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José Guilherme Magnani Cantor


DE PERTO E DE DENTRO: notas para uma etnografia urbana
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 17, núm. 49, febrero, 2002
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
Brasil

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DE PERTO E DE DENTRO:
notas para uma etnografia urbana

José Guilherme Cantor Magnani

Introdução que não há necessidade de muitos malabarismos


pós-modernos para aplicar com proveito a etno-
Neste artigo pretendo articular duas linhas grafia a questões próprias do mundo contemporâ-
de reflexão: uma sobre cidade e outra sobre etno- neo e da cidade, em particular: desde as primeiras
grafia. O propósito é explorar as possibilidades incursões a campo, a antropologia vem desenvol-
que esta última, como método de trabalho carac- vendo e colocando em prática uma série de estra-
terístico da antropologia, abre para a compreensão tégias, conceitos e modelos que, não obstante as
do fenômeno urbano, mais especificamente para inúmeras revisões, críticas e releituras (quem
a pesquisa da dinâmica cultural e das formas de sabe até mesmo graças a esse continuado acom-
sociabilidade nas grandes cidades contemporâneas. panhamento exigido pela especificidade de cada
Em primeiro lugar exponho, de forma sumarizada, pesquisa) constituem um repertório capaz de inspi-
alguns dos enfoques mais correntes sobre a ques- rar e fundamentar abordagens sobre novos objetos
tão da cidade e, em contraste com estas aborda- e questões atuais.
gens, que classifico como um olhar de fora e de Explicito, a seguir, os pressupostos que estão
longe, apresento outra de cunho etnográfico, a que na base dessa proposta e apresento categorias de
denomino de olhar de perto e de dentro. análise, mostrando a aplicação de algumas delas
Não se trata, contudo, neste caso, de qualquer em pesquisas recentes. Por fim, sinalizo com a
etnografia: procuro distinguir a proposta que de- perspectiva de um olhar distanciado, indispensável
senvolvo de outros experimentos que também se para ampliar o horizonte da análise e complemen-
apresentam como etnográficos. Penso, ademais, tar a perspectiva de perto e de dentro defendida ao

