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Mais um

Cássio Pires
Mais Um
2º lugar – Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Plínio Marcos.
Menção Honrosa no Concurso Nacional de Dramaturgia da Cidade de Belo Horizonte.
Para Ana Roxo e Erica Montanheiro,
que não me deixaram sozinho na estação.
Eu gosto muito que as personagens se cruzem porque é isto que acontece na
vida. Todos os dias eu cruzo com pessoas sem saber que são pessoas que eu
posso vir a conhecer. Neste instante, aqui neste Café, nós estamos sentados de
costas para estes desconhecidos. Depois, cada um vai se levantar, partir no seu
caminho e não reencontraremos mais estas pessoas. Ou, se reencontrarmos, jamais
saberemos que não foi a primeira vez.

Krysztof Kieslowski
Personagens:

. Estrela
. Produtor
. Senhora
. Contraventor
. Cúmplice
. Técnico
. Poeta
. Funcionário do Metrô
. Fantasma

Cena:

No metrô de São Paulo.

Ação:

Em quatro planos: um vagão da linha azul, um da linha verde, um da linha vermelha


e uma área de embarque da Estação da Sé.
ATO ÚNICO

Prólogo

(Os personagens se misturam aos integrantes da fila de espectadores. As portas do


teatro se abrem. Público e atores seguem ao local de espetáculo. De repente, a
POETA pára diante de um espectador)

POETA. Você... Você, que eu nem conheço, mas que agora cruzou meu caminho.
Eu queria te dizer uma coisa. Eu posso?

(O espectador autoriza)

POETA. O que eu tenho pra te dizer é uma idéia. Talvez menos que isso. Uma idéia
sem explicação, idéia sem idéia, sabe?

(O espectador reage)

POETA. É que nem a palavra saudade ou que nem o amor, entende? Ninguém
consegue explicar o que é, mas todo mundo sabe o que significa... Tem a ver com a
multidão, com esse monte de gente que cruza o seu caminho, do mesmo jeito que
você cruza o deles... Imagina uma noite qualquer. Nessa noite, você sai de casa e
tem um destino. E aí você caminha e entra, por exemplo, num metrô. Ali, você flerta
com uma pessoa, com duas as vezes. Dali a pouco você tem medo de um sujeito
que acha que vai te assaltar. Antes disso, você invejou alguém que tem um gosto
pra se vestir melhor que o teu. E viu uma moça que te lembra alguém que você não
lembra quem é. E sentiu dó de um cego que pedia esmola. E teve raiva de um cara
que trombou em você. E quis saber no que ia dar a discussão de um casal, mas eles
saem do vagão antes que você saiba o fim daquela novela. Enquanto isso, no meio
da multidão, alguém te olhou e você nem percebeu. Aí sua viagem termina. Você
chega onde queria chegar. E é isso o que a gente chama de um dia normal.
Nenhuma daquelas pessoas que cruzaram seu caminho mudou em nada a sua vida.
E você, do mesmo jeito, não mudou em nada a vida de ninguém. E você fica
imaginando o que podia ter sido. E aí, é só isso. A vida segue. E fica um não-sei-
quê, uma sensação de que você perdeu alguma coisa, que escapou de outras e que
devia ter notado outras ainda, só pelo prazer de notar... Bem, tentei te explicar a
minha idéia. Além disso, não sei ir. Viu só? Idéia sem idéia, dessas coisas difíceis de
explicar e fáceis de entender...

1.
Todos os espaços

(Sons de trens em movimento. Em cena, esperando o trem, estão o TÉCNICO, o


CONTRAVENTOR, a ESTRELA e o PRODUTOR)

LOCUTOR (off). Senhoras e Senhores, estaremos encerrando nossas atividades


dentro de quarenta minutos.

2.
Linha verde

(Luz sobre o vagão da linha verde. O TÉCNICO, titubeante e cansado, diante da


porta do vagão. Veste terno e gravata ordinários e carrega uma pequena mala. Sinal
de aviso de abertura das portas. Ele entra e fica parado diante da porta)

3.
Linha vermelha

(Luz sobre o vagão da linha vermelha. O CONTRAVENTOR, agitado, entra com


algumas apostilas embaixo do braço. Sinal de aviso de fechamento das portas.
Senta-se imediatamente)

4.
Linha Azul

(Luz sobre o vagão da linha azul. A ESTRELA e o PRODUTOR lado a lado. Ele está
bastante desarrumado, com um pedaço da camisa rasgado.)

PRODUTOR. Essa merda não vai abrir?

ESTRELA. Calma. As vezes demora um pouco.

(Sinal de aviso de abertura das portas. Eles entram)

PRODUTOR. Ridículo!

ESTRELA. Que foi?

PRODUTOR. É ridículo eu ter que voltar pra casa nisso aqui!

ESTRELA. Calma.

PRODUTOR. É um absurdo! Eu vou embora desta bosta de lugar! Vou pro Rio!
ESTRELA. Senta aí.

PRODUTOR. Não me dê ordens!

ESTRELA. Senta aí, vai!

PRODUTOR (sentando). Tem clorofórmios fecais nesses assentos! Eu vou pegar


uma infecção! Vou virar uma bola de pus!

(A estrela bufa. Sinal de aviso de fechamento das portas)

5.
Linha verde

(O TÉCNICO retira um envelope e um bloco de notas de sua mala. Tenta começar a


escrever algo.)

FUNCIONÁRIO. (a si mesmo) Meu amor... (rasga o papel) Meu bem... (rasga o


papel) Querida... (rasga o papel)

LOCUTOR. (off) Estação Sumaré.

(Entra o FUNCIONÁRIO. Ouve uma chamada no rádio.)

FUNCIONÁRIO. QAP, irmão.

VOZ. (off) Tudo em cima?

FUNCIONÁRIO. Sob controle. Prossiga.

VOZ. (off) A central pede pra perguntar se o sistema já retornou no local.

FUNCIONÁRIO. Deu um QRU do caralho, mas já resolvi.

VOZ. (off) Tá indo pra onde, irmão?

FUNCIONÁRIO. Agora vou dar um rolê.

VOZ. (off) É ronda?

FUNCIONÁRIO. Não, não. Agora é pessoal. Deu minha hora. Chega de trabalhar.

VOZ. (off) É uma moça, é?


FUNCIONÁRIO. Por aí.

VOZ. (off) Boa sorte, irmão.

FUNCIONÁRIO. PKS.

VOZ. (off) QRP, irmão.

6.
Linha vermelha

(O CONTRAVENTOR, agitado, abre uma das apostilas e finge que está lendo)

7.
Linha Azul

(A ESTRELA e o PRODUTOR sentados lado a lado. Um silêncio)

ESTRELA. Falei com a minha cartomante.

PRODUTOR. O que é que ela falou?

ESTRELA. Que vai dar certo.

PRODUTOR. Então ligue pra ela a hora em que chegar em casa e manda ela se
foder.

ESTRELA. Por que??

PRODUTOR. Se ela não previu que ia aparecer uma vadia no farol metendo uma
arma na minha cara e ia levar meu carro, meu celular e minha grana então ela não
presta.

ESTRELA. Ela não tem que acertar coisas menores!

PRODUTOR. Menores! Você sabe quanto custa o meu carro? Você sabe quantos
shows vai ter que fazer pra conseguir o dinheiro que compra o meu carro?
Menores...

ESTRELA. Todo mundo é assaltado aqui um dia. Não preciso que nenhuma
cartomante me diga que isso pode acontecer comigo.

PRODUTOR. Você não foi assaltada! Eu fui assaltado!


ESTRELA. Eu também fui assaltada! Ela levou todo meu dinheiro, meu talão, meus
cartões.

PRODUTOR. (muito nervoso) Você só tinha trocado na bolsa.

ESTRELA. Calma! Você tá nervoso demais!

PRODUTOR. (acaba obedecendo) Pra você é fácil. (respira) Qual o nome da sua
cartomante?

ESTRELA. Madame Mercedes.

PRODUTOR. Madame... madame, o caralho! É uma vagabunda charlatã. Como é


que não adivinha que a gente vai ser assaltado, porra? É por isso que o mundo é o
que é! Porque existem boçais como a Madame Mercedes. Por isso. Me dá o telefone
dela que amanhã eu vou ligar pra essa vadia e lhe dizer algumas coisas.

ESTRELA. Deixe a mulher em paz. Amanhã você aciona o seguro do carro, cancela
a linha do celular e os cartões e tá tudo certo.

PRODUTOR. Você não entende. É muito mais que isso. Uma parte da minha vida foi
embora com aquele carro!

ESTRELA. Não seja melodramático!

