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V oz e musicalidade na formação do ator

V oz e musicalidade na formação do ator

F abio C. M. Cintra

Técnica vocal ou atitude vocal? tinas em estruturas fechadas, que limitam ou


impedem usos diferenciados da função vocal.

O
pensamento contemporâneo sobre natu- Para que essas limitações não aconteçam,
reza do trabalho do ator não admite que o ator deve ampliar e acumular competências
se conceba a função vocal separada da to- vocais, de modo a constituir um corpo de co-
talidade da atuação. O ator em ação nhecimento de característica plural, espontânea
presentifica, a cada instante, constructos e diversificada, chegando a construir um reper-
complexos em que estão em jogo (mais que em tório vasto de experiências sobre recursos cor-
movimento) seu corpo e seus sons, num espaço porais e vocais.
determinado. A idéia de que o ator realiza ações Isso significa conhecer o aparelho vocal e
completas é, portanto, o ponto de partida para suas possibilidades, somar experiências diversas
refletirmos sobre sua ação vocal. no plano da atuação, que exijam diferentes ma-
A ação vocal, pensada como elemento in- neiras de utilização da voz. Significa explorar,
tegrante de cada momento da atuação, está su- experimentar e inventar com a voz.
bordinada à forma pela qual o corpo se organi- A partir do questionamento e da formula-
za para executar uma ação específica. Essa ação ção do problema apresentado por cada situação,
vocal nasce de um impulso único, particular, o ator definirá o objetivo da atuação, o qual vai
diferenciado, é elemento integrante do gesto do guiá-lo na elaboração de exercícios e na escolha
ator como um todo. Logo, é impossível estabe- de uma forma determinada de atuação vocal.
lecer uma forma única para abordá-la. Mais que uma partitura definida com pre-
No entanto, o ator precisa conhecer e usar cisão, pensa-se aqui em uma série de atitudes
a voz adequadamente, dentro de suas possibili- vocais que definirão sonoridades, ritmos, tim-
dades, adquirindo fluência no uso da voz em bres. É um repertório sonoro corporificado, que
todas as situações com as quais se defronta. deverá vir à tona espontaneamente, no decorrer
A abordagem tradicional da voz no tea- do desempenho, e cuja precisão poderá ser re-
tro estabeleceu determinadas rotinas de exer- gulada de acordo com as necessidades. Mas esse
cícios que funcionam como portas de entrada repertório deve, de alguma forma, estar articu-
para essa fluência, à maneira de treinamento. lado para que possa ser compreendido como
A tendência, no entanto, é transformar essas ro- parte da composição do ator.

Fabio C. M. Cintra é professor do Departamento de Artes Cênicas da USP.

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Respiração e memória muscular linguagem, de articulação e composição, e não


(importância das rrelações
elações espaciais) apenas a idéia de melodia, ou uma vaga defini-
ção de ritmo. Isso implica familiarizar o ator
A base física dessa produção vocal é a respira- com a linguagem e os modos de ação da músi-
ção. Ela apóia ritmicamente a ação, é a fonte de ca, em especial da música improvisada.
energia e sustentação temporal do ator. Ao lado
da memória muscular, termo cunhado por
Dalcroze, e das relações com o espaço, a respi- Linguagem musical
ração configura o registro corporal dinâmico
que possibilita a fluência da atuação. A linguagem musical tornar-se-á então um re-
O ator deve considerar como atividades curso estrutural para a composição. A prática
cotidianas de seu ofício, entre muitas outras, o musical é, em si, a forma de apropriação desse
estudo das bases físicas do funcionamento da pensamento estrutural. Ela leva à compreensão
voz; o treinamento da memória rítmica muscu- de que a música necessita uma composição,
lar, através da qual se pode chegar a um corpo uma configuração determinada de som e silên-
musicalizado; a prática musical através do can- cio, uma organização interna.
to e, se possível, de um instrumento; a prática A improvisação é, dentre as práticas mu-
da dança e, finalmente, a pesquisa, conforman- sicais, a que mais se relaciona com os procedi-
do o que poderíamos nomear uma técnica para mentos de aprendizado e criação do ator, por
que adquira a autonomia de encontrar seus ca- sua natureza ligada ao aqui-agora, assim como
minhos para o desenvolvimento da musicali- a do jogo teatral.
dade de sua atuação vocal. A improvisação musical pode atuar tanto
O trabalho do ator demanda a criação de como prática didática para a apropriação de
exercícios próprios. Mas esses exercícios podem conceitos musicais (dos básicos aos mais avan-
ultrapassar o âmbito da produção e da emissão çados), como para a experimentação e a cria-
vocais, e adentrar o terreno da música; podem ção musical.
passar a considerar, como objetivo, a compo- Na relação com o trabalho do ator, pode-
sição do plano sonoro de sua atuação em ba- se chegar a elaborar atividades que intercambiem
ses musicais. características comuns ao jogo de improvisação
teatral e o musical, estabelecendo-se um campo
de interseções extremamente rico, no qual a
A música como matriz do pr ocedimento
procedimento abordagem musical pode vir a transformar-se em
vocal do ator instrumento importante para a criação.