RBCS Vol. 17 no 49 junho/2002


o
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longo do artigo. Pretendo, com estas reflexões, Ainda que por motivos diferentes, essas duas
contribuir para delimitar, no amplo e vago campo perspectivas – aqui polarizadas para efeito compa-
da chamada “antropologia das sociedades comple- rativo e de contraste – levam a conclusões seme-
xas”, um recorte mais específico, voltado para o es- lhantes no plano da cultura urbana: deterioração
tudo de temas própria e especificamente urbanos.1 dos espaços e equipamentos públicos com a con-
seqüente privatização da vida coletiva, segregação,
evitação de contatos, confinamento em ambientes
Abordagens sobre a cidade e redes sociais restritos, situações de violência etc.
Não obstante seu esquematismo, esta é uma
Inúmeros são os estudos e as abordagens visão bastante recorrente no discurso da mídia e
sobre os rumos e as conseqüências do processo de até em análises mais acadêmicas voltados para a
urbanização em curso, principalmente nas grandes discussão de problemas urbanos: é justamente no
metrópoles contemporâneas. Com o propósito de estereótipo que reside o sucesso da fórmula. Cabe
estabelecer um pano de fundo para melhor des- lembrar, a propósito, o ocorrido com o conhecido
tacar a proposta que pretendo desenvolver, inicial- urbanista catalão, Jordi Borja, em uma de suas vi-
mente agrupei tais abordagens, conforme propus sitas a São Paulo. Convidado a participar de um
em outro texto (Magnani, 1998), em dois blocos: o programa de televisão para falar dos problemas
primeiro deles reúne aquelas análises e respectivos das grandes cidades, foi previamente instruído
diagnósticos que enfatizam os aspectos desagrega- pelo jornalista: “Quero que o senhor diga como a
dores do processo tais como o colapso do sistema cidade de São Paulo está mal, uma catástrofe, nada
de transporte, as deficiências do saneamento bási- funciona etc.; que diga também como, em geral, as
co, a falta de moradia, a concentração e desigual cidades vão mal, com problemas de insegurança,
distribuição dos equipamentos, o aumento dos contaminação, falta de moradia, proliferação de
índices de poluição, da violência. Com base em bairros marginais, pois em todas as cidades há
variáveis e indicadores sociais, econômicos e grandes problemas.”2
demográficos, este é o quadro geralmente apli- Essa perspectiva, em que pesem seu apelo e
cado às grandes cidades do mundo subdesen- rendimento para abarcar todo e qualquer transtor-
volvido ou, de acordo com o atual eufemismo, no, de enchentes a situações de risco e violência,
dos países emergentes. passando pela perda de contatos e vínculos mais
Uma outra visão, geralmente referida a me- personalizados, evidentemente não esgota o leque
trópoles do primeiro mundo, projeta cenários de possibilidades de análise das questões urbanas
marcados por uma feérica sucessão de imagens, contemporâneas: há outros recortes em que as di-
resultado da superposição e conflitos de signos, ferenças entre determinado tipo de cidades situa-
simulacros, não-lugares, redes e pontos de encon- das em regiões desenvolvidas e suas congêneres
tro virtuais. Esta é a cidade que se delineia a partir no mundo subdesenvolvido cedem espaço para al-
da análise de alguns semiólogos, arquitetos, críticos gumas semelhanças. Esta é a perspectiva, por
pós-modernos, identificada como o protótipo da so- exemplo, de Jordi Borja, que utiliza o conceito de
ciedade pós-industrial. “cidade mundial”; outros, como Saski Sassen (1998,
No primeiro caso, apresenta-se uma linha de 1999) preferem a expressão “cidades globais”.3
continuidade onde fatores desordenados de cres- Tanto num caso como no outro essa deno-
cimento acabam por produzir inevitavelmente o minação alude ao papel que tais cidades ocupam
caos urbano; no segundo, enfatiza-se a ruptura, numa economia altamente interdependente: sedes
conseqüência de saltos tecnológicos que tornam de conglomerados multinacionais, pólos de insti-
obsoletas não só as estruturas urbanas anteriores tuições financeiras, produtoras e/ou distribuidoras
como as formas de comunicação e sociabilidade a de determinados serviços, informações e imagens,
elas correspondentes; o caos, aqui, é semiológico. elas constituem os nós da ampla rede que tam-
Um, fruto do capitalismo selvagem; a outra, mais bém já é conhecida, num mundo globalizado,
identificada com o capitalismo tardio. como “sistema mundial”. Sua influência, desta for-
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ma, faz-se sentir muito além das respectivas fron- Essa visão tem como base uma nova forma de
teiras físico-administrativas e nacionais. planejamento urbano, conhecido por “planejamen-
Aqui as questões são de outra ordem: todas to estratégico” que, entre outras medidas, prevê
essas cidades, num certo plano, assemelham-se parcerias entre o poder público e o setor privado
não apenas pelas funções que exercem, mas pelos com vistas a projetos de renovação urbana. Uma
equipamentos e instituições que possibilitam seu das propostas mais difundidas dessa visão tem
exercício Assim, supõe-se que uma “cidade global” como foco áreas centrais buscando a revitalização
seja servida por uma rede de hotelaria de padrão de espaços degradados e a recuperação, com no-
internacional, um sistema de transporte seletivo, vos usos, de edificações e equipamentos “históri-
sofisticadas agências de serviços especializados, cos” ou “vernaculares” (Zukin, 2000), de forma a
sistemas e empresas de informação de ponta. Sas- atrair novos moradores, usuários e freqüentadores.
kia Sassen (1999) fala, além da globalização, em Esse processo, conhecido como gentrification
“digitalização”, para caracterizar o processo que (enobrecimento, requalificação), propõe uma
produziu as cidades globais. nova dinâmica, principalmente para os centros das
Chama a atenção o fato de que essa tecnolo- cidades, pois, além de adequá-los como lugares de
gia, que permite contato imediato e troca de infor- consumo, inaugura uma nova modalidade de con-
mações on line, não significou o enfraquecimento sumo cultural, isto é, o “consumo do lugar”.
das cidades. Sassen, a propósito, distingue dois Tais propostas são identificadas, por alguns,
tipos de informação: de um lado, aquele meramen- como parte da tendência “pós-moderna” no urba-
te constituído por dados, esses sim, disponíveis de nismo e na arquitetura; há, entretanto, quem retire
e para qualquer ponto do mundo, desde que este- do termo pós-modernidade qualquer determinação
jam devidamente plugados; e, de outro, o processo positiva, por considerá-lo vazio, incapaz de intro-
de sua interpretação, avaliação e discernimento, duzir uma ruptura com relação à sua antecessora,
que exige atores reais: pessoal qualificado, empre- ou seja, a modernidade: tanto uma como outra não
sas especializadas dos mais variados serviços seriam alternativas, mas, de acordo com Otília
como apoio jurídico, consultoria etc., compondo o Arantes, “passos unificados de um mesmo proces-
que a autora chama de “infra-estrutura social para so de ajuste da sociedade às reviravoltas que dá o
a conectividade global” (idem). capitalismo para continuar o que sempre foi, e de
Alguns exemplos logo vêm à mente, como cujas metamorfoses a paisagem urbana é a fachada
protótipos dessa dinâmica: Nova York, em primeiro mais visível”, (1998, pp. 12-13). A autora tem tam-
lugar, Londres, Tókio e, além disso, numa segunda bém uma visão bastante crítica tanto em relação ao
ordem de grandeza, Los Angeles (Davis, 2001), que fenômeno da globalização, como às propostas de
resume e concentra as vantagens e os problemas revitalização urbana induzidas por esse processo:
desse tipo de cidade – algumas de cujas caracterís-
ticas podem ser encontradas em outras metrópoles, Essa mundialização do capital, para chamar a coi-
sa pelo seu verdadeiro nome, que é econômica,
ainda que situadas em países menos desenvolvi-
tecnológica, midiática, gera descompassos, segre-
dos.4 Barcelona, outro caso bastante difundido de gações, guetos multiculturais e multirraciais, ao
cidade global, exemplifica uma característica par- mesmo tempo em que desterritorializações anár-
ticular dessa tipologia: a busca e o investimento quicas, crescimentos anômalos e transgressivos
numa “marca” local distintiva. Pois, se de um lado [...]. Além do mais, as novas tendências estruturais
supõe-se que essas cidades dispõem de uma in- de crise da regulação social e de desmonte dos
Estados nacionais transformam os alegados valo-
fra-estrutura peculiar – o que termina por equali-
res locais em mercadorias a serem igualmente
zá-las –, de outro, é fundamental que cada uma consumidas e recicladas na mesma velocidade em
apresente um elemento diferencial, de forma a que se move o capital. Em linhas gerais, esse é o
torná-la competitiva na atração de capitais, de nó da renovação urbana em andamento tanto nos
mão-de-obra especializada, na realização de even- países afluentes quanto, com mais razão ainda, na
tos internacionais etc. periferia (1998, pp. 187-188).
o
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Em obra coletiva mais recente (2000), essas direção no fluxo transnacional por onde transitam
críticas são retomadas e acrescidas das análises pessoas, mercadorias e recursos: não poucas ve-
de Carlos Vainer e Ermínia Maricato. O primeiro zes esse fluxo termina fortalecendo costumes e
volta-se especificamente e com uma leitura mais instituições tradicionais num dos pólos, aquele
técnica para o planejamento estratégico, modelo constituído pela longínqua aldeia de origem.
difundido no Brasil por algumas agências multila- Mas o propósito aqui não é discutir a ordem
terais (BIRD, Habitat) e consultores internacionais, internacional e sim delimitar um campo onde se
sobretudo catalães, com base na da experiência possam apreciar alternativas de análise voltadas
de Barcelona, já mencionada.5 para a dinâmica urbana contemporânea. Por certo a
Segundo Vainer, este modelo de planejamen- discussão é alentada e há muito mais estudos sobre
to é inspirado em conceitos e técnicas oriundos a realidade das grandes cidades que os apresen-
do planejamento empresarial, e sua adoção pelos tados aqui, mas algumas pistas encontradas nos
governos locais justifica-se pelo fato de as cidades autores escolhidos já permitem estabelecer um
estarem submetidas às mesmas injunções que as contraponto à proposta que será desenvolvida no
empresas. A questão urbana, nessa visão, deve ser presente trabalho.
lida na chave da competitividade: competir por in-
vestimentos de capital, tecnologia e competência
gerencial; competir por atração de novas indús- O olhar etnográfico: de perto e de dentro
trias e negócios; competir por atração de força de
trabalho qualificada. Tomando em conjunto esse debate em torno
O texto de Ermínia Maricato, mais militante, da questão urbana com suas propostas e também
critica o uso de termos como “cidade global”, “cida- críticas que vêm constituindo, desde há algum
de mundial” e “planejamento estratégico”, os quais tempo, a pauta de inúmeros encontros de cúpula
qualifica como modismos; em contrapartida, tem e seminários de organizações internacionais e
um apreciação mais positiva a respeito do planeja- também não governamentais,6 podem ser destaca-
mento de inspiração modernista, justamente por dos alguns pontos em comum.
seu caráter “holístico”, como afirma, contraposto à Em primeiro lugar, observa-se a ausência dos
fragmentação da visão pós-moderna. É afirmativa: atores sociais. Tem-se a cidade como uma entidade
declara-se em prol de um urbanismo socialmente à parte de seus moradores: pensada como resulta-
includente e democrático, propondo uma junção do de forças econômicas transnacionais, das elites
entre “plano de ação” e “orçamento participativo”. locais, de lobbies políticos, variáveis demográficas,
Finalmente, nessa mesma linha crítica, cabe interesse imobiliário e outros fatores de ordem
citar o trabalho de Ana Cristina Fernandes (2001), macro; parece um cenário desprovido de ações,
para quem as novas políticas públicas voltadas atividades, pontos de encontro, redes de sociabi-
para a valorização do plano local (sejam cidades ou lidade. Quando muito, faz-se referência a alguma
regiões) devem ser pensadas à luz dos interesses performance – arte pública – que parecia ser a
de três agentes: organismos multilaterais juntamen- única forma de intervenção capaz de alterar ou, ao
te com instituições de consultoria internacional, menos, produzir algum momentâneo estremeci-
corporações transnacionais e elites locais. mento, para deleite de uns poucos e indiferença da
Essa discussão, por sua vez, não é estranha maioria que passa ao largo de tais experimentos, a
à antropologia. Há autores que enfatizam os efei- julgar pela repercussão de alguns deles na cidade
tos homogeneizadores do sistema mundial sobre de São Paulo.7
culturas locais, também creditando tal influência à A bem da verdade, não é propriamente a au-
“grande narrativa da dominação ocidental”, con- sência de atores sociais que chama a atenção, mas
forme a expressão usada por Marshall Sahlins para a ausência de certo tipo de ator social e o papel de-
designar essa leitura (1997, p. 15). Nesse artigo, o terminante de outros. Em algumas análises, a dinâ-
autor mostra, todavia, com base em etnografias re- mica da cidade é creditada de forma direta e ime-
centes, que não há uma só lógica nem uma única diata ao sistema capitalista; mudanças na paisagem
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urbana, propostas de intervenção (requalificação, São Paulo, não há uma, mas várias centralidades
reciclagem, restauração), alterações institucionais (Frúgoli, 2000) e, em vez de se procurar (em vão)
não passam de adaptações às fases do capitalismo um princípio de ordem que garanta a dinâmica da
que é erigido, na qualidade de variável indepen- cidade como um todo, mais acertado é tentar iden-
dente, como a dimensão explicativa última e total. tificar essas diferentes centralidades e os múltiplos
Neste caso, quando aparecem atores sociais, ordenamentos que nelas e a partir delas ocorrem.
são os representantes do capital e das forças do Pois os atuais grandes centros urbanos não
mercado: financistas, agentes do setor imobiliário, podem ser considerados simplesmente como ci-
investidores privados. Personagens como os “ani- dades que cresceram demais – daí suas mazelas e
madores culturais” – consultores, arquitetos, artistas distorções. A própria escala de uma megacidade
e demais intelectuais – também se fazem presentes impõe uma modificação na distribuição e na forma
mas a serviço dos interesses do capital, como de seus espaços públicos, nas suas relações com o
“profissionais caudatários”, para usar a expressão espaço privado, no papel dos espaços coletivos e
empregada por Arantes (1998). nas diferentes maneiras por meio das quais os
Já os moradores propriamente ditos, que, agentes (moradores, visitantes, trabalhadores, fun-
em suas múltiplas redes, formas de sociabilidade, cionários, setores organizados, segmentos excluí-
estilos de vida, deslocamentos, conflitos etc., dos, “desviantes” etc.) usam e se apropriam de cada
constituem o elemento que em definitivo dá vida uma dessas modalidades de relações espaciais.
à metrópole, não aparecem, e quando o fazem, é Para além da nostalgia pela “velha rua mo-
na qualidade da parte passiva (os excluídos, os derna” de Berman (1989, p. 162) ou do “balé das
espoliados) de todo o intrincado processo urba- calçadas” de Jane Jacobs (1992, p. 50), certamente
no.8 Nas leituras mais militantes, por certo, esses haveria que se perguntar se o exercício da cidada-
atores são recuperados, mas como sujeitos de es- nia, das práticas urbanas e dos rituais da vida pú-
tratégias políticas como o orçamento participativo, blica não teriam, no contexto das grandes cidades
um “urbanismo socialmente includente”, associa- contemporâneas, outros cenários: para tanto, é ne-
ções de vários tipos etc. cessário procurá-los com uma estratégia adequada.
Sem ignorar a contribuição da ação engaja- É o que se propõe com a antropologia, por
da e organizada, no entanto, há uma gama de prá- meio do método etnográfico. As grandes cidades
ticas que não são visíveis na chave de leitura da certamente são importantes para análise e reflexão,
política (ao menos de uma certa visão de políti- não apenas porque integram o chamado sistema
ca): é justamente essa dimensão que a etnografia mundial e são decisivas no fluxo globalizado e
ajuda a resgatar. A incorporação desses atores e na destinação dos capitais, mas também porque
de suas práticas permitiria introduzir outros pon- concentram serviços, oferecem oportunidades
tos de vista sobre a dinâmica da cidade, para além de trabalho, produzem comportamentos, deter-
do olhar “competente” que decide o que é certo minam estilos de vida – e não apenas aqueles
e o que é errado e para além da perspectiva e in- compatíveis com o circuito dos usuários “solven-
teresse do poder, que decide o que é conveniente tes”, do grande capital, freqüentadores da rede
e lucrativo. hoteleira, de gastronomia e de lazer que seguem
Finalmente, não obstante terem as cidades padrões internacionais.
globais como o referente para suas análises, alguns A presença de migrantes, visitantes, morado-
desses estudos tomam como pressuposto um res temporários e de minorias; de segmentos dife-
tipo de cenário da vida pública ainda preso ao pro- renciados com relação à orientação sexual, identi-
tótipo e a dimensões da cidade da alta Idade Média ficação étnica ou regional, preferências culturais e
européia ou mesmo da cidade-estado antiga, cuja crenças; de grupos articulados em torno de op-
centralidade era simbolizada e garantida por algu- ções políticas e estratégias de ação contestatórias
mas instituições que dominavam o espaço público. ou propositivas e de segmentos marcados pela
Ora, num aglomerado contíguo com mais de dez exclusão – toda essa diversidade leva a pensar
milhões de habitantes, como é o caso da cidade de não na fragmentação de um multiculturalismo
o
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atomizado, mas na possibilidade de sistemas de da especificidade do conhecimento proporcionado


