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Cássio Pires
Personagens
Ato único
Sete da noite. Centro de São Paulo. Topo de um edifício comercial. Uma antena.
Duas ou três caixas de papelão. A irmã está próxima ao parapeito e, de costas
para o irmão, observa a cidade. O irmão guarda certa distância.
IRMÃ. A melhor época da minha vida foi ali naquele prédio e durou um ano. Eu
tinha dezesseis anos e não sabia nada da vida. Você tinha dezoito e eu te
chamava de Rapunzel. Eu era secretaria no oitavo andar e namorava o Pedro. Ou
namorava o Pedro e era secretaria no oitavo andar, não sei. Não sei porquê, mas
eu acho aquela a melhor época da minha vida. O Pedro não é melhor do que
nenhum outro homem que eu tive depois e naquela época eu já desconfiava
disso. Aquele trabalho não é melhor do que nenhum outro trabalho que eu tive e
eu não era feliz fazendo o que fazia. Eu acho que não tenho razão nenhuma pra
acreditar que aquela foi a melhor época da minha vida, mas é o que eu acho.
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IRMÃ. (alheia às tentativas do irmão) Um dia meu chefe passou mal e resolveu ir
embora mais cedo. Então, eu fiz uma coisa que sempre tinha vontade e nunca
conseguia. Comecei a olhar a cidade pela janela. Eram cinco da tarde e o céu era
cinza de poluição e vermelho de pôr-do-sol. É a mistura de cores mais bonita que
existe. O cinza do homem e o vermelho de Deus. É bonita porque elas se
misturam sem se misturar. Não é uma terceira cor. É cinza e é vermelho. Mas
você não consegue achar tanta graça naquele vermelho sem ver o cinza e não
consegue entender o quanto o cinza é bonito sem aquele vermelho.
IRMÃ. Então, daquela janela, eu fiquei olhando tudo o que eu podia ver. Olhei
cada coisa que eu podia, e vi entre elas esse prédio e gostei dele, não me lembro
exatamente porquê. A vida é muito engraçada e agora estou aqui olhando pro
prédio de onde eu olhava esse prédio. E é como se eu estivesse me vendo com
dezesseis anos, daquela janelinha do oitavo andar onde eu trabalhava. É como se
eu estivesse me vendo na janela, com um dedo apontado, como fazia a nossa
mãe, olhando nessa direção e fazendo assim (faz um sinal negativo com o dedo).
A secretaria que eu fui está dando bronca na policial que virei. Estou com
vontade de prendê-la por desacato a autoridade.
IRMÃ. Aí um dia você cresceu e chegou em casa contando que ia fazer o exame
pra entrar na polícia. O pai tava bêbado e riu na sua cara. Falou que aquilo não
era mundo pra você. Mas você conseguiu. Me lembro do dia em que a gente foi
assistir a tua cerimônia de contratação. Eu não conseguia entender o que mamãe
sentia. Mamãe era fria, ou fingia que era, não sei. Eu chorei o tempo todo. Tocou
o hino do Brasil e eu chorei. Eu acho brega chorar quando toca o hino, mas eu
não agüentei. Você era o mais magro de todos. E eu não sabia se estava
chorando por medo de te perder, por medo de achar que você ia acabar tomando
um tiro ou se eu estava chorando de orgulho de te ver fardado. Mamãe achava
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que você não ia dar em nada. Nunca trabalhou, ficava em casa lendo aqueles
livros velhos e, de repente, vira policial. Naquele dia você virou minha cabeça do
contrário. Virou um exemplo pra mim.
IRMÃO. Eu não vim até aqui pra lembrar do passado. Comporte-se como adulta
e me deixa eu te ajudar. Me diz o que é que aconteceu. Sou teu irmão, não
precisa fugir de mim.
IRMÃO. Lembro.
IRMÃO. Sim.
IRMÃO. Já.
IRMÃO. Já.
Silêncio.
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IRMÃ. Daqui de cima, a cidade até que é bonita. Daqui de cima, é só uma
paisagem. E é bonita. Mas ninguém vive dentro de uma paisagem. A gente, pelo
menos, não vive.
