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Constituindo a trama das ideologias o eixo articulador do livro, José Murilo de Carvalho
embarca na análise de elementos extradiscursivos das justificativas ideológicas
republicanas e, “hermeneuta das formas”, passa a interpretar símbolos, imagens,
alegorias e mitos da época, além de, por fim, avaliar de que maneira as concepções da
República extravasaram o círculo restrito das elites e alcançaram a população.
O título da obra dá a pista: formar almas, por meio de arsenal de heróis, hinos, mitos e
bandeiras que transbordaram no país, ao final do século XIX, na luta pela conquista do
imaginário popular republicano. Não obstante, o autor parece concluir que, assim como
a “República não foi”, tampouco, foram bem sucedidos os construtores da nova forma
de governo, ao tentarem construir um imaginário próprio. Prova essa assertiva o farto
material iconográfico posto sob análise – monumentos, caricaturas de jornais, obras de
arte – que reflete as incoerências da República brasileira e a do próprio ícone,
Tiradentes.
Ao longo do tempo, o mártir teve sua imagem, história de insurgente e atitude religiosa
reclamadas por grupos de ideologias diferentes e até opostas, o que acentuou a
ambigüidade do símbolo. O governo republicano tentou dele se apropriar; os governos
militares recentes declararam-no patrono cívico da nação brasileira; o Estado Novo o
exaltou; Walsht, positivista, pintou-o um militar de carreira; e até as esquerdas, que
desde os jacobinos até os movimentos guerrilheiros da década de 1970 dele não abriram
mão.
O capítulo 3, o último dos três publicados anteriormente (em versão resumida, no Jornal
do Brasil, 2/12/1989 – a efeméride justifica), sem subtítulos, o autor debruça-se sobre a
dificuldade encontrada para se construir um herói para o novo regime. Segundo o autor,
herói que se preze deve, de alguma maneira, ter a cara do povo que representa; tem de
responder a alguma necessidade ou aspiração do conjunto da nação, refletir algum tipo
de caráter ou de atitude que corresponda a um modelo coletivamente valorizado.
Diante dessas dificuldades, quem aos poucos se revelou capaz de atender às exigências
da mitificação foi Tiradentes, não obstante a intensa batalha historiográfica que, ainda
hoje, se trava em torno da figura do Mártir da Inconfidência. Além disso, este teria
enfrentado e vencido Frei Caneca como um concorrente de peso – herói de duas
revoltas, uma pela independência, outra contra o absolutismo, além de também ter
morrido como mártir. Na luta pela conquista de ‘corações e mentes’ (para citar o
documentário político de Peter Davis, de 1971, a respeito do processo de transformação
da opinião pública norte-americana em relação à Guerra do Vietnã), a candidatura de
Tiradentes a herói da República teria se beneficiado de alguns fatores.
O geográfico seria um deles: Tiradentes seria o herói de uma área que, a partir da
metade do séc. XIX, já podia ser considerada o centro político do país – Minas Gerais,
Rio de Janeiro e São Paulo, as três capitanias que ele, inicialmente, buscou tornar
independentes. Frei Caneca seria o herói de uma região – o Nordeste – em plena
decadência econômica e política, além de a Confederação do Equador comportar certo
aspecto separatista.
Teria havido outro importante fator na preferência pelo herói das Minas Gerais: a
coragem que demonstrou viria ao final do fervor religioso, ao contrário daquela de
Caneca, que viria ao final do fervor cívico. Tiradentes assumira a postura de mártir,
identificado com Cristo; Caneca, a de herói desafiador, quase arrogante. A conjuração
de Tiradentes não passou à ação real; Tiradentes não derramou sangue, nem foi violento
contra outras pessoas: ele foi o “mártir ideal e imaculado na brancura de sua túnica de
condenado”. De modo diverso, ocorreram os levantes de 1917 e o de 1924, em
Pernambuco, protagonizados pelo Frei. Tudo isso falava alto à alma do homem do
povo.
Por fim, na conclusão, Carvalho afirma que a corrente vitoriosa não obteve êxito em
criar um imaginário popular republicano, honrosas exceções feitas, paradoxalmente,
àqueles aspectos mantidos da tradição imperial ou dos valores religiosos. O esforço
empregado não fora suficiente para envolver a população, alijada do processo de
implantação do novo regime.
Por todo o exposto, verifica-se que José Murilo de Carvalho, empreendeu, com sucesso,
tarefa inédita, ao interpretar símbolos incorporados pela nova forma de governo – a
República -, no que tange ao sentimento demonstrado pelas diversas formas de
expressão artística. No Brasil, os ícones oficiais adotados, inspirados naqueles franceses
das revoluções de 1789,1830, 1848 e 1871, que , por sua vez, foram inspirados nos da
Roma Clássica, não repercutiram no imaginário nacional como o fizeram em outras
terras e tempos. O autor levanta os debates ideológico e historiográfico acerca do tema e
destrincha suas implicações e suas remanescências, as quais perduram no modelo
liberal-democrático vigente, em enclaves jacobinos e rasgos positivistas