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R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 385-391, 2011.

RIEGL, A. O Culto dos monumentos: sua essência e sua gênese.*


Goiânia, Editora da Universidade Católica de Goiás, 2006. 120 pp.,
ISBN 857103297-1.

Pedro Luís Machado Sanches**

“O Culto Moderno dos Monumentos” teve do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), a


sua primeira versão em língua portuguesa por intensificação das ações do Instituto do Patri-
mérito da Editora da Universidade Católica mônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
de Goiás, no ano de 2006, mais de um século e uma profusão de novos cursos universitários
depois de sua publicação original (Riegl 1903); e diretamente vinculados à valorização de bens
cerca de duas décadas após sua revivescência em culturais, exigem o acesso a textos clássicos acer-
traduções para o italiano, o inglês, o francês, e o ca da preservação e da tutela de bens artísticos
espanhol (Riegl 1981; 1982; 1983; 1987). e históricos por parte de um número cada vez
Estas últimas, publicadas num curto inter- mais significativo de estudantes, especialistas e
valo de seis anos, parecem terem sido motivadas diletantes.
pelas ações da Convenção para a Proteção do Feita a partir da versão francesa de Daniel
Patrimônio Mundial Cultural e Humano da Wieczorek, a tradução brasileira é indireta, e
UNESCO, e, em especial, pela extraordinária empresta da francesa inclusive o prefácio, a
diversificação da lista de patrimônios da huma- introdução e o glossário (agora trilíngue) de ne-
nidade (Bosque-Morel 1996) no decorrer dos ologismos rieglianos.1 As tradutoras se apressam
anos 1980. Em seu prefácio à tradução francesa em ponderar que
(incluído na edição brasileira), Françoise Choay
“(...) o fato de ser uma tradução do
reconheceu a repercussão da noção de monu-
texto francês, portanto de segunda mão,
mento proposta por Riegl; e da relatividade de
pode oferecer ressalvas. Entretanto, por
seus valores em importantes documentos da
se tratar de um texto ensaístico, as possi-
legislação patrimonial internacional como a
bilidades negativas diminuem. Ademais,
Carta de Atenas, a Carta de Veneza, e as Reco-
resta a confiança na intelectualidade do
mendações de Praga e Nairobi, entre outros. O
outro, embora expressa em outra língua
pequeno texto de Riegl é considerado inaugural
que não a “original” ou a nossa” (Peixoto
dos esforços de preservação patrimonial num
e Vicentini, in Riegl 2006: 33).
“(...) período durante o qual se tem destruído
e conservado a uma escala sem precedentes” Tanto por advir de um autor que buscava
(Choay, in Riegl 2006: 8). revolucionar velhas concepções do estudo dos
A tradução brasileira de Elane Ribeiro estilos, quanto por ser declaradamente concei-
Peixoto e Albertina Vicentini nos chega tam- tual e definidor de uma prática de preservação
bém em momento oportuno: a recente criação incipiente, o texto apresenta desafios respei-
táveis a qualquer tradutor. Um deles é talvez

(*) Resenha crítica escrita a convite do Programa de Pós-Graduação


em Memória Social e Patrimônio Cultural do Instituto de
Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, RS, (1) Na edição brasileira, o glossário foi deslocado para o final
Brasil, em colaboração com suas atividades acadêmicas. do livro (p. 119-120), resultando distante da introdução do
(**) Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal tradutor, onde os neologismos de Riegl e a dificuldade de
de Pelotas. <plmsanches@yahoo.com.br> traduzi-los são comentados.

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RIEGL, A. O Culto dos monumentos: sua essência e sua gênese. Goiânia, Editora da Universidade Católica de Goiás, 2006.
120 pp., ISBN 857103297-1.
R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 385-391, 2011.