trocas de outra escala, com parceiros até então pelo modo de operar da etnografia e que – de
impensáveis, permitindo arranjos, iniciativas e ex- acordo com a hipótese que está sendo trabalhada
periências de diferentes matizes. – permite-lhe captar determinados aspectos da di-
É evidente que não há como negar todos nâmica urbana que passariam desapercebidos, se
aqueles problemas apontados nos diagnósticos enquadrados exclusivamente pelo enfoque das
com base em inúmeros e consistentes estudos e visões macro e dos grandes números.
comprovados também pela própria experiência A revisão de algumas tentativas para “cercar”
do dia-a-dia nas grandes cidades, nem, evidente- a especificidade da etnografia pode ser revelado-
mente, as injunções dos interesses das grandes ra: Peirano (1995), por exemplo, fala em “resíduos”
corporações transnacionais e das elites locais nos – certos fatos que resistem às explicações habituais
sistemas decisórios sobre o ordenamento urbano e só vêm à luz em virtude do confronto entre a teo-
e sua influência nas condições de vida da popula- ria do pesquisador e as idéias nativas; Goldman
ção. Mas a pergunta que ainda paira é: isso é (2001) refere-se à “possibilidade de buscar, através
tudo? Este cenário degradado esgota o leque das de uma espécie de ‘desvio etnográfico’, um ponto
experiências urbanas? Não seria possível chegar a de vista descentrado”;11 há que lembrar ainda os
outras conclusões, desvelar outros planos mudan- “anthropological blues” de Da Matta (1974) e a ex-
do este foco de análise, de longe e de fora, com pressão “experience-near versus experience-dis-
base em outros métodos e instrumentos de pes- tant” usada por Geertz (1983).
quisa,9 como os da antropologia, por exemplo? À sua maneira – com ênfases diferentes –
É bem verdade que esta disciplina, como se cada uma dessas paráfrases, entre outras, deixam
sabe, elaborou seus métodos de investigação a entrever alguns núcleos de significado recorrentes:
partir principalmente do estudo de sociedades de- o primeiro deles é uma atitude de estranhamento
dicadas à coleta, à caça, à agricultura de subsis- e/ou exterioridade por parte do pesquisador em
tência e cujo modo de vida tem como base outras relação ao objeto, a qual provém da influência de
formas de assentamento que não a cidade; por sua cultura de origem e dos esquemas conceituais
conseguinte, as estratégias da pesquisa etnográfi- de que está armado e que não é descartada pelo
ca, à primeira vista, não a credenciariam para fato de estar em contato com outra cultura e ou-
deslindar as complexidades da cidade contempo- tras explicações, as chamadas “teorias nativas”. Na
rânea, imersa no sistema globalizado. verdade, essa co-presença, a atenção em ambas é
Entretanto, é também consenso que a antro- que acaba provocando a ambigüidade, a possibili-
pologia não se define por um objeto determinado: dade de uma solução não prevista, um olhar des-
mais do que uma disciplina voltada para o estudo centrado, uma saída inesperada.
dos povos primitivos ela é, como afirma Merleau- Por outro lado, essa experiência tem efeitos
Ponty, “a maneira de pensar quando o objeto é no pesquisador: ela o “afeta” (Goldman, 2001);
‘outro’ e que exige nossa própria transformação. “transforma” (Merleay-Ponty, 1984), produz-se
Assim, também viramos etnólogos de nossa pró- “nele” e, no limite, “converte” (Peirano, 1995). O
pria sociedade, se tomarmos distância com rela- pesquisador não apenas apreende o significado
ção a ela” (1984, pp. 199-200).10 do arranjo do nativo, mas ao perceber esse signi-
Essa questão da “distância” como condição ficado e conseguir descrevê-lo agora nos seus ter-
para a análise antropológica, assim como outras, mos (dele, analista), é capaz de atestar sua lógica
correlatas – a relação sujeito/objeto, colocar-se ou e incorporá-la de acordo com os padrões de seu
não no lugar do outro, dar voz ao nativo, o caráter próprio aparato intelectual e até mesmo de seu
da participação na observação participante, a auto- sistema de valores. Segundo Merleau-Ponty, “trata-
ria do texto etnográfico – já rendeu muita discussão se de construir um sistema de referência onde pos-
e não será retomada aqui. Mas há um ponto que sam encontrar lugar o ponto de vista do indígena,
vale a pena identificar porque tem implicações o do civilizado e os erros de um sobre o outro,
para o argumento deste artigo: trata-se da natureza, construir uma experiência alargada que se torne,
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em princípio, acessível para homens de um outro A proposta de uma etnografia urbana