PRODUTOR. É isso mesmo. Eu sou um cara que optei por não ter filhos exatamente
pra ter carros. Importados, bonitos, caros. Eu batalhei por isso. Eu prefiro investir
meu dinheiro em revisão do que em mensalidade de colégio particular. Meus carros
têm apelidos, entende? Mais que apelidos: tem nome. Cada um dos meus cinco
carros me dá um prazer diferente, recebe um tratamento especial. Não adianta me
olhar com essa cara de desprezo. Eu sei que você jamais vai entender isso. Mas
você numa correu num rachão em Interlagos e por isso não tem como entender o
prazer que eu tenho em cuidar dos meus carrinhos. Vocês mulheres são insensíveis
com os carros. Enchem-nos com crianças babonas que ficam colando merda de
nariz no estofamento, sujam o piso com gergelim do Big Mac, com folhetos
promocionais, com sacola do Pão de Açúcar que deixa o couro do assento fedendo
lingüiça e sorvete napolitano! Estouram a lateral manobrando do lado de coluna de
garagem, não sabem engatar a ré direito, fodem toda a embreagem e tudo isso
porque não entendem que o carro é muito mais que um objeto! Que ele é uma
máquina sensível, que precisa de carinho e atenção.

ESTRELA. Você precisa de ajuda.


PRODUTOR. Talvez. Mas pode ter certeza que a Madame Mercedes vai precisar
muito mais que eu depois de me ouvir amanhã.

(silêncio)

PRODUTOR. Odeio trem!

ESTRELA. Isso não é trem. É metrô.

PRODUTOR. Metrô é trem! Oras. Odeio trem! Odeio metrô! Odeio transporte
público! Eu dô duro pra andar de carro importado, aí vem uma vagabunda e nem pra
me deixar com cinqüenta paus pra pegar um táxi!

ESTRELA. Agradeça por estar vivo.

PRODUTOR. Você vai me dar conselho agora? É isso? Você já percebeu quem é
quem aqui?

ESTRELA. Desculpa.

PRODUTOR. Eu odeio essa cidade! Eu vou pro Rio!

8.
Linha verde

(O FUNCIONÁRIO senta-se ao lado do TÉCNICO, que continua tentando iniciar seu


texto)

FUNCIONÁRIO. Licença...

TÉCNICO. (entre lábios) Pois não.

(O FUNCIONÁRIO dá uma alongada no corpo, estica as pernas, afrouxa o cinto)

FUNCIONÁRIO. Escrevendo?

TÉCNICO. Tentando...

FUNCIONÁRIO. Que é que é? Um poema?

TÉCNICO. Mais ou menos.

FUNCIONÁRIO. (apontando a mala do Técnico) Vai viajar, é?


TÉCNICO. Vou...

FUNCIONÁRIO. Descansar?

TÉCNICO. (pensa) É...

(pausa)

FUNCIONÁRIO. Sabe qual é a pior coisa do meu trabalho?

TÉCNICO. (sempre desconversando) Não.

FUNCIONÁRIO. É não saber que fim que as pessoas levam.

TÉCNICO. Hum, hum...

FUNCIONÁRIO. Que nem seu caso... eu posso te dizer boa viagem, torcer de
verdade por você, só por que fui com a tua cara, entende? Mas daqui a pouco você
vai sair daqui e eu nunca vou ter a oportunidade de te perguntar se tua viagem foi
boa.

TÉCNICO. Sei lá, de repente a gente volta a se cruzar.

FUNCIONÁRIO. É claro, talvez a gente volte a se cruzar. Mas aí eu não vou lembrar
da sua cara, nem você da minha.

TÉCNICO. Será?

FUNCIONÁRIO. Pode acreditar. Tô há dez anos nisso aqui. É uma tristeza esse
negócio de viver a vida dos outros em pedaço. A sua acaba ficando meio assim
também.

TÉCNICO. Imagino.

FUNCIONÁRIO. Pode acreditar em mim: quando a pessoa passa uma porta dessas,
você perdeu ela pra sempre.

LOCUTOR. (off) Estação Clínicas.

FUNCIONÁRIO. Boa viagem, parceiro.

TÉCNICO. Brigado.
(O FUNCIONÁRIO deixa o vagão. O CONTRAVENTOR fecha a apostila e relaxa o
corpo)

9.
Linha vermelha

(O CONTRAVENTOR segue sua leitura)

LOCUTOR. (off) Estação Tatuapé.

(Entra a SENHORA, carregando uma pequena sacola. Ela senta-se diante do


Contraventor e finge que não o observa. Tira um cartãozinho de sua sacola, levanta-
se e, notando que está sendo observada, deixa o cartão sobre seu próprio assento)

LOCUTOR. (off) Estação Belém.

(A SENHORA sai. O CONTRAVENTOR olha para o cartão)

10.
Linha azul

(A ESTRELA e o PRODUTOR cabisbaixos, ensimesmados em meio a um silêncio


denso. Ele pega um maço de cigarros no bolso da camisa, saca um e prepara-se
para acendê-lo. A ESTRELA percebe a intenção do vizinho e lhe aponta uma placa
de é proibido fumar. A contragosto, ele volta o cigarro para o maço, voltando à
atitude inicial).

11.
Linha verde

(O TÉCNICO faz uma última tentativa de começar seu texto. Desiste. Guarda o
bloco de notas. Verifique se alguém o observa. Procura algo pelos bolsos do terno.
Encontra um espelho de mão. Por um tempo, estuda o próprio rosto. Começa a
remexer nos bolsos novamente. Encontra uma foto. Observa sua imagem e começa
a compará-la com a foto.)

12.
Linha Vermelha

(O CONTRAVENTOR levanta-se, pega o cartão, lê e o amassa. Volta a sentar-se,


retomando sua leitura)

13.
Linha Azul

ESTRELA. Quem vai me levar pro estúdio amanhã?

PRODUTOR. Amanhã eu resolvo isso.

ESTRELA. Não vai ficar meio em cima da hora?

PRODUTOR. Não.

ESTRELA. É que eu tenho que fazer o cabelo, manicure, me vestir com calma, fazer
maquiagem... era bom eu me programar e...

PRODUTOR. Amanhã eu resolvo isso. Não precisa me contar sua saga. Já fiz isso
trezentas mil vezes.

ESTRELA. Ok. Não falei nada.

14.
Linha verde

(O TÉCNICO segue a comparação entre a imagem e a foto. Volta a procurar algo


em seu terno. Encontra um pente. Muda o penteado e compara o resultado da nova
imagem com a fotografia. Não aprova. Faz uma nova tentativa. Não aprova. Começa
a arriscar um terceiro penteado.)

LOCUTOR. (off) Estação Consolação.

(Sinal de aviso de abertura das portas. A porta se abre. Entra a SENHORA. Ela
senta-se diante do TÉCNICO. Observa-o discretamente)

15.
Linha vermelha

(O CONTRAVENTOR, apreensivo, fecha a apostila e checa as horas)

LOCUTOR. (off) Estação Penha.

(A porta do vagão se abre. Entra a POETA. Senta-se ao lado do outro).

POETA. Boa noite...

CONTRAVENTOR. (desconfiado) Boa noite.


POETA. Você gosta de poesia?

CONTRAVENTOR. Não.

POETA. Eu tenho uns poemas e gostaria de...

CONTRAVENTOR. Não.

POETA. São poemas breves e...

CONTRAVENTOR. Sai daqui!

LOCUTOR. (off) Estação Carrão.

(A POETA se levanta, rasga uma das cópias dos poemas que tem em mãos e joga
uma parte amassada no chão. Pára diante da porta)

POETA (a si mesma) – Grosso...

(Ela sai)

16.
Linha Azul

PRODUTOR. Quer um conselho?

ESTRELA. Fala.

PRODUTOR. Desiste.

ESTRELA. (assustada) Como assim?

PRODUTOR. Desiste.

ESTRELA. (embargada) Por que você tá me dizendo isso?

PRODUTOR. Não vai dar certo.

ESTRELA. Meu Deus! Que é que eu fiz de errado?

PRODUTOR. Nada. Mas não vai dar certo.

ESTRELA. (chorando) Que é que eu te fiz, meu Deus do céu?


PRODUTOR. Faz o seguinte: vai pro estúdio amanhã, faça o melhor possível,
espera a gente fazer você estourar. Encha o saco de ouvir tua música no rádio e de
ver sua cara na TV. Vá nas festinhas, aproveite que você é bonita e vai ficar famosa,
dê atenção pro pessoal, seja amável com todos, arruma um namorado rico e otário,
de preferência que esteja fora da mídia, casa com ele, vá ter uma vidinha tranqüila e
anuncia o fim da carreira. Vai ser muito melhor pra você. Vai por mim. Eu conheço
esse mundo.

ESTRELA. Por que você tá me dizendo isso??

PRODUTOR. Acompanha meu raciocínio: você não canta mais que ninguém. Por
sinal, você canta mal como todo mundo. Tua música é igual a qualquer coisa que tá
tocando por aí. Fora isso, você não tem o perfil... você é inteligente demais pra ser
cantora, é sensível a flashes, tem tendência a engordar, vai ter que passar a vida
lutando contra isso, não tem paciência com estranhos, portanto não vai ter paciência
com fãs. Você acha que o pessoal do estúdio foi cínico com você, isso quer dizer
que você percebe as coisas cedo demais. Isso não é bom. Você conhece alguma
coisa de música, dá sugestões pra banda, dá palpites. Isso também não é bom.
Você tende à sinceridade. Isso pode dar problemas em entrevistas. Existe um roteiro
de expectativas, entende? Não. Você não entende isso. Então faça o que digo, é pro
seu bem: aproveite seus dias de fama, case-se linda, depois engorde a vontade e
curta uma vida de esposa discreta.

