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Mariana Muaze***
mamuaze@gmail.com
RESUMO
* Doutor em História O artigo aborda os percursos das práticas fotográfica no Brasil nos séculos XIX e XX e o papel
Social pela Universidade que a fotografia assumiu na cultura visual brasileira. Para o século XIX, valoriza-se a produção
Federal Fluminense
do retrato e da fotografia de paisagem; já para o século XX, o texto volta-se para a avaliação da
(UFF, Brasil). Pesquisador
associado do Laboratório
produção da fotografia pública, centrada nas fotografias de imprensa e naquelas produzidas
de História Oral e Imagem pelas agências de estado. A proposta apoia-se numa estrutura enciclopédica na qual se
(UFF). Pesquisador do consolida um conjunto de informações históricas baseadas em pesquisa original e referências
Museu Casa de Benjamin historiográficas atualizadas sobre os debates em torno da fotografia e sociedade no Brasil
Constant (IBRAM/MinC, contemporâneo.
Brasil).
** Doutora em História
Social pela Universidade RESUMEN
Federal Fluminense (UFF, El artículo aborda la evolución de las prácticas fotográficas en Brasil durante los siglos XIX y XX y el rol que
Brasil); e pós-doutorado la fotografía asumió en la cultura visual brasileña. Para el siglo XIX se valora la producción del retrato y de la
no Museu Paulista da fotografía de paisaje. En el siglo XX, el texto se orienta hacia la evaluación de la producción de la fotografía
USP. Professora titular do pública, enfocada en la fotografía de prensa y en aquellas elaboradas por las agencias de estado. La
Departamento de História propuesta se apoya en una estructura enciclopédica en la cual se consolida un conjunto de informaciones
da UFF. históricas basadas en una investigación original, y en referencias historiográficas actualizadas sobre el
debate en torno a la fotografía y la sociedad en el Brasil contemporáneo.
*** Doutora em História
pela Universidade
Federal Fluminense (UFF,
Brasil). Professora do ABSTRACT
Departamento de História The article follows the paths of photographic practices in Brazil in the 19th and 20th centuries and the
da Universidade Federal centrality of photography in the country’s visual culture. The text emphasizes photographic portraits and
do Estado do Rio de landscapes as the most valued images in the 19th century, whereas in the 20th century it focuses on the
Janeiro (Unirio, Brasil). production of public photography, in particular press photography and photography from state agencies.
Our aim is to offer an encyclopedic structure which consolidates, in each of its parts and sub-parts, historical
information based on original research and up-to-date historiographical references concerning the debates
about photography and society in contemporary Brazil.
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REB
REVISTA DE ESTUDIOS BRASILEÑOS
Finalmente passou o daguerreotipo para cá dos mares (...) Em menos de nove minutos
o chafariz do Largo do Paço, a praça do Peixe, o mosteiro de São Bento, e todos os PALAVRAS-CHAVE
Brasil; retrato;
outros objetos circunstantes se acharam reproduzidos com tal fidelidade, precisão e
paisagem;
minuciosidade que, bem se via que a coisa tinha sido feita pela própria mão da Natureza, e
fotografia
quase sem a intervenção do artista. pública; práticas
Jornal do Commércio, 17/1/1840. fotográficas
A fotografia ocupou um importante papel na cultura visual brasileira. Neste artigo propomos uma
PALABRAS CLAVE
história visual do Brasil Contemporâneo a partir da análise de seus circuitos sociais, usos, funções Brasil; retrato;
e agentes. Enquanto no Oitocentos o retrato e a paisagem comandaram a cena fotográfica, no paisaje; fotografía
século XX, a fotografia pública, produzida por agências da sociedade burguesa contemporânea, pública; práctica
desempenhou esse papel (Mauad, 2014). Um pouco dessa história, é o que será contado a seguir. fotográfica
KEYWORDS
Brazil; portrait;
landscape; public
photography;
1. Os circuitos sociais da fotografia no Oitocentos photographic
practices
A descrição da primeira experiência fotográfica realizada no Brasil ressaltava a rapidez, fidelidade,
precisão e minuciosidade do produto final, que parecia tão perfeito quanto a própria Natureza. O
deslumbramento com o novo invento não tardou: o imperador d. Pedro II tornou-se o primeiro
Recibido:
brasileiro a adquirir uma câmera fotográfica, além de um dos maiores colecionadores de fotografia
13.04.2017
do seu tempo. O hábito de fotografar e consumir fotografias se alastrou rapidamente. A sociedade
Aceptado:
imperial se encantou como a nova experiência visual proporcionada pela imagem fotográfica.
