consenso com alguma outra elite nativa. Nem tampouco visavam em seus
decretos alguma maneira de “salvar a honra egípcia” ou desenvolver qualquer forma de sentimentos
“pan-egipcios”. O cerne do texto possui uma órbita regular em torno de assuntos relacionados a
uma política religiosa helenística. O próprio fato de ser vitorioso em batalha contra o inimigo
estrangeiro (sempre relacionado ao Caos) já reúne para o monarca mais um atributo característico
do maat egípcio, princípio divino responsável pela defesa e manutenção da Ordem Cósmica e
característica necessária para um faraó legítimo.
c) “Pedra de Rosetta”: (Decreto de Mênfis: 196 a.C.) - Decreto de sacerdotes egípcios em honra a
Ptolomeu V:
Fornece uma cópia do decreto de Mênfis de 196 a.C., onde se comemora a defesa do Egito
contra um ataque selêucida e a vitória sobre uma rebelião no Delta. Contudo, como observa
Clarisse, “permanece cuidadosamente em silêncio sobre a perda da Palestina na guerra estrangeira e
a permanência de uma rebelião no sul do país”. (2000: 45). O decreto também menciona a gratidão
ϰϴ
do clero nativo pela pacificação de duas grandes revoltas nativas, sendo uma iniciada ainda durante
o reinado do seu antecessor.
Quadro 3a
do Reino; do reinado de Ptolomeu
V;
* Sufocou uma rebelião
no nomos Busirita: os * ele isentou os
homens ímpios que se membros da classe
reuniam lá e que sacerdotal da obrigação
causaram muitos danos anual de descer o rio
aos templos e aos Nilo para Alexandria
habitantes do Egito; * perdoou dois terços
* puniu da taxa em roupas de
apropriadamente todos byssus pagos pelos
os líderes dos que se templos ao Tesouro
rebelaram no tempo de Real;
seu pai, que
* atentando para que as
tumultuaram o país e
celebrações
causaram danos aos
costumeiras pudessem
templos; ser oferecidas aos
deuses como
apropriado;
* arcou com grandes
despesas em dinheiro e
cereais para que assim
os templos e todas as
pessoas no território
estivessem em
segurança;
* ele perdoou as
dívidas dos templos ao
Tesouro Real até o 8º
ano (198/197), que não
era uma quantidade
pequena de cereais e
dinheiro;
* Igualmente a dívida
em roupas de byssus
que não haviam sido
entregues ao Tesouro
Real e das que foram
enviadas (ele perdoou)
as muitas taxas para
verificá-las, pelo
mesmo período;
* e ele isentou os
templos (do imposto de
ϱϬ
uma) artaba por cada
aroura de Terra
Sagrada, e também do
(imposto de uma) jarra
de vinho para cada
aroura de vinhedos;
* e ele manteve as
honrarias dos templos e
do Egito de acordo com
as Leis;
* ele fundou templos e
capelas e santuários, e
restaurou os que
necessitavam de
reparos, com o espírito
de um deus benéfico
em assuntos relativos à
religião;
* tendo descoberto
quais templos eram
tidos nas maiores
honras, restaurou-lhes
durante seu próprio
reinado, como
apropriado;
Com os Animais
Sagrados:
* ele concedeu muitos
presentes à Ápis e
Mnevis e outros
animais sagrados do
Egito muito mais do
que os reis anteriores a
ele, mostrando
consideração ao que
devia a eles com todo
o respeito;
* para seus funerais, ele
deu o que era
adequadamente
suntuoso e esplêndido,
e que era pago à suas
ϱϭ
capelas especiais, com
sacrifícios e
assembléias religiosas e
outras observações
tradicionais;
* e adornou o templo
de Ápis com um
prodigioso trabalho,
cobrindo-o com uma
quantia não pequena de
ouro, prata e pedras
preciosas;
ϱϮ
Um fato interessante ressaltar é que Ptolomeu V tinha 13 anos na época do decreto. Assim,
seus regentes, ministros e conselheiros exerciam o governo de fato, em seu nome. Contudo cabe
acrescentar que as medidas relacionadas às relações Monarquia X Clero Egípcio assumem
proporções sem precedentes. Notamos que a grande maioria dos feitos notáveis do faraó-basileus
neste decreto está relacionada a algum tipo de vantagem econômica concedida aos sacerdotes.
Quadro 3b
ϱϯ
Demonstrar constante respeito à
religiosidade egípcia;
O decreto nos retrata um governo enfraquecido por uma longa rebelião doméstica, e logo,
disposto às maiores concessões possíveis para com a população e, sobretudo para com os sacerdotes
egípcios. Quando vemos a sempre presente ressalva: “(...) aos templos e àqueles que nele habitam e
a todos os súditos em seu reino (...)” (Decreto de Mênfis, linha 10), não estamos diante de um mero
formulário egípcio, como Crawford observa: “o bem estar do Egito era tradicionalmente ligado ao
bem estar dos templos egípcios”.36
O faraó deveria ser sempre apresentado como agente de maat. Manter a ordem, evitar o
caos, a fome a miséria, eram deveres do faraó. As doações em dinheiro ou cereais aos templos
egípcios são bem claras nos decretos. Igualmente as subvenções generosas para festivais religiosos,
além da participação em restauração e ampliação de templos/estátuas sagradas, bem como para a
construção de novos(as). Acerca das concessões aos templos, A Pedra de Roseta está repleta de
referências: linhas 12-18 e 28-35. Sobretudo depois do reinado de Ptolomeu Philopator, os
sacerdotes egípcio foram objeto de inúmeras atenções por parte do poder real.
36
In: Doroth J Crawford – J. Quaegubeur – W. Clarysse. Studies on Ptolemaic Memphis, Lovanii 1980, 1-
42p.p.7. APUD: HUSS, 1994, p.19.
ϱϰ
O templo de Hórus de Edfú pode ser um excelente exemplo da política lágida de
favorecimento dos sacerdotes através das construções cultuais. Trata-se do templo mais preservado
do Egito para o período, além de sua forma consistir em um modelo para as futuras construções ao
longo do período greco-romano. Sua construção começou em 237 a.C. (sob o governo de Ptolomeu
III Evergeta I). A parte interior foi terminada em 212 a.C. (sob o governo de Ptolomeu IV
Philopator) e decorada por volta de 142 a.C. (sob o governo de Ptolomeu VIII Evergeta II).
A sala hipóstila exterior foi construída em separado, tendo sido terminada cerca de 124 a.C.
(ainda sob o governo de Ptolomeu VIII Evergeta II). A decoração desta e de outras partes foi
terminada em 57 a.C. Com relação à atenção dispensada para com a política grega de construção de
templos, seria interessante acrescentar o fato de que o próprio basileus Ptolomeu XI Néos Dionisos
esteve presente para o cerimonial do lançamento da pedra fundamental do templo de Ísis, em
Philae37. Lanciers comenta que baseado na documentação arqueológica sobre as atividades de
construção da época de Ptolomeu V “os decretos sacerdotais transmitem uma idéia falsa de que
ocorriam construções sob Epifanes”. (181: 1987).
Não se tem conhecimento de nenhum templo novo38 em todo o Egito durante o reinado de
Ptolomeu V, que de modo geral é muito pobre em construções religiosas. Os templos devem ser
interpretados como grandes obras do “Estado”. Em certos casos o acesso ao primeiro pátio era
permitido em festivais, e mesmo nesses casos, a uma elite. O culto cotidiano não tem participação
da população, nem tampouco a participação de boa parte do clero, somente uma parte do corpo
sacerdotal.
Contudo tal generosidade visava basicamente alcançar uma meta clara: prestígio e suporte
imediato junto aos sacerdotes, imortalizando-se na memória que eles são responsáveis por
conservar; e através do óbvio reconhecimento de sua preocupação com o território e súditos,
alcançar vantagens políticas para o decorrer de seu governo.
37
Ver H. Junker, Pylon, S.10, Z.9. APUD: Huss, p.37,1994.
38
Embora restaurações, reformas e expansões em outros templos pré-existentes houvessem ocorrido.
ϱϱ
por isso, condições determinantes do exercício do poder, das funções e das insígnias reais39”.(1997:
246). Isso porque por ser justo, o faraó segue um modelo divino. Nesse ponto, tanto o areté grego,
quanto o maat egípcio, personificam a Justiça enquanto uma virtude a ser perseguida pelo basileus
e/ou faraó. O faraó, por ser literalmente divino, era responsável pela manutenção de maat na
sociedade, e todos os agentes sociais reconheciam unanimemente sua autoridade e supremacia
simbólica, social, mágica e política.
Quadro 4
letras gregas; gregas,
* Consagrado aos * Situado em todo
templos de 1º, 2º e 3º templo de 1º, 2º e 3º
graus; grau, próximo à
estátua do rei Sempre-
Vivo;
Assim, considerando que os templos não permitem acesso à população nativa, concluímos
que o texto circula exclusivamente entre os sacerdotes dos templos que perpetuam as negociações
com o basileus. Sua função então seria legar aos futuros sacerdotes um registro do desenvolvimento
de suas relações com o faraó-basileus, bem como das benfeitorias, privilégios, isenções e
monopólios garantidos ao longo da sucessão dos governantes.
Nesse espírito, observamos que os decretos são erigidos por sacerdotes, em decorrência de
suas deliberações sinodais, e que as estelas em que se veiculam os textos dos decretos se encerram
ϱϳ
no interior dos templos, restringindo seu acesso apenas a sacerdotes. Contudo, as determinações
sacerdotais politicamente favoráveis aos monarcas atingem o restante da população indiretamente,
através das celebrações de festivais sagrados públicos, em que as estátuas sagradas dos governantes
saem dos templos em procissão e demais manifestações referentes ao culto dinástico.
A tabela a seguir demonstra a política de confecção de imagens sagradas como parte de uma
manifestação pública de cooperação dos sacerdotes com a monarquia helenística:
40
Cf: W. Spiegelberg “Beiträge zur Erklärung des neuen dreisprachigen Priestedekretes zu Ehren des
Ptolemaios Philopator”. In: Sitzungsberichte der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, Philosophisch-
philologische und historische Klasse, Jahrgang 1925, 4 Abhandlungen, München, 1925.Trata-se da primeira
versão traduzida do demótico original da Estela de Pithon. Budge publicou uma versão inglesa comentada
desta versão alemã.
41
Somente foram listados os decretos analisados neste trabalho.
ϱϴ
Os textos possuem uma circulação restrita às esferas de poder. Desse modo, os decretos
podem servir indiretamente como instrumento de mediação, uma vez que este decorre da
mobilização dos sacerdotes egípcios em “fiscalizar” o andamento das relações políticas com a
monarquia. Vimos que nem todas as determinações sacerdotais em reconhecimento da autoridade
real alcançam uma realidade prática e cotidiana. No entanto, através de festivais públicos, de
estátuas sagradas e santuários dedicados ao culto dinástico, os sacerdotes manifestam publicamente
seu apoio a uma dinastia macedônica.
“Os epistates a cargo de cada templo e o sumo-sacerdote e os escribas dos templos deverão
gravar este decreto em estela de pedra ou bronze nas letras sagradas (hieroglifos), letras egípcias
(demótico), e letras gregas, e deverão consagrá-la em templos do 1º, 2º e 3º graus, que assim seja
visto que os sacerdotes do país honram os theoi euergetai e seus filhos, como é justo.” (Decreto de
Canópus, linhas 73 - 74).
“Este decreto deverá ser inscrito em uma estela de pedra dura, em letras sagradas,
nativas e gregas, e situado em todo templo de 1º, 2º e 3º grau, próximo à estátua do rei
Sempre-Vivo.” (Decreto de Mênfis, linhas 53-54).
Existe aqui uma concessão por parte do poder helenístico egípcio no que diz respeito ao uso
do idioma grego como ferramenta de dominação cultural. De fato, pode-se notar uma relativa
delimitação de espaços, quando um discurso produzido pela instância de poder local nativo enaltece
os resultados de uma política de cooperação para com o dominador estrangeiro, o faz no do idioma
do dominador e no nativo. Por quê?
ϱϵ
Huss afirma que o texto grego (ao contrário do texto egípcio) só teria uma importância sob
aspectos formais, de modo que “o Estado proporcionou à Igreja um importante espaço livre”. (1994:
47). Prosseguindo, Huss se baseia na historiografia tradicional, segundo a qual, a iniciativa da
redação dos decretos situava-se nas esferas da corte42. Segundo Huss,
42
A. Bouché-Leclerq, Histoire des Lagides I, 1903; J. A Letrone, Inscription grecque de Rosette, Paris,
1840; W. Otto, Priester und Tempel II. Leipzig-Berlin, 1908; APUD. Clarisse, 2000, p.48.
43
Publicado em OGIS, I, 11. Orientis graeci Inscriptiones selectae.
44
O sentido dado aqui a “helenizados” se limita ao fato de se estar familiarizado com o idioma grego, seria o
mesmo que afirmar que os sacerdotes deveriam ser fluentes em grego. É interessante comentar que um dos
argumentos de Clarisse para definir o grau de helenização das elites sacerdotais egípcias é sua própria
experiência com o aprendizado e utilização do idioma francês como seu segundo idioma.