país e de um outro tempo” (1984, p. 199).
Num nível mais geral essa experiência tem A mudança de foco que a perspectiva antro-
como condição o pressuposto de que ambos, pes- pológica possibilita, principalmente em função do
quisador e nativo, participam de um mesmo pla- método etnográfico, tem a vantagem de evitar
no: o dos “fenômenos fundamentais da vida do aquela dicotomia que opõe, no cenário das gran-
espírito” (Lévi-Strauss, 1971, p. 28). Ambos são des metrópoles contemporâneas, o indivíduo e as
dotados dos mesmos processos cognitivos que megaestruturas urbanas.
lhes permitem, numa instância mais profunda, Essa polarização, presente em algumas das
uma comunhão para além das diferenças cultu- posturas aqui expostas, pontua muitas análises e
rais. Afinal, “as milhares de sociedades que exis- diagnósticos sobre a cidade contemporânea e pode
tem ou existiram sobre a superfície da terra são ser identificada mais claramente nos conhecidos
humanas e por esse título participamos delas de discursos do senso comum sobre despersonaliza-
maneira subjetiva: poderíamos ter feito parte de- ção, massificação, solidão etc., motes muito difun-
las e portanto podemos tentar compreendê-las didos e sempre à mão quando se quer discorrer so-
como se fôsssemos parte delas” (idem, p. 26). bre os problemas dos grandes centros urbanos:
Por último cabe assinalar que o método et-
nográfico não se confunde nem se reduz a uma Em meio à multidão, o indivíduo está só. Ele cru-
técnica; pode usar ou servir-se de várias, confor- za diariamente com centenas de pessoas que não
me as circunstâncias de cada pesquisa; ele é antes conhece. Essas pessoas vivem no mesmo meio,
um modo de acercamento e apreensão do que um mas não convivem. A mesma metrópole produz as
conjunto de procedimentos. Ademais, não é a ob- massas e isola o indivíduo. Nesse contexto surgem,
sessão pelos detalhes que caracteriza a etnografia, especialmente na literatura, temas que questionam
mas a atenção que se lhes dá: em algum momen- a perda dos laços sociais tradicionais e apontam a
to, os fragmentos podem arranjar-se num todo banalização da vida nas grandes cidades.12
que oferece a pista para um novo entendimento.
Uma afirmação como essa, que evoca vagos
Em suma: a natureza da explicação pela via
“laços sociais tradicionais”, mas que passa ao lar-
etnográfica tem como base um insight que permite
go das possibilidades e das alternativas que a vida
reorganizar dados percebidos como fragmentários,
informações ainda dispersas, indícios soltos, num cosmopolita propicia, desconhece a existência de
novo arranjo que não é mais o arranjo nativo (mas grupos, redes, sistemas de troca, pontos de encon-
que parte dele, leva-o em conta, foi suscitado por tro, instituições, arranjos, trajetos e muitas outras
ele) nem aquele com o qual o pesquisador iniciou mediações por meio das quais aquela entidade
a pesquisa. Este novo arranjo carrega as marcas abstrata do indivíduo participa efetivamente, em
de ambos: mais geral do que a explicação nati- seu cotidiano, da cidade.
va, presa às particularidades de seu contexto, A simples estratégia de acompanhar um des-
pode ser aplicado a outras ocorrências; no entan- ses “indivíduos” em seus trajetos habituais revelaria
to, é mais denso que o esquema teórico inicial um mapa de deslocamentos pontuado por contatos
do pesquisador, pois tem agora como referente o significativos, em contextos tão variados como o do
“concreto vivido”. trabalho, do lazer, das práticas religiosas, associati-
Assim, o que se propõe inicialmente com o vas etc. É neste plano que entra a perspectiva de
método etnográfico sobre a cidade e sua dinâmica perto e de dentro, capaz de apreender os padrões
é resgatar um olhar de perto e de dentro capaz de de comportamento, não de indivíduos atomiza-
identificar, descrever e refletir sobre aspectos ex- dos, mas dos múltiplos, variados e heterogêneos
cluídos da perspectiva daqueles enfoques que, conjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana
para efeito de contraste, qualifiquei como de fora transcorre na paisagem da cidade e depende de
e de longe. seus equipamentos.
o
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Se a perspectiva que classifico de perto e de atores sociais, o grupo e a prática que estão sendo
dentro está associada à etnografia, não é toda estudados e, de outro, a paisagem em que essa
proposta de pesquisa com base na antropologia prática se desenvolve, entendida não como mero
ou referida ao método etnográfico que busca esse cenário, mas parte constitutiva do recorte de aná-
tipo de conhecimento. Existe, por exemplo, uma lise. É o que caracteriza o enfoque da antropologia
modalidade que caracterizo como de passagem: ela urbana, diferenciando-o da abordagem de outras
consiste em percorrer a cidade e seus meandros disciplinas e até mesmo de outras opções no inte-
observando espaços, equipamentos e personagens rior da antropologia.
típicos com seus hábitos, conflitos e expedientes,
deixando-se imbuir pela fragmentação que a suces-
são de imagens e situações produz. O relato final, O pressuposto da totalidade
geralmente na forma de ensaio, termina por ex-
pressar essa experiência por meio do uso de metá- Há, entretanto, uma questão prévia: qual se-
foras que serão tanto mais sugestivas quanto maior ria, na estratégia proposta, a unidade de análise?
a criatividade do analista e o leque de relações que A cidade em seu conjunto ou cada prática cultu-
estabelecer: “hibridização”, “porosidades”, “territo- ral em particular? Ou, nos termos de uma dicoto-
rialidades flexíveis”, “não-lugares”, “configurações mia mais conhecida, trata-se de antropologia da
espaço-temporais”, “paisagens disjuntivas” e outras. cidade ou na cidade?
Sem diminuir a importância das vantagens Para introduzir essa questão, convém retomar
que essa estratégia de pesquisa pode proporcio- um ponto comum às abordagens até aqui apresen-
nar é preciso também estar atento a algumas con- tadas: a maioria dos estudos que classifico como
seqüências que tal profusão terminológica e a olhar de fora e de longe dá pouca relevância
multiplicidade de categorias a elas associadas po- àqueles atores sociais responsáveis pela trama
dem acarretar: quando ainda presas ao plano da que sustenta a dinâmica urbana; quando apare-
metáfora, é possível que terminem duplicando, cem, são vistos através do prisma da fragmenta-
no texto, a heterogeneidade percebida na expe- ção, individualizados e atomizados no cenário
riência inicial.13 Um desafio para todos os que impessoal da metrópole.
têm a cidade contemporânea como tema de estu- Entretanto, contrariamente às visões que privi-
do é, pois, o de construir modelos analíticos mais legiam, na análise da cidade, as forças econômicas,
econômicos que evitem o risco de se reproduzir, a lógica do mercado, as decisões dos investidores e
no plano de um discurso interpretativo, a frag- planejadores, proponho partir daqueles atores so-
mentação pela qual as grandes metrópoles são ciais não como elementos isolados, dispersos e sub-
muitas vezes representadas na mídia, nas artes metidos a uma inevitável massificação, mas que,
plásticas, na fotografia e em intervenções artísti- por meio do uso vernacular da cidade (do espaço,
cas no espaço público.14 dos equipamentos, das instituições) em esferas do
Em todo caso, em vez de um olhar de pas- trabalho, religiosidade, lazer, cultura, estratégias de
sagem, cujo fio condutor são as escolhas e o tra- sobrevivência, são os responsáveis por sua dinâmi-
jeto do próprio pesquisador, o que se propõe é ca cotidiana. Postulo partir dos atores sociais em
um olhar de perto e de dentro, mas a partir dos seus múltiplos, diferentes e criativos arranjos cole-
arranjos dos próprios atores sociais, ou seja, das tivos: seu comportamento, na paisagem da cidade,
formas por meio das quais eles se avêm para não é errático mas apresenta padrões.
transitar pela cidade, usufruir seus serviços, uti- Partir das regularidades, dos padrões e não
lizar seus equipamentos, estabelecer encontros e das “dissonâncias”, “desencontros”, “hibridizações”
trocas nas mais diferentes esferas – religiosida- como condição da pesquisa supõe uma contrapar-
de, trabalho, lazer, cultura, participação política tida no plano teórico: a idéia de totalidade como
ou associativa etc. pressuposto. Não se trata, evidentemente, daquela
Esta estratégia supõe um investimento em totalidade que evoca um todo orgânico, funcional,
ambos os pólos da relação: de um lado, sobre os sem conflitos; tampouco se trata de uma totalida-
DE PERTO E DE DENTRO: NOTAS PARA UMA ETNOGRAFIA URBANA 19