o termo Kunstwollen, proposto por Riegl para O discurso se destinava, portanto, “a fundar
dar conta do impulso artístico, da necessidade uma prática, a motivar decisões e a sustentar
básica de ornamentar que não se restringe às uma política” (Wieczorek, in Riegl 2006: 22),
intenções de um só artista, nem é unicamente todo alcance teórico que ganhou posterior-
o que compartilham as pessoas de uma mesma mente vai além de seus propósitos declarados,
época. Segundo Erwin Panofsky, Kunstwollen demonstrando inequivocamente a “atualidade
“não pode ser nada além daquilo que ‘fica’ (não do pensamento de Riegl” (Scarrocchia, in
para nós, mas objetivamente) como um senti- Riegl 1990 (1981): 20-22), algo que pode vir a
do último e definitivo do fenômeno artístico” se reafirmar entre nós.
(Panofsky 1982, apud Guinzburg 2009: 67). O texto está dividido em três capítulos
Trata-se, portanto, de noção complexa, à qual o fundamentais e parece estruturado tanto no re-
leitor precisa atentar. conhecimento dos muitos valores que emergem
Na tradução brasileira, optou-se pelo imbricados ou contrapostos uns nos outros,
binômio “vontade artística” a partir do francês quanto na preocupação histórica de descrever
vouloir artistique que, por sua vez, não se impôs o culto moderno dos monumentos a partir de
sem restrições.2 Tradutores italianos e estaduni- suas fases anteriores e de notáveis exemplos.
denses preferiram manter o termo em alemão, O primeiro capítulo propõe um breve vôo
alertando assim para a sua peculiaridade, para sobre a evolução do culto, e se inicia apontando
a ausência de expressão correspondente em uma ampla e corriqueira definição de monu-
seus idiomas. No nosso, teríamos ainda a opção mento, seu “sentido original”, para, em seguida,
lusitana “vontade de arte”, ou o “querer artís- examinar e dissolver a distinção entre monu-
tico” que Peixoto e Vicentini nos confiam no mento histórico e monumento artístico. Para
Glossário (p. 119) mas não no decorrer do texto, Riegl (2006: 45),
inadvertidamente.
“(...) é importante perceber que
O Culto Moderno dos Monumentos, a
todo monumento de arte é, sem ex-
princípio, foi uma conferência dirigida a
ceção e simultaneamente, um monu-
uma platéia erudita. Seu autor, professor
mento histórico, na medida em que
universitário e ex-diretor do setor de tecidos
representa um estado determinado
do Museu Austríaco de Artes Aplicadas, era
na evolução das artes plásticas e não
já um renomado estudioso da história dos
pode encontrar, em sentido estrito, um
estilos3 quando assumiu a superintendência
equivalente. De modo inverso, todo
da Comissão Central para a Conservação dos
monumento histórico é também um
Monumentos Históricos e Artísticos do Impé-
monumento artístico, porque mesmo
rio Austro-húngaro, em 1902. A conferência
um folheto rasgado, sobre o qual se
precedeu três anos de um intenso trabalho de
encontra registrada uma nota breve e
reestruturação, com o objetivo de promover
sem importância, comporta, além do
o “inventário exaustivo dos monumentos aus-
valor histórico expressado na evolução
tríacos e esboçar os contornos de uma nova
da fabricação do papel, da escrita, dos
legislação para conservação do patrimônio”.
meios utilizados para escrever, etc.,
uma série de elementos artísticos: a
configuração do folheto, a forma dos
(2) A dificuldade imposta pelo termo Kunstwollen foi assumida caracteres e a maneira de os associar”.
pelo tradutor francês na introdução reproduzida na edição
brasileira (Riegl 2006: 23, nota 10). Sem jamais abandonar o interesse maior
(3) Dada a repercussão das grandes obras do início de pela apreciação, ou a correspondente recusa de
sua carreira, Historische Grammatik der bildenden Künste um discurso descritivo e normativo, o superin-
(Gramática Histórica das Artes Plásticas) e Grundlegungen
zu einer Geschichte der Ornamentik (Fundamentação para
tendente lembrou à sua platéia que a denomina-
uma história dos ornamentos), ainda não traduzidas para ção “monumento” não pode ser compreendida
o português. senão de modo subjetivo, e que sejam intencio-