ϲϬ
Sabemos que os sacerdotes egípcios estão tradicionalmente habituados a estratégias de
reconhecimento e negociações com faraós nativos e estrangeiros. A própria sociedade egípcia prevê
em sua estrutura mitológica, o referencial naturalizador do invasor estrangeiro-caótico, que se
invade o Egito trazendo o Caos Cósmico, mas que restabelece a Ordem com o entronamento de um
novo faraó, após o cerimonial segundo as tradições religiosas egípcias. As mesmas que legitimam
os Lágidas em suas coroações.
As relações de poder são perpassadas como uma forma de comunicação. Assim, foi
necessária uma “tradução” do veículo comunicador (os decretos) para que o Outro (aqui, no caso, o
governo grego) estivesse em condições de reconhecê-lo como tal. Uma vez reconhecido seu papel,
as duas instâncias atingiram um consenso a respeito de um espaço para a realização de negociações.
Desse modo pode-se compreender como se estabelecem as relações simbólicas de poder entre
sacerdotes e basilei através de uma negociação de “discursos autorizados” e estabelecimento de
“fronteiras” politicamente ideais, entre uma cultura grega helenística (a realidade simbólica
tipicamente grega) e uma cultura egípcia nativa (a realidade simbólica tradicional nativa).
Lembramos que os principais beneficiários das doações ptolomaicas listadas pelos decretos
eram os próprios membros da classe sacerdotal, o que torna óbvio que os decretos sacerdotais estão
imersos na rede de negociações políticas entre os dois poderes influentes no Egito: o Estrangeiro
estabelecido e o Nativo mediador e legitimador. A maior parte das honras conferidas ao basileus
pelos sacerdotes abrangia direta ou indiretamente os templos.
Acrescentamos a essa visão, que o próprio termo grego utilizado pelos sacerdotes para
definir o decreto - “psephisma” possui um sentido de juramento, ou voto. Isso era impensável nos
períodos dinásticos anteriores, posto que antes havia um zelo em demonstrar que sacerdotes
promulgavam seus decretos espontaneamente, em um gesto de boa vontade e reconhecimento às
virtudes do faraó e sua política religiosa. No período helenístico, os sínodos eram obrigatórios,
mesmo que em seu texto os sacerdotes mantenham um formulário tradicional de que o
reconhecimento e retribuições partem totalmente de sua própria iniciativa.
ϲϭ
Vejamos então as seguintes passagens grifadas por nossa análise:
“Com Boa Fortuna! Fora decidido pelos sacerdotes do país o aumento das honrarias já
existentes nos templos ao basileus Ptolomeu e à rainha Berenice”.(Decreto de Canópus,
linha 21).
“Com Boa Fortuna! É da vontade dos corações dos sacerdotes dos templos do Egito, que
as honras que são prestadas ao faraó Ptolomeu e a sua irmã rainha Arsinoe (…) sejam
ampliadas”. (Decreto de Ráfia, linhas 31-32).
Uma inovação helenística presente nos trechos selecionados acima é a evocação da entidade
helenística Fortuna (Tyché), compondo o formulário do decreto. Mas isto significa necessariamente
que os sacerdotes egípcios adotaram a Fortuna em seu panteão original? Tal inclusão fornece, antes
de qualquer coisa, um caráter documental reconhecidamente “normal” por parte de um interlocutor
helenístico. Trata-se, portanto de promover os decretos sacerdotais a um estatuto de documento
juridicamente válido perante a norma imperial. Assim, os decretos poderiam ser interpretados pelo
governo helenístico como manifestação de vontades políticas atuantes na sociedade, e não como
simplesmente mais um “exotismo religioso tradicional” que eles não conseguiriam ou se
interessariam em compreender.
Todos os processos de adequação formais dos decretos a uma realidade helenística eram
uma necessidade primordialmente política, justamente por isso não bastaria uma análise de suas
inovações para determinar se os sacerdotes se helenizaram ou não. Isso porque enquanto os
sacerdotes egípcios não estivessem conscientemente abrindo mão de seus valores culturais
tradicionais para reproduzir sua interpretação de um universo simbólico helênico, não existe uma
helenização dos sacerdotes. Os sacerdotes buscam meios de sobreviver politicamente como elite
local. A partir do momento em que estes deliberadamente abrissem mão das tradições egípcias,
estão se desvinculando de suas características de elite sacerdotal (o zelo pelas tradições). Daí a
reprodução do texto nos caracteres sagrados (hieróglifos) não serem simplesmente substituídos
pelos gregos.
ϲϮ
Contudo, um paradoxo se forma a partir do momento em que existe de fato um
reconhecimento pelos sacerdotes egípcios da necessidade de apropriação e reprodução de elementos
característicos do nómos grego. Independentemente de suas motivações, necessidades, táticas ou
estratégias, temos como resultado dessa “presença” helenística nos decretos uma cristalização do
nómos grego. Interessante notar que as duas instituições (elite sacerdotal e monarquia helenística)
zelam pela permanência da idéia de compartimentação cultural, apesar de seu conteúdo textual
produzir uma aparência ideal tanto de cooperação quanto de “mescla cultural”. “Ideal” por estar
ideologicamente/politicamente comprometida com as relações de poder entre as instâncias
estrangeira e nativa.
2. 3 Formas de Conflito
Nossa análise demonstrou que embora os decretos possuíssem um “motivo oficial”, eles
acabavam frisando as condições políticas atuantes existentes acerca das relações entre governo e
sacerdotes. Verificamos então, que os sacerdotes são os produtores e os consumidores do texto
oriundos dos decretos sinodais.
Na realidade, faz-se questão de demonstrar que sob a ótica dos sacerdotes, os decretos fazem
exatamente o contrário, ou seja, recompensam as demonstrações de lealdade do monarca para com
seus segmentos. Tomemos as seguintes passagens grifadas por nossa análise:
ϲϯ
“(…) que assim seja visto que os sacerdotes do país honram os theoi euergetai e seus
filhos, como é justo”. (Decreto de Canópus, linhas 75).
“(…) para que assim fique manifesto a todas as pessoas que todos que estão no Egito
honram os deuses philopatores”. (Decreto de Ráfia, linha 42).
“(…) desde que o rei Ptolomeu, o Sempre-Vivo, Amado de Ptah, deus Manifesto e
Benéfico, nascido do rei Ptolomeu e rainha Arsinoe, theói philopatores conferiu muitos
benefícios aos templos e àqueles que nele habitam e a todos os súditos em seu reino”.
(Decreto de Mênfis, linhas 9-10).
“(…) em retribuição a essas coisas, os deuses garantiram a ele saúde, vitória e poder e
todas as outras bênçãos, e sua soberania permanecerá com ele e seus filhos para
sempre”. (Decreto de Mênfis, linhas 35-36).
“(…) de modo que possa ser conhecido por todos, que as pessoas do Egito magnificam e
honram o Deus Manifesto e Benéfico, como é de costume”. (Decreto de Mênfis, linha 53).
Como adenda do quadro exposto acima, cabe um novo tópico, tendo agora por objetivo
desfazer qualquer “miragem” acerca da existência de um grande bloco-sacerdócio egípcio,
homogêneo e solidário para com todos os seus pares em todo o território egípcio. Embora os gregos
se considerassem vencedores no estrangeiro, e reivindicassem o Egito como “direito de conquista”,
legitimando sua dominação e justificando seu discurso de superioridade; por sua vez, conforme
atesta Bresciani:
45
O texto deveria se referir à rainha Berenice.
ϲϰ
Alexandre é o ‘filho de Ámon’, mas também o filho de Olímpia e de Nectanebo II, o faraó
mago que fugiu para a Núbia (…) perseguido pelo persa Artaxerxes”.46 (1994: 214).
Podemos nesse sentido explorar uma série de formas de oposição de egípcios (elite
sacerdotal) para com os macedônios (poder monárquico). Dentre elas, podemos incluir uma
apropriação egípcia da origem de Alexandre (Lenda de Nectanebo), bem como a não-aplicação da
reforma do calendário proposta por Ptolomeu III, a não adoção do título sacerdotal de “sacerdote do
rei”, profecias de caos e fim da “civilização egípcia”, ligada à figura do governante macedônio.
Além disso, cabe remontar à polêmica retratação do faraó na Estela de Pithon, como um
guerreiro macedônio-estrangeiro. Huss (1994) acrescenta em sua análise a utilização de um
determinativo de “estrangeiro” e escrita do nome real fora do cartucho; enfim, ilustrando que a
constância das negociações com segmentos sacerdotais era de grande importância para manter a
legitimidade de uma dinastia Lágida.
De fato, as tensões entre nativos e estrangeiros, bem como entre facções nativas rivais em
luta pelo poder, iria contribuir em diversos graus para a idealização de um projeto político. A elite
nativa governante buscava uma cooperação com o dominador estrangeiro por possuir rivais
internos. Podemos inserir a crítica de Clarisse ao Decreto de Mênfis, acrescentando que:
46
A “Lenda de Nectanebo”.
ϲϱ
“(...), e (Ptolomeu IV, Philopator) demonstrou-se indiferente e frívolo para com
aqueles à frente de assuntos externos, enquanto seus predecessores devotaram não
menos, porém mais zelo para com eles do que com o governo do Egito propriamente dito.
Assim sendo, tendo estendido seus domínios por tão longe, e defendendo-se à grande
distância por essas possessões, eles nunca se preocuparam com seu governo no Egito.
Isso certamente pelo fato deles se dedicarem demais aos assuntos externos”.(HWARC
223=Políbio V. 34).
Prosseguindo com a análise de Políbio, a raiz da crise do domínio grego poderia se localizar
no reinado de Ptolomeu IV Philopator. Durante a chamada “Quarta Guerra Síria”, entre os anos 219
a.C. e 218 a.C., Ptolomeu IV obteve uma importante vitória em Ráfia, impedindo a invasão do país,
graças participação de uma falange de 20.000 egípcios. O historiador prossegue sua argumentação,
recriminando o uso de nativos no exército devido à rebelião que os mesmos soldados
desencadearam:
“Porém mais tarde em sua vida, ele (Ptolomeu IV Philopator), foi compelido pelas
circunstâncias a se envolver na guerra que eu mencionei, uma guerra que se destaca
pela selvageria e criminalidade de cada parte para com a outra, não envolvendo nem a
batalha regular, combate naval ou sítios, nem nada mais mencionável”. (Políbio XIV. 12.
3-4).
A guerra de guerrilha iniciou-se entre 207 a.C. e 206 a.C., se arrastando por anos, o Alto
Egito saiu do controle efetivo dos Ptolomeus até o ano de 186 a.C., tendo tal rebelião sido sufocada
somente nos últimos anos do sucessor, rei Ptolomeu V Epiphanes. Retornando ao Decreto de
Mênfis, examinamos detalhadamente o relato dos sacerdotes egípcios acerca do fim dos distúrbios,
já sob o reinado de Ptolomeu V.
“(...) e ele ordenou ainda que aqueles soldados (machimoi)47 que desertaram, e os
outros que foram rebeldes durante o período dos distúrbios48, poderiam ao retornarem,
manter as posses de suas propriedades; (Decreto de Mênfis; linhas 19 e 20).
47
O termo (aliados) é uma palavra usada para os soldados egípcios nativos; não está claro se aqui se trata
especificamente dos recrutados por Ptolomeu para a ‘Quarta Guerra Síria’.
48
Os distúrbios que se espalharam pelo Egito após a batalha de Ráfia.
ϲϲ
O Decreto de Mênfis também nos relata o fim de outro levante, dessa vez no Delta, durante
o reinado de Ptolomeu V. Novamente, durante outro levante, os revoltosos atacam os bens de
templos egípcios, sugerindo o mesmo quadro de desarticulação da autoridade nativa. Como vimos
através dos exemplos acima, sacerdotes podem se opor a sacerdotes; facções podem se opor a
facções, de modo a existir um ambiente de constante disputa pelo poder em meio às elites nativas.
Cabe observar que a incidência de levantes e rebeliões não denotam necessariamente uma oposição
cultural do tipo Helenismo versus Tradições Ancestrais Egípcias.
“(...) e tendo ido para Lycopolis49 no nomos Busirita, que fora ocupado e fortificado
para um cerco com um estoque abundante de armas e suprimentos - uma vez que a
inimizade já durava então muito tempo entre os homens ímpios que se reuniam lá e que
causaram muitos danos aos templos e aos habitantes do Egito – e tendo acampado
contra ele o cercou de montes e trincheiras e construiu fortificações; e quando o Nilo
teve uma cheia no 8º ano (198 a.C /197 a.C) que inundaria as planícies como de
costume, ele a deteve bloqueando em muitos pontos as bocas dos canais, para tanto ele
não gastou uma soma pequena de dinheiro, e tendo posicionado cavalaria e infantaria
para guardá-los, em um curto espaço de tempo ele tomou a cidade com uma tempestade
e destruiu todos os homens ímpios nela, como Hermes (Toth) e Hórus o filho de Ísis e
Osíris, submeteram antigamente aqueles que se rebelaram nos mesmos locais50”.
(Decreto de Mênfis; Linhas 21 a 26).
“Quando ele (Ptolomeu V) veio a Mênfis para vingar seu pai e sua própria
majestade, ele puniu apropriadamente todos os líderes dos que se rebelaram no tempo
de seu pai, que tumultuaram o país e causaram danos aos templos, no momento em que
chegou lá para a performance e as cerimônias apropriadas para o recebimento de sua
coroa (basiléia)”.(Decreto de Mênfis; linhas 27 e 28).