de que coincide, no caso da cidade, com os seus der contar com o objeto da pesquisa no interior de
limites político-administrativos: em se tratando de limites demarcados. Uma incursão pela etnologia
São Paulo, por exemplo, é impensável qualquer indígena pode esclarecer: se uma delimitação espa-
pretensão de etnografia de uma área de 1.525 km2 cial concreta – a aldeia, o acampamento, uma por-
ocupada por cerca de doze milhões de pessoas. ção definida do território, a jusante ou a montante
No entanto, renunciar a esse tipo de totalidade de tal ou qual rio – é imprescindível para fundar a
não significa embarcar no extremo oposto: um observação etnográfica, outros recortes, contudo,
mergulho na fragmentação. Se não se pode deli- mais amplos, são mobilizados para situar, avaliar,
mitar uma única ordem, isso não significa que não comparar o detalhe das etnografias. Assim, referên-
há nenhuma; há ordenamentos particularizados, cias como “paisagem amazônica”, “terras baixas sul-
setorizados; há ordenamentos, regularidades. americanas” e outras, presentes nos textos de etno-
Uma primeira representação de totalidade, logia indígena, permitem determinar recorrências e
como pressuposto da etnografia, é aquela forneci- padrões de troca e comunicação mais amplos nos
da pela clássica visão de uma comunidade em planos da cosmologia, do xamanismo, da mitologia,
que os membros se conhecem, mantém relações dos rituais etc.: sem essa passagem corre-se o risco
face-a-face, estão ligados por padrões de troca in- de ficar preso aos estreitos limites de um estudo de
terpessoais etc.: caso. A questão da totalidade coloca-se, dessa ma-
neira, em múltiplos planos e escalas.
[...] defendo que os conhecimentos dos antropólo-
Uma segunda característica da totalidade
gos sociais têm uma qualidade especial, devido à
área onde exercitam sua imaginação artística. Essa como pressuposto da etnografia diz respeito à du-
área é o espaço vivo de alguma pequena comuni- pla face que apresenta: de um lado, a forma como
dade de pessoas que vivem juntas em circunstân- é vivida pelos atores sociais e, de outro, como é
cias em que a maior parte de suas comunicações percebida e descrita pelo investigador.
diárias depende diretamente da interação. Isto não Numa conhecida passagem da “Introdução à
abrange toda a vida social humana, muito menos obra de Marcel Mauss”, em que Lévi-Strauss mostra
abrange toda a história humana. Mas todos os seres
de que maneira elementos de natureza muito dife-
humanos gastam grande parte das suas vidas em
contextos desta espécie (Leach, 1989, pp. 50-51). rente podem chegar a se articular num fato social,
e que só sob esta forma podem ter uma significa-
A essa perspectiva podem-se agregar as co- ção global, transformando-se numa totalidade, o
nhecidas passagens – a de Evans-Pritchard, “da por- autor afirma que a garantia de que tal fato “corres-
ta da minha barraca podia ver o que acontecia no ponda à realidade e não seja uma simples acumu-
acampamento ou aldeia” (1978 [1940], p. 20) e a de lação arbitrária de detalhes mais ou menos certos”
Malinowski, “no meu passeio matinal pela aldeia, é que seja conhecido no interior de uma experiên-
podia observar detalhes íntimos da vida familiar [...]” cia concreta, desde um plano mais social, localiza-
(1978, p. 21). Não obstante as críticas que recebe- da no tempo e no espaço, até o plano do indivíduo
ram de autores pós-modernos, essas imagens per- (Lévi-Strauss, in Mauss, 1971, p. 24).
manecem associadas a situações de pesquisa não só Para ficar no campo da antropologia urbana,
no contexto das “sociedades de pequena escala”: quem já estudou terreiros de candomblé, grupos
continuam tentadoras para circunscrever o entorno de jovens, escolas de samba, torcidas organizadas
de uma pesquisa com personagens identificados e de futebol etc. sabe muito bem que nestes e em
conhecidos, no interior de fronteiras bem definidas. outros casos análogos há uma totalidade vivamen-
Em outro trabalho (Magnani, 2000, p. 20) discuti sua te experimentada tanto como recorte de fronteira
aplicação no cenário das grandes cidades contem- quanto como código de pertencimento pelos inte-
porâneas, caracterizando-a justamente com a ex- grantes do grupo. Tomando como exemplo a ca-
pressão “a tentação da aldeia”. tegoria de pedaço que expus em outros trabalhos,
Mas se um recorte bem estabelecido é condi- é também evidente, por parte de seus integrantes,
ção para o bom exercício da etnografia, a exigência uma percepção imediata, clara, sem nuanças ou
de totalidade vai além dessa necessidade de se po- ambigüidades a respeito de quem é ou não é do
o
20 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