IRMÃO. Você tá jogando comigo. Isso está começando a me deixar cansado. Faz
uma hora que cheguei e você sequer virou a cara pra me ver.
IRMÃ. Um dia eu li num cartaz que a Guarda Civil ia abrir concurso pra
mulheres. Aí, pensei: se eu passo num concurso desses, ninguém me tira o
emprego. Pode não ser a melhor coisa do mundo, mas pelo menos eu paro de
ficar pulando de serviço em serviço, pelo menos não morro na merda como o
papai e a mamãe e...
IRMÃO. (explode) Pára com isso! Pára com essa besteira! Pára de se fazer de
criança e se coloca no meu lugar! Tô em casa e me ligam dizendo que tinha
acontecido um problema com você. Eu corro pra cá e eles me dizem que você
recusou-se a dar a ordem de despejo pras famílias que invadiram o prédio e, sem
dar a menor satisfação pra ninguém, subiu pra laje e tá aqui desde a dez horas
da manhã! Os teus colegas tão rindo de você! Tão dizendo que você virou
comunista, que ficou louca! Como é que você acha que isso me deixa? Como é
que você acha que eu tô me sentido, sabendo que lá embaixo tá cheio de guarda
civil te chamando de louca e rindo da sua cara?
IRMÃO. (mais calmo) Agora não é hora de pensar nisso. Você precisa ir pra tua
casa e descansar.
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IRMÃ. É ou não é?
IRMÃO. Não.
IRMÃO. Se você não quer descer, então pelo menos me diz o que é que
aconteceu.
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IRMÃO. Se você continuar agindo dessa forma, eu vou começar a acreditar que
você enlouqueceu mesmo.
IRMÃO. O comandante.
IRMÃ. E os outros?
IRMÃO. Quem?
Silêncio breve.
IRMÃ. Fazia tempo que você não me pedia pra eu te dar a mão. A última vez
que isso aconteceu, você ainda tinha voz de criança.
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IRMÃ. Você sabe o que aconteceu. Já te colocaram a par, senão você não estaria
aqui em cima.
IRMÃ. Eu não parei pra pensar no que tinha que fazer. O comandante me disse
que queria uma mulher no comando. Fiquei orgulhosa por ele ter me chamado,
não me dei conta do que eu tinha que fazer.
IRMÃO. Você sabe que não podia ter feito isso, não é?
Pausa breve.
IRMÃO. Me desculpa.
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IRMÃO. Quando as coisas acontecerem assim, você tem que pensar que não é
você que tá fazendo. É a policia que tá. Tem que pensar no teu uniforme. Na real,
é por isso que a gente usa uniforme. Não é só pra ser reconhecido na rua. É pra
não ter identidade na hora de agir. Não é a gente que tá ali. É a Polícia. Nessa
hora, a gente não tem nome.
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IRMÃ. Eu passo por cima de muitas coisas. Quando paro pra pensar, percebo
que é disso que eu vivo.
IRMÃO. Não perde seu tempo. Vem, vamos descer. Lá embaixo a gente continua
a conversar.
IRMÃ. Se você quiser descer, pode ir. Amanhã você acorda cedo, né? Eu vou
ficar aqui.
IRMÃ. Fazia tempo que eu não me sentia bem estando no lugar em que estou.
Não quero ir embora. Não por enquanto.
IRMÃO. A gente pode dar um passeio, ir pra um lugar que você goste, pra você
esquecer um pouco de tudo que aconteceu.
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IRMÃ. É sim. Você tá com medo de que eu decida pular. Se eu tivesse no teu
lugar, eu pensaria a mesma coisa.
IRMÃO. Isso nem passou pela minha cabeça. Sei que você não faria isso.
IRMÃ. Então você sabe que pode ir. Vai. Me deixa aqui. Preciso de um pouco de
silêncio.
IRMÃO. Escuta, eu entendo que você tá precisando pensar, mas a tua situação
não é boa. Você precisa esfriar a cabeça, se apresentar ao comandante e explicar
pra ele o que aconteceu. Ele tá esperando isso de você.
IRMÃO. Na hora em que você se apresentar, ele não vai aceitar que você não
diga nada.
IRMÃO. Que você fraquejou, mas que já entendeu o que fez e que se
arrependeu.