Os danos causados pelos rebeldes - liderados por uma nova elite de militares egípcios - aos
templos egípcios, nos oferecem um excelente indício de que a autoridade de tais sacerdotes e
templos não se fazia respeitar totalmente. Todavia, as disputas internas pelo poder na sociedade
egípcia não apunham necessariamente categorias sociais diferentes (sacerdotes versus militares, por
exemplo), e que facções políticas poderiam se opor aos pares sem constrangimento.
49
No nono nomos (área administrativa) do Delta, possivelmente nas proximidades de Busíris, embora a
localização seja somente aproximada.
50
De acordo com uma versão da lenda osiríaca, seus seguidores liderados por Hórus e Toth, derrotaram os
partidários de Seth nas cercanias de Hermópolis
ϲϳ
A partir do ano 206 a.C. o Alto Egito fora governado por dois faraós nativos rebeldes.
Primeiro por Hor-em-Akhet, e após 199 a.C. por Ankh-Wennefer. A existência de dinastias nativas
não poderia ocorrer sem o apoio e legitimidade conferidos por uma larga porção dos sacerdotes da
região (nesse caso, da região de Tebas). Isso demonstra que a opção de negociar o poder com a
autoridade monárquica helenística não era considerada como única no contexto de disputa por
poder e prestígio pelas elites sacerdotais egípcias.
Desse modo, existe no Egito Helenístico uma realidade em que “partidos” ou facções de
sacerdotes optam pela negociação do poder com o governo greco-macedônio, fazendo certas
concessões ao nómos grego, visando à construção de um espaço oficial para as relações de poder se
desenvolverem.
De forma semelhante, existem no Egito “partidos” ou interesses sacerdotais avessos às
negociações com o governo Lágida, seja por oposição aos valores estrangeiros (nómos) seja por
dissensões com os segmentos partidários das negociações, ou até mesmo por ambas razões,
considerando como dissidência o fato de que as elites sacerdotais pró-mediação servem como
reprodutores e difusores do reconhecimento da necessidade de adoção do nómos. Assim, podemos
delimitar uma efetiva contestação interna à posição política de certas elites nativas, de modo que
constatamos uma realidade política em que os próprios templos egípcios já possuíam rivalidades
entre si, certamente a inserção de novas elites nativas mobilizadas definem novas esferas de conflito
interno.
Podemos ainda recorrer à outra revolta na província Tebaida liderada por Dionysios
Petosarápis, um raro exemplo de egípcio (ou greco-egípcio) de alta hierarquia da corte ptolomaica,
logo após o conturbado reinado de Ptolomeu V Epiphanes em que, o Egito passou por um período
de caos, com dois reis irmãos: Ptolomeu VI Philométor e Ptolomeu VIII Evergeta II. O contexto
dessa revolta se formou pouco antes da invasão do Egito por Antioco Epiphanes, no vigésimo ano
de Philométor (170/69 a.C.), quando o último iniciou, por razões não muito claras, um governo em
conjunto com sua esposa e seu irmão.
Tão logo Antioco, que esmagara o exército ptolomaico na Celessíria, entrou no Egito, o
governo conjunto entrou em colapso. Philométor foi capturado e passou a viver na corte de Antioco,
em Mênfis. Enquanto isso, a população de Alexandria expulsava os regentes designados por
Antioco e aclamavam Evergeta II como rei. Segundo Fraser:
ϲϴ
“Antioco foi provavelmente coroado rei em Mênfis naquele momento, mas
Philométor permaneceu sob sua asa, e quando em 169 Antioco evacuou o Egito51, ele
deixou um rei no trono em Alexandria e um segundo rei sem autoridade, ou com
autoridade restrita, na chóra. (...) Em Alexandria, o reinado conjunto logo causou
desentendimentos entre os irmãos. (...) Mesmo assim, a simpatia dos alexandrinos estava
com o seu próprio nomeado, o irmão caçula, e um levante ocorreu, liderado por um greco-
egípcio, membro da corte, Dionysius Petosarápis”.(1972: 119).
Após o fracasso em Alexandria, Dionysius Petosarápis partiu para o Alto Egito, de onde
reiniciou sua rebelião contra a dinastia Ptolomaica. Diodorus prossegue:
“Agora outro distúrbio toma lugar na Tebaida, como se um fervor revolucionário caísse
sobre as massas. O rei Ptolomeu avançou contra eles com um grande exército e
facilmente restaurou o controle sobre as outras partes da Tebaida. Mas uma cidade
chamada Panópolis estava situada em uma antiga foz e por isso seu acesso era difícil,
tornando-se daí uma forte posição; então os rebeldes mais ativos se reuniram ali.
Ptolomeu <vendo?> [SIC] o desespero dos egípcios e a força do local, lhes impôs cerco e
51
Obedecendo a um ultimato de Roma.
52
“Amigo do Rei”: Trata-se de um título áulico da corte do reino ptolomaico. Austin comenta sobre
Dionysius: “até então desconhecido (cf. PP 14.600), e um raro exemplo de egípcio ou grego-egípcio
altamente graduado na corte ptolomaica”.(1981: 379 n.1).
ϲϵ
após resistir a todo tipo de nau de combate ele capturou a cidade, puniu os culpados e
retornou a Alexandria.” (Diodorus XXX. 17 b.).
“De Platão53 para os habitantes de Pathyris saudações e boa saúde. Tendo sido
enviado de Latópolis para lidar com a presente situação de acordo com os interesses
reais, achei por bem informá-los e exortá-los a permanecerem juntos, sem pânico, e a
assistirem Nechthuris, o vosso governador indicado, até que eu chegue ao vosso distrito
com toda a urgência que eu puder. Adeus. Ano 2654, Phamenoth 16. (endereçado aos)
Habitantes de Pathyris.” (Sel Pap II. 417).
Sete meses depois, enquanto Ptolomeu Alexandre era expulso, e Ptolomeu Sóter II, a quem
Platão transferiu sua lealdade, retornou ao Egito. Goold comenta que “a mudança de reis em nada
afetava a revolta, que levantava os nativos contra o governo estrangeiro”.(1977: 569).
Podemos observar pelo uso do tradicional formulário egípcio “Aos sacerdotes e demais
habitantes...” que a carta reconhece a legitimidade da condição de autoridade dos sacerdotes tebanos
ao longo da rebelião. Como foi observada, a existência de “partidos” entre os sacerdotes e templos
tornava impossível à obtenção de unanimidade em relação ao apoio das elites sacerdotais egípcias
53
Talvez o epistrategos da Tebaida.
54
Do reinado de Ptolomeu Alexandre, que ainda era o rei quando a revolta irrompeu.
55
Do reinado de Sóter.
ϳϬ
ao projeto de dominação macedônica. Nesse sentido, seria correto dizer que não existia um
sacerdócio monolítico e organizado de sacerdotes.
Cada nomos (província) e até cada cidade poderia estar sob a hegemonia de um templo
específico, o qual, independentemente do deus ao qual fosse dedicado, poderia possuir um corpo de
sacerdotes com suas próprias inclinações e posicionamentos políticos a respeito das relações de
poder para com o governo helenístico. Cada sacerdócio podia se organizar em uma associação
sagrada (swnt) e dar suas próprias regras e costumes (onipotentes), pelos quais modelar suas vidas.
Conforme Huss observa, “Tudo indica que os sacerdotes tinham a possibilidade de regrar um
aspecto importante de suas próprias vidas sacerdotais”. (49: 1994). E prossegue afirmando que “os
reis ptolomaicos garantem um significativo espaço espiritual livre, através dos hieratikoí,
respectivamente hieroì nómoi. (...) Importante aspecto da vida entre os muros dos templos
demonstra, por conseguinte que os sacerdotes se auto-regulamentavam”. (51: 1994).
Então, o máximo que se poderia alcançar seria um apoio de determinados segmentos dos
sacerdócios do Egito. Daí as negociações serem dinâmicas e necessárias tanto por parte do governo
monárquico quanto por parte dos segmentos sacerdotais engajados nas negociações de mediação.
Isso por si já demonstra uma justificativa bem clara para a manutenção da linha de diálogo entre o
Governo Helenístico e certas facções das elites nativas: a manutenção de seu status quo e apoio
mútuo contra inimigos internos em comum.
As elites que negociam e mediam a autoridade helenística o fazem por lhes ser social e
politicamente tão vantajoso quanto o era para os macedônios, visto que o apoio de certos segmentos
sacerdotais ao governo Lágida gera automaticamente uma dissidência em relação aos grupos
(sacerdotais ou não) pouco dispostos a participar desse viés de resistência/sobrevivência política.
Com identidades culturais diferentes, e bastante ciosos dessa diferença, tanto o governo
helenístico quanto os templos egípcios se inserem em um contexto de modificações das estruturas
culturais subseqüentes ao evento histórico da presença de um dominador estrangeiro, representado
pelo poder helenístico, exercido no Egito pela dinastia Lágida. Se por um lado Huss está correto ao
defender que se alguma reforma foi feita em sua estrutura, esta partiu da iniciativa dos próprios
sacerdotes e não de uma determinação do governo grego, por outro, Clarisse prova em sua
ϳϭ
argumentação que o cerimonial e formulário do decreto são de fato, o corrente no mundo
helenístico. A helenização segundo a definição literal do termo implica o aprendizado e difusão do
idioma grego por uma população bárbara (ou seja, não-grega) em seu dia a dia, ou seja, seu
cotidiano (consistindo assim uma necessidade da esfera pública, e facultativo na esfera privada).
A política de cooperação gera o que foi chamado aqui de “cristalização do nómos grego”.
Trata-se do reconhecimento e apropriação parciais do nómos grego segundo critérios sacerdotais
egípcios. Entretanto acabam compondo juntos um campo de negociação baseado em elementos
conjuntos, ou seja: enquanto os sacerdotes interpretam os decretos como instrumento fiel às suas
tradições que serve a fins políticos, os monarcas o reconhecem como uma forma tipicamente
helenística de texto. Isso equivale afirmar que através do campus determinado, as duas instâncias de
poder integram uma mesma estrutura social e política, independentemente de suas impressões ou
discursos ideológicos.
Isso por sua vez não evita os conflitos internos, uma vez que as elites sacerdotais
mediadoras ao optar por integrar parcialmente a estrutura hegemônica imperial helenística, geram –
ou tornam-se ela própria reconhecidas como – uma dissidência social. Essa divergência se
manifesta quando rebeliões nativas passam a afetar os templos egípcios partidários do governo, bem
como regiões rebeladas entronizam ritualisticamente novas dinastias autóctones. Neste espírito, uma
suposta helenização não constitui de modo algum a domesticação do outro, e tampouco isenta a
autoridade helenística de oposição, seja através da negociação decorrente com as facções que
aceitavam negociar o poder; seja através dos extremos das rebeliões de outros grupos refratários a
negociações.
ϳϮ
Observamos que não há submissão na relação política entre sacerdotes e faraó (ou basileus).
Existem vantagens e desvantagens em se posicionar politicamente devido à heterogeneidade da
natureza das outras forças políticas em ação na sociedade egípcia. Facções sacerdotais, mercenários,
veteranos de guerra, enfim, todos agem segundo suas próprias conveniências. Assim, torna-se
possível e até aconselhável o desenvolvimento de uma rede de solidariedade mútua, onde as duas
instâncias de poder: sacerdotes egípcios mediadores e governo helenístico estabelecido mantém a
legitimidade e a continuidade seu poder e prestígio perante suas respectivas esferas políticas. Isso
equivale a afirmar que tanto sacerdotes egípcios quanto monarquia helenística estavam em consenso
quanto à necessidade de reprodução de uma realidade de compartimentação cultural, garantindo
para ambas a legitimidade de seus discursos de identidade cultural e de hegemonia social.
56
Lembrando que ao abordarmos a sociedade egípcia, estamos lidando com uma sociedade onde a
religiosidade, bem como os poderes da classe sacerdotais são extremamente relevantes.
ϳϯ
mutuamente, em razão da necessidade mútua de negociar o poder, o que conseqüentemente torna
ambos parte de uma mesma estrutura, de uma mesma realidade social e política.
ϳϰ
3. A CHÓRA EGÍPCIA E A “PRAGMÁTICA” DO COTIDIANO
Podemos definir essa percepção de “normalidade” como uma relação de solidariedade entre
o passado o presente e o futuro. Nesse espírito, compreendemos a tradição como um mecanismo
que busque zelar pela noção de normalidade e continuidade de uma sociedade. É esse “sentido por
trás das ações e dos objetos” que caracteriza um universo simbólico específico de cada sociedade, e
lhe oferece os elementos necessários para a concepção de sua própria identidade. As migrações
características dos realinhamentos geopolíticos do Mundo Helenísticos tiveram como conseqüência
um fluxo de colonos helenizados em direção ao interior do Egito, a chóra.
“No Fayum, como nos EUA, outra área de grande colonização, encontramos vilas
e vilas homônimas de cidades famosas, nesse caso, cidades do Alto e Baixo Egitos com
seus nomes meio helenizados, meio egípcios (Apóllonos pólis kôme, Hermoû pólis kôme,
Helíou pólis kôme, Kunôn pólis kôme, Letoûs pólis kôme, Mênfis kôme… bem como:
ϳϱ
Athrîbis, Boúbastos, Bousîris, Mendes, Tânis, …) Sem dúvida esses nomes evocam os
lugares de onde os novos colonos vieram para o Fayum57.” (1967:09).