02.08.2017
Numa sociedade em que a maioria da população era analfabeta, tal fato possibilitou novo tipo
de conhecimento mais imediato, mais generalizado do mundo. Paralelamente, habilitava os
grupos sociais a formas de autorrepresentação até então reservadas à pequena parte da elite que
encomendava a pintura de retratos à óleo. A demanda social por imagens incentivou pesquisas
no sentido de melhorar a qualidade técnica das cópias, facilitar o processo de produção e retirar-
lhe o caráter de relíquia, ainda presente no daguerreótipo, peça única, acondicionada em estojo
de luxo.
Paralelamente, o Império teve sua imagem desenhada pela pena perspicaz dos viajantes e de seus
“riscadores” (desenhistas), pelos pintores paisagistas e fotógrafos que por aqui transitaram, desde
a abertura dos portos em 1808. Independentemente do registro visual, foi o olhar do estrangeiro
que nos enquadrou, ao mesmo tempo em que educou nosso olhar, para que pudéssemos mirar
nos espelhos da cultura europeia (Sussekind, 1990). Esta escrita-em-trânsito, típica dos viajantes,
forneceria o tom de testemunha ocular aos relatos, escritos no estilo simples da verdade, mas
também esteve presente nas aquarelas e nos desenhos dos pintores que acompanhavam as
expedições, haja vista os trabalhos de Ender, Rugendas, Taunay, Debret.
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os símbolos de classe com a qual gostaria de femininas e infantis. As imagens de crianças eram
ser identificado. Nesse processo, o indivíduo se comuns na composição individual, em dupla (com
destacava como principal personagem da foto, outra criança ou adulto) ou em grupo. As fotografias
mas também como maior consumidor e produtor em grupo, apesar de menos numerosas, possuíam
de imagens fotográficas, aspecto que também também espaço nos álbuns, prevalecendo os casais
pode ser comprovado em termos numéricos com filhos entre os núcleos familiares.
pelo alto quantitativo de cartes de visite (retratos
masculinos e femininos) individuais encontradas
nas coleções de retratos familiares pertencentes à
arquivos públicos e privados (Fabris, 1995, p. 11).
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um kit que constava de fundo liso, cortinas, esteiras figuravam amas de leite afro-brasileiras com bebês
para o chão, além de volumosos equipamentos e ao colo, babás com crianças, escravos com senhores,
químicos fotográficos. O mobiliário pertencia às ou ainda escravos vestidos ricamente como forma
fazendas e o estúdio improvisado era montado do de ostentação. A escravidão assim encenada
lado externo, onde houvesse uma boa exposição ao caracterizava signo de poder e riqueza material da
sol. Assim, adaptava-se a mise en scène do estúdio classe dominante. Contudo, houve ainda aqueles
fotográfico para o espaço provisório montado. Esse negros e afrodescendentes que compareciam
foi o caso de Manoel de Paula Ramos, cirurgião- ao estúdio fotográfico como clientes, pois havia
dentista de profissão e fotógrafo amador, que estúdios mais baratos que atendiam os egressos do
passou na fazenda Pau Grande nos anos de 1863 e cativeiro e seus descendentes, apontando práticas
1870 e registrou vários membros da família Ribeiro e experiências fotográficas diversas na sociedade
de Avellar (Muaze, 2008). escravista (Koutsoukos, 2010).
Em outros casos, os negros eram enfocados pela No Brasil, pode-se dizer que a fotografia adquiriu
lente das relações domésticas. Em tais retratos, o prestígio de expressão artística, como técnica
nova de representação visual, em 1842, quando
as fotografias da Sra. Hippolyte Lavenue foram
incluídas, lado a lado com a pintura, na Exposição
Geral da Academia Imperial de Belas Artes.