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Pedro Luís Machado Sanches

nais ou não, os monumentos “apresentam um que a família de quem os erigiu;4 não foram
valor de rememoração” (Riegl 2006: 49). Tal eles, ou os italianos da Renascença, tampouco
valor não se liga mais unicamente à memória os modernos que cultuavam ruínas no século
coletiva, mas a uma nova valoração que abran- XVII, quem primeiro garantiu juridicamente
ge tanto monumentos outrora reconhecidos a proteção dos monumentos. Isso só ocorreu
como históricos, quanto os ditos monumentos de fato em meados do século XIX,5 com o
artísticos. objetivo histórico de guardar cada forma de
Riegl pressupõe um interlocutor moder- arte como parte de um “cânone eterno” a ser
no, situado “em um período de transição que defendido da “hostilidade de numerosos valo-
é, naturalmente e necessariamente um perío- res de contemporaneidade” (Riegl 2006: 60).
do de luta” (Riegl 2006: 59). Este interlocutor A virada do século XIX para o XX assiste
é capaz de reconhecer a importância de cada não só o abando do valor artístico “eterno”
fase do desenvolvimento dos monumentos, fomentado desde a Renascença italiana, como
para ele “nada é mais estranho (...) que a também o surgimento do valor de antiguidade,
sensibilidade barroca” (Riegl 2006: 63) cujo aquele que compreende “o maior número de
valor estético se vincula à nostalgia da grande- monumentos” e que é o mais moderno dos
za do passado em contraste com a decadência valores de rememoração (Riegl 2006: 69). Faz-
do presente. O interesse histórico moderno -se necessário, então, compreender o que torna
também não se confunde mais com o interes- este moderno valor de antiguidade algo dis-
se patriótico e nacional, nem seleciona a arte tinto de um “amor por antiguidades” imperial
antiga greco-romana como “objetivamente romano ou do culto às ruínas do século XVII;
justa e universalmente válida para a eternida- qual a sua relação com o novo valor histórico
de” (Riegl 2006: 56). Riegl afirma que, “em (aquele que reúne os valores artístico e histó-
particular entre os povos germânicos” do rico); e o que mais pode ser considerado valor
início do século XX, há “(...) um interesse por de rememoração, embora escape a estas duas
todas as realizações, por mínimas que sejam, categorias. Neste triplo objetivo se circunscreve
de todos os povos, quaisquer que sejam as o segundo capítulo d’O Culto Moderno dos
diferenças que os separam de nós; um interes- Monumentos.
se pela história da humanidade em geral, cada O conceito riegliano de valor de antigui-
um de seus membros nos parecendo como dade (der Alterswert) parece estar diretamente
parte de nós mesmos”(Riegl 2006: 55). vinculado à moderna noção de conservação,
Foi então possível distinguir este sujei- enquanto substituta do restauro oitocentista
to moderno daquele que prevaleceu até o (ver Scarrocchia in Riegl 1990 (1981): 12). Será
século XVIII, época que “não criou verda- a degradação lenta e inevitável por agentes
deiramente uma legislação para a proteção mecânicos e químicos, e a correspondente
dos monumentos” (Riegl 2006: 57), ou dos perda da integridade de uma obra, o fator
“italianos da Renascença” que dividiam os preponderante no valor dito de antiguidade
monumentos não-intencionais (cujo signi-
ficado de monumento é atribuído por nós,
sujeitos modernos) em artísticos e históricos.
Quanto àqueles monumentos ditos intencio- (4) Além de terem pela primeira vez “um mínimo cuidado na
nais (“obras destinadas, pela vontade de seus escolha de um material o mais durável e inalterável possível”
(Riegl 2006: 52).
criadores, a comemorar um momento preciso (5) Estas garantias legais oitocentistas não deixaram de ter an-
ou um evento complexo do passado”), Riegl tecedentes seculares. Riegl data as primeiras medidas em favor
observou que sua preservação era garantida da proteção dos monumentos de 28 de novembro de 1534,
por um sentido patriótico já na Antiguidade por iniciativa do papa Paulo III, e reconhece que embora fos-
sem “medidas particulares para proteger valores recentemente
greco-romana (Riegl 2006: 52). Mas, se os descobertos”, “uma verdadeira proteção dos monumentos, no
gregos e romanos antigos inauguraram a pro- sentido que entendemos atualmente, nasceu na Renascença
teção dos monumentos por grupos maiores italiana” (Riegl 2006: 55).

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RIEGL, A. O Culto dos monumentos: sua essência e sua gênese. Goiânia, Editora da Universidade Católica de Goiás, 2006.
120 pp., ISBN 857103297-1.
R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 385-391, 2011.