ESTRELA. Eu não consigo ficar sem fazer nada.

PRODUTOR. Faz uma faculdade, atende os jornalistas que aparecem, escreve uma
auto-biografia, um livro de auto-ajuda, funda uma ONG, vira embaixatriz da ONU...
sei lá... faça alguma coisa, mas desista dessa carreira.

ESTRELA. Por que você investiu em mim, seu doente?

PRODUTOR. Todo mundo erra. Eu me encantei com você. As vezes eu sou meio
idealista.

ESTRELA. Eu pensei que você ia ficar sempre do meu lado...

PRODUTOR. Mas é o que eu tô fazendo.

ESTRELA. Você tá acabando com a minha vida!

PRODUTOR. Não. Só com a sua carreira.

ESTRELA. Pra mim é a mesma coisa!


PRODUTOR. Não cai nessa.

17.
Linha verde

(O TÉCNICO parece ter encontrado um penteado que o satisfaz. Observa-se


durante um tempo. A SENHORA, sem que o Técnico perceba, tira um cartãozinho
de sua sacola e coloca-o ao lado de seu assento)

LOCUTOR. (off) Estação Trianon-Masp.

(A SENHORA sai. O TÉCNICO percebe o cartão deixado ao seu lado. Estranha-o,


pega-o e lê seu conteúdo. Desinteressado, guarda o cartão em seu bolso e volta a
concentrar-se em seus penteados.)

18.
Linha vermelha

(O CONTRAVENTOR checa as horas novamente, levanta-se e começa andar pelo


vagão)

19.
Linha azul

ESTRELA. (enxugando lágrimas) Você desce na próxima.

PRODUTOR. (pegando o maço novamente) Ok.

ESTRELA. Como você vai pra casa?

PRODUTOR. A pé. Não fica longe.

ESTRELA. Você vai tentar acender isso de novo?

PRODUTOR. Já acendi.

ESTRELA. É proibido. Olha a placa.

PRODUTOR. Que me prendam.

(Silêncio. Ele fuma).

ESTRELA. Dá um trago.
PRODUTOR. (sacando o maço) Pega um. Você tá de batom, fode o filtro.

(A estrela obedece. Som do trem parando.)

LOCUTOR. (off) Estação Vila Mariana.

ESTRELA. É aqui.

PRODUTOR. Até amanhã.

ESTRELA. Até. Toma cuidado.

PRODUTOR. Com o que? Levaram tudo.

(Ele sai. A ESTRELA olha para o cigarro e percebe que não tem fogo para acendê-
lo)

20.
Linha verde

(O TÉCNICO sozinho. Volta a revirar os bolsos. De dentro de um deles, retira um


par de óculos. Coloca-o em seu rosto. Confere o resultado no espelho. Compara-o a
fotografia. Resolve mantê-lo. Nova procura pelos bolsos. Encontra um bigode. Fixa-
o em seu rosto. Confere o resultado no espelho. Compara-o a fotografia. Resolve
mantê-lo)

21.
Linha vermelha

(O CONTRAVENTOR, cada vez mais tenso, caminha pelo espaço do vagão)

22.
Linha Azul

(A ESTRELA, chorando, deita-se sobre os assentos)

23.
Linha verde

(O TÉCNICO volta a retirar o bloco de notas e o envelope de sua mala.)

TÉCNICO. Oi, meu amor... O amor é... (rasga. Nova tentativa) Oi, meu amor... A
vida é uma dádiva que Deus nos concede todos os dias e... (rasga. Nova tentativa).
(A porta do vagão se abre. Entra o FANTASMA e senta-se diante do Técnico.
Observa suas ações. Pega um caderninho que traz consigo e faz uma breve
anotação).

24.
Linha Azul

(A ESTRELA volta a sentar-se, tenta se recompor, enxuga as lágrimas e começa a


fazer uns vocalizes)

25.
Linha verde

(O TÉCNICO lê pra si mesmo o que acabou de escrever)

TÉCNICO. Oi, meu amor. Você sabe que eu não sou bom com as palavras. Então
você me desculpa, mas eu não vou te escrever com a poesia que você merece.
Estou te escrevendo por que você merece uma satisfação. Quando você encontrar
esta carta eu já vou estar muito longe. Queria que você soubesse que não é por
você, mas é por mim. No fundo, você sabe por que eu estou fazendo isso. Tenho
certeza que essa tristeza toda é passageira. Eu vou encontrar meu lugar e você vai
encontrar alguém que não passou o que eu estou passando e por isso mesmo vai
poder te dar mais carinho do que eu pude te dar.

26.
Linha vermelha

(O CONTRAVENTOR, tenso, checa novamente as horas. Tenta se entreter com a


apostila. Sinal de aviso de abertura das portas. Entra o FANTASMA. Em pé, fica de
frente para o CONTRAVENTOR. Observa-o. Aproxima-se. De cima, dá uma olhada
em sua apostila. Puxa seu caderno de anotações. Escreve algo. Sinal de aviso de
abertura das portas. A porta se abre. O FANTASMA vai saindo. Vê o pedaço de
papel que a poeta jogou no piso, pega-o e sai.)

27.
Linha azul

(Luz sobre o vagão C. A ESTRELA começa a cantar, quase num sussurro, a música
que lhe tirará do anonimato).

ESTRELA. (baixinho) Boa tarde... É um prazer estar aqui pra trazer um pouco do
meu trabalho pra vocês... foi feito com muito carinho... espero que gostem...
(começa a cantar. Repete a primeira estrofe, testa variações nas frases musicais,
muda trechos da letra)

Eu não quero saber mais de você


Você me desprezou e não me disse porque
Fiquei sem você, por aí perdida
Chorando em busca de uma saída

28.
Linha verde

TÉCNICO. Eu queria ter deixado essa carta em casa, pra ter certeza que você irá lê-
la. Mas voltar pra casa é arriscado demais. Então, vou deixá-la por aqui mesmo,
dentro do metrô. Alguém vai encontrá-la. E esse alguém vai postar a carta, ou deixá-
la no achados e perdidos e um dia você vai acabar encontrando-a. Se a pessoa que
encontrar essa carta decidir que ela deve ter outro destino que não você, então a
humanidade não vale pena mesmo. Aí, tanto faz você ler ou não o que eu escrevi
pra você, afinal de contas, eu também sou humano. Fica em paz. Adeus.

(O TÉCNICO puxa o espelho e checa rapidamente o novo visual. Faz um pequeno


acerto no cabelo. Depois, coloca a carta num envelope onde começa a escrever um
endereço)

LOCUTOR. (off) Estação Paraíso.

(A porta do vagão se abre. Entra o FUNCIONÁRIO e senta-se diante do Técnico.


Olha para os lados, à procura de alguém)

FUNCIONÁRIO (sussurra) – Você tá aí?

TÉCNICO. Falou comigo?

FUNCIONÁRIO. Não... Não foi com o senhor.

TÉCNICO. Perdão.

FUNCIONÁRIO. Foi nada.

(O FUNCIONÁRIO continua sua procura com o olhar. O TÉCNICO volta a se


preocupar com o envelope).

29.
Linha vermelha
LOCUTOR. (off) Estação Bresser.

(Sinal de aviso de abertura das portas. Entra a CÚMPLICE e se aproxima do


CONTRAVENTOR)

CÚMPLICE. Oi...

CONTRAVENTOR. Senta aí.

CÚMPLICE. Vou descer na próxima. Tô bem aqui.

CONTRAVENTOR. Senta!

CÚMPLICE. (sentando) Saco.

CONTRAVENTOR. Me dá um beijo.

CÚMPLICE. (difícil) Não rola. A gente precisa conversar.

CONTRAVENTOR. Vai logo, é só um disfarce.

CÚMPLICE. Pra que? O vagão tá vazio.

CONTRAVENTOR. Você subestima detalhes. Isso é perigoso.

CÚMPLICE. Que é que são esses cadernos?

CONTRAVENTOR. Tô disfarçado de aluno de cursinho.

CÚMPLICE. Rê, rê.

CONTRAVENTOR. Que foi?

CÚMPLICE. Nossa, quase não te reconheci.

CONTRAVENTOR. Vai, me dá um beijo!

CÚMPLICE. Não.

CONTRAVENTOR. Beija logo!

(Contrariada, ela beija o contraventor)


30.
Linha azul

(A ESTRELA, pouco mais que num sussurro, continua a cantar).

Sai pelas ruas gritando, gritando, gritando


E os ecos dos gritos no ar eram apenas ecos, ecos
Até que um dia alguém me viu numa boa
Não quero mais saber de você
Tô com outra pessoa.

31.
Linha verde

(FUNCIONÁRIO e TÉCNICO em silêncio)

LOCUTOR. (off) Estação Terminal Ana Rosa. Pedimos a todos que desembarquem
nesta estação.