pedaço: é uma experiência concreta e compartilha- reconhecimento de sua presença empírica, na


da. O analista, por sua vez, também percebe tal forma de arranjos concretos e efetivos por parte
experiência e a descreve: essa modalidade parti- dos atores sociais, e podem também ser descritas
cular de encontro, troca e sociabilidade supõe a num plano mais abstrato. Neste caso, constituem
presença de elementos mínimos estruturantes que uma espécie de modelo, capaz de ser aplicado a
a tornam reconhecível em outros contextos. contextos distintos daquele em que foram inicial-
Assim, uma totalidade consistente em ter- mente identificados. São, portanto, resultado do
mos da etnografia é aquela que, experimentada e próprio trabalho etnográfico, que reconhece os ar-
reconhecida pelos atores sociais, é identificada ranjos nativos mas que os descreve e trabalha num
pelo investigador, podendo ser descrita em seus plano mais geral, identificando seus termos e arti-
aspectos categoriais: para os primeiros, é o con- culando-os em sistemas de relações. A noção de
texto da experiência, para o segundo, chave de pedaço, por exemplo, supõe uma referência espa-
inteligibilidade e princípio explicativo. Posto que cial, a presença regular de seus membros e um có-
não se pode contar com uma totalidade dada a digo de reconhecimento e comunicação entre eles.
priori, postula-se uma a ser construída a partir da Esta, aliás, é a primeira de uma série de ca-
experiência dos atores e com a ajuda de hipóteses tegorias que terminaram conformando uma “fa-
de trabalho e escolhas teóricas, como condição mília” terminológica – pedaço, trajeto, mancha,
para que se possa dizer algo mais que generalida- pórtico, circuito – e surgiu no contexto de uma
des a respeito do objeto de estudo. pesquisa sobre lazer na periferia de São Paulo.15
Portanto, aqueles dois planos a que se fez Contrariamente a uma visão corrente, para a
alusão anteriormente – o da cidade em seu con- qual o lazer era uma questão de pouca relevân-
junto e o de cada prática cultural assignada a este cia no cotidiano dos trabalhadores, o que se
ou àquele grupo de atores em particular – devem constatou por meio da observação de campo foi
ser considerados como dois pólos de uma relação um amplo e variado leque de usos do tempo li-
que circunscrevem, determinam e possibilitam a vre nos finais de semana dos bairros de periferia:
dinâmica que se está estudando. circos, bailes, festas de batizado, aniversário e ca-
Para captar essa dinâmica, por conseguinte, é samento, torneios de futebol de várzea, quermes-
preciso situar o foco nem tão de perto que se con- ses, comemorações e rituais religiosos, excursões
funda com a perspectiva particularista de cada de farofeiros, passeios etc. Eram, evidentemente,
usuário e nem tão de longe a ponto de distinguir modalidades simples e tradicionais, que não ti-
um recorte abrangente, mas indecifrável e despro- nham o brilho e a sofisticação das últimas novi-
vido de sentido. Em outros termos, nem no nível dades da indústria do lazer, nem apresentavam
das grandes estruturas físicas, econômicas, institu- conotações políticas ou de classe explícitas, mas
cionais etc., nem no das escolhas individuais: há estavam profundamente vinculadas ao modo de
planos intermediários onde se pode distinguir a pre- vida e às tradições dessa população.
sença de padrões, de regularidades. E para identifi- Observando mais de perto as regras que pre-
car essas regularidades e poder construir, como re- sidem o uso do tempo livre por intermédio dessas
ferência, algum tipo de totalidade no interior da qual formas de lazer, verificou-se que sua dinâmica ia
seu significado possa ser apreciado, é preciso contar muito além da mera necessidade de reposição das
com alguns instrumentos, algumas categorias de forças despendidas durante a jornada de trabalho:
análise, como será discutido a seguir. representava, antes, uma oportunidade, por meio
de antigas e novas formas de entretenimento e en-
contro, de estabelecer, revigorar e exercitar aquelas
A família de categorias regras de reconhecimento e lealdade que garantem
uma rede básica de sociabilidade.
Essas totalidades são identificadas e descri- Por outro lado, essas modalidades de lazer
tas por categorias que apresentam, conforme já tampouco constituíam um todo indiferenciado,
afirmado, um duplo estatuto: surgem a partir do disponível e desfrutável por todos, de forma alea-
DE PERTO E DE DENTRO: NOTAS PARA UMA ETNOGRAFIA URBANA 21