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IRMÃO. Não importa se você se arrependeu ou não. Você vai dizer a ele que se
arrependeu. Só isso pode aliviar tua barra. A operação foi bem-sucedida, talvez
ele te perdoe. Mas você precisa pedir perdão e dizer que está arrependida do que
fez.
IRMÃO. Não é hora de agir dessa maneira. Tô dizendo isso pro seu bem.
IRMÃO. A gente não pode se recusar a cumprir ordem. Isso que você fez pode
ser interpretado como crime. Age com esse orgulho e ele vai se irritar com você,
vai te denunciar e você vai acabar encarando um processo difícil.
IRMÃO. Como assim você não tá preocupada com isso? A gente tá falando da
tua vida!
IRMÃO. Você é policia, fez juramento, lembra? Você é paga pra servir a cidade.
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IRMÃO. Você sabe que é. A gente entende a dificuldade delas, eu não acho essa
história engraçada, mas isso aqui é um prédio público e elas não podem ficar
aqui.
IRMÃO. Por que elas não podem morar em um lugar que não é delas. Ponto.
IRMÃ. Mas sei que poderiam ser menos difíceis do que são.
IRMÃ. Eu sei que não. Mas eu sei também que não vou conseguir agir de outra
forma.
IRMÃO. Você acha que tá fazendo o certo, mas tá agindo como trouxa. O que
você fez não mudou nada. O prédio tá vazio.
IRMÃ. Eu tô aqui o dia inteiro pensando que o que acontece com eles podia ter
acontecido com a gente. A gente não tá muito longe deles. Pra gente que nem
nós e que nem eles, as coisas acontecem ou deixam de acontecer por um
detalhe, um capricho do divino, um serviço que cai do céu, um concurso na hora
certa, alguém que dá uma força e gente acaba se salvando. A gente sabe disso e
tem de fingir que não sabe.
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IRMÃ. Eu não vou mais me submeter. Eu não vou ficar defendendo interesse de
gente poderosa e foder com gente igual a nós só porque virei guarda. Já fiz muito
disso, mas agora acabou.
IRMÃO. Que é que você vai fazer? Vai pedir pra sair?
IRMÃO. Olha, você tá confusa. Teve um dia ruim. Acontece comigo também.
Fico revoltado, cheio de idéias. Você precisa dormir um pouco. Amanhã você vai
perceber que tá jogando uma carreira boa fora. Você tá há pouco tempo na
guarda e tá conseguindo subir. Eu tô há muito mais tempo na policia e nunca me
nomearam pra comandar nada. Deixa de ser orgulhosa e de pensar em coisas
que só vão acabar com a tua vida. Se apresenta ao teu comandante e pede
desculpas.
IRMÃO. Se você não quer fazer as coisas mais fáceis pra você, então pensa em
mim. Não quero te ver tomando um processo.
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IRMÃO. (baixa o tom de voz) Eu não queria gritar com você. Me desculpa, ok?
IRMÃ. E a Teresa?
IRMÃ. Se eu tô perguntando.
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Um tempo.
IRMÃO. Sei lá. Mulher é um negócio esquisito. Deu pra reclamar de tudo.
Qualquer coisa, discutia. Nunca foi disso. De repente, virou outra.
IRMÃO. É uma fase ruim dela. Ela vai esfriar a cabeça e depois volta.
IRMÃO. Pensei que ia ser pior. Ela faz falta, mas silêncio também faz.
IRMÃO. Ontem passei o dia inteiro deitado no sofá pensando nisso. Me faz essa
pergunta daqui a um mês.
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IRMÃO. Tô em pé.
IRMÃ. Se precisar...
IRMÃO. Sei lá, tô fuçando. Alguém largou isso aqui. Deve ser doação. Só tem
coisa velha.
Um tempo.
IRMÃ. Sempre achei que você não gostava muito dela. Que arrumou uma moça
direita e casou por casar.
IRMÃO. (atento às caixas) Isso deve ser dos invasores. Eles devem ter desistido
de levar essas caixas pra carregar menos peso. Devem ter escondido aqui em
cima pra pegarem depois.