Em todo o Fayum e suas 66 kômai de nomes gregos, existem somente 14 com nomes
dinásticos58. O mais usual era nomear as kômai homenageando deuses ou pessoas ligadas à realeza,
como alto oficiais da burocracia (do Fayum em particular). A grande diferença entre os
assentamentos com nomes gregos e egípcios, é dada pelo fato de que no primeiro caso, a população
é majoritariamente de populações gregas/helenizadas e no segundo caso, é de nativos, ou seja: No
primeiro caso, muito dos assentamentos são de soldados gregos/helenizados (clerurcos), e no
segundo caso de basilikoì georgoí (camponeses das terras reais). Essa região possuía uma
população relativamente alta de gregos, a qual, segundo Stanwick “ajudou a criar uma transição
cultural específica, englobando projetos de construção de templos e de estátuas
incomuns59”.(2003:23).
e helenizados ocuparam inúmeras regiões da chóra egípcia (principalmente a região do Fayum),
onde então se inseriam em um espaço onde se encontrariam como uma minoria, em relação à
população egípcia nativa presente. Que conseqüências tais contatos poderiam trazer à nossa
discussão? Para compreender essa nova fase de nossa discussão, precisamos recorrer a uma segunda
dimensão do nómos em nossa abordagem: um conceito grego de cultura. Para desenvolvermos o
assunto, investigaremos a forma como o nómos alcança a esfera do cotidiano abordando as
interações culturais diárias.
O objetivo deste capítulo é, portanto, estabelecer uma análise de fontes sobre o contexto das
relações cotidianas entre as comunidades egípcia nativa e helenística na chóra. Através do estudo
dos contatos diários entre esses grupos, buscamos compreender o processo pelo qual um nómos
grego primário adaptou e incorporou valores tradicionais egípcios a seu universo simbólico, de
modo à re-produzir as apropriações características e específicas de um nómos grego no Egito, isto é,
um nómos grego adequado a uma realidade simbólica oriunda das relações sociais existentes e
conseqüentes de interações entre o helenismo e o egípcio.
61
A autora participa da seguinte posição sobre o conceito de koiné: “a koiné consiste em um conjunto de
tendências que a tradição escrita mascarava ou comprimia, mas cuja força irresistível levou-as a se
manifestarem mais acentuadamente, sempre que as circunstâncias o permitiram. Em suma, o termo é dúbio
ϳϳ
mas os escribas menos instruídos sempre nos informam melhor sobre a língua corrente de sua época
(conhecemos papiros que datam até do IV século a.C.)”. (1991: 69). A contribuição do papiro para
os estudos do mundo helenístico pode ser bem ilustrada pelo comentário de Roberts, que diz:
“Uma frase como ‘Helenização do Oriente Próximo’ assume uma significação mais definida
quando refletimos que, no sítio da pequena aldeia egípcia de Socnopaiou Nesus, pendurada numa
rocha acima do Lago Moeris e separada por milhas de deserto ou água da aldeia mais próxima,
centralizada em torno do templo do deus crocodilo Sobk e por tal templo dominada, foram
encontrados fragmentos do Heitor de Astidamas, e da Apologia, de Platão, enquanto sabemos que,
entre os autores que eram lidos na vizinha Karanis, figuram Chariton, Isócrates e um gramático
latino (Palaemon)”.(1993: 385).
Tal relato nos oferece uma boa dimensão da extensão e variedade da literatura/cultura grega
no Egito. Roberts explica que “no Egito providencial, de qualquer forma, não se fez qualquer
tentativa para manter pura a raça; ser grego logo significou falar grego e ter tido uma educação
grega. Daí não ser qualquer acidente o fato de que tantos papiros literários foram recuperados com
origem no Egito”.(1993: 373). Contudo, em nosso trabalho, exploramos um outro aspecto do
potencial da informação proveniente do papiro.
Dentre as fontes documentais em papiro do Egito Ptolomaico pouquíssimas remetem ao
início da dominação grega sobre o Egito. Em adição a esse fato, ressalta-se que esses papiros estão
por vezes fragmentados e em más condições de preservação. As descobertas papirológicas formam
grandes “quebra-cabeças”, solucionados ao longo de décadas de novas escavações em busca de
novas “peças”. Roberts reconhece que “de nenhum outro país do mundo antigo herdamos uma tal
abundância de material variado relativo a todas as formas complexas da vida econômica e social”.
(1993: 383). Do Fayum provém a maior parte dos papiros encontrados, estudados e publicados,
sobre o Egito Helenístico. Os papiros fornecem a maior parte do conhecimento acerca da realidade
do Egito Helenístico. Esse potencial precisa ser explorado para nos permitir dimensionar as práticas
sociais decorrentes das trocas culturais entre gregos/helenizados e egípcios nativos.
porque designa uma língua em que a tradição poderosa lutou por muitos séculos contra as tendências da
evolução da lingüística: daí a koiné não ser uma língua fixada, nem tampouco um idioma que evolua em
obediência regular a determinadas tendências. Ela é uma espécie de equilíbrio, constantemente variável,
entre fixação e evolução”. (1991: 69).
ϳϴ
3. 1. As Interações Cotidianas na Chóra do Egito Helenístico
Desde o período Clássico, por definição, a chóra era essencialmente um espaço ligado ao
rústico (agroikos). Segundo Borgeaud:
No Egito Helenístico, o termo chóra designa também todo o espaço exterior à cidade de
Alexandria propriamente dita, ou seja, tanto os aglomerados e centros populacionais como os
campos – espaços de trabalho agrícola. Originariamente o agroikos era aquele que vivia no agros,
isto é, nas terras de pastagens e nos campos não cultivados, segundo uma concepção homérica.
Posteriormente, no século V a.C., o termo se associa a agrios, que significa “selvagem”, “feroz”.
Borgeaud explica que “no século V é que essa oposição (…) se torna oposição entre o espaço
exterior considerado no seu conjunto e o espaço urbano.
Por isso, a evolução que vai desde a epopéia à comédia é uma evolução histórica (e
econômica)”.(1994:139). No Reino Helenístico do Egito, uma vez que a noção de helenização
evoca necessariamente um “espaço das cidades”, logo urbano62, a chóra agrega inicialmente os
habitantes egípcios/ bárbaros, ou seja, o “outro”, configurando uma idéia de “fronteira”63 ou
“espaços de mediação” entre os núcleos helenizados do reino Lágida. Assim, a reprodução da
dicotomia campo X cidade no Egito Helenístico ganha uma nova dimensão ao incorporar a figura
do egípcio aos espaços rurais da chóra. É nessa chóra egípcia helenística que as interações culturais
entre grupos sociais nativos e estrangeiros se darão com maior intensidade.
Segundo Burke, “como culturas inteiras, há locais específicos que são particularmente
favoráveis à troca cultural, especialmente as metrópoles e as fronteiras”.(2003: 73). A chóra egípcia
se encaixa bem como local “favorável à troca cultural”. Enquanto uma das regiões de maior
acolhida da imigração helenística da chóra egípcia, o Fayum, pode ser definido como uma área de
62
Podemos compreender o termo se percebermos a política de construções de prédios representantes de
instituições culturais helênicas como teatros e ginásios, além de casos de construções de póleis inteiras para
recriar o espaço helênico ideal (como Alexandria no Egito, e inúmeros exemplos na Síria) – vida em póleis é
o oposto à vida escolhida pelos bárbaros, que nesse sentido atraem para si o estereótipo do agrios.
63
Dizemos “fronteiras” uma vez que são espaços, em que indivíduos de culturas diferentes se encontram, e
conseqüentemente, onde as diferenças se encontram e se medem. Não significa aqui que existisse uma
demarcação física formal e específica, visando a separação entre egípcios nativos e estrangeiros helenizados.
ϳϵ
fronteira cultural entre o mundo helenístico e o egípcio nativo. O autor prossegue afirmando que
“essas zonas de fronteira (…), podem ser descritas como ‘interculturas’, não apenas locais de
encontro, mas também de sobreposições ou intersecções entre culturas, nas quais o que começa
como uma mistura acaba se transformando na criação de algo novo e diferente”.(2003:73).
Sob uma ótica ideológica do poder político a unidade identitária pró-helênica seria alcançar
uma pretensa coesão social de modo a permitir a reprodução da dicotomia cultural gregos X
bárbaros. Mas será que essa postura dicotomista se sustenta em uma análise das práticas cotidianas?
Podemos entender a chóra como um espaço de convivência comum onde ocorreram novas formas
de relações sociais entre grupos de diferentes procedências – estrangeiros e nativos. Justamente por
serem “novas” formas de relações sociais, estas não possuem precedentes para orientar os agentes
sociais em ação. Este “risco empírico” (Sahlins 1994) oferece um potencial de transformação dessas
relações sociais, e conseqüentemente, a re-formulação da noção de identidade dos grupos
envolvidos.
ϴϬ
visando estar apto para ensinar meninos escravos gregos a arte médica egípcia da iatroklysteria64 de
um mestre egípcio:
“Sabendo que você está aprendendo a escrita egípcia, eu fico feliz por você e por
mim mesma, pois agora você vem para a cidade e vai ensinar os meninos-escravos no
estabelecimento de Phalou... o médico dos banhos (públicos)65, e você terá meios de
sustento na velhice. Séc.II a.C. (GHDHP: 116).
Para Rémondon66, trata-se, antes de tudo, de um sistema tipicamente grego: usar a sabedoria
egípcia para a obtenção de lucros; e não uma característica decorrente de uma crescente interação
sócio-cultural entre os grupos. A nosso ver, a despeito dos lucros que seriam obtidos sugere antes de
tudo um indício de um dos motivos para o aprendizado da língua egípcia era o de se apropriar
(mesmo que economicamente) de práticas e saberes que, de outro modo, permaneceriam
incomunicáveis aos gregos. A crença na eficiência e/ou utilidade de determinados conhecimentos
egípcios poderia inserir no senso comum helenístico a discussão a respeito de sua adoção. Nesse
contexto a maior parte dos conhecimentos médicos ou mágicos está diretamente conectada a esfera
religiosa egípcia. Podemos então inserir uma demonstração da apropriação grega do conhecimento
egípcio de interpretação de sonhos pela carta a seguir:
“De Apollonius, para Ptolomaeus seu pai, saudações. Eu juro por Sarapis que se
eu tiver sequer um pequeno arrependimento, você jamais verá minha face novamente.
Para você nada mais que mentiras bem como para seus deuses, pois eles nos
mergulharam em um profundo atoleiro no qual podemos morrer, e quando você tem uma
visão de que nós estamos sendo resgatados, aí então, afundamos definitivamente. Saiba
que o fugitivo67 tentará nos impedir ficando no lugar; isso porque por nossa causa ele
sofreu uma perda de 15 talentos. O estratego está vindo amanhã para o Sarapeum e
passará dois dias no Anubieum68 bebendo. Nunca mais eu mostro minha cabeça em
Tricomia pela vergonha de nos havermos permitido confiar e ser iludidos, enganados
pelos deuses e acreditando em sonhos69. Passar bem. Verso: ( endereçado) a
Ptolomaeus saudações. (À esquerda em letra pequena) Uma resposta para os faladores
da verdade (alétheian légountes).” c.152 a.C. (Sel. Pap. I, 100).
64
Técnica de administração de purgativos.
65
Vale citar Roberts que observa que “banhos públicos, tanto para homens como para mulheres, era uma
inovação grega: para o camponês egípcio então agora contente com o Nilo, a idéia era tão estrangeira como a
do ginásio; para os gregos, essas coisas significavam civilização”.(1993: 397).
66
cf: Chronique d’Egypte 39 (1964), 126-46.
67
Warmington explica que “o escritor se refere a um inimigo chamado Menedemus”.(1970: 289).
68
O autor prossegue dizendo se tratar de “um templo de Anúbis próximo à avenida do Serapeum”.(ibidem).
69
Ainda segundo Warmington,.“O Serapeum era o local favorito para pessoas em busca de revelações
através de sonhos, e Ptolomaeus era um crente devoto dessa superstição. Muitas de suas cartas referem-se ao
mesmo assunto”.(ibdem).
ϴϭ
Independentemente de seus resultados agradar a todos, pode-se constatar que a consulta a
intérpretes de sonhos era uma prática originalmente egípcia, naturalizada e incorporada às práticas
cotidianas helenísticas. Aqui notamos que existe um reconhecimento de uma prática cultural
egípcia; e que em meados do século II a.C., existia a presença em alguns segmentos da população
helênica que participava das mesmas práticas. Se a carta analisada nos indica que nem sempre era
uma garantia de eficiência, o fato é que Apollonius mesmo sem acreditar em sonhos premonitórios
teve a opção de consultar um profissional da área a conselho de Ptolomaeus. Apollonius em sua
revolta acusa seu pai por sua credulidade e menospreza “seus deuses”, indicando que seu pai
acreditava na eficácia dos deuses egípcios e das práticas mágicas de seus sacerdotes.
Podemos constatar em nossa análise que a dicotomia entre os dois nomói não apenas não
organiza a priori as escolhas dos agentes sociais explorados, como aparece em seu horizonte mais
pragmaticamente do que estruturalmente. Sahlins afirma que
“os homens em seus projetos práticos e em seus arranjos sociais, informados por
significados de coisas e de pessoas, submetem as categorias culturais a riscos empíricos.