(O Técnico se levanta)

TÉCNICO. Por gentileza...

FUNCIONÁRIO. Pois não?

TÉCNICO. Pra chegar na Sé eu pego sentido Jabaquara ou sentido Tucuruvi?

FUNCIONÁRIO. Jabaquara.

TÉCNICO. Eu sempre me esqueço.

FUNCIONÁRIO. Normal. Acontece.

TÉCNICO. Obrigado.

FUNCIONÁRIO. Não por isso.

32.
Linha azul

ESTRELA. (repete o último verso) Tô com outra pessoa (sobe uma oitava) Tô com
outra pessoa (mais uma oitava) Tô com outra pessoa (mais uma).

LOCUTOR. (off) Estação Vergueiro.


ESTRELA. (baixa uma oitava) Tô com outra pessoa (mais uma) Outra pessoa...

(Sinal de aviso de abertura de portas. Entra o FANTASMA. Senta-se diante da


ESTRELA, observa-a)

ESTRELA (volta a cantar em surdina)

Eu não quero saber mais de você


Você me desprezou e não me disse porque...

LOCUTOR. (off) Estação São Joaquim.

(A ESTRELA levanta-se quando ouve o anúncio. Faz menção de sair. De repente


desiste e volta a sentar-se. O FANTASMA puxa seu caderninho e faz uma anotação)

33.
Linha vermelha

CONTRAVENTOR. O que você tem pra mim?

CÚMPLICE. O suficiente.

CONTRAVENTOR. Fala logo.

CÚMPLICE. (faz menção de tirar da bolsa) Ó...

CONTRAVENTOR. Não! Não mexe na bolsa. Só fala!

CÚMPLICE. Calma, neurótico! Não tem ninguém vendo!

CONTRAVENTOR. Eu sei o que eu tô fazendo. Não pode vacilar. Eu sei pra quem
eu tô olhando, mas não sei quem tá me vendo.

CÚMPLICE. Consegui o suficiente.

CONTRAVENTOR. (irritado) Fala o quê tem!

CÚMPLICE. Dinheiro e um celular.

CONTRAVENTOR. Encosta a cabeça em mim e deixa a bolsa cair no meu colo.


Devagarzinho. Isso. Agora encosta a boca na minha orelha e me fala onde você
colocou as coisas.
CÚMPLICE. (já representando, num sussurro) Não precisa de nada disso.

CONTRAVENTOR. Eu vou socar sua cara.

CÚMPLICE. Estúpido.

34.
Linha verde

(O FUNCIONÁRIO continua na mesma posição. Entra o FANTASMA e senta-se no


lugar que estava ocupado pelo técnico)

FUNCIONÁRIO. (depois de um tempo) Você tá ai?

FANTASMA. Tô.

FUNCIONÁRIO. Onde?

FANTASMA. De frente pra você.

FUNCIONÁRIO. Tudo bem?

FANTASMA. Tudo.

FUNCIONÁRIO. Passeou?

FANTASMA. Hum, hum.

FUNCIONÁRIO. Como foi?

FANTASMA. Tive dias melhores.

FUNCIONÁRIO. O que é que você viu?

FANTASMA. (abrindo o caderninho) – Dois velhos que jogam xadrez num tabuleiro
magnético. (vira uma página) Uma moça que canta baixo, com medo de ser notada.
O trem chega numa estação. Ela se levanta e se prepara para sair. De repente, sem
mais nem menos, decide ir pra outro lugar, resolve ficar no vagão e ir em frente. (vira
a página) Um homem com a camisa rasgada, sentado numa escadaria. Ele parece
rico, parece ter algum poder. Mas está chorando, sozinho. (vira a página) Um
homem que tenta encontrar um jeito de começar uma carta. (vira a página) Um
sujeito que finge ler uma apostila para esconder alguma coisa que não quer que os
outros saibam... pouca coisa ainda. (puxa o papel do bolso) Achei um poema
também.
FUNCIONÁRIO. Nenhuma história com fim...

FANTASMA. Hoje eu só queria saber dos meios. Não quis seguir ninguém, quis
andar, ver um pouco de muita gente.

FUNCIONÁRIO. Eu ando cansado de histórias sem fim, sabia?

FANTASMA. É porque pra você ainda não acabou. Eu só ando querendo os meios,
tem sido melhor pra mim.

35.
Linha vermelha

(A CÚMPLICE continua encostada sobre o peito do CONTRAVENTOR)

CÚMPLICE. (dizendo em seu ouvido, fingindo-se romântica) Tá na minha bolsa. Já


tirei das carteiras.

CONTRAVENTOR. (também no ouvido, também romântico) Isso não é lugar de


guardar esse tipo de coisa.

CÚMPLICE. Pára! Você só reclama.

(Ele desliza a mão até a bolsa da moça e retira o dinheiro e o celular discretamente.
Coloca tudo dentro de uma pasta que está em seu colo).

CONTRAVENTOR. Some com as carteiras e os documentos.

CÚMPLICE. Que é que eu faço com eles?

CONTRAVENTOR. Larga por aí. Deixa nas escadas de saída quando ninguém tiver
olhando. Ali não tem câmera.

CÚMPLICE. Ok.

CONTRAVENTOR. Quanto tem aqui?

(A CÚMPLICE sussurra-lhe o valor no ouvido)

CONTRAVENTOR. Caralho! Não dá. Isso não dá. Você me falou que tinha o
suficiente...

CÚMPLICE. Mas eu pensei...


CONTRAVENTOR. Pensou! Pensou! Você não que tem pensar. Você não é boa
nisso. Eu te falei quanto eu precisava.

CÚMPLICE. Mas...

CONTRAVENTOR. Você sabe quanto custa um assalto desses não, sabe?

CÚMPLICE. Mas...

CONTRAVENTOR. Sabe ou não sabe?

CÚMPLICE. Sei.

CONTRAVENTOR. E você sabe que o chefe vai me transformar numa peneira e me


jogar no matagal da M´boi Mirim se eu chegar lá sem esse dinheiro, não sabe?

CÚMPLICE. Eu...

CONTRAVENTOR. Sabe, né?

CÚMPLICE. Sei.

CONTRAVENTOR. E você quer que eu vire uma peneira e apodreça num matagal
da M´boi Mirim?

CÚMPLICE. Não sei...

CONTRAVENTOR. O que?

CÚMPLICE. Não. Não.

CONTRAVENTOR. Agora tem uma coisa que você sabe. Tem pelo menos trinta
caras que fazem a mesma coisa que eu faço, certo?

CÚMPLICE. Certo...

CONTRAVENTOR. Sendo assim, você acha que o chefe vai pensar na hora de me
dar um sumiço? Igual a mim tem mais um monte. Pra ele eu sou um qualquer você
entende?

CÚMPLICE. Entendo.

CONTRAVENTOR. E como é que a gente resolve isso agora?


CÚMPLICE. Tem o carro também. Vende o carro e entrega pro cara. Você tem até
amanhã pra fazer isso.

CONTRAVENTOR. Eu quero dormir tranqüilo hoje. Com a grana na mão. Só o carro


não dá.

CÚMPLICE. Dá sim. É um puta carrão.

CONTRAVENTOR. Que carro que é?

CÚMPLICE. Sei lá. Um importado. Desses que tem banco de couro.

CONTRAVENTOR. Não dá.

CÚMPLICE. Vale uns cinqüenta mil.

CONTRAVENTOR. Você acha que malandro compra carro roubado por cinqüenta
mil?

CÚMPLICE. Não?

CONTRAVENTOR. Se me derem cinco eu tô feliz.

CÚMPLICE. Desculpa, eu não sabia. Tem teipe. O teipe ajuda?

CONTRAVENTOR. Que teipe! Teipe não serve pra nada. Teipe é pra boyzinho
maconheiro comprar marola. Eu tenho cara de maconheiro? Tenho?

(Ela já não tem palavras diante do constrangimento. O CONTRAVENTOR respira


fundo. Tenta se controlar).

CONTRAVENTOR. Tudo bem. Você tentou. Você tá começando. Não tem que
acertar tudo.

CÚMPLICE. Brigada.

CONTRAVENTOR. Vem cá, dá um abraço.

(Eles se abraçam)

CONTRAVENTOR. Eu sei que você é capaz, tá?

CÚMPLICE. Brigada.
CONTRAVENTOR. De verdade...

(ele deita a cabeça no ombro dela)

CÚMPLICE. (delicada) Você tá com caspa. (dá uma limpadinha nas costas do
namorado)

CONTRAVENTOR. Pois é... não tem xampu que resolva. Desencanei.

36.
Linha azul

(A ESTRELA sozinha. Volta a chorar, quase sem forças para fazê-lo)

37.
Linha verde

FUNCIONÁRIO. Como é que é pra você?

FANTASMA. O que?

FUNCIONÁRIO. Essa vida...

FANTASMA. Bom, isso não é bem vida, né? Você fica tentando dar um sentido, mas
no fundo, não tem nenhum.