Anos depois, em 1861, esse status se confirmou
nas Exposições Nacionais, onde a fotografia de
paisagem emergia como concepção artística.
Portanto, a polêmica se a fotografia era obra de arte
não assumiu maiores proporções por aqui, como
ocorreu no Velho Continente. Rapidamente a prática
fotográfica ganhou autonomia em relação à pintura
e elencou suas próprias regras de hierarquização:
inovações técnicas, opções estéticas com padrões
internacionais, premiação em exposições nacionais
e internacionais, clientela consolidada, localização
Imagem 3. Negros do Rio de Janeiro. Carte de visites (Christiano do atélier em capitais, contatos com o exterior,
Jr., 1864-1866). proximidade do poder de Estado; e em menor grau,
Fonte: Arquivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
formação artística proveniente das Belas Artes,
Nacional (IPHAN, Brasil).
denotando a autonomização da prática fotográfica
(Mauad, 2008).
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dividiram as categorias de fotógrafo, cada qual ao mesmo tempo, o relaciona com seu grupo ou sua
desenvolvendo sua prática fotográfica, segundo geração (Sirinelli, 1996). A experiência fotográfica
as mediações culturais de imposição da condição vivenciada por tais agentes históricos elabora um
social. conjunto amplo e variado de representações do
mundo visível. Portanto, ao registrarem as mais
O próprio aprendizado, também, variava: aos diversas condições e situações da experiência
batedores de chapa ficaram reservadas as humana com propósitos distintos, os fotógrafos e
publicidades das fábricas de filmes e de câmeras fotógrafas contribuíram para elaborar uma história
que, ao venderem os produtos, ensinavam a utilizá- visual do Brasil contemporâneo.
los, desenvolvendo uma pedagogia do olhar nos
semanários ilustrados; aos amantes da fotografia, 2.1. Fotografia e imprensa: do fotojornalismo às
o privilégio dos espaços exclusivos do foto clube, agências independentes
reservados para os iniciados nas artes pictóricas;
já os profissionais da fotografia, categoria mais Os estudos sobre a relação entre fotografia
complexa, evidencia as tensões entre ver e e imprensa apresentam duas perspectivas
representar próprias do circuito de informação principais sobre a fotorreportagem e do
da imprensa contemporânea e seus contatos fotojornalismo brasileiro. Joaquim Marçal de
com as vanguardas artísticas novecentistas. A Andrade argumenta que, “quando realizada fora
linguagem fotográfica foi se definindo no regime dos estúdios, a fotografia brasileira do século XIX
visual contemporâneo, a partir das relações de é marcadamente documental”, aspecto no qual
analogia e de experimentação formal com o “se encontra o ‘germe’ da fotografia jornalística
referente, organizando, em diferentes espaços brasileira” (Andrade, 2004). Para Andrade, as
de sociabilidade, os locais do aprendizado, fotografias documentais corresponderiam a uma
da produção, da circulação, do consumo e do tendência fotodocumentarista, pois retratavam
agenciamento (Meneses, 2003). acontecimentos do cotidiano social: chegadas
ou visitas da Família Imperial, conflitos sociais,
Um conjunto de transformações decorreu festejos, etc. O autor destaca as fotografias da
do crescente processo de urbanização e Guerra do Paraguai (1864-1870) como a origem
industrialização pelo qual o Brasil passou no da reportagem fotográfica no Brasil, pois Henrique
século XX. Nesse período, a fotografia afirma-se Fleiuss, editor da revista Semana Ilustrada,
como imagem pública por meio de processo de contratou fotógrafos para irem a campo retratar os
modernização visual que tem como apoio as novas acontecimentos.
estratégias de ver e ser visto, associadas à formação
de espaço público hierarquizado segundo três As teses de Andrade levantam polêmicas, seja
principais características: primeiramente pelas porque não se publicava as fotografias (pois as
lógicas do consumo e da distinção social, próprios ilustrações da revista eram desenhos das fotos);
da sociedade formada com base na desigualdade; seja porque não se pensava as imagens como
em seguida, os novos dispositivos de visão voltados narrativas; seja ainda porque o conjunto das
para o consumo massivo da imagem; e por último, fotografias não representava um investimento
as novas economias visuais que buscaram dar conta autoral dos fotógrafos sobre temática específica.