(ou de ancianidade6). Um jogo entre criação O valor de antiguidade é fácil de respeitar


humana e degradação natural então se estabe- porque não se opõe à destruição lenta e contí-
lece como “a lei estética fundamental de nossa nua, porque atribui importância e significado
época” (Riegl 2006: 71), e as intervenções que às marcas do tempo, àquilo que por inspiração
procuram eliminar as marcas do tempo, ou os darwinista foi denominado “processo evolutivo”
sintomas de degradação rápida ou violenta, e não depende de estudo para ser percebido, se
serão ambos um desprazer ao observador mo- faz notar até “pelo camponês mais conservador”
derno (Riegl 2006: 71-72): (Riegl 2006: 75). Tal valor não se confunde,
embora mantenha algum elo, com o erudito
“Na obra recentemente realizada, os
culto das ruínas, levado a cabo por artistas
traços de degradação (degradação preco-
seiscentistas que elegiam ruínas romanas como
ce) nos incomodam tanto quanto os si-
“símbolo[s] de potência e de glória terrestres”
nais de uma criação recente (restaurações
(Riegl 2006: 63).
visíveis) numa obra antiga. É muito mais
Mesmo sem entrar em franco conflito
a percepção, em sua pureza, do ciclo
com o conservador valor histórico, o valor de
necessário da criação e da destruição que
antiguidade lhe faz frente em monumentos
apraz ao homem do século XX”.
intencionais (comemorativos de um evento ou
Não se trata apenas de condenar a “destrui- de um momento), cujas marcas de degradação
ção violenta pela mão do homem” e evitar as podem ser simbolicamente indesejáveis, afetam
intervenções de restauro (todas arbitrárias), o va- seu decoro, sua dignidade. Por outro lado, na
lor de antiguidade se opõe a uma “conservação grande maioria dos monumentos, valores de
eterna dos monumentos criados no passado” antiguidade e histórico são levados a “coexis-
(Riegl 2006: 74), embora nos estimule a evitar tir com harmonia” (p. 84), posto que “estão
seu “fim prematuro” (Riegl 2006: 72). Por isso, geralmente em relação inversa: maior é o valor
pode advir do valor de antiguidade a solicitação histórico quanto menor é o valor de antiguida-
de uma intervenção que, por princípio, ele de” (Riegl 2006: 81).
próprio condena (Riegl 2006: 82): O que faz do valor histórico uma posição
conservadora é justamente a pretensão de “tudo
“Tal é o caso do monumento ameaça-
preservar, e no estado presente” (Riegl 2006:
do da destruição prematura pelos agentes
83). O que não significa que certas restaurações
naturais, seu organismo correndo o risco
pontuais possam ocasionar grandes reduções
de uma decomposição anormalmente rá-
deste valor, ou que o culto do valor histórico
pida. Por exemplo, se súbito constata-se
não possa se dar de modo limitado mediante
que cada chuva arranca um fragmento
cópias, sobretudo quando os originais se perde-
de um afresco até então bem conserva-
ram. Em tempos de reprodutibilidade técnica,
do sob o muro exterior de uma igreja,
embora não manifestem a aura do original,7 as
ameaçando apagá-lo num curto espaço
cópias sustentam uma importância documental
de tempo, será difícil ao adepto do valor
e, portanto, histórica.
de antiguidade opor-se à construção
Em conflito evidente com o valor de anti-
de uma marquise sobre a obra de arte,
guidade está o valor de rememoração intencio-
mesmo que a mão do homem moderno
nal, posto que este último combate energica-
retarde assim, sem contestação, a ação
dos agentes naturais”.

(7) Em suas análises da historicidade constitutiva dos pro-


cessos de valoração e da crise dos valores expositivos, Riegl
(6) Acerca deste conceito (der Alterswert), talvez seja impor- teria acompanhado a construção da teoria da aura de Walter
tante observar a opção dos tradutores estadunidenses pela Benjamin (ver Scarrocchia, in Riegl 1990: 12). Para uma
expressão age-value (“valor de idade”, daquilo que tem idade, apresentação benjaminiana da teoria da aura, ver Benjamin
logo, não é novo). 1992 (1955): 93-113.