Na medida em que o simbólico é, deste modo pragmático, o sistema é, no tempo, a
síntese da reprodução e variação”. (1994: 09).
nem dá atenção às nossas condições, lembrando como eu estava em carência de tudo
enquanto você ainda estava aqui, para não mencionar este longo lapso de tempo e esses
dias críticos, durante os quais você não nos enviou nada. Como, além de tudo, sendo
Hórus quem enviou a carta que nos trouxe notícias de seu relaxamento de detenção, fico
ainda mais insatisfeita, não obstante, como sua mãe também está aborrecida, por ela
bem como por mim, por favor, retorne para a cidade, se nada mais detiver você aí. Você
me fará um favor cuidando também de sua saúde corporal. Adeus. Ano 2, Epeiph 30.
Verso: Para Hephaestion.” 168 a.C. (Sel. Pap. I, 97).
Podemos incluir a essa questão das apropriações de elementos egípcios, a suposta prática do
casamento entre irmãos, atribuída à tradição egípcia – ligada religiosamente ao mito do casamento
de Osíris com sua irmã Isis – e que entretanto tornou-se largamente adotada pela população
helenística. Ao interpretar literalmente a prática egípcia de empregar o termo “irmão e irmã” para
cônjuges egípcios, os Ptolomeus sancionaram a união entre irmãos, como um costume egípcio.
Quando a própria família real passou a adotar essa prática, ela tornou-se sancionada pelas elites
helenizadas, ao passo que a população helenizada passou a adotá-la largamente. Roberts comenta
que “é digno de nota que no Gnomon do Idios Logos julgou-se necessário proibir expressamente
tais casamentos a romanos”.(1993: 398).
Quando ocorreu a criação do deus patrono de Alexandria e da dinastia Lágida - Serápis -
pelos primeiros monarcas helenísticos, seguiu-se o desenvolvimento de um culto sincrético,
mediante um encontro de sábios egípcios e helenísticos assimilando elementos nativos, como os
oráculos de sonhos, adotando-o em seus novos templos em busca de adeptos, devido a grande
popularidade da prática frente à população helenística e egípcia. Bagnall e Derrow observam que a
interpretação de sonhos “era sem dúvida uma especialidade reconhecida de certas práticas religiosas
egípcias”. (1981:193). Isias comenta que todos os outros que haviam se retirado para o Serapeum já
haviam retornado a seus lares, enquanto Hephaestion permanecia “internado”, causando graves
problemas a sua família e dependentes, justificando suas críticas ao excesso de zelo para com
assuntos espirituais por seu esposo-irmão.
Outro aspecto que vale explorar é o uso de um nome não helênico, ou melhor, de um nome
egípcio helenizado (Isias) pode ilustrar, neste caso de teoforia, a popularidade de divindades
egípcias entre a comunidade helenística. Segundo Crawford:
“O problema da nacionalidade refletida pelos nomes continuará a perturbar
qualquer estudante do Egito Greco-Romano, mas é algo que precisa ser enfrentado
desde que visto como a mistura de populações (…) e áreas de conflito nessa sociedade.
Um nome sozinho e fora de contexto não pode dizer nada a respeito da nacionalidade de
seu dono”.(1971:133).
ϴϯ
Gradativamente nomes próprios vão sendo inovados no Egito Helenístico. Em muitos casos,
gregos adotaram nomes egípcios helenizados, como Isias. Essa prática assumiu graus variados em
períodos diversos. Outros casos demonstram egípcios adotando um segundo nome, helênico,
chegando a traduzir para o grego os nomes egípcios, seja por aproximação de significados
(Theagenes = Isis), ou mera aproximação fonética (Thonis = Theon). Retornaremos em breve ao
assunto.
Precisamos inserir à nossa discussão a questão dos casamentos mistos. Através desses
casamentos, um discurso de diferença e superioridade cultural helênica encontrava um problema: a
impossibilidade de sua reprodução em famílias mistas; e um dilema: como classificar, ou mesmo
identificar os filhos de tais casamentos? Vejamos a seguinte fonte:
“(Sumário) Ano 22, Mecheir 11. Philiscus filho de Apollonius, Persa do Epígono72,
combina com Apollonia também chamada Kellauthis, filha de Heraclides, Persa, tido por
ela como guardião de seu irmão Apollonius, que ele recebeu dela em moeda de cobre 2
talentos 4000 drachmae, o seu dote por ela mesma, Apollonia, concordando com ele ...
Guardião do contrato: Dionysius.
(Texto do contrato) No 22º ano de reinado de Ptolomeu também chamado
Alexandre e outros sacerdotes sendo como se escreve em Alexandria73, o 11º do mês de
Xandicus, como o 11º do Mecheir, em Kerkeosíris na divisão de Polemon do nomos
Arsinoíta. Philiscus filho de Apollonius, Persa do epígono, acerta com Apollonia, também
chamada Kellauthis, filha de Heraclides, Persa, tido por ela como guardião de seu irmão
Apollonius, que ele recebeu dela em moeda de cobre 2 talentos 4000 drachmae, o dote
por ela mesma, Apollonia deverá viver com Philiscus, obedecendo-o como uma esposa
deve a seu marido, possuindo suas propriedades em comum com ele. Todas as
necessidades e vestes e o que mais for próprio para uma esposa legalmente casada
Philiscus deverá suprir a Apollonia, esteja ele em casa ou fora, em proporção aos seus
meios. Não será considerado de legalidade para Philiscus possuir outra esposa além de
Apollonia, nem manter uma concubina ou rapaz, nem ter filhos com outra mulher
enquanto Apollonia vive, nem habitar outra casa sobre a qual Apollonia não seja senhora,
nem expulsar ou insultar ou maltrata-la, nem alienar qualquer parte da propriedade deles
em detrimento de Apollonia. Se ele é comprovado como tendo feito uma dessas coisas ou
fracassar em supri-la com necessidade ou vestimentas ou outras coisas como
estabelecido Philiscus deverá restituir a Apollonia o dote de 2 talentos 4000 drachmae de
cobre. Da mesma forma não será de legalidade para Apollonia passar a noite ou dia fora
da casa de Philiscus sem o consentimento de Philiscus, ou flertar com qualquer outro
homem, ou desonrar o lar comum ou causar a Philiscus alguma vergonha por qualquer
ato que traga a vergonha sobre um marido. Se Apollonia optar por sua própria vontade se
separar de Philiscus, Philiscus deverá indeniza-la com o exato dote dentro de dez dias a
partir da demanda. Se ele não pagar como acertado, ele irá pagar uma multa a ela de
72
Literalmente, segundo Warmington, significa “Persa da geração seguinte”, denotando um certo status
social; “mas é difícil dizer o que o termo originalmente significa e o que eventualmente queria implicar”.
(1970:07).
73
Os escribas sempre usam esse artifício quando querem evitar reescrever sempre a lista dos sacerdotes
nomeados (eponymous).
ϴϰ
uma vez e meia a quantidade do dote que ele recebera. Testemunhas: Dionysius filho do
patrono (Pátronos), Dionysius filho de Hermaiscus, Theon filho de Ptolemaeus, Dydimus
filho de Ptolemaeus, Dionysius filho de Dionysius, Heraclius filho de Diocles, todos os seis
Macedônios do Epígono. Guardião do contrato: Dionysius. (Reconhecimento) Eu,
Philiscus filho de Apollonius, Persa do Epígono, reconheço que recebi o dote de 2 talentos
4000 drachmae de cobre como estabelecido acima e eu depositei o contrato, sendo
válido, com Dionysius. Dionysius filho de Hermaiscus, o supracitado, escreveu por ele,
que é iletrado. (Recibo) Eu, Dionysius, recebi o contrato, sendo válido. (Registro)
Depositado para registro em Mecheir 11 do ano 22. (Endossado) Casamento resumido de
Apollonia com Philiscus...”. 92 a.C. (Sel. Pap I, 02).
Através dos casamentos mistos, entre nativos e helenizados, constatamos uma forma
bastante eficiente de diminuição da idéia original da diferença, bem como redução da idéia original
de “distância” característica de um momento inicial de encontro entre duas culturas diferentes. No
texto localizamos o epíteto “do Epígono” atribuído ao noivo (“Persa do Epígono”) e às seis
testemunhas (“Macedônios do Epígono”), em adição à informação sobre a origem individual.
Warmington supõe que o termo originalmente se aplicasse a “filhos de soldados estrangeiros,
nascidos no Egito, mas em tempos posteriores ‘Persa do Epígono’ era usado indiscriminadamente
para significar um certo status legal”. (1970: 448).
Receber uma classificação de “grego” significa antes de qualquer coisa o reconhecimento
oficial do governo de que um determinado indivíduo não é um bárbaro. Nossa fonte trata do
casamento de um homem “grego”, Philiscus, filho de Apollonius (“Persa do Epígono”) com uma
mulher (meio?) egípcia, Apollonia-Kellauthis, filha de Heraclides, (persa, mas de nome grego).
Interessante que a mulher egípcia e seu pai persa não estão juridicamente classificados como
“gregos”, embora possuam nomes helênicos e sejam atendidos pela máquina burocrática grega.
Retornamos então a questão de nomenclatura. Vimos que a noiva possui um nome-duplo.
Crawford comenta que “uma certa vertente da sociedade egípcia buscava melhorar seu status pela
adoção de um nome duplo egípcio e grego que bem podia ser eventualmente substituído por um
puramente grego”.(1971: 134). De fato, constatamos em nossa análise que o documento reconhece
em seu sumário que a mulher egípcia possui um nome duplo, grego e egípcio, embora a identifique
em seu corpus apenas como Apollonia, seu nome grego. Reproduzimos abaixo sob forma de tabela,
uma lista baseada nos estudos de Crawford sobre os nomes duplos utilizados pelos habitantes de
Kerkeosiris, a aldeia citada pela fonte:
ϴϱ
Tabela 03: Nomes Duplos Greco-Egípcios
Nome duplo: Fonte (os números Notas complementares sobre a
entre parênteses se documentação:
referem à data):
Kellauthis/Apollonia, filha de P.Tebt. 104, 1-2 = Contrato de casamento.
Herakleides e uma Persine; Sel. Pap I, 02 (92);
Petosiris/Dionysios, filho de P. Tebt. 109, 1 (93); Contratos de venda de trigo.
Thonis/Theon;
Athermouthis/Athenais, esposa de P. Tebt. 109, 2 (93); Filha de “Pres.retis/Apollonios”
Petosiris/Dionysios, um Persa do citado abaixo.
epigono;
Pres.retis (S.I.C)/Apollonios P. Tebt. 109, 3;
Menches/Asklepiades; P. Tebt. 164; Escriba da vila de Kerkeosiris e
filho do “Petesouchos/Ammonios”
citado abaixo.
Petesouchos/Ammonios; P. Tebt. 164; Descrição (fins do segundo século),
uma tradução grega de um contrato
em demótico.
Petesouchos/?, filho de ?/Asklepiades; P. Tebt.164; A contraparte do contrato acima.
Petesouchos/Polemon; P. Tebt. 29, 2 (c. Escriba da vila de Kerkeosiris.
110); Carta ao chrematistai. Petesouchos
ocorre em outras fontes sem seu
nome duplo em: P. Tebt. 77, 1
(110); 78, 1 (110-108); 53, 1 (110).
Petesouchos/Ptolemaios, filho de P. Tebt. 105, 1 (103); Arrendamento de terra. Ptolemaios
Haryotes/ Apollonios filho de Apollonios é conhecido em
P. Tebt. 62, 88 (119-118); 158 (103)
e 106, 1(101).
Petesouchos/Peteuris, filho de P. Tebt. 110, 1 = Sel. Empréstimo de trigo. “um
Selebous; Pap. I, 68, (92 ou 59); surpreendente nome duplamente
egípcio”. (1971: 135).
Ergeus/Hermias, filho de Petesouchos; P. Tebt. 110, 2-3 (92
ou 59).
Nektsaphthis/Maron, filho de P. Tebt. 61 a, 8, 17,
Petosiris/Dionysios; 40 (118-117): 62, 110
(119-118); 85, 59
(?113); 63, 126 (116-
115); 64 a, 107 (116-
115); 75, 10 (112);
84, 115, 124 (118);
105 (103); 106, 1
(?101); 245.
(Baseado nas informações de Crawford, 1971: 135).
ϴϲ
Mas a adoção de nomes duplos implicaria necessariamente em uma estratégia consciente de
obtenção de “melhorias sociais” como defende Crawford? A autora explica que a ocorrência de
nomes dupla tende a preferir certa forma de documentação, tais como “contratos, inspeções de terra
e cartas oficiais. Seria, portanto impossível saber quantos egípcios nativos estavam ocultados por
trás de nomes puramente gregos em listas de impostos, memorandos e outras fontes menos
oficiais”74 e não uma apropriação “pragmática” de valores?
Não insinuamos aqui um “pragmatismo” no sentido de dotar os egípcios com uma
“racionalidade burguesa”, como Sahlins75 (2001) acusa Obeyesekere76, em um sentido de utilidade
prática e benefícios econômicos minuciosamente identificados, mas um processo de apropriação no
contexto de uma relação de clientela, entre o grego do Fayum e o Egípcio por ele “protegido”.