da entrada do Brasil no circuito internacional de Por outro lado, de fato, elas exemplificavam a
trocas culturais, próprios da modernidade ocidental aproximação entre jornal e imagem técnica que
e das culturas políticas liberais e capitalistas. Como inaugurava novas possibilidades de produção e
consequência, se formaram duas importantes recepção de informação. Sem negar a importância
agências de produção da imagem contemporânea: das experiências do século XIX, percebemos
a imprensa e o estado. a reportagem fotográfica e o fotojornalismo
como linguagens e abordagens típicas do século
A forma da elaboração e do envolvimento dessa XX, vinculadas ao crescimento das cidades, à
prática fotográfica com os acontecimentos e industrialização da imprensa, à invenção do
vivências que essas imagens registravam definem instantâneo e ao surgimento do fotógrafo como
um lugar social para o fotógrafo que as produziu e, figura pública.
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Já nas primeiras décadas do século XX, a fotografia O Brasil das reportagens, se urbanizava, se
destacou-se no contexto da industrialização e desenvolvia. Nesse processo, o papel dos
profissionalização da imprensa. A velocidade da produtores das imagens é redefinido. Pela própria
circulação das pessoas e de informação pelo mundo natureza técnica da fotografia, configurava-se
aumentou a partir das inovações tecnológicas. a necessidade do fotógrafo estar presente nos
Os mundos distantes, já aproximados ao longo fatos documentados. Se, por um lado, as revistas
do século XIX através da fotografia de viagens desempenhavam papel de veículos de uma
e cartões-postais, poderiam ser noticiados em nova linguagem visual e narrativa, buscando
detalhes. A fotografia seria capaz de fazer ver o que o reconhecimento do público leitor, por outro,
se passava no mundo, e a imprensa selecionava o estabeleciam com os fotógrafos uma relação que
que merecia ser visto. Esse foi o berço das revistas os mantinha como mediadores do conteúdo das
ilustradas, que adicionavam ao atrativo da imagem, reportagens. Assim, os próprios produtores das
o apelo pelo imediato que a fotografia poderia imagens começavam a aparecer como figuras
oferecer. credenciadas a “ver” pelo público, imprimindo seus
olhares nas revistas. Conferindo ao consumo de
2.2. Revistas Ilustradas fotografias o estatuto de nova experiência social,
a prática fotográfica envolvia tanto os autores e as
No Brasil do início do século XX, a Revista da revistas quanto os leitores no produto final.
Semana foi pioneira a utilizar a fotografia para
informar e entreter, envolvendo a imagem técnica No final dos anos 1920 e início dos anos 1930,
em textos e arabescos artísticos, que poderiam ter surgiram no Rio de Janeiro duas importantes
relação ou não com o conteúdo das reportagens. revistas, O Cruzeiro (1928) e A Noite Illustrada
Posteriormente, publicações como Fon-Fon, (1930). Elas repetiam as fórmulas bem sucedidas
Careta, Kosmos, Ilustração Brasileira e Espelho e exploravam novas perspectivas, tais como:
valorizavam as fotografias como ilustrações do justaposição de fotos como recurso narrativo,
texto, que já ocupavam uma parte importante técnicas de impressão mais apuradas (rotogravura),
do espaço nas páginas dos periódicos. O teor publicação de instantâneos da vida cotidiana
do material publicado bailava entre o crítico e o (em contraponto às imagens de acontecimentos
cômico, apresentando, também, caráter educativo. históricos e de celebridades), valorização de alguns
Principalmente após 1920, as revistas ilustradas fotógrafos através do crédito autoral e o incentivo à
funcionaram como verdadeiros manuais da vida prática fotográfica através de concursos.
moderna, civilizada e burguesa (Mauad, 2005). Elas
apresentavam o mundo urbano e letrado brasileiro,
entremeado por viagens ao “interior selvagem” e
eventos na Europa e Estados Unidos.
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imprensa da época.
efeitos que a imagem deveria provocar no leitor.