IRMÃO. (sem desviar os olhos da caixa) Não se preocupa comigo. Pode acreditar
que eu tô numa boa. (mostra-lhe um pião) Você lembra disso daqui?
IRMÃ. Lembro...
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IRMÃO. Merda...
IRMÃ. Esqueceu?
IRMÃO. Não. Foi na loucura. Me ligaram falando de você. Meu coração subiu na
boca. Enfiei a farda no corpo e sai de casa voando, nem me dei conta. Deve ter
ficado em cima da cama. Tirei do coldre pra limpar.
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IRMÃO. Tá sim.
IRMÃ. Cuidado com essas coisas, hein? Não quero saber de você andando de
farda sem o teu revólver.
IRMÃ. Você sabe que isso é perigoso. Sujeito percebe você sem revólver, vai
querer se aproveitar.
IRMÃO. A gente pega um táxi. Não tem perigo não. Ninguém vai ver a gente.
Silêncio.
IRMÃ. Teu revólver. Sempre quis te perguntar, mas nunca tive coragem.
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IRMÃ. Já atirou?
IRMÃO. Você é minha irmã, parceira. Você guarda suas histórias contigo, eu
guardo as minhas comigo e a gente reza um pelo outro, que tal?
IRMÃO. Besteira...
IRMÃO. Minha vida é mais ou menos calma. Lá no DP, sou um dos que tem mais
sorte.
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IRMÃO. Uma noite, a gente tava na viatura fazendo ronda aqui no centro.
Passamos na rua Aurora e vimos três moleques de blusão. Tava calor, a gente
desconfiou e resolvemos dar uma geral neles. A gente deu ré e dois correram.
Um ficou paradinho, peitando a gente com o olho. A gente desceu com a mão nos
berros. O moleque não se intimidou. Assim que a gente desceu, ele tirou uma
pistola das costas e apontou pra gente. Olhou feio pra nós e falou: “Aê gambé,
esse mundo é pequeno demais pra nós três” e apontou a arma pro Charles
Bronson. A gente conseguiu correr pra trás da viatura. Sacamos as armas na
direção do moleque. Mandamos ele largar a dele. Ele fez o contrário. Começou a
rir e falou: “larga vocês”. Ficou um silêncio. Ele disse: “vou contar até três e vou
atirar”. “Um... dois...” antes dele falar “três”, a gente começou a atirar. Eu dei
dois tiros, um foi no farol da esquina, outro, numa lixeira, o Charles Bronson deu
doze, não errou nenhum, e olha que o moleque devia ter um metro e meio. O
menino ficou vermelho de sangue. O Charles Bronson olhou pra minha cara e
falou: “Vai lá”. Com ele eu não discuto. Fui. Cheguei perto. “Tá morto?”. Eu fiz
que sim com a cabeça. “Cata o revólver dele”. Catei. Charles Bronson gritou
“Qual é o modelo?”. Esse aqui eu não conheço. “Qual é a marca?”. Colei a vista
no revólver: “Troll”. “Que porra de marca é essa que eu não conheço?”. Olhei pra
cara dele: “É arma de brinquedo.” A gente catou o menino, levou pro hospital,
pra eles encaminharem por IML. Mas chegando lá, a coisa virou. O moleque
ressuscitou. Tinha o corpo fechado, o desgraçado. Ficou entre a vida e a morte. O
Charles Bronson, em casa, emagrecendo e torcendo pro moleque morrer. Mas o
moleque sobreviveu. A corregedoria abriu processo. O juiz considerou que 12
tiros era demais pra aceitar legítima defesa. Charles Bronson saiu da cadeia faz
um mês. O Pessoal dos Direitos Humanos achou que o moleque corria risco e
mandaram ele pro exterior, pra não ter retaliação. Outro dia, ele apareceu com
uma comissão lá na delegacia, pra cumprimentar o Charles Bronson e dizer a ele
que não tinha ressentimento. O moleque entra de terno, cabelo liso, falando
francês, “”Bonjú”, “Comantalêvú?”, “Não-sei-que-lá”. O UNICEF pegou pra criar.
Virou Embaixador da Paz lá na Casa do Caralho. Faz campanha, dá palestra,
abraça pobre. Nunca vi tiro fazer tão bem a uma pessoa.