FUNCIONÁRIO. Então não é tão diferente. (pausa) Como é que aconteceu, hein?

FANTASMA. Normal. Um derrame.

(um silêncio)

FUNCIONÁRIO. E ela...

FANTASMA. Não achei.

FUNCIONÁRIO. Você desistiu de procurar?

FANTASMA. Não sei. Agora acho não tem mais pra que. Quando eu tinha tudo pra
falar com ela, não falei. Quando ela estava ali, todos os dias próxima de mim, eu não
fiz nada. Agora não faz muita diferença.

FUNCIONÁRIO. Odeio quando alguém desanima.


(um silêncio)

FANTASMA. (lê pra si mesmo)

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia


Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia.

FUNCIONÁRIO. Que é isso?

FANTASMA. O poema que eu achei no chão.

FUNCIONÁRIO. E o resto?

FANTASMA. Tá rasgado. Só tem isso.

FUNCIONÁRIO. É um bom começo.

FANTASMA. Mas ainda não diz muita coisa.

FUNCIONÁRIO. Não.

FANTASMA. Bom... vou em frente. Foi bom te ver.

FUNCIONÁRIO. Vou nessa também. Vê se não desiste de encontrar a tal.

FANTASMA. Vamos ver.

FUNCIONÁRIO. Se cuida.

FANTASMA. Se cuida você, que precisa se cuidar. Pra mim já não faz diferença.

(Ambos saem, cada um para um lado)

38.
Linha vermelha

CONTRAVENTOR. Quem você roubou?

CÚMPLICE. Devia ser um casal de milionários. Ou então ela era a putinha dele. Era
um cara de uns cinqüenta anos, gordo. A moça era loira. Bem bonita. Tinha um
vestido bonito. Pensei em pegar pra mim, mas fiquei com dó de deixar ela pelada.
CONTRAVENTOR. (mais calmo) Fez bem.

CÚMPLICE. (aproveita a deixa) Eu cheguei no farol. Eles bobearam. Eu encostei o


revólver. Eu entrei e andei com eles até uma ruazinha escura ali perto. Pedi pra
darem tudo, ainda dei um puxão no velho e rasguei a camisa dele. Ele não tava
acreditando que tava sendo roubado por uma menininha que nem eu. Tava cagando
de medo. Ele peidou. Ficou um puta cheiro no carro.

CONTRAVENTOR. Tô orgulhoso.

CÚMPLICE. Que bom.

CONTRAVENTOR. Mas tô fodido também. Vamos fazer o seguinte: desce na


próxima, volta pra outra estação, pega o carro, arruma mais dinheiro e vai pro Metrô
Praça da Árvore com o carro e o dinheiro. Me encontra no último vagão.

CÚMPLICE. Vem comigo agora...

CONTRAVENTOR. Não.

CÚMPLICE. Por que?

CONTRAVENTOR. É assim! Você sabe que é assim que tem que ser! Tô marcado,
porra, os caras tão na minha cola! Tá cheio de polícia no caminho, não rola.

CÚMPLICE. Quanto tempo?

CONTRAVENTOR. Quinze minutos.

CÚMPLICE (protesta) – Quinze minutos?

CONTRAVENTOR. Ok. Vinte. Mais que isso não dá. O metrô vai fechar daqui a
pouco. Enquanto você vai, eu vou pra Sé e fico dando um tempo lá. Depois eu vou
pra Praça da Árvore.

CÚMPLICE. Me encontra lá fora.

CONTRAVENTOR. Não. Dá na cara. A gente tem que sair junto do metrô.

CÚMPLICE. (resignada) Tá.

CONTRAVENTOR. Você me promete que me encontra em vinte minutos?


CÚMPLICE. Eu já falhei com você alguma vez?

CONTRAVENTOR. Já. Acabou de falhar.

CÚMPLICE. Não seja assim. Você sabe que eu sou rápida.

CONTRAVENTOR. Ok. Eu confio em você. Eu vou ficar tranqüilo. Não vai fazer
merda, hein? Não atira em ninguém.

CÚMPLICE. Eu não tenho coragem.

CONTRAVENTOR. Melhor assim.

LOCUTOR. (off) Estação Brás.

CONTRAVENTOR. Desce aí.

CÚMPLICE. Tchau.

(Sinal de aviso de abertura de portas)

CONTRAVENTOR. Dá um beijo

CÚMPLICE. A gente precisa conversar.

CONTRAVENTOR. (alterado) É por causa da minha caspa, né?

CÚMPLICE. Só depois que a gente conversar...

(Ela sai. Sinal de aviso de fechamento de portas).

39.
Linha azul

(A ESTRELA ainda angustiada)

LOCUTOR. (off) Estação São Bento.

(Entra a POETA e senta-se do lado da outra)

POETA. Oi...

ESTRELA. (seca) Oi.


POETA. Você gosta de poesia?

(A ESTRELA acena afirmativamente com a cabeça)

POETA. Quer ler um poema meu?

(A estrela não reage)

POETA. Tó. Dá uma olhada...

(A ESTRELA pega e dá uma passada de olhos)

ESTRELA. (devolvendo) Brigada.

POETA. Você tá legal?

ESTRELA. Não quero falar sobre.

(A luz se abre também sobre a linha azul)

LOCUTOR. (off) Estação Sé. Desembarque pelo lado esquerdo do trem.

ESTRELA. Dá licença, eu preciso ir.

(Sinal de aviso de abertura das portas. A ESTRELA e o CONTRAVENTOR


levantam-se e saem de seus vagões. Inicialmente em BG e depois cada vez mais
alto: Vozes. Passos escassos. Barulho infernal de trens chegando e partindo.)

40.
Estação Sé

(Black sobre os vagões. Luz na área da Estação Sé. A ESTRELA, no centro da


plataforma, segura o cigarro apagado. Entra o CONTRAVENTOR)

ESTRELA. Oi.. desculpa... o senhor tem isqueiro?

CONTRAVENTOR. Não.

(Ele passa e dá uma focada na bunda da moça. Segue em frente. Pelo lado oposto
entra o TÉCNICO.)

ESTRELA. Moço! Tem fogo?


(O TÉCNICO começa a procurar o isqueiro pelo terno. Acaba puxando o retrato e
deixa-o cair no chão.)

ESTRELA. (pega-o) Seu retrato.

TÉCNICO. Brigado. Não sou eu.

ESTRELA. Não? Nossa... fora os óculos e o bigode é igualzinho.

TÉCNICO. Pois é. Tó, o isqueiro.

(A estrela pega o isqueiro)

TÉCNICO. Aqui dentro é proibido, hein?

(A estrela acende o cigarro)

ESTRELA. Que me prendam.

(devolve o isqueiro)

ESTRELA. Brigada.

TÉCNICO. Não por isso. Cuidado com a segurança...

(O técnico segue e sai)

ESTRELA. Pode deixar.

LOCUTOR (off). Atenção: é proibido fumar nas dependências do metrô.

ESTRELA. (a si mesma) Pentelho...

(Ela começa a andar)

LOCUTOR. (off) Estaremos encerrando nossas atividades dentro de quinze minutos.

41.
Todas as estações

(Luz geral sobre a cena. Sons de trens em movimento. Em cena, esperando o trem,
estão o TÉCNICO, o CONTRAVENTOR e a ESTRELA)

42.
Linha Vermelha

(O TÉCNICO brinca com seu isqueiro. Pega um cigarro. Olha para o anúncio de é
proibido fumar. Ameaça acender. Desiste. Tenta tomar coragem, tenta acender de
novo. Não consegue. Guarda o cigarro e o isqueiro).

43.

Linha Azul

(O CONTRAVENTOR ansioso)

LOCUTOR. (off) Estação São Joaquim.

(Assim que escuta o locutor, checa as horas, agitado)

44.
Linha Vermelha

LOCUTOR. (off) Estação Anhangabaú.

(Sinal de aviso de abertura das portas. Entra a POETA e senta-se ao lado do


TÉCNICO)

POETA. O senhor me dá licença?

TÉCNICO. Eu?

POETA. É, você. Eu queria falar um minuto com você.

TÉCNICO. (desconfiado) Fala...

POETA. Você gosta de poesia?

TÉCNICO. (que já entendeu) Se eu disser que não adianta alguma coisa?

POETA. Como assim?

TÉCNICO. Oras, é uma pergunta simples. Adianta alguma coisa eu dizer que não?

POETA. Você não gostaria de ler meus poemas?

TÉCNICO. Não, senhora, eu não estou interessado.


POETA. Leia.

TÉCNICO. Viu, não adianta nada.

POETA. Leia, são curtos.

TÉCNICO. Não, senhora, eu não gosto de ler.

POETA. Então eu leio pro senhor. Tudo bem?

TÉCNICO. Não.

POETA. Por que?

TÉCNICO. Por que eu não vou prestar atenção.

POETA. (jocosa) Ah, tudo bem, ninguém presta atenção mesmo.

TÉCNICO. Então não gaste seu tempo nem sua saliva comigo.

POETA. Você não se dá por vencido, hein?

TÉCNICO. (irônico) Eu, senhora??