tória: havia uma ordem. Era possível distinguir, As características desses equipamentos defi-
por exemplo, formas de entretenimento caracte- nidores de fronteiras (bares, lanchonetes, salões,
rísticas de homens, por oposição às de mulheres; campo de futebol etc.) mostravam que o território
de crianças versus de adultos; de rapazes e moças, assim delimitado constituía um lugar de passagem
e assim por diante. e encontro. Entretanto, não bastava passar por
Tomando como ponto de partida o espaço esse lugar ou mesmo freqüentá-lo com alguma re-
onde eram praticadas, foi possível distinguir um gularidade para ser do pedaço; era preciso estar si-
sistema de oposições cujos primeiros termos são tuado (e ser reconhecido como tal) numa peculiar
“em casa” versus “fora de casa”. No primeiro deles, rede de relações que combina laços de parentes-
“em casa”, estavam aquelas formas de lazer associa- co, vizinhança, procedência, vínculos definidos
das a ritos que celebram as mudanças significativas por participação em atividades comunitárias e des-
no ciclo vital e tinham como referência a família, portivas etc. Assim, era o segundo elemento – a
ou seja, festas de batizado, aniversário, casamento rede de relações – que instaurava um código capaz
etc. O segundo termo da oposição, “fora de casa”, de separar, ordenar e classificar: era, em última
subdividia-se, por sua vez, em “na vizinhança” e análise, por referência a esse código que se podia
“fora da vizinhança”. O primeiro englobava locais dizer quem era e quem não era “do pedaço” e em
de encontro e lazer – bares, lanchonetes, salões de que grau (“colega”, “chegado”, “xará” etc.).
baile, salões paroquiais e terreiros de candomblé Essa categoria, nativa, acabou transcendendo
ou umbanda, campos de futebol de várzea, o circo o locus de sua aplicação originária e, a partir de
etc. – que se situavam nos limites da vizinhança. um diálogo com outras propostas, como a repre-
Estavam, portanto, sujeitos a uma determinada for- sentada pela oposição rua versus casa de Rober-
ma de controle, do tipo exercido por gente que se to Da Matta, passou a ser usada para designar um
conhece de alguma maneira – seja por morar per- tipo particular de sociabilidade e apropriação do
to, seja por utilizar os mesmos equipamentos, espaço urbano.
como ponto de ônibus, telefone público, armazém, Segundo a conhecida fórmula damattiana,
farmácia, centro de saúde, quadra de esportes, têm-se dois planos, cada qual enfeixando de for-
quando disponíveis. ma paradigmática uma série de atitudes, valores e
Quando o espaço – ou um segmento dele – comportamentos, uma delas referida ao público e,
assim demarcado torna-se ponto de referência a outra, ao privado. O pedaço, porém, apontava
para distinguir determinado grupo de freqüenta- para um terceiro domínio, intermediário entre a
dores como pertencentes a uma rede de relações, rua e a casa: enquanto esta última é o lugar da fa-
recebia o nome de “pedaço”: mília, à qual têm acesso os parentes e a rua é dos
estranhos (onde, em momentos de tensão e am-
O termo na realidade designa aquele espaço in- bigüidade, recorre-se à fórmula “você sabe com
termediário entre o privado (a casa) e o público, quem está falando?” para delimitar posições e
onde se desenvolve uma sociabilidade básica, marcar direitos), o pedaço é o lugar dos colegas,
mais ampla que a fundada nos laços familiares,
dos chegados. Aqui não é preciso nenhuma inter-
porém mais densa, significativa e estável que as
relações formais e individualizadas impostas pela pelação: todos sabem quem são, de onde vêm,
sociedade (Magnani, 1998, p. 116). do que gostam e o que se pode ou não fazer.
Desta forma, uma categoria nativa termi-
Uma primeira análise mostrou que essa no- nou sendo descrita em termos mais formais, o
ção era formada por dois elementos básicos: um que permitiu experimentar sua aplicação em ou-
de ordem espacial, física – configurando um ter- tros contextos.
ritório claramente demarcado ou constituído por Até então o contexto era o bairro na perife-
certos equipamentos – e outro social, na forma ria de São Paulo. A questão levantada em Festa no
de uma rede de relações que se estendia sobre Pedaço, contudo, resultou em novo projeto de
esse território. pesquisa16 e a primeira pergunta foi sobre o que
o
22 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