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Pedro Luís Machado Sanches

mente a destruição. Pela motivação apontada lugar, sendo característico da moderna vontade
acima, os poucos monumentos intencionais se artística:
diferenciam dos demais, são aqueles que têm
“(...) o valor artístico relativo só pôde,
como postulado de base a restauração (Riegl
ao menos depois do início da época
2006: 86).
moderna, ser apreciado por aqueles que
O terceiro e último capítulo d’O Culto Mo-
possuem cultura estética. A multidão
derno dos Monumentos expõe os valores que im-
sempre foi seduzida pelas obras cujo
bricados constituem o valor de contemporanei-
aspecto novo estava claramente afirmado
dade. Esta é a parte do discurso em que a noção
(...). Ao olhar da multidão, só o que é
de Kuntswollen se fará presente diretamente, em
novo e intacto é belo. O velho, o desbo-
que a postulação de “unidades estilísticas” e sua
tado, os fragmentos de objetos são feios”
revalorização estarão, portanto, em questão. Do
(Riegl 2006: 98).
valor moderno denominado de contemporanei-
dade, derivam dois valores que juntos satisfazem Tal gosto inculto pelas obras íntegras e
os sentidos (o valor de uso prático), e o espírito recentes não se restringe às condições materiais
(o valor de arte). de preservação, se estende também ao estilo, e
Assim como o próprio valor de contempo- resulta na exigência de uma “integridade total”
raneidade manifesta pouca tolerância aos sinto- para as criações artísticas novas (Riegl 2006:
mas de degradação (Riegl 2006: 91), o valor de 101). De acordo com o valor de novidade, “a
uso que dele advém pode conflitar com o valor obra moderna deve lembrar o mínimo possível
de antiguidade, quando consideramos “inume- obras anteriores, tanto na concepção, quanto no
ráveis monumentos profanos ou religiosos” que tratamento de pormenores formais e das cores”.
não estão definitivamente arruinados, que ainda No início do século XX, o discurso de
podem ser usados: Riegl reconhecia a inexistência de um valor
de arte absoluto. Havia inclusive uma disposi-
“só as obras impróprias a todo uso
ção de elevar obras datadas de muitos séculos
prático atual podem ser olhadas e
acima das novas, e o empenho em “reabili-
apreciadas somente do ponto de vista do
tar” velhos mestres “desconhecidos” em suas
valor de antiguidade e sem consideração
épocas (Riegl 2006: 108-109). O valor de arte
do valor de uso; se as obras são ainda
moderno não se resumia ao ponto de vista
utilizáveis, nosso prazer encontra-se satis-
da multidão, também porque dizia respeito
feito quando não apresentam o valor de
à transitoriedade do gosto, e à percepção de
contemporaneidade que habitualmente
que a satisfação da vontade artística inclui
temos” (Riegl 2006: 95).
monumentos de outras épocas e culturas:
Além desta valorização prática tão cor- “subtraiamos simplesmente as esculturas da
riqueira aos velhos edifícios habitados e aos Antiguidade e a pintura do século XV ao
incontáveis objetos musealizados, observa-se XVII de nosso tesouro cultural, e avaliaremos,
para os mesmos monumentos um valor de arte então, a perda sofrida por nossa necessidade
que redunda em duas exigências da moderna de arte” (Riegl 2006: 110).
vontade artística (Kunstwollen): o valor de arte O valor relativo que assim se manifesta terá
elementar ou de novidade; e o valor de arte seus aspectos negativos na desleixada conserva-
relativo. ção de monumentos “perturbador[es] e feio[s] à
Riegl recorreu à distinção entre aquilo que vontade artística moderna”, sobretudo, “certos
apenas o homem culto é capaz de perceber e o monumentos [ditos] barrocos” considerados “in-
que não passa despercebido ao grande públi- suportáveis” a ponto de ser “melhor não vê-los”
co, a fim de expor as diferenças entre o valor (Riegl 2006: 112); além de tornar embaraçosa a
artístico elementar, comum a toda obra nova; apreciação da arte sacra moderna, que empresta
e o valor artístico relativo, capaz de abranger muitos elementos das “épocas estilísticas ante-
qualquer monumento, de qualquer época e riores” (Riegl 2006: 113).