POETA. Não me chame de senhora.

TÉCNICO. Então me diga seu nome.

POETA. Tá embaixo do poema. Leia.

TÉCNICO. Não, senhora, muito obrigado.

POETA. Então compra um. R$ 1,00 a cópia.

TÉCNICO. Sem ler?

POETA. Leia pra comprar.

TÉCNICO. Sem negócio. Eu te dou um real, mas não leio.

POETA. (ofendida) Oras!

TÉCNICO. O que você faz da vida, hein?


POETA. Poesia, oras.

TÉCNICO. Sim, mas como profissão.

POETA. Poeta, oras.

TÉCNICO. Que mais?

POETA. Não tá bom já?

TÉCNICO. E você consegue viver disso?

POETA. Não.

TÉCNICO. E como é que você faz?

POETA. Faço uns bicos. E o senhor, faz o que?

TÉCNICO. Sou técnico em eletrônica.

POETA. Isso significa o que?

TÉCNICO. Trabalho numa fábrica que faz televisões. Trabalho no setor de controles
remotos.

POETA. Interessante.

TÉCNICO. Não. Não é.

POETA. Agora que já nos conhecemos, que tal ler minha obra?

TÉCNICO. (entrega-se) Vou ser sincero com você: não estou num bom momento
para isso.

POETA. (sinceramente preocupada) Por que?

TÉCNICO. Hoje não é um bom dia... tô com uns problemas.

POETA. Eu posso te ajudar?

TÉCNICO. Eu nem te conheço...

POETA. Me desculpe.
(Silêncio indigesto)
45.
Linha Azul

LOCUTOR. (off) Estação Vila Mariana.

(O CONTRAVENTOR volta a olhar as horas. Abre uma apostila, tenta se concentrar


na leitura. Rapidamente desiste)

46.
Linha Verde

(A ESTRELA sentada, com a cabeça enfiada entre as pernas.)

LOCUTOR. (off) Estação Paraíso.

(Sinal de aviso de abertura das portas. Entra a SENHORA e senta-se ao lado da


moça, que não a percebe)

47.
Linha vermelha

(Silêncio indigesto)

POETA. Tó. Lê.

TÉCNICO. Por que você é tão insistente?

POETA. Essa é minha missão.

TÉCNICO. Você acha que tem uma missão, é?

POETA. Claro, senão, pra que escrever?

TÉCNICO. E qual é sua missão, poeta?

POETA. Eu preciso mostrar a pessoas como você que existe uma possibilidade de
diálogo entre os homens. E só a poesia é capaz de nos levar a este diálogo.

TÉCNICO. Quer dizer então que, mais ou menos como Jesus Cristo, você tá aqui
neste vagão pra me dizer “coisas” e pra me dar uma lição de moral?

POETA. Não é uma lição de moral. É uma mensagem...


TÉCNICO. Ah, uma mensagem...

POETA. Hum, hum.

TÉCNICO. E você acredita mesmo que tem uma mensagem pra me passar?

POETA. Hum, hum.

TÉCNICO. (saca a fotografia do terno, numa pequena explosão) Olhe pra isso aqui
(ela obedece). Quem é esse homem?

POETA. Você. É evidente.

TÉCNICO. Esse homem não sou eu.

POETA. Não entendi.

TÉCNICO. Ele não sou eu. É outra pessoa.

POETA. Mas ele é igual a você... Talvez o bigode e os óculos. Mas só... é igual... Os
cabelos, os olhos, a boca... é você.

TÉCNICO. Pois é. Mas não sou eu.

POETA. Quem é então?

TÉCNICO. Não o conheço.

POETA. De onde você tirou essa foto então?

TÉCNICO. De um jornal. Parece um homem perigoso?

POETA. Não. Senão não me sentaria do seu lado.

TÉCNICO. É um bandido, sabia?

POETA. Mesmo?

TÉCNICO. E tá infernizando minha vida.

POETA. O que aconteceu?


TÉCNICO. Outro dia fui até uma dessas casas que fazem empréstimos pra gente
endividada como eu. Entrei, sentei, aguardei ser chamado. Então fui atendido por
uma moça. Foi tudo muito rápido: assim que olhei pra ela, ela ficou branca,
transtornada. Eu disse que queria um empréstimo. Ela perguntou quanto, perguntou
dois ou três dados e saiu. Voltou com um cheque. Eu peguei e sai pensando que era
uma louca. No dia seguinte fiquei sabendo que a polícia estava me procurando. A
moça havia se assustado pois me confundiu com um cara que assaltou a agência de
empréstimos duas semanas antes. Como não havia ninguém na minha casa,
chegou uma ordem judicial me dizendo que eu devia me apresentar a polícia.

POETA. Você se apresentou?

TÉCNICO. Não.

POETA. Por que?

TÉCNICO. Por que me mostraram essa foto do ladrão. Aí perdi a coragem. Ele é
realmente muito parecido.

POETA. Com isso você pode ter assumido o crime, sabia?

TÉCNICO. Sabia. E também sei que eles estão me procurando. Não deve ter muita
gente atrás de mim, foi um assaltinho de nada, mas é o suficiente pra me deixar
alerta o tempo todo.

POETA. Você tá assumindo a culpa!

TÉCNICO. Você acredita que sou inocente???

POETA. Talvez. Acho que sim.

TÉCNICO. E você acha que mais alguém acreditaria?

POETA. Não sei. É difícil. Afinal, você tá fugindo. Mas talvez sim.

TÉCNICO. Pois eu acho que não. Nem eu acreditaria. Estou fugindo. Estou indo pra
rodoviária pegar um ônibus pra bem longe...

48.
Linha Azul

LOCUTOR. (off) Estação Santa Cruz.


(O CONTRAVENTOR dá mais uma checada no relógio. Levanta-se e aproxima-se
da porta)

49.
Linha Verde

SENHORA. Ei... Ei moça...

ESTRELA (assustada) – Oi?

SENHORA. Você tá se sentido mal?

ESTRELA. Não... tá tudo bem...

SENHORA. Você desce em que estação?

ESTRELA. Clínicas, eu acho...

SENHORA. Você tá precisando de ajuda?

ESTRELA. Não. Tá tudo bem. Brigada.

SENHORA. (saca um cartãozinho da sacola) Toma, pra você...

ESTRELA. Que é isso?

SENHORA. Um cartão.

ESTRELA. Pra que...

SENHORA. Pra você ficar me conhecendo...

ESTRELA. Esse telefone é seu?

SENHORA. É.

ESTRELA. Você tá dando seu telefone pra uma estranha. Isso não se faz, sabia?

SENHORA. Que é que tem?

ESTRELA. Você entrega esses cartõezinhos pra qualquer pessoa que cruza o seu
caminho, é?

SENHORA. Mais ou menos isso.


ESTRELA. Por que?

SENHORA. Por que você estava chorando?

ESTRELA. Eu não estava chorando.

SENHORA. Por que você estava triste então?

ESTRELA. Hoje foi um dia difícil.

SENHORA. Ma isso é óbvio.

ESTRELA. Várias coisas... foi um dia inteiro difícil.

SENHORA. Seria indelicado se eu te perguntasse o que aconteceu?

ESTRELA. Talvez, um pouco...

SENHORA. Desculpe.

ESTRELA. Mas se você quiser...

SENHORA. Não tô com pressa.

ESTRELA. Fui assaltada.

SENHORA. Coitadinha.

ESTRELA. Depois descobri que não sirvo pro que faço.

SENHORA. Não pode ser.

ESTRELA. Mas é.

SENHORA. Que aconteceu?

50.
Linha Vermelha

POETA. Não é mais fácil se apresentar e explicar tudo? Um bom advogado, um


pouco de paciência...

TÉCNICO. Sim, é mais fácil.


POETA. E por que não, então?

TÉCNICO. Não sei.

POETA. Eu não entendo.

TÉCNICO. Talvez seja a chance que preciso.

POETA. Não entendo.

TÉCNICO. É terrível saber que no meio desse monte de gente que existe nessa
cidade existe alguém que é igual a mim. Igual. Talvez ele tenha a mesma voz,
escreva com uma letra igual a minha, tenha os mesmos gostos... é pouco provável,
mas não é impossível. Um dia eu posso cruzar com esse homem como hoje você
cruzou comigo. E aí...

POETA. E aí? Talvez fosse revelador...

TÉCNICO. Não, não... isso só ia me fazer ter certeza do quanto eu sou um cara sem
importância nenhuma pra ninguém. Depois da história desse sósia eu comecei a
pensar nisso, sabe? Agora tem um cara que pode chegar na fábrica dizendo que sou
eu e todo mundo vai acreditar. Um cara que pode foder minha mulher melhor que eu
e sair da minha casa fazendo ela pensar que sou eu que melhorei na cama. Que
pode sair por aí roubando bancos e agências de empréstimo e botando a culpa em
mim... pra ele é fácil. E sabe o que é pior nisso tudo? É que eu descobri que não só
ele, mas qualquer um pode chegar para um monte de gente que me conhece mais
ou menos e dizer que sou eu e fazer o que quiser com minha imagem, pois ela é
mais uma no meio de uma multidão em que ninguém tem rosto mesmo.