Nos anos 1960 e 1970, com o advento e a Essas inovações nivelaram a prática fotográfica de
consolidação da televisão como veículo de massa, documentação e reportagem às experimentações
o mercado editorial de publicações ilustradas se técnicas e estéticas. Tal exercício imprimiria novo
especializaria com revistas sobre temas específicos, tipo de mediação visual, marcadamente, opinativo
a exemplo das revistas Claudia (1961) e Placar e crítico, entre o leitor e o mundo apresentado
(1970), voltadas para o público feminino e esportivo em imagens pelos magazines semanais e jornais
respectivamente, e pertencentes à editora Abril de diários.
Victor Civita. Na consolidação da cultura da mídia no
Brasil, observa-se a especialização dos fotógrafos, 2.3. Jornais diários e agências independentes
que passam a se dedicar a certos temas, eventos e
atividades, como a fotografia de moda, que sairia Nos jornais diários, as fotografias apareciam
dos catálogos de publicidade e se espalharia pelas esparsamente desde as primeiras décadas do
páginas das revistas e jornais diários (Rainho, 2012). século XX, mas as dificuldades de reprodução, a
qualidade do papel e a natureza dos editoriais não
No contexto de tensão entre imprensa e estado cooperavam. Somente no final da década de 1950,
decorrente do golpe civil-militar de 1964, a revista os jornais diários incorporariam o fotojornalismo
Realidade (1966-1976), publicação da Editora como prática comunicativa regular, destacando-se
Abril, destacou-se ao inaugurar o jornalismo nesse processo três jornais cariocas: Última Hora,
investigativo. A revelia da censura, informou e Jornal do Brasil e o Correio da Manhã (Louzada,
discutiu temas proibidos nos anos 1960, entre 2013). Cada um desses veículos contribuiu para a
os quais a repressão policial, o casamento de configuração de novo tipo de prática fotográfica
padres, a condição feminina, o sexo, o aborto, na grande imprensa diária associada aos ideais de
etc. Paralelamente, na revista, delineou-se um comunicação rápida e abrangente.
olhar fotográfico próprio sobre o Brasil, através da
valorização do setor de fotografia que contava com No espaço da imprensa, observou-se – desde a
equipe de competentes fotógrafos, como Luigi reforma gráfica do Jornal do Brasil, em 1955 e
Mamprin, Chico Guerissi, Jean Solari, David Drew posteriormente à criação do Prêmio Esso para
Zingg, Walter Firmo, Maureen Bisiliat, George Love fotojornalismo em 1962 (Serrano, 2013) – a gradual
e Claudia Andujar3. tomada de consciência do papel da imagem
fotográfica na elaboração do sentido da notícia.
Várias vezes vencedora do Prêmio Esso, Essa consciência, incentivada pela ação de editores
Realidade dava centralidade às fotografias nas de fotografia provenientes do fotojornalismo
reportagens, tanto pelas novidades na linguagem - como foi o caso do fotógrafo Erno Schneider
fotojornalística quanto pela relação texto-imagem (1933), no jornal O Correio da Manhã - serviu de
em várias disposições. A escolha das fotos, base à elaboração de nova experiência fotográfica,
coloridas ou em preto e branco, associava-se aos que alimentaria a luta pela direito do fotojornalista
à imagem.
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A partir de então, o fotógrafo de imprensa passou diretas denominado de Diretas Já, etc. Destaca-
a ser considerado não somente como apoio se também a agência Imagem da Terra, fundada
do jornalista, mas também dotado de alguma em 1984, no Rio de Janeiro, pelo fotógrafo João
autonomia na cobertura de acontecimentos Roberto Ripper, voltada à produção de fotografias
políticos. Em que pese a ausência de formação engajadas aos movimentos sociais e às condições
universitária da geração de fotógrafos que vai de vida de trabalhadores e de comunidades em
fomentar uma nova prática fotográfica nas situações-limite por todo o Brasil.
redações, em grande medida, eles abriram
caminho à renovação radicalizada no movimento
das agências independentes4.
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3. Práticas de fotógrafos
estrangeiros no Brasil
Imagem 8. Mulheres Carajá pedem tabaco ao Príncipe Pedro Gas-
Na primeira metade do século XX, vários fotógrafos tão (Mario Baldi, Ilha do Bananal,1936).
estrangeiros em atividade no Brasil encontraram Fonte: Coleção Mario Baldi, B 03254_n, Weltmuseum Wien.
boa acolhida nos projetos estatais, com destaque
para o austríaco Mario Baldi e o francês Jean Lange e Paul Stille, acompanhados do alemão-
Manzon. chileno Erwin Von Dessauer, também participaram
da Obra Getualiana (Lacerda, 1994).