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RIEGL, A. O Culto dos monumentos: sua essência e sua gênese. Goiânia, Editora da Universidade Católica de Goiás, 2006.
120 pp., ISBN 857103297-1.
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As últimas palavras da conferência são ção dos Monumentos Austríacos e, sobretudo,


dirigidas justamente a esta arte religiosa mo- do pensamento de seu superintendente.
derna e ao afã de escolher o gótico, dentre os Riegl não faz agravar a distinção entre
estilos anteriores, como modelo. Riegl reafirma arte e artesanato, ou entre belas artes e artes
o gosto moderno pelos modos artísticos medie- aplicadas. Habituado a considerar os objetos
vais, e os considera algo a ser defendido pelo de tais categorias como manifestações de uma
clero encomendante, pois assim aproximaria as só vontade, dedicou seu interesse aos aspectos
novas obras sacras dos “interesses culturais” e ornamentais, sejam quais forem os suportes,
“múltiplos” da coletividade (Riegl 2006: 115). e à apreciação coletiva, portanto cultual, dos
Tal proposta parte de um estudioso que publi- monumentos. Fazendo ver que as ações para
cara um ano antes seu importante estudo sobre a preservação patrimonial surgem de valores
o artesanato tardo-romano (Riegl 1959 (1901)) relativos, contraditórios, recentes e, muitas
e que combatia o desprezo por aquelas épocas vezes, efêmeros, Riegl impõe “ao sujeito da
cujas artes eram tidas como decadentes. preservação a necessidade de fazer escolhas, as
Dentre muitos exemplos de intervenções quais devem ser, necessariamente, baseadas num
apontados por Riegl ao longo da conferência es- juízo crítico” (Reis e Cunha 2006: 4), e, deste
tão a preservação da coluna de Trajano por me- modo, antecipa “propostas defendidas a partir
dievais (Riegl 2006: 53), o projeto abandonado do segundo pós-guerra europeu pelo chamado
de um coro gótico para a igreja de Altmuenster ‘restauro crítico’”, como explicou Claudia dos
(Riegl 2006: 104) e supostos retoques “barrocos” Reis e Cunha, em resenha publicada há quase
sobre uma tela de Botticelli (Riegl 2006: 111). cinco anos.
Mas o texto não remete unicamente a monu- Escrito numa época em que ainda era
mentos que se fizeram célebres na modernida- preciso afugentar velhos sistemas taxonômicos,8
de, aponta também para objetos singelos como dedicados à ordem natural e eterna das coisas,
“um folheto rasgado, sobre o qual se encontra o pequeno texto de Riegl parece teimar em man-
registrada uma nota breve e sem importância” ter-se atual. Sobretudo porque muitos de nós,
(opus citatum) ou os vestígios de um edifício dotados ou não de “cultura estética”, estamos
quase todo arruinado: “as colunas de Ingelheim, longe de perceber que o valor de um monumen-
no pátio do palácio de Heidelberg, evocam tão to é algo múltiplo e relativo; e qualquer ação de
veementemente o castelo de Carlos Magno (...)” conservação ou de restauro é necessariamente
(Riegl 2006: 81). Tal diversidade espelha a am- determinada por um desejo subjetivo, por algo,
plitude das ações da Comissão para a Conserva- de fato, indeterminado.

(8) Para Michel Foucault, tais sistemas se estabeleceram nos


séculos XVII e XVIII, diante do esquecimento de que “nem
o homem, nem a vida, nem a natureza são domínios que se
oferecem espontânea e passivamente à curiosidade do saber”
(Foucault 2007: 99).

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Pedro Luís Machado Sanches

Referências bibliográficas

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REIS E CUNHA, C. Bologna: Edizioni Alfa (1a edição: 1981).
2006 Alois Riegl e o culto moderno dos monumentos. 2006 O Culto dos monumentos: sua essência e
Resenhas on line, disponível em <http:// sua gênese (Tradução do francês de Elane
www.vitruvius.com.br/revistas/read/ Ribeiro Peixoto e Albertina Vicentini).
resenhasonline/05.054/3138>, acesso em Goiânia: Editora da Universidade Católica
24/12/2010, 23:00:47. de Goiás.

Recebido para publicação em 13 de março de 2011.

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