(silêncio)

TÉCNICO. (ácido) Você queria me passar uma mensagem, né?

(A POETA retira a fotografia das mãos do TÉCNICO. Observa-a. Devolve sem


comentar)

51.
Linha Azul

(Sons do trem estacionando)

LOCUTOR. (off) Estação Praça da Árvore.


(Sinal de aviso de abertura das portas. A CÚMPLICE, arfante, entra.)

CONTRAVENTOR. E aí?

CÚMPLICE. Rolou.

CONTRAVENTOR. Senta aqui. Descansa um pouco.

CÚMPLICE. (senta-se) Brigada.

CONTRAVENTOR. Cadê?

CÚMPLICE. Tá aqui, nessa pasta.

CONTRAVENTOR. Como é que foi?

CÚMPLICE. (sem fôlego) Espera um pouco...

(Ela respira. Ele aguarda)

LOCUTOR. (off) Estação Saúde.

(Ele olha para fora)

CONTRAVENTOR. Puta merda! Tem um cara do metrô!

CÚMPLICE. Calma... Ele não sabe quem a gente é.

CONTRAVENTOR. Disfarça! Finge que não me conhece!

(Sinal de aviso de abertura das portas. O CONTRAVENTOR pega suas apostilas,


pula para os assentos opostos ao da Cúmplice. Abre uma apostila e disfarça. O
FUNCIONÁRIO entra e senta-se ao lado do Contraventor)

52.
Linha verde

SENHORA. Não liga pro que esse homem te disse. Ele devia estar nervoso, depois
de um assalto isso é normal.

(silêncio)

ESTRELA. Sabe o que é pior?


SENHORA. Hum?

ESTRELA. Eu tenho que fazer o programa amanhã. Seria melhor que ele tivesse
cancelado, entende? Vai ser uma vez e depois nunca mais. Seria melhor que não
fosse nenhuma vez e fosse assim pra sempre. Seria péssimo, claro, mas acho que
ia doer um pouco menos.

SENHORA. Esquece isso. Amanhã ele vai te ligar, te pedir desculpas e tudo vai
voltar ao normal.

ESTRELA. Eu duvido.

SENHORA. Se é assim, então liga pra ele e diz que você não vai fazer o tal do
show.

ESTRELA. (pensa) Acho que eu não consigo...

SENHORA. Eu sabia...

ESTRELA. Eu não sei explicar... se ele tivesse cancelado, acho que tudo bem, mas
eu...

SENHORA. Você quer experimentar fazer, você quer arriscar, né? Talvez seja
mesmo pior fazer um só do que fazer nenhum. Mas, no fundo, é o que você quer
fazer.

ESTRELA. É.

SENHORA. Então faz e paga o preço depois. Que é que tem? Vai ser sua primeira
dor?

(um silêncio)

ESTRELA. A senhora não respondeu minha pergunta.

SENHORA. Qual?

ESTRELA. Te perguntei por que você entrega esses cartões pra quem cruza seu
caminho.

SENHORA. Ah...

ESTRELA. Não vai me contar?


SENHORA. Uma coisa que me aconteceu.

ESTRELA. Que é que foi?

SENHORA. Eu não quero te incomodar com a minha vida. Você hoje tá com a
cabeça no seu futuro...

ESTRELA. Eu não me agüento mais por hoje. Acho que vai ser bom te ouvir.

SENHORA. Já faz um tempo. Eu trabalhava ainda. Eu pegava o metrô na Estação


Patriarca todos os dias as sete. Eu gostava de pegar o último vagão, que é mais
vazio. Um dia eu percebi que tinha um homem que tinha a mesma rotina que eu.
Todo dia, as sete, ele entrava no último vagão. E a gente ia junto até a Sé, depois a
gente baldeava e descia no Jabaquara. Aí cada um pra um lado. Durante três anos
foi assim. Do Patriarca até a Sé, da Sé até o Jabaquara. As vezes eu sentava num
banco mais próximo, as vezes não. Mas de qualquer forma eu passava meia hora de
todos os meus dias do lado daquele homem. No começo eu percebi que ele ainda
não tinha notado a coincidência e mesmo se tivesse percebido talvez não
considerasse aquilo uma coincidência. Com o tempo fui tendo vontade de conhecê-
lo. Pensei em me apresentar a ele. Mas eu não achava isso certo...

53.
Linha vermelha

POETA. Eu desço na próxima.

TÉCNICO. Muito bem.

POETA (já levantando, tímida) – Posso ler um poema pra você?

TÉCNICO. Não.

POETA. É curtinho... Agora não é por mim. É por você.

TÉCNICO. Você venceu.

POETA. Chama-se “A uma passante”

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia


Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia.

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina


Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina

Brilho... e a noite depois! – Fugitiva beldade


De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daqui! Tarde demais! Nunca Talvez!


Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!

TÉCNICO. Não gostei.

POETA. Tudo bem. Não é meu mesmo.

TÉCNICO. De quem é?

POETA. Baudelaire.

TÉCNICO. É teu amigo?

POETA. Não. Morreu faz tempo.

TÉCNICO. E você vende um poema que não seu, é?

POETA. E daí? Acho bonito, vendo barato, que é que tem?

TÉCNICO. Bom, o problema não é meu.

54.
Linha verde

SENHORA. Então eu comecei a tentar sentar perto dele. Tentava mostrar sempre
que estava bem. As viagens começaram a ganhar um novo sentido. Pareciam mais
curtas. Cada dia eu reparava numa coisa nova nele: uma parte do cabelo que estava
ficando branca, as roupas novas, a barba maior ou menor, o perfume, os bocejos, os
dias em que ele parecia estar mais alegre...

(A Estrela sorri, a Senhora alegra-se por divertir a moça)

LOCUTOR. (off) Estação Consolação.

(Entra o FANTASMA. Percebe que está diante da mulher que procurava. Senta-se
diante dela)
SENHORA. Mesmo assim, com toda a atenção que eu dava pra ele, eu acho que
continuou não percebendo que ele me dava um ótimo começo de dia. Chegou um
momento em que o fato de não conhecê-lo, não ter certeza de como era sua voz, o
que pensava e o que fazia se tornaram coisas insuportáveis pra mim. Bolei planos
pra conhecê-lo. No último dia em que vi o homem, fiquei tomando coragem por
quinze estações. Me aproximei dele e lhe perguntei as horas. Ele olhou para o
relógio e me disse: seis e vinte. Depois me olhou e concluiu: me desculpe, o meu
relógio está parado. Já são bem mais que seis e vinte. Ele tinha aquele mau-hálito
que os homens costumam ter pela manhã. Também tinha charme. Quando ia
continuar a conversa, as portas se abriram, ele deu as costas e saiu. Meu erro foi ter
demorado demais pra tomar coragem. No dia seguinte já entrei na estação Patriarca
convicta do que queria e disposta a falar com ele assim que o encontrasse na
plataforma. Sabe o que aconteceu?

ESTRELA. Bom, talvez você tenha perdido a coragem e até reencontrá-la já estava
na Estação Jabaquara de novo.

SENHORA. Não. Ele não apareceu. Depois de três anos fazendo o mesmo percurso
com o homem, sem uma única falta minha e nem dele, ele não apareceu. Nunca
mais apareceu. Não sei se ele se aposentou, se trocou de emprego, se morreu ou
pior, se simplesmente passou a pegar o vagão do outro lado do trem. Agora eu sou
assim... faço minha parte pra não desperdiçar certos estranhos que cruzam meu
caminho.

ESTRELA. Acho que te entendo.

55.
Linha Azul

(O FUNCIONÁRIO senta-se ao lado do CONTRAVENTOR, que tenta fingir não estar


preocupado com a presença do outro)

FUNCIONÁRIO. Licença...

CONTRAVENTOR. (entre lábios) Pois não.

(O FUNCIONÁRIO dá uma alongada no corpo, estica as pernas, afrouxa o cinto)

FUNCIONÁRIO. Estudando, é?

CONTRAVENTOR. Hum, hum.

FUNCIONÁRIO. Estudando o quê?


CONTRAVENTOR. Literatura.

FUNCIONÁRIO. (dá uma bisbilhotada) Cursinho, né?

CONTRAVENTOR. É.

FUNCIONÁRIO. Vai tentar o que?

CONTRAVENTOR. É... Direito.

FUNCIONÁRIO. Carreira bonita.

CONTRAVENTOR. Também acho.

FUNCIONÁRIO. Bom, boa sorte pra você.

CONTRAVENTOR. Brigado.

(silêncio breve)

FUNCIONÁRIO. Sabe qual é a pior coisa do meu trabalho?

CONTRAVENTOR. Não.

FUNCIONÁRIO. É não saber que fim que as pessoas levam.

CONTRAVENTOR. (desinteressado) Hum, hum.

FUNCIONÁRIO. Que nem seu caso... eu posso te dar boa sorte, torcer de verdade
por você, só por que fui com a tua cara, entende? Mas daqui a pouco você vai sair
daqui e eu nunca vou saber se você conseguiu virar advogado ou não.