Assim, a adoção de nomes duplos greco-egípcios pode decorrer de um reconhecimento egípcio de
um simbolismo poderoso por trás dos nomes gregos.
O estabelecimento de uma monarquia helenística no Egito criou uma nova elite social no
reino: os helenizados, ou “gregos”. Isso classificou em uma condição subalterna as populações não-
helenizadas, portanto, bárbaras. Contudo, até que ponto um determinismo de submissão e
inferioridade social era aceito passivamente pelos egípcios nativos? No trecho a seguir, reproduz-se
uma carta de um egípcio a um grego, escrita em grego:
“(…) a Zenon, saudação. Você faz bem se você está saudável. Eu também estou
bem. Você sabe que você me deixou na Síria com Krotos e eu fiz tudo que foi ordenado a
respeito dos camelos e fui inocente perante você. Quando você enviou a ordem para me
dar pagamento, ele deu nada do que você ordenou, e Krotos me deu nada, e sim
continuou dizendo-me para eu me retirar, eu permaneci por um longo tempo esperando
por você; mas quando eu em busca pelo essencial e não conseguindo nada em lugar
algum, eu fui compelido a fugir para a Síria para assim não perecer de fome. Assim eu
escrevi para você para que você possa saber que Krotos foi a causa disso. Quando você
me enviou novamente para Philadelphia para Jason, novamente eu faço tudo que é
ordenado, por nove meses agora ele me deu nada do que você ordenou a mim ter, nem
óleo nem grão, exceto pelo período de dois meses quando então ele me pagou as vestes
(ajuda de custo). E eu estou em dificuldade no verão e no inverno. E ele me ordenou a
aceitar vinho ordinário como salário. Bem, eles me trataram como escória porque eu sou
74
Crawford cita “P. Adler dem. 2 (123)” acrescentando ainda como exemplo que “Isidoros filho de Theon
que era chamado de Paesi, filho de Jeho em uma diagraphé grega era simplesmente chamado Paêsis tou
Teôtos.” (1971: 135).
75
Sahlins afirma: “Em última análise, o antietnocentrismo de Obeysekere vira um etnocentrismo simétrico e
inverso, com os havaianos consistentemente praticando uma racionalidade burguesa e os europeus incapazes,
por mais de duzentos anos, de fazer qualquer coisa além de reproduzir o mito de que os “nativos” os
consideravam deuses. Digo “racionalidade burguesa” porque, como logo veremos, desde o século XVII, a
filosofia empirista em questão pressupôs um certo sujeito utilista – uma criatura de carência infinita
contraposta sobretudo a um mundo puramente natural.” (2001: 23).
76
Cf: Obeyesekere,The Apotheosis of Capitain Cook, 1992.
ϴϳ
um “bárbaro”. Eu imploro a você, portanto, se isso parecer justo a você, dar a eles ordens
que eu obtenha o que é merecido e que no futuro eles me paguem no total, de modo eu
não pereça de fome, pois eu sei grecizar77. Você, portanto, dê atenção a mim, por favor.
Eu rezo a todos os deuses e à divindade guardiã (daimon) do Rei que você permaneça
bem e venha a nós em breve para então você possa por si mesmo ver que eu sou
inocente. Passar bem. (Endereçado) a Zenon”78. c.256-255 a.C. (GHDHP, 114= HWARC,
245).
77
A versão inglesa traduziu “hellenizein”, “imitar os costumes gregos”, como “to act the Hellene”, isto
é:“fingir o heleno”. Na crítica de Préaux a esta mesma passagem ela afirma: “(...) por mais que a carta tenha
sido escrita pelo homem em questão, o que não se pode ter certeza, a palavra pode ser tão somente uma
forma exagerada de dizer “em casa não me porto como grego”.” (1947:69).
78
Esta é a carta de um não-grego (egípcio ou árabe), antigo subordinado do dioeketes do Fayum, Zenon.
Uma vez deixado na Síria para trabalhar com outros agentes de Zenon, este sofreu com discriminação e não
recebeu sus pagamentos por “não saber fingir o heleno”, chegando a ser proposta uma remuneração em
vinho. O “barbarismo” causador de tal tratamento não se limitava simplesmente ao idioma. (os editores
comentam que a carta, apesar de pobremente escrita, não é má composta), mas também nas maneiras e
costumes (nómos).
ϴϴ
idioma grego não dá garantia alguma de uma total assimilação do nativo79 pelos valores éticos
(nómos) helenísticos. A própria transformação do ático em koiné já desmente por si a idéia de
dominação cultural unilateral, demonstrando como a apropriação do idioma do dominador não
estava livre de adaptação decorrente de novos usos e novos usuários. Certeau (1990) afirmava que:
“a tática é a arma do mais fraco”, de modo que o nativo, quando preciso, se adapta como pode ao
projeto de dominação cultural defendido pelas elites.
Todavia, a fonte, datada do início da dominação helenística possui uma especificidade:
“gregos” e egípcios estão muito nitidamente identificados e separados por seus nomes,
características físicas e hábitos. Mas a medida em que o tempo passa, essa identificação encontrou
graves problemas para a administração helenística; pois como verificamos ocorreu a absorção
gradativa de hábitos e costumes egípcios pelas populações helenísticas, o surgimento de nomes
greco-egípcios, bem como os freqüentes casamentos mistos. Por outro lado, a população não
demonstra em nossa análise qualquer preocupação consciente em relação a problemática dessa
dificuldade de identificação e diferenciação, fora as esferas oficiais onde buscam sim estabelecer a
condição grega conforme pudemos observar em nossa análise sobre relações jurídicas.
O Egito ptolomaico manteve duas cortes distintas para julgar questões gregas e nativas.
Lewis comenta que o procedimento tomado diante de uma ação judicial variava de acordo com o
princípio anunciado/reafirmado no “Decreto Real de Anistia de Ptolomeu VIII, Cleópatra II e
Cleópatra III”, de 118 a.C. Segue a nossa análise:
“Assim eles decretaram com relação à ações judiciais em que egípcios e gregos se
opõem, isto é, ações trazidas por gregos contra egípcios ou por egípcios contra gregos
(…) que egípcios que entraram em contratos com gregos em língua grega deverão
acionar ou ser acionados diante dos chrematistai (juizes de jurisdição grega), porém,
aqueles que mesmo desfrutando do status grego, entraram em contratos escritos na
língua egípcia (demótico) deverão acionar e ser acionados diante dos laokritai (juizes
populares) de acordo com a lei do país.”80 . (1993:280). (JEA, 79 = Sel. Pap. II, 210 =
HWARC, 231).
79
Assim, cabe explicar nossa ênfase no domínio do grego pelo nativo enquanto uma condição primeira para
sua inserção na helenização, e não como uma prova de sucesso de um processo helenizador. A questão do
idioma como “moeda” nessa relação de estabelecimento de uma “hegemonia cultural” será mais detalhada
durante nossa abordagem à realidade da chóra egípcia.
80
Esse decreto é bastante comentado desde sua publicação (1902). Lewis (1993:280) observa que ele indica
um benefício à comunidade nativa, posto que acaba por limitar a jurisdição dos chrematistai . Tal posição se
deve ao fato de que desde o século III a.C. até a ordenação real do ano de 118 a.C., as causas cíveis entre
gregos e egípcios eram resolvidas em um tribunal misto chamado koinodikion; extinto por determinação
deste mesmo decreto.
ϴϵ
Em 118 a.C., Evergeta II decretou uma determinação em que o tribunal onde se resolviam os
litígios referentes aos contratos seria determinado pela língua da confecção do mesmo, exceto em
casos em que egípcios fizessem entre si contratos em grego, e o tivessem validado no tribunal
egípcio dos laocritai. Uma vez registrado, um documento passava a constar como autêntico em
uma eventual ação judicial. Segundo Lewis, certamente na época de Ptolomeu II, contratos privados
escritos em demótico podiam ser registrados em arquivos oficiais. As partes envolvidas recebiam
um comprovante certificando sua autenticidade. A pluralidade dos direitos não implica na
particularidade do direito, pois todos os direitos coexistentes podiam ser invocados sob a fórmula de
precedência em um processo. Assim, a população não ficava restrita a algum tribunal em particular.
Ambos procuravam os tribunais que atendessem melhor suas necessidades.
Assim, por exemplo, uma mulher helenizada poderia optar por buscar um tribunal egípcio
caso não possuísse ou não quisesse um representante do século masculino (o kyrios) para
apresentar-se com ela em um tribunal grego, uma vez que as leis egípcias oferecem uma autonomia
feminina muito maior. Lewis cita um decreto de 146 a.C. em que “documentos demóticos não
arquivados seriam invalidados. (…) em outras palavras, o registro não era obrigatório, mas era
extremamente vantajoso, pelo menos para casos de transações mais importantes”. (1993: 279). Isso
permite que egípcios e “gregos” busquem com maior intensidade os tribunais gregos,
independentemente das transações registradas serem entre egípcios ou entre egípcios e “gregos”.
Tomemos como exemplo a seguinte fonte analisada:
“Petesouchus também chamado Peteuris filho de Selebous, Persa do Epígono,
para Hérmias também chamado Hergeus filho de Petesouchus, saudações. Eu atesto que
recebi de você 24 ½ artabas de trigo com uma metade adicional81, que irei restituir a você
no mês de Pauni no 22º ano transferido de Kerkeosiris e medido pela medida do
dromos82. Se eu falhar em restituí-lo eu pagarei imediatamente uma penalidade pelo valor
de cada artaba no valor de 3000 drachmae de cobre ou o maior preço então corrente, e
uma multa de 60 drachmae em prata cunhada para o Tesouro Real pelos danos, este
contrato será valido em qualquer parte como foi produzido. Adeus. O 22º ano, Mecheir
23”. 92 ou 59 a.C. (Sel. Pap. I, 68).
Aqui os atores dessa relação possuem ambos nomes egípcios. Hergeus filho de Petesouchus
e Petesouchus/Peteuris, filho de Selebous, que é cidadão grego (possuindo o título de “Persa do
Epígono)”. Interessante notar a presença um caso raro de nome duplamente egípcio, mencionado
pela tabela 03. Podemos notar aqui, que o cidadão grego em questão possui um nome adequado a
81
Isso significa que o empréstimo será restituído em 150 %.
82
Um “dromos” era uma unidade de medida provavelmente padronizada por um templo, sendo utilizada em
transações no dromos (uma avenida) de um templo em particular.
ϵϬ
tendência de nomes duplos, entretanto não existe aqui uma tentativa de “se fazer passar por um
grego” para atestar uma condição helenizada. Podemos afirmar que se por um lado os nomes duplos
ofereçam argumentos para traçar uma tática deliberada pelos egípcios para “enganar” o governo –
conforme correntes criticadas neste trabalho – por outro o exemplo analisado nos demonstra que a
cidadania grega não estava diretamente relacionada aos nomes helenizados. Contudo torna ainda
mais evidente a dificuldade em se identificar os indivíduos helenizados na sociedade egípcia
helenística. Seguimos com uma nova análise:
O 11º que também é o 8º ano83, Mesore 14, em Crocodilópolis, diante de Paniscus,
agoranomos84 da toparquia superior do nomo Pathyrita. Hieronouphis filho de Psemminis,
um daqueles que retornou em conseqüência da ordenação85, concedeu a Eunous filho de
Patseous e a Patseus filho de Orses, ambos Persas do Epígono de Pathyris, cinco
talentos e dois mil drachmas em dinheiro de cobre sem se importar por trinta dias desde o
11º de Mesore do ano supracitado. Este empréstimo deve retornar a Hieronouphis no 5º
(dia) do mês Toth do 12º que também é o 9º ano. Se eles não restituírem no prazo
estipulado conforme escrito acima, eles deverão pagar uma penalidade no dia seguinte de
5 talentos e 2000 dr., acrescidos de uma metade e pelo tempo vencido uma quantia de
dois drachmae de mina86 por cada dia. Os próprios beneficiados são cada um fiadores
pelo outro, para o pagamento de todos os encargos deste empréstimo, e Hieronouphis
terá o direito de execução sobre suas pessoas juntamente ou singularmente ou sobre o
qualquer um que ele escolha e sobre toda as propriedades deles segundo decisão legal.”
106 a.C (Sel.Pap. I, 67).
Préaux atesta que os egípcios tinham uma tendência se dirigir aos tribunais gregos.
“Contudo ignora como se definir um egípcio (P. Tebtunis 5, II. 207-220). Quanto aos notários ou os
escribas especializados, a língua – egípcia ou grega – preservava os formulários dos contratos suas
concepções jurídicas distintas que experimentavam.” (2002: 596). Os contratos analisados
pertencem a uma esfera jurídica grega. Contudo, percebemos além do uso de unidades de medida
egípcias (arruras e artabas), o uso do calendário egípcio.
Podemos então inserir uma nova observação acerca dos contratos analisados – e nisso
podemos incluir o contrato de casamento explorado anteriormente: o uso do calendário egípcio sem
qualquer menção de equivalência aos meses macedônios. Embora uma documentação informal
como a carta para Hephaestion, o recluso do Serapeum (século II a.C.), conste uma datação com o
83
Trata-se do 11º ano do reinado de Cleópatra III e o 8º ano de reinado de Ptolomeu X Alexandre I.
84
Tabelião do governo responsável pela revisão e validação de contratos públicos.