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IRMÃO. Tá chateada comigo? Foi você quem me pediu pra te contar uma
história.
IRMÃ. Eu devia ter ficado quieta. Não sei o que é que me deu.
IRMÃO. Eu não sei o que te magoou, mas quero que você saiba que eu não tinha
a intenção de...
IRMÃ. (cortando) Não quero mais falar sobre isso. Não aconteceu nada, tudo
bem?
Silêncio.
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IRMÃO. Me lembro. E me lembro que você caiu de cima dela umas dez vezes. É
melhor você sair daí.
IRMÃ. Sobe aqui também. A cidade fica melhor ainda. Aposto que se subir mais
um pouco, vou conseguir enxergar o nosso bairro.
IRMÃ. Deixa de bobagem. É muito mais fácil do que subir em árvore. Vem.
Sobe.
IRMÃO. Trinta tem você. Eu tenho trinta e dois. Tô ficando velho e cagão.
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IRMÃ. (encosta o rosto numa das hastes da antena e faz pose) Pareço uma
garota- propaganda de comercial de celular?
IRMÃ. É verdade...
Balança a boneca.
Ele retira a cabeça da boneca e vira o corpo de cabeça para baixo, fazendo com
que um pequeno embrulho caia.
Cheira.
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IRMÃO. O mundo da maconha! Não importa onde você procura: você sempre
acabará encontrando um pacotinho.
IRMÃO. (grita) Hoje vocês estão livres, maconheiros do meu Brasil! Fumem até
morrer! Eu não agüento mais me foder por causa dessa merda!
Ela não responde. Ele troca a boneca pelo binóculo. Fica olhando para o céu.
IRMÃ. Não.
IRMÃO. Tem duas estrelas no céu que vivem juntas. É como se elas fossem uma
só. Uma é vermelha, a outra é branca. Elas deveriam ficar em paz. Mas a branca
começou a comer a massa da vermelha e não quer parar de jeito nenhum.
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IRMÃO. Não. É muito pior. A branca vai comendo a massa da vermelha e vai
aumentando de tamanho. Então, pode ser que a vermelha morra. Mas pode ser
também que a branca fique entupida de tanta massa que ela roubou da outra e
acabe explodindo.
IRMÃ. (olhando para o céu) Onde é que será que elas estão?
IRMÃO. Sabe o que é pior? Não tem volta. Uma das duas vai morrer. Pode ser
hoje ou pode ser daqui um milhão de anos. Mas uma das duas vai morrer.
IRMÃO. Fiquei pensando: como é que um juiz julgaria esse caso? Um juiz
desses, como esse que ferrou o Charles Bronson, pra quem ele daria razão?
IRMÃ. Ele teria de ouvir muito bem os motivos de cada uma. E teria que
considerar que elas são estrelas, não são pessoas. E por isso, devem ter razões
diferentes dos humanos pra fazer o que fazem. Razões estelares.
IRMÃ. Daqui eu consigo ver a Praça da Sé. Você lembra que uma vez o papai e a
mamãe trouxeram a gente pra assistir a missa da catedral?
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IRMÃO. (olhando pelo binóculo) Eles não trouxeram a gente pra assistir a missa.
Vieram pagar promessa por que o papai tinha conseguido ficar um mês sem
beber. A gente veio junto porque isso fazia parte da promessa.
IRMÃO. Não te contaram. Você era mais esperta do que eu, mas eu era mais
velho que você. Isso me dava direito a informações que você não tinha.
IRMÃO. Tava pensando em comprar alguma coisa pra Teresa. Tem uma flor
chamada Gerânio que dizem que dá boa sorte na hora de reatar a relação. Você
já ouviu falar dessa flor?
IRMÃ. Já.
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IRMÃ. Tem pétalas grandes, meio separadas. Tem umas que são vermelhas,
outras que são rosadas e outras brancas. Pro amor, tem de ser as rosadas.
IRMÃO. Eu acho que amanhã vou passar na floricultura do seu Osni e pegar um
cacho desses gerânios pra ela. Que é que você acha?