CONTRAVENTOR. Sei lá, de repente a gente volta a se cruzar.

FUNCIONÁRIO. É claro que a gente vai se cruzar. Mas eu não vou lembrar da sua
cara, nem você da minha. É assim. Pode acreditar em mim: quando a pessoa passa
uma portas daquelas, você perdeu ela para sempre.

LOCUTOR. (off) Estação São Judas.

(Sinal de aviso de abertura das portas. A CÚMPLICE se levanta e sai correndo com
a mala)
56.
Linha verde

(ESTRELA, SENHORA e FANTASMA)

ESTRELA. (levantando-se) Eu fico por aqui.

SENHORA. É. Tá chegando.

ESTRELA. Faz um favor pra mim?

SENHORA. Depende.

ESTRELA. Me assiste amanhã na televisão?

SENHORA. Claro.

ESTRELA. Promete?

SENHORA. Prometo.

ESTRELA. Eu não vou ter como saber que você cumpriu sua promessa.

SENHORA. (sorrindo) Me liga pra saber, você tem meu telefone.

ESTRELA. A senhora é muito... muito... meiga.

SENHORA. Gentileza sua.

LOCUTOR. (off) Estação Clínicas.

ESTRELA. Tchau.

SENHORA. Tchau...

ESTRELA. Sabe de uma coisa? Era pra eu ter descido na antes. Mas eu decidi ficar
no metrô, passear um pouco, pensar na vida... acabei te conhecendo... Tchau...

(A SENHORA acena para a ESTRELA, que sai. A SENHORA encolhe o corpo e


começa a chorar)

57.
Linha Azul
CONTRAVENTOR. (levanta-se) Filha da puta!

FUNCIONÁRIO. Que foi, companheiro?

CONTRAVENTOR. (surdo) Filha da puta! Filha da puta! Filha da puta!

FUNCIONÁRIO. Calma, que foi?

CONTRAVENTOR. (surdo) Filha da putaaa!!! Pára essa merda!

FUNCIONÁRIO. Calma, não dá pra parar o trem, meu filho!

CONTRAVENTOR. Pára! Pára! Pára!

FUNCIONÁRIO. O senhor não vai dar um bom advogado desse jeito, hein? (sem
resposta) Vai, me fala o que tá acontecendo.

(O CONTRAVENTOR, alheio ao outro, dá um chute no assento)

FUNCIONÁRIO. Calma! Não precisa depredar o bem público! O assento não tem
nada a ver com seus problemas!

LOCUTOR. (off) Estação Conceição.

(Sinal de aviso de abertura das portas)

CONTRAVENTOR. (sai correndo) Vaca filha da puta!

(O FUNCIONÁRIO esboça uma tentativa de correr atrás do Contraventor. Desiste)

FUNCIONÁRIO. (no rádio) QAP, funcionário Conceição.

VOZ. (off) QAP.

FUNCIONÁRIO. Tem um QRA alterado correndo pela Estação. Pede pra dar uma
checada.

VOZ. (off) Pode deixar.

FUNCIONÁRIO. PKS.

(O FUNCIONÁRIO checa o lugar onde o Contraventor acertou o pé com seu chute.


joga-se na cadeira. Estica o corpo e relaxa)
FUNCIONÁRIO. Tsc, tsc, tsc...

58.
Linha vermelha

POETA. Posso tentar outro? Esse fui eu que fiz.

TÉCNICO. Tá. Vai lá. Última chance.

POETA. Chama-se “O Grande relógio da avenida”. É assim:

Agradeço por me dizer as horas e os minutos com tanta exatidão


Mas lembre-se que não lhe perguntei nada
E que me dói esse direito que te deram
De ser obsessivo em me dizer que minha morte se aproxima.

TÉCNICO. Taí... não entendi nada.

POETA. Não?

TÉCNICO. Pra mim isso não tem mensagem nenhuma.

POETA. Oras...

LOCUTOR. (off) Estação Santa Cecília.

TÉCNICO. (saca um real) Vai, me dá uma cópia.

POETA. (alegre) Do Baudelaire ou do meu?

TÉCNICO. Do Bodeglér.

POETA. (um pouco frustrada) Tá. Então leva um meu, de brinde.

TÉCNICO. Brigado. (ele pega os poemas) Tchau...

POETA. Boa viagem.

TÉCNICO. Escuta... Você me faria um favor?

POETA. Claro.

TÉCNICO. Você colocaria esse envelope no correio pra mim?


POETA. Dá aqui...

TÉCNICO. Ou melhor... deixa comigo.

POETA. Pode deixar.

TÉCNICO. Esquece, vai.

POETA. Tudo bem. Você é quem sabe. Boa viagem...

(Sinal de aviso de fechamento das portas. Ela sai rapidamente)

59.
Linha Azul

(O FUNCIONÁRIO esticado na cadeira, no mundo da lua.)

FUNCIONÁRIO. (rádio) QAP, funcionário Conceição.

VOZ. (off) QAP.

FUNCIONÁRIO. Acharam o sujeito?

VOZ. (off) Despachei a ordem. Não tenho retorno ainda.

FUNCIONÁRIO. Falô então... PKS.

LOCUTOR. (off) Estação Terminal Jabaquara. Senhoras e senhores, estaremos


encerrando nossas operações dentro de 2 minutos.

(Lento, o FUNCIONÁRIO se levanta e começa a sair. De repente retorna, tira um


lenço do pano da calça, dá uma limpada na marca de chute do Contraventor.
Levanta-se e sai).

60.
Linha Vermelha

(O TÉCNICO pega o envelope e coloca a carta em seu interior. Fecha-o. Muda de


idéia. Abre o envelope, pega o retrato e coloca-o também dentro do envelope.
Levanta-se e coloca o envelope sobre o assento)

LOCUTOR (off). Estação Terminal Barra Funda. Acesso ao Terminal Rodoviário.


(Ele vai saindo. De repente, volta, pega o envelope, abre-o, tira o espelho do paletó
e coloca-o dentro da carta. Fecha-a com uma lambida e deixa-a sobre o assento)

LOCUTOR. (off) Senhoras e senhores, estaremos encerrando nossas operações


dentro de 1 minuto.

(Ele sai)
61.
Linha verde

(Sons de trem movimento que evoluem para os sons de parada. A SENHORA


levanta-se. Ao erguer-se, deixa a sacola virar. Abaixa-se, pega seus cartões e os
recoloca no lugar. Distraída, deixa um deles no piso do vagão. Sai. O FANTASMA
levanta-se. Pega o cartão, lê-o, guarda-o no bolso da camisa e prepara-se para sair.

LOCUTOR. (off) Estação Terminal Vila Madalena. Senhoras e senhores, estamos


encerrando nossas operações de hoje. Pedimos a todos que deixem as
dependências do metrô.

(De repente, O FANTASMA volta. Deixa o cartão sobre um dos assentos. Sai em
definitivo).

FIM

Em São Paulo.
1ª versão em junho de 2002.
Esta, em 2004.
Mais Um, ainda inédito, teve sua primeira leitura
em 10 de dezembro de 2003, no Teatro da
Praça, em Belo Horizonte(MG), com direção de
Ângela Mourão. Teve nova leitura em 3 de
novembro de 2004, no Centro Cultural São
Paulo, sob direção de Ana Roxo.

Cássio Pires nasceu em São Paulo, em 1976. Formado em Letras pela Universidade de
São Paulo (USP), atualmente é pós-graduando em Artes Cênicas na Escola de
Comunicações e Artes da USP, onde desenvolve projeto de mestrado sobre a dramaturgia
contemporânea em São Paulo.

Entre seus principais textos para teatro destacam-se: PERÍMETRO, (escrito durante o
workshop do Royal Court Theatre realizado em São Paulo) integrante do ciclo de leituras
dramáticas do Intercity Festival do Teatro della Limonaia (Firenze e Roma, 2004), MAL
NECESSÁRIO, encenado na II Mostra de Dramaturgia Contemporânea do Teatro Popular
do SESI, MAIS UM, premiado no concurso nacional de textos teatrais (Prêmio Plínio
Marcos) e no Concurso Nacional de Literatura da Cidade de Belo Horizonte, O ROUXINOL,
adaptação do clássico de H.C. Andersen, encenado pela Cia. da Revista e A FARSA DO
MONUMENTO, espetáculo de rua produzido pela cia. Tablado de Arruar, integrante da
Mostra Contemporânea do Festival de Curitiba 2002.

Em parceria com Clóvis Inoue e Jonas Golfeto escreveu e dirigiu o filme REPVBLICA,
contemplado com o Prêmio Estímulo de curtas-metragens da Secretaria de Estado da
Cultura. Como professor, realizou diversas oficinas, workshops e seminários sobre teatro,
cinema e literatura em espaços como a EAD (Escola de Artes Dramáticas da ECA/USP), a
Oficina Cultural Oswald de Andrade e o projeto de oficinas culturais de São Bernardo do
Campo.

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