85
Possivelmente uma referência a alguma proclamação real ordenando aos nativos o retorno à seus locais de
origem.
86
Cada mina neste caso valem 100 drachmas.
ϵϭ
mês egípcio, percebemos em documentação oficial, como os decretos sacerdotais, uma necessidade
formal em estabelecer a equivalência entre os calendários egípcio e macedônio:
“(…) no sétimo dia do mês de Apellaeus e o décimo sétimo dia do mês egípcio de
Tybi (…)”. (Decreto de Canópos, linha 3);
“No primeiro dia do mês de Artemisios, que de acordo com o reconhecimento dos
egípcios, é o primeiro dia do mês Paophi (…)”.(Decreto de Ráfia, linha 1);
“No quarto dia do mês Xandicus e décimo oitavo do mês egípcio de Mecheir (…)”.
(Decreto de Mênfis, linha 6);
ϵϮ
Os meses macedônios, originalmente lunares, perderam gradativamente seu caráter original
mediante a relação com os meses egípcios, segundo Hunt: “antes do final do segundo século a.C.,
eles estavam totalmente assimilados aos meses egípcios”.(1977: XXXI). De fato, podemos observar
que durante o período abrangido pelos decretos (séculos III e II a.C.) e os contratos analisados
(séculos II e I a.C.), a necessidade de “tradução” do calendário egípcio para sua contraparte
macedônica perdeu a necessidade formal em documentos oficiais. Esse processo de “assimilação
total” definido por Hunt demonstra que estruturas formais de uma realidade macedônica como
unidades de peso e medidas, bem como a forma de se contar o tempo, foram sendo gradativamente
eclipsadas no Egito Helenístico, de modo a constituir uma sociedade ainda ciosa de sua origem
macedônica embora os elementos estruturais sócio-culturais e simbólicos que permitem tal
identificação percam substância ao longo do tempo.
Em sua análise da administração Lágida, Crawford observa que:
“Existem muitos paralelos entre os dois textos do Papiro Wilbour87 e os sucessores
ptolomaicos, e indica claramente o caminho usado pelos gregos ao levar adiante a
administração do país. A maior inovação dos gregos parece ter sido a alteração do idioma
administrativo”. (1971: 06).
Podemos compreender então que, se por um lado não existe uma preocupação consciente em
afirmar cotidianamente a condição de “grego” – fora de circunstâncias oficiais – também é verdade
que o idioma possui um forte valor simbólico perante o universo simbólico helenístico. As cartas
provenientes do Fayum fornecem um corpus documental de grande potencial para um estudo dos
modos de interações culturais, indicando a importância central do uso da língua (escrita) grega
e/ou egípcia como moeda nessa negociação cultural.
Um número considerável de egípcios – em busca de ascensão política e econômica –
aprendiam o grego necessário para alcançar suas metas. Realmente, o meio rural era menos sujeito à
influência helenizadora, de modo a permitir uma permanência da língua egípcia frente ao grego. Em
adição a isso, o meio sacerdotal manteve lá o seu prestígio sócio-cultural e político. Por outro lado,
poucos gregos aprendiam o egípcio, mas muitos dos que se casavam com mulheres egípcias
precisavam fazê-lo. Retornamos aos oráculos de sonhos egípcios, analisando a fonte abaixo:
“De Ptolemaios a Achilleus, saudações. Após escrever a respeito..., me parece
bom informá-lo sobre o sonho, para que então você possa saber como os deuses
conhecem você. Eu escrevi abaixo em egípcio, para que você possa compreendê-lo
corretamente. Como antes eu estava prestes a ir dormir, escrevi duas cartas, uma sobre
Taunchis a filha de Thermouthis, e uma sobre Tetimouthis a filha de Taues, que é a filha
87
Do período Raméssida, em escrita demótica, de 1150 a.C.,
ϵϯ
de Ptolemaios, e ---(uma longa lacuna) perturba você, de modo que eu passei um ótimo
dia. Passar bem. Ano 2, Phaophi 25”. (Aqui seguiria a descrição em demótico do sonho).
Séc.III a.C. (GHDHP, 113).
Podemos notar elementos como o conhecimento da língua egípcia por parte de Ptolemaios
quanto de Achilleus, ambos portadores de nomes gregos. Ptolemaios frisou: “escrevi abaixo em
egípcio para que você possa compreendê-lo (o sonho profético) corretamente”. Isso oferece um
indício de que o idioma egípcio fornecia algo sem equivalência em grego. E que esse “algo”
certamente possuía um sentido mágico/religioso. Remetente e destinatário denotam um bom
relacionamento com nativos, inclusive indicando um casamento misto entre o grego Ptolemaios e a
egípcia Taues, com pelo menos uma filha de nome egípcio, Tetimouthis.
Podemos verificar aqui um indício de que os gregos que se inseriam nas comunidades
egípcias aprendiam a língua nativa, sugerindo que a língua agisse como o mediador de um
intercâmbio – tanto no tocante a esfera material como a transcendental. Sugere-se também não
apenas a assimilação, mas o reconhecimento da eficácia de um saber religioso egípcio pelos gregos
que trocam a correspondência em questão88. Crawford observa que “normalmente os gregos
adotavam deuses egípcios e práticas religiosas mais facilmente que de forma inversa”.(1971: 137).
Podemos dar continuidade à discussão ao constatar que a presença dessa religiosidade
egípcia ao longo do cotidiano helenizado era reconhecida e por indivíduos das mais variadas
camadas sociais. Nesse mérito, não apenas os faraós em negociações políticas com sacerdotes
empreendiam obras e homenagens de caráter sagrado aos deuses egípcios.
Tomemos por exemplo a seguinte documentação epigráfica descrita por Bernand:
88
Na doréa de Apolonios, no Fayum eram venerados pelos gregos tanto os deuses olímpicos, quanto
Poremanrés, Isis, Ptah, etc. Segundo o Papiro Lond. 2666, um grego promete “sacrificar à divindade do
local, como é de hábito por toda a parte”; (APUD: Leveque 1987:90). Um outro dedica à Apolonios uma
Estela com a imagem de Anúbis. (ibden).
ϵϰ
Figura 02: Mesa de Oferendas Greco-Egípcia
Trata-se de uma mesa de oferendas de basalto negro, em cujo centro situa-se um altar
destinado a oferendas. Podemos constatar a presença de elementos estéticos tipicamente egípcios
os frutos, pães um ganso emplumado, o buquê de lótus, os dois pequenos vasos, os dois feixes de
lótus para os quais são dispostos dois grandes vasos de onde se escapa a água corrente sobre o altar,
as duas cavidades em forma de cartucho e os dois cachos de uva. Por outro lado, a dedicação
religiosa é feita a uma divindade egípcia por um indivíduo de nome grego, valendo-se de inscrições
textuais em grego.
O texto diz: “A Ptensenes, deus grandioso, Ptolemaios, escriba das forças da região de
89
Elefantina (faz esta dedicação), ano 35, do mês Epeiph”. Séc. II a.C. . (IGENML, 15). Bernand
89
Segundo o autor, a fonte nos remete ao ano 147 a.C., reinado de Philométor; ou 136 a.C. reinado de
Evergeta II (1991: 52).
ϵϱ
complementa nossa análise, ao informar que são inúmeros os exemplo de inscrições gregas
gravadas em mesas de oferenda. O autor comenta que o devoto,
“(…) porta um nome grego, como normalmente ocorre com escribas de forças
militares ativas, era um escrivão militar da região de Elefantina, zona de fronteira, onde as
tropas asseguravam a segurança do país, ameaçado notadamente pelos núbios e mais
tarde, pelos blêmios”.(1992: 52).
“Estela de calcário. (…) Altura: 35,5 cm; largura: 23,5 cm; espessura: c. 5mm.
Letras: 5mm. Ao centro um disco solar colocado entre dois uraeus erguidos. Embaixo, a
representação da deusa Ísis, sobre um assento à esquerda posto sobre um tablado. Ela
estende sobre os joelhos seu filho Hórus que ela amamenta expondo seu seio direito. Ela
veste um longo vestido com suspensórios e usa uma peruca sobreposta com um disco
entre dois chifres. Diante dela, um altar armado, cheio de oferendas. A direita o faraó, de
perfil, de pé, coroado com a pschent oferece a deusa com a mão direita o olho de oudjet ,
e com a mão esquerda segura um objeto que A. Moret reconheceu como a deusa Maat.
Acima do altar, estão os cartuchos reservados aos nomes dos personagens permanecem
vazios. O dorso da estela está mal desbastada. A superfície da pedra fendida embaixo,
está erodida e esfarelada. A inscrição está gravada na parte inferior. O inicio das linhas se
perdeu junto com a superfície da pedra que se deteriora na diagonal. Regulagem. Traços
de vermelho ao longo do curso das letras.” (1992: 61).
ϵϲ
Segue-se a imagem da estela:
Figura 03: Estela com Dedicação Helenística a Ísis
Diz o texto:
“Ao rei Ptolomeu, grande deus, Novo Dionysios, Philopator e Philadelfo, à Isis
Esenchébis90, deusa grandiosa, a Pnépheros e aos deuses que compartilham o mesmo
templo”.(IGENML, 21).
90
Em comentário adicional ao texto, Bernand observa que “é feita uma designação pouco freqüente de Isis,
onde não se conhece outro exemplo a não ser uma dedicação do Fayum feita em 68 a.C., por uma associação
criada sob a proteção dessa deusa. Esse epíteto significa “Isis de Chebis”, ou “Chemmis”, isto significa da
ilha de Chemmis, próximo a Buto, onde segundo uma tradição difundida Isis trouxe ao mundo o pequeno
Hórus. O texto não menciona o nome dos dedicadores. Sem dúvida se trata de autoridades locais trabalhando
em nome do rei” (1992: 62).
ϵϳ
O texto grego novamente rende honras a divindades egípcias, em nome de indivíduos ciosos
de sua condição helênica. Em adição a nossa análise anterior, é interessante notar que os cartuchos –
espaços tradicionalmente destinados à escrita dos hieróglifos dos nomes dos faraós – estão vazios.
Porém os cartuchos fornecem um elemento interessante para nossa análise: embora eles
possuam uma função gráfica cerimonial específica, sua presença na estela também forma um
conjunto de características que classificam uma dedicação real como tal. Assim, como o texto grego
já está mencionando o basileus, os cartuchos são simplesmente “mencionados” na estela, devido a
busca de reprodução dos cânones estéticos egípcios tradicionais. Embora a estética da estela busque
a reprodução tradicional da arte egípcia nativa, constatamos que a utilidade simbólica original dos
cartuchos foi ignorada.
Nossa análise constata que os responsáveis não compreendiam a verdadeira função do
cartucho, ou se a compreendiam, a ignoraram deliberadamente. Poderia então compor um indício de
que havia uma preocupação em reproduzir os elementos mais importantes da estética egípcia na
estela analisada,caracterizada aos olhos gregos sob um estereótipo, de modo a ocorrer uma
adaptação de um sentido original mediante uma tentativa helenística de re-produção das estelas e
dedicações semelhantes.
Os dois exemplos epigráficos demonstram que os gregos se dirigiam às divindades egípcias,
preocupados em reproduzir as imagens e padrões estéticos egípcios, mas ao manterem a
identificação de “gregos”, estão demonstrando para a posteridade que não são bárbaros. Como
define Burke, a adaptação cultural pode ser analisada como “um movimento duplo de des-
contextualização e re-contextualização, retirando um item de seu local original e modificando-o de
forma que se encaixe em seu novo ambiente”. (2003: 91). O uso do idioma fornece o mais forte
referencial comum aos gregos.
Através do idioma grego, encontra-se o consenso sobre as leis (nomói), se estabelece o
convívio na pólis, dá continuidade às tradições positivamente helênicas e identifica o elemento
estranho ao se grupo de pertença: o bárbaro – alguém incapaz de compreender ou se comunicar em
grego. Assim, o comportamento dos sujeitos não possui nenhum compromisso inevitável de se
adaptar às categorias pelas quais o senso comum às percebe. Devido ao evento do estabelecimento
de uma elite governante greco-macedônia e de uma política de hegemonia helenística no Egito, as
convenções tradicionais podem ser mais ou menos modificados. Os gregos admitiam uma única
forma “civilizada” de agir. Isso não proibia a adoção de elementos culturais não-gregos, ou seja,
ϵϴ
“bárbaros”, desde que fosse feita de uma forma reconhecidamente “civilizada”, ou seja,
“helenizada”.
demonstram que uma forte rede de solidariedade se desenvolve ao longo da convivência entre os
grupos. De fato, as fontes exploradas sugerem uma interação muito maior do que o discurso oficial
das forças institucionais helenizadoras e “egipcianizadoras” deixa perceber. Essa troca cultural é
uma conseqüência das práticas cotidianas, que colabora para aproximar as populações helenizadas
das não helenizadas. Ao longo das práticas cotidianas entre as populações helenísticas e egípcias
nativas, essas “trocas culturais” mediante interações e convivência diárias produzem inovações
imprevisíveis, seja em relação ao momento em que ocorrem, seja em relação ao conteúdo em
transformação.