IRMÃ. A hora em que você voltar pra casa, o seu Osni já fechou. Ele fecha cedo.
E não é cacho, é buquê.
IRMÃO. Amanhã eu ainda tô de folga. Você acha que eu faço bem de ir atrás
dela ou acha melhor eu deixar ela me procurar?
Um tempo.
IRMÃ. Você disse que ficou em casa ontem, sentado no sofá, pensando se ainda
gostava da Teresa. Folga de três dias? Mudou o esquema na PM agora?
IRMÃ. (cortando) Você tá sem arma, faz dois dias que não trabalha e não vai se
apresentar amanhã. Eu acho que você tá mentindo pra mim. Me explica o que é
que tá acontecendo.
Um tempo.
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IRMÃ. Não me conta mais nada, não. Me dispensa de saber dos detalhes. Prefiro
ficar com meus pesadelos do que ouvir as suas histórias.
Silêncio.
IRMÃO. (sorri) Quando a gente não faz, a gente se fode. Quando faz, se fode
também.
Silêncio.
Silêncio.
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IRMÃO. Isso foi uma necessidade do corregedor. Ele assumiu faz pouco tempo,
precisava mostrar serviço e aproveitou pra ferrar a gente. Ninguém abusou. A
gente só fez o que precisava fazer.
Silêncio.
IRMÃO. Risco de cadeia, eu acho que não tem. Fica preocupada não, tá bem? Na
pior das hipóteses, vão me exonerar. Mas eu nem me preocupo.
Silêncio.
IRMÃO. Tem um parceiro que tem uma firma de segurança. Trabalha pra gente
importante. Se eu tiver que sair, ele me disse que quer que vá trabalhar com ele.
Inclusive dá menos trabalho e um pouco mais de dinheiro.
Silêncio.
IRMÃO. Mas fica tranqüila que eu não vou precisar sair. Tenho fé que não.
Silêncio.
IRMÃO. Teresa tá fazendo falta. Quando eu mais preciso dela, ela dá de não
agüentar a má notícia. Queria chegar em casa e ter alguém pra não deixar eu me
encontrar com meus pensamentos.
IRMÃO. Mas também, de certo modo, ela não pode fazer nada.
Silêncio.
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IRMÃO. Eu acho que tô vendo as tais das estrelas. Ali, perto do Cruzeiro do Sul.
Isso é de brinquedo, mas ajuda um pouco. As duas tão piscando. Uma é branca e
a outra é meio vermelha. Devem ser elas. Dá uma olhada.
Ele passa o binóculo para ela. Ela observa o local que ele apontou e lhe devolve o
brinquedo.
IRMÃO. Agora é só uma fase ruim, mas vai passar. Quando eu era o Rapunzel,
eu não sabia da missa a metade. Eu não sabia nada da vida e não sabia o que
fazer com ela. Todo mundo tinha um sonho e eu não queria fazer nada. Eu tinha
a sensação de que tinha vindo ao mundo pra apanhar na rua. Talvez a melhor
época da sua vida tenha passado. Mas a melhor época da minha vida é agora,
sabia? Não é como eu quero, mas se não fosse a policia, talvez eu tivesse me
perdido, talvez eu fosse pra sempre o inútil que vocês me diziam que eu era.
Entrar na polícia me colocou na briga. Talvez eu não saia mais do lugar que eu tô
agora, mas no fundo eu só quero estar na briga. Esse poder que você não engole,
no final das contas, é o que vale pra mim. Pode ser pouco, mas quanto ao resto,
as vezes eu acho que a gente não tem direito nem de sonhar.
Silêncio.
Ela aceita.
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IRMÃO. Veste o casaco. O frio tá piorando. Você acaba pegando uma gripe.
Silêncio.
IRMÃO. Pensa direito no que você vai fazer da sua vida. Amanhã você vai
acordar com a cabeça melhor. Você tem talento pra subir. Não joga isso fora.
Um tempo.
IRMÃO. A única coisa que me dá saudade do tempo em que a gente era criança
era dormir no mesmo quarto com você.
Um tempo.
Ela não responde. O irmão volta a olhar para o céu pelo binóculo.
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IRMÃ. Rapunzel...
Blecaute.
- FIM -
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