O recurso a termos musicais, como composição,


costuma ser recorrente nos textos sobre o ator. Canto coral como estratégia
Muitos dos procedimentos aqui descritos para a musicalização no teatr
teatroo
aproximam-se daqueles do músico que impro-
visa. O jogo da improvisação musical com o A partir dessa visão, o canto coral pode ser con-
material sonoro, com o silêncio e com o tem- siderado uma prática musical adequada aos
po, configurando gestos e idéias musicais, guar- objetivos descritos. A prática do canto em con-
da uma similaridade estrutural com o jogo do junto tem atuado como fator importante na
ator – e é nessa interseção que a música pode educação musical em todo o mundo.
ser tomada, então, como uma matriz de refe- A música coral é portadora de toda a tra-
rência possível para a pesquisa e o aprendizado dição musical ocidental (isto é, nossa tradição
vocal do ator. A música enquanto referência de musical), o que quer dizer que através de sua

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prática é possível entrar em contato e apreen- organizará uma reação sonora através da voz.
der formas históricas de organização e funcio- É, portanto, fundamental que o trabalho de
namento do discurso sonoro. musicalização do ator se apóie em uma peda-
Ela também se caracteriza por ser, prova- gogia da escuta – a qual deve ser pensada
velmente, a maneira mais fácil de o músico ama- com amplitude, assim como o conceito de can-
dor (caso da grande maioria dos estudantes de to coral.
Artes Cênicas no país) entrar em contato com Essa voz se organiza também em função
os conceitos e mecanismos básicos da composi- de um ouvinte – ou de um espectador. Este fato
ção musical. amplia ainda mais essa concepção de escuta, e
Há ainda outros motivos que fazem do nos leva à necessidade de pensar os meios pelos
canto coral uma atividade adequada para a quais isso se dará.
musicalização no teatro.
O primeiro é o fato de ser uma atividade
de grupo, indo assim ao encontro da natureza Estado e sentimento;
coletiva do trabalho teatral. A música coral de- liberação e espontaneidade
pende de um acordo sonoro coletivo para acon-
tecer (ainda que para produzir um único som A adequação vocal na prática coral que estamos
em uníssono, mas que jamais poderia ser pro- propondo é alcançada, basicamente, através de
duzido por um só indivíduo). propostas que buscam a disponibilidade corpo-
O segundo é o fato de a música coral se ral em relação aos objetivos expressivos, acredi-
apoiar basicamente na produção sonora do cor- tando que ela é a condição primeira e a mais
po humano; seu material de trabalho é, portan- importante para que se chegue a uma produção
to, o mesmo que o do ator. vocal de qualidade – qualidade medida pela ade-
Um terceiro motivo é justamente a relati- quação vocal de cada participante e do grupo
va facilidade com que se pode dominar o instru- como um todo.
mento vocal no canto coral (acrescido da segu- Isso quer dizer que é exatamente a com-
rança proporcionada pelo grupo), abrindo a preensão do sentido musical (na qual se inclui,
possibilidade de se trabalhar a improvisação mu- por exemplo, a percepção de estruturas de com-
sical num contexto que favorece a interseção posição e dos gestos musicais) que promove a
com eventuais propostas de improvisação teatral. intencionalidade do cantor numa direção ex-
É obrigatório ressaltar que a idéia de coro pressiva determinada, o que motiva a organiza-
aqui proposta envolve essa vontade de unir as ção corporal, portanto vocal, para uma conse-
experiências musical e teatral, sugerindo uma cução poética do objetivo musical, e não ape-
atuação coral ampliada para as ações do corpo e nas mecânica.
da voz no espaço – características necessárias da É necessário, assim, que o trabalho de for-
formação do ator. mação musical do ator através do coro propo-
nha e se revista da sensibilidade adequada para
que cada participante se disponibilize para ca-
O ator
ator,, o espectador e a escuta: minhar em direção a esse estado físico-poético.
uma pedagogia da escuta Todo esse trabalho inclui, evidentemen-
te, o cuidado com a particularidade e a singula-
Uma abordagem musical da voz no teatro deve ridade de cada voz. Deve haver um trabalho
passar necessariamente pela questão da escuta. ponto a ponto com cada ator-cantor, na busca
Todo aprendizado musical é, antes de tudo, um do desvelar pessoal de sua voz, enquanto simul-
aprendizado da escuta; é a partir dela, justamen- taneamente se estabelecem relações dessa voz
te, que surgirá uma intencionalidade vocal e se com a grande voz coletiva.

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Conteúdos tos como melodia, ritmo, harmonia, estrutura,


forma, idéia musical, gesto musical, improvisa-
Neste caminho, ter um objetivo expressivo, uma ção e composição.
intenção e a escuta foram propostos como guias É também útil perguntar-se o que pode-
para o trabalho vocal. mos aprender, por exemplo, com nossa tradição
Alguns conteúdos musicais fundamentais musical, com a de outras culturas, com a paisa-
devem ser trabalhados. No plano da percepção gem sonora à nossa volta.
sonora, os parâmetros altura, timbre, intensida- Podemos escutá-los...
de e duração. No plano da linguagem, concei- E cantá-los.

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