Segundo Burke, “o contraste entre tradições abertas e fechadas levanta um problema
intrigante, o de explicar as diferenças de receptividade. (…) Parece haver momentos favoráveis e
desfavoráveis para a troca cultural”.(2003: 85). A apropriação da cultura helênica por populações
não-gregas, em adição ao desenvolvimento de uma nova dimensão de interações culturais produziu
uma série imprevista de inovações, re-definições e particularidades específicas e próprias de uma
identidade grega adequada a um Egito Helenístico.
Os casamentos entre irmãos foram sancionados e adotados pelos monarcas, o que tornava a
reprodução de tal prática lícita aos demais súditos helenizados, o que equivale afirmar que essa
tradição, ainda que inventada, fundamenta-se no princípio de que deixa de ser “costume bárbaro” e
torna-se lícito para gregos, mas apenas no contexto de um Egito Helenístico. Já para uma primeira
impressão dos nomes híbridos, podemos atribui-los tanto a uma realidade de casamentos mistos
como o de homenagens e pedidos de proteção a divindades egípcias. Todavia, frisamos que não é
realizada uma mera adoção de nomes tipicamente egípcios. A população Helenística traduz ou
mesmo cria nomes teofóricos novos.
De forma semelhante, percebemos que a prática egípcia de dedicações de estelas aos deuses
é reproduzida, todavia cuidando para a substituição do idioma original pelo grego. Isso porque
dentro do contexto de interações constantes com nativos, o idioma grego implica em um mecanismo
eficiente para uma noção de definição de unidade e alteridade no senso comum helenizado.
Segundo Benveniste, “no nome que um povo se atribui, existe, manifesta ou não a intenção de se
distinguir dos povos vizinhos, de afirmar esta superioridade que é a posse de uma língua comum e
inteligível. 91” (1969: 368).
91
Se remontarmos à origem do conceito de “bárbaro” estaremos nos reduzindo a uma questão de diferença
fundamentalmente a uma questão de idiomas. Isso porque “bárbaro” era inicialmente aquele que falava uma
língua que o grego não conseguia compreender. A partir do desenvolvimento de uma “política de
ϭϬϬ
Sendo assim, podemos afirmar que passa a ser desenvolvida no Egito Helenístico uma forma
reconhecidamente grega de re-produção de elementos culturais egípcios adaptados. Isso em
oposição a uma mera atitude de “copiar” um modelo bárbaro de conduta. Eis a função do nómos
novamente evocada: criar um consenso a respeito do modo de vida dos helenos. A atitude de
“adaptar” o modo egípcio ao modo grego impede a idéia de um “barbarismo”, caracterizado pelo
abandono da conduta grega em conseqüência de uma submissão a uma conduta não-grega.
Isso não significa necessariamente uma validação social do nómos enquanto projeto
ideológico nas interações cotidianas. O nómos enquanto instrumento político estruturante da
sociedade helenística visava reproduzir um discurso ideológico adequado a uma necessidade
política específica, de modo que não era, portanto, responsável por refletir com exatidão a
sociedade em que se inseria. De acordo com Burke:
Considerando que o nómos chama para si a responsabilidade de manter um consenso sobre o
universo simbólico helenístico, podemos verificar a possibilidade de uma fórmula “grega” para se
adorar os deuses egípcios, que consistiria na demonstração da preocupação em não querer “fingir o
egípcio” (não querer “agir como um egípcio”); ou seja, barbarizar ou “egipcianizar” em oposição ao
“helenizar”. Isso demonstra por sua vez uma atitude autônoma e voluntária do grego homenagear
como grego uma divindade egípcia desde que o faça como grego, e de forma grega ao invés da
bárbara. Nesse sentido uma relação de passividade para com os costumes estrangeiros (bárbaros)
acarretaria em barbarismo, ou seja, no desrespeito ao nómos.
Existem duas variáveis do conceito de nómos adotadas pelo presente trabalho: o discurso
ideológico institucional, que simboliza uma dimensão estrutural da sociedade egípcia helenística - a
política/ideológica-idealizada/institucionalizante; e uma visão mais fluida, envolvendo uma
concepção particular grega para o conceito de “cultura”, simbolizando um outro aspecto da
estrutura de sua sociedade - a doméstica/cotidiana/prática-individualizada. Embora o nómos
funcione enquanto mecanismo de conexão entre essas duas esferas estruturais, estas representam
duas interpretações distintas de um mesmo fato social, ou evento: a helenização no Egito. Como
afirma Sahlins, “o evento é a interpretação do acontecimento, e as interpretações variam”.(1994:
191). Portanto, uma vez que a prática estabelece uma correspondência estrutural entre costumes
egípcios nativos e helênicos, por sua vez o discurso do ideológico buscava opô-los
sistematicamente, configurando-se uma krisis para o reajuste entre o ideológico e o cotidiano, cujas
conseqüências acarretariam uma necessidade de atualização de todo um sistema simbólico, dando
ao “nómos egípcio helenístico” uma “identidade pessoal” egípcia, sem necessariamente deixar de se
perceber como positivamente grega.
A análise das interações sociais na chóra egípcia nos apresenta uma interação diária entre
estrangeiros e nativos, onde a preocupação em reproduzir a dicotomia gregos X bárbaros (defendida
por um discurso de identidade ideologicamente comprometido com uma política helenizadora) não
encontra destaque enquanto mecanismo importante para a organização da experiência cotidiana. A
helenização enquanto discurso hegemônico sofre um processo de adequação devido as suas
especificidades sociais caso a caso de acordo com as sociedades em que se desenvolve o helenismo.
Cada sociedade possui seus próprios códigos e convenções para referir-se a determinados conceitos,
mediante convenções culturais constantemente construídas, re-vistas e re-construídas;
caracterizando cada cultura enquanto o resultado de uma evolução específica de uma determinada
sociedade.
ϭϬϮ
CONCLUSÃO
As estratégias que se fabricavam a partir da definição de dois nómoi em presença, um grego
universal e um egípcio milenar, definiam duas linhas de força: um império e uma ordem sacerdotal.
A política interna ptolomaica se desenvolveu através de uma apropriação de categorias culturais
nativas egípcias. A manutenção da estrutura administrativa e o uso da própria imagem de faraó,
com todos os seus direitos e deveres dinásticos são emblemáticos nesse ponto. Conseqüentemente
as negociações pelo poder com elites nativas, sobretudo sacerdotes tornaram necessário que uma
política helenizadora menos agressiva se “implantasse” no Egito, dando maior ênfase a Alexandria
e outros poucos núcleos populacionais ditos “urbanos”.
Essa “realidade egípcia” permitiu que a helenização do elemento bárbaro tomasse uma
direção bem específica. Uma vez admitida à necessidade de se manter uma elite local forte para
assumir o papel de poder mediador, a helenização foi muito menos agressiva no Egito. Dito isso,
cabe acrescentar que se as elites sacerdotais egípcias se percebessem positivamente ou
negativamente helenizadas, elas simplesmente reconheceriam como um fato a sua extinção
enquanto grupo social. Isso porque a função social do sacerdote egípcio é especificamente preservar
as tradições milenares de sua sociedade, ou seja, de seu universo simbólico. Assim, manteve-se a
autoridade e a legalidade das leis e costumes locais para todo aquele que não fosse helenizado,
concedendo-se uma relativa autonomia política dos templos na chóra – o espaço rural.
político e ideológico de identidade. Todavia, mesmo que o reconhecimento de uma “pluralidade
cultural” não fosse desejada pelo ideal do helenismo, ele precisaria ser tolerado no Egito, devido a
estratégica necessidade de cooperação política com as elites sacerdotais locais, que dependiam de
seu prestígio social oriundo pela observação de suas tradições culturais e habituais.
Mas qual seria o interesse do nativo em reconhecer a autoridade Macedônia e se inserir nas
relações de poder helenísticas? Os decretos sacerdotais nos revelam as dimensões das negociações
pelo poder entre o governo macedônio e uma elite sacerdotal egípcia nativa. Porém, não se deve
presumir que os templos egípcios, mesmo sob uma forma nova de organização administrativa sob a
autoridade helenística, formavam um bloco homogêneo de interesses. Constatamos que obter apoio
de sacerdotes significava obter um apoio de “partidos”, enquanto grupos distintos com seus
interesses e projetos de prosperidade específicos. Rivalidades ou ressentimentos entre regiões ou
entre facções políticas internas dos sacerdócios tornavam a idéia de aproximação com o governo
estrangeiro atraente, ou pelo menos motivava uma proposta de co-prosperidade.
Então, como esses grupos sacerdotais interessados em uma participação no governo poderia
iniciar essa relação de poder? Inicialmente era necessária a construção de um novo espaço de
negociação, para desenvolver os interesses entre o poder helenístico e o mediador egípcio. Os
decretos sacerdotais eram uma forma tradicional de registro das relações faraó X templos. Contudo
os atuais governantes helenísticos não reconheceriam os decretos como instrumento ou espaço de
mediação política, a menos que conseguissem enxerga-los como documento, o que por si já justifica
uma demanda política para a sua atualização formal. Assim, os decretos sacerdotais sofreram uma
atualização em seu formulário, adotando o padrão em uso pelos helenos92, e inseriu no texto uma
versão em grego, demonstrando tanto o reconhecimento de uma autoridade externa sobre o Egito, e
uma vez que oferece uma possibilidade de acesso grego à leitura, ele se propõe como documentação
de registro dessas relações de poder com o governo macedônio.
constatar o fortalecimento desse “espaço” pelo favorecimento crescente que os templos recebem do
governo, e que conseqüentemente os tornam mais e mais autônomos, e necessários aos interesses
macedônios.
Uma vez que a autoridade helenística optou pela “emolduração” das elites sacerdotais
egípcias em seu conjunto de interesses de legitimação imperial de autoridade, os templos egípcios
mantinham seu estatuto institucional original na chóra egípcia, em paralelo às instituições
helenísticas que porventura existissem nas proximidades físicas. Podemos definir um “espaço” a
partir do reconhecimento do idioma nativo para fins administrativos e/ou burocráticos, da
permanência da legitimidade de tribunais egípcios sob a legislação dos templos, enfim, como tais
fatores sempre estiveram presentes e positivamente difundidos ao longo da história do período do
domínio Lágida do Egito, não havia razão para questionar sua própria condição helênica. Embora a
helenização tenha assumido um caráter menos agressivo no Egito, pode-se notar que o governo
Lágida não negligenciou o helenismo em seu território em nenhum período de seu governo.
Conforme observa Murray,
ϭϬϱ
estruturas reproduzidas pelo discurso do nómos nunca são absolutas fora de uma esfera ideológica.
Através das interações culturais das práticas cotidianas, as diferenças – reprimidas pelo discurso
helenizante – encontram uma forma de expressão, seja pelo surgimento de ambigüidades sócio-
culturais, casamentos mistos, hibridização de instituições, etc.
Assim, as relações sociais minimizam no senso comum a preocupação em manter a
importância da idéia de “limites”, torna-se possível uma reconstrução social de novas categorias que
são atribuídas à cultura helenística no Egito. Desse modo o processo de organização social é
socialmente re-construído.
As pessoas passam a se preocupar em se comportarem deliberadamente segundo um
determinado padrão cultural estabelecido socialmente como correto: “a maneira dos gregos”, ou
helenismos. À medida que a cultura “grega” vai se tornando simplificada e estereotipada como
conseqüência da gradual redução da noção de distância/diferença entre helenizados e egípcios,
podemos compreender o processo pelo qual o nómos na sociedade egípcia helenística sofre um
processo de reformulação mediante as experiências decorrentes da prática cotidiana de interações
culturais. Esse fenômeno é definido por Sahlins como uma “dialética da estrutura” (1994: 29)93, um
processo pelo qual a história passa a ser guiada pela cultura, e que conseqüentemente transforma
essa cultura. Desse modo, a síntese exata do passado e do presente é relativa à ordem cultural, do
modo como se manifesta em uma estrutura da conjuntura específica do caso egípcio-helenístico.
93
Sahlins faz uma referência a uma discussão mais aprofundada em sua obra “Historical Metaphors and
Mytical Realities: Structure in the Early History of the Sandwich Islands Kingdon. 1981”.
ϭϬϲ
Compreendemos que o nómos grego sofreu um processo de atualização, atendendo a uma
necessidade peculiar da experiência helenística no Egito, de modo que para o discurso ideológico
não perder sua validade, o nómos incorporou adaptações culturais e institucionais egípcias
justamente para manter-se enquanto discurso hegemônico grego, uma vez que este busca promover
o ordenamento social e simbólico de uma sociedade helênica.
ϭϬϳ
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ϭϭϯ
APÊNDICES
a) Quadro Cronológico do Egito Helenístico
219/ 217 Quarta Guerra Síria. Vitória egípcia Decreto de Mênfis celebrando a vitória em Ráfia.
em Ráfia;
ϭϭϰ
206/ 185 Revolta nativa na Tebaida. Ela
continuará latente até 88;
118 Decreto de Anistia de Ptolomeu VIII Testamento de Ptolomeu VIII deixa o reino como
- Concessão e reafirmação de herança para Roma.
privilégios e imunidades para os
ϭϭϱ
templos egípcios;
ϭϭϲ
55 Assassinato de Berenice IV; Roma organiza a província da Cirenaica.
Roma decreta a anexação de Chipre em
“retaliação” ao suposto apoio egípcio aos piratas
combatidos por Pompeu. Colapso econômico
egípcio.
44 Morte de César.
ϭϭϳ
b) O Mundo Helenístico
ϭϭϴ