Mario Baldi chegou ao Brasil em 1921 e começou a
publicar na imprensa brasileira depois que viajou A análise deste material visual permite destacar
pelo país como fotógrafo particular de d. Pedro de dois eixos principais: o primeiro enfatizava a cultura
Orleans e Bragança, neto de d. Pedro II. (Lopes, 2014) como patrimônio brasileiro; o segundo redefinia
A revista A Noite Illustrada abriu espaço para suas a noção de Brasil pela visualização da alteridade
imagens, com créditos de autor, que colocavam cultural de seus habitantes.
os herdeiros da família imperial sob novo enfoque
público. Em 1935-1936, Baldi criou, com Harald O projeto de registro do patrimônio cultural
Schultz, a Photo Yurumí. A parceria era, na verdade, brasileiro realizado pelo Serviço do Patrimônio
uma agência que se apresentava como Brazilian Artístico Nacional (SPHAN) a partir da década
Press-Photo e estabelecia contato com revistas de 1930, visava a localizar e a preservar bens
estrangeiras e agências internacionais. A Photo culturais que refletissem a formação do Brasil como
Yurumí chegou a receber os créditos fotográficos nação. Elegeu-se o barroco como a identidade
na revista da AGFA, indústria de filmes e câmeras arquitetônica nacional, projetada ao passado.
fotográficas, bem como na famosa revista alemã Die Apontando para o futuro, fotografavam-se prédios
Neue Gartenlaube, com o artigo Diamantenrausch modernistas também como patrimônio brasileiro.
(Febre dos Diamantes), no qual Baldi narrava a saga Aparecem, novamente os nomes dos fotógrafos
diamantífera no Brasil e apresentava as fotografias Erich Hess, Paul Stille e Peter Lange, além do
dos mineradores. (Imagem 8). francês Marcel Gautherot, principal fotógrafo das
obras de Oscar Niemeyer. A fotografia se tornava
No final da década de 1930, o Ministério de Educação espaço de recriação dos monumentos, no qual a
e Saúde o nomeou para fotografar o norte do Brasil materialidade dos bens culturais revestia-se de
no projeto Obra Getuliana6. Apresentando-se como historicidade visualizada. Muitas das imagens
“o photoreporter do Brasil”, Baldi foi um pioneiro do produzidas eram veiculadas em publicações
fotojornalismo brasileiro, recebendo créditos por estatais e em revistas populares, como o caso da
suas fotos desde os anos 1930 e cultivando o estilo revista carioca Espelho que veiculou as fotos de
de fotógrafo aventureiro, característica marcante igrejas antigas do Rio de Janeiro, de Mario Baldi e
de quase todos os fotojornalistas modernos. Paul Stille.
Sua trajetória também nos remete à atuação de
fotógrafos germânicos em projetos de Estado nos No campo da cultura como espaço da alteridade, os
anos 1930-1940. Como Baldi, Erich Hess, Peter alemães também estiveram presentes. A chamada
Marcha para o Oeste, incorporada ao governo
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2
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3
Sobre a trajetória de Claudia Andujar, ver Mauad (2012). 1900. Rio de Janeiro: Elsevier.
4
Memória do Fotojornalismo Brasileiro, Fontes Orais do Angotti-Salgueiro, H. (2007). O olho fotográfico de Marcel
LABHOI-UFF [www.historia.uff.br/labhoi]. Gautherot e seu tempo. São Paulo: FAAP.
5
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6
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as realizações do presidente ao fim da primeira década Paulo: Edusp.
de governo, através da mobilização de fotógrafos que
registravam diversos aspectos da vida social brasileira, em Castro, H. (1995). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio
todas as regiões do país. de Janeiro: Topbooks.
7
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www.pierreverger.org/fpv/index.php/br/pierre-fatumbi- Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1(27),
verger/biografia]. Consultado [10-01-2014]. 188-195.
8
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