aconteceria em outras partes do território urbano moradia, pela vizinhança, mas o “efeito pedaço”
– as regiões centrais, por exemplo –, de um modo continua: venham de onde vierem, o que buscam
geral caracterizadas pelo anonimato e pela impes- é um ponto de aglutinação para a construção e o
soalidade nas relações e percorridas por gente de fortalecimento de laços. Quando jovens negros
várias procedências. Como se estabelecem, aí, as saem de suas casas e dirigem-se a esse seu pedaço
redes de sociabilidade, já não marcadas por rela- localizado no Centro Comercial Presidente17 não o
ções de vizinhança ou por práticas compartilha- fazem, necessariamente, com o objetivo de dar um
das no horizonte do dia-a-dia? “trato no visual” ou comprar discos, vão até lá para
Não foi difícil reconhecer a existência de pe- encontrar seus iguais, exercitar-se no uso dos códi-
daços em regiões centrais da cidade, quando se gos comuns, apreciar os símbolos escolhidos para
tratava de áreas marcadamente residenciais: a ló- marcar as diferenças. É bom estar lá, “rola um papo
gica era a mesma. Em outros pontos, porém, usa- legal”, fica-se sabendo das coisas... e é assim que
dos principalmente como lugares de encontro e essa rede da sociabilidade vai sendo tecida.
lazer, havia uma diferença com relação à idéia ori- Portanto, se a categoria pedaço revelou-se
ginal de pedaço: aqui, diferentemente do que útil para descrever uma forma de sociabilidade
ocorria no contexto da vizinhança, os freqüenta- em outro contexto que não o de sua origem, no
dores não necessariamente se conheciam – ao âmbito da vizinhança e do bairro foi preciso,
menos não por intermédio de vínculos construí- como se viu, proceder a alguns ajustes.
dos no dia-a-dia do bairro – mas sim se reconhe- Mas a incursão pelo centro iria mostrar ou-
ciam como portadores dos mesmos símbolos que tros padrões de uso e ordenação do espaço. Exis-
remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de te uma forma de apropriação quando se trata de
consumo e modos de vida semelhantes. lugares que funcionam como ponto de referência
O componente espacial do pedaço, ainda para um número mais diversificado de freqüenta-
que inserido num equipamento ou espaço de dores. Sua base física é mais ampla, permitindo a
mais amplo acesso, não comporta ambigüidades circulação de gente oriunda de várias procedên-
desde que esteja impregnado pelo aspecto simbó- cias e sem o estabelecimento de laços mais estrei-
lico que lhe empresta a forma de apropriação ca- tos entre eles. São as manchas, áreas contíguas do
racterística. Um trecho do relatório de pesquisa espaço urbano dotadas de equipamentos que
torna clara essa idéia: marcam seus limites e viabilizam – cada qual com
sua especificidade, competindo ou complemen-
[...] Nessa rua, [24 de maio] destaca-se uma das
tando – uma atividade ou prática predominante.
tantas galerias da região: Centro Comercial Presi-
dente, ocupada por lojas de discos “funk”, “disco”
Numa mancha de lazer, os equipamentos podem
e outros ritmos dançantes (Disco Mania Blacks, ser bares, restaurantes, cinemas, teatros, o café da
Truck’s Discos), além de outros serviços como ca- esquina etc., os quais, seja por competição seja
beleireiros “black” (Gê Curl Wave, Almir Black por complementação, concorrem para o mesmo
Power, Gueto Black Power) que reforçam a parti- efeito: constituir pontos de referência para a prá-
cular gramática de sua ocupação característica: é tica de determinadas atividades. Já uma mancha
um pedaço negro que aglutina rapazes e moças
caracterizada por atividades ligadas à saúde, por
em torno de algumas marcas de negritude como
determinada estética, música, ritmo, freqüência a
exemplo, geralmente se constitui em torno de
shows e danceterias (Chic Show. Zimbabwe, Ski- uma instituição do tipo âncora – um hospital –,
na Club etc.) (“Os Pedaços da Cidade”, relatório agrupando os mais variados serviços (farmácias,
de pesquisa, p. 52). clínicas particulares, serviços radiológicos, labora-
tórios etc.), e assim por diante.
Gangues, bandos, turmas, galeras exibem – As marcas dessas duas formas de apropria-
nas roupas, nas falas, na postura corporal, nas pre- ção e uso do espaço – pedaço e mancha – na pai-
ferências musicais – o pedaço a que pertencem. sagem mais ampla da cidade são diferentes. No
Neste caso, já não se trata de espaço marcado pela primeiro caso, em que o fator determinante é
DE PERTO E DE DENTRO: NOTAS PARA UMA ETNOGRAFIA URBANA 23

constituído pelas relações estabelecidas entre seus não contíguas: esta é uma primeira aplicação da
membros (como resultado do manejo de símbolos categoria: na paisagem mais ampla e diversificada
e códigos), o espaço como ponto de referência é da cidade, trajetos ligam equipamentos, pontos,
restrito, interessando mais a seus habitués. Com manchas, complementares ou alternativos.
facilidade muda-se de ponto, quando então se Outra aplicação é no interior das manchas.
leva junto o pedaços. Tendo em vista que elas supõem uma presença
A mancha, ao contrário, sempre aglutinada mais concentrada de equipamentos, cada qual con-
em torno de um ou mais estabelecimentos, apre- correndo, à sua maneira, para a atividade que lhe
senta uma implantação mais estável tanto na dá a marca característica, os trajetos, nelas percor-
paisagem como no imaginário. As atividades que ridos, são de curta extensão, na escala do andar: re-
oferece e as práticas que propicia são o resultado presentam escolhas ou recortes no interior daquela
de uma multiplicidade de relações entre seus equi- mancha, entendida como uma área contígua.
pamentos, edificações e vias de acesso, o que ga- Assim, a idéia de trajeto permite pensar tanto
rante uma maior continuidade, transformando-a, uma possibilidade de escolhas no interior das man-
assim, em ponto de referência físico, visível e pú- chas como a abertura dessas manchas e pedaços
blico para um número mais amplo de usuários. em direção a outros pontos no espaço urbano e,
Diferentemente do que ocorre no pedaço, por conseqüência, a outras lógicas. Sem essa aber-
para onde o indivíduo se dirige em busca dos tura corre-se o risco de cair numa perspectiva reifi-
iguais, que compartilham os mesmos códigos, a cadora, restrita e demasiadamente “comunitária” da
mancha cede lugar para cruzamentos não previs- idéia de pedaço – com seus códigos de reconheci-
tos, para encontros até certo ponto inesperados, mento, laços de reciprocidade, relações face-a-face.
para combinatórias mais variadas. Numa determi- Afirmou-se que pedaço é aquele espaço interme-
nada mancha sabe-se que tipo de pessoas ou ser- diário entre a casa (o privado) e o público ou, para
viços se vai encontrar, mas não quais, e é esta a utilizar um sistema de oposições já consagrado,
expectativa que funciona como motivação para entre casa e rua. Não é, contudo, um espaço fe-
seus freqüentadores. chado e impermeável a uma e outra, ao contrário.
A cidade, contudo, não é um aglomerado de É a noção de trajeto que abre o pedaço para fora,
pontos, pedaços ou manchas excludentes: as pes- para o âmbito do público.
soas circulam entre eles, fazem suas escolhas en- Os trajetos levam de um ponto a outro por
tre as várias alternativas – este ou aquele, este e meio dos pórticos. Trata-se de espaços, marcos e va-
aquele e depois aquele outro – de acordo com zios na paisagem urbana que configuram passa-
uma determinada lógica. Mesmo quando se diri- gens. Lugares que já não pertencem à mancha de
gem a seu pedaço habitual, no interior de deter- cá, mas ainda não se situam na de lá; escapam aos
minada mancha, seguem caminhos que não são sistemas de classificação de uma e outra e, como
aleatórios. Está-se falando de trajetos. tal, apresentam a “maldição dos vazios fronteiri-
O termo trajeto surgiu da necessidade de se ços”.18 Terra de ninguém, lugar do perigo, preferido
categorizar uma forma de uso do espaço que se por figuras liminares e para a realização de rituais
diferencia, em primeiro lugar, daquele descrito mágicos – muitas vezes lugares sombrios que é pre-
pela categoria pedaço. Enquanto esta última, ciso cruzar rapidamente, sem olhar para os lados...
como foi visto, remete a um território que funcio- Há, por fim, a noção de circuito. Trata-se de
na como ponto de referência – e, no caso da vida uma categoria que descreve o exercício de uma
no bairro, evoca a permanência de laços de família, prática ou a oferta de determinado serviço por
vizinhança, origem e outros –, trajeto aplica-se a meio de estabelecimentos, equipamentos e espa-
fluxos recorrentes no espaço mais abrangente da ços que não mantêm entre si uma relação de con-
cidade e no interior das manchas urbanas. É a ex- tigüidade espacial, sendo reconhecido em seu
tensão e, principalmente, a diversidade do espaço conjunto pelos usuários habituais: por exemplo, o
urbano para além do bairro que colocam a neces- circuito gay, o circuito dos cinemas de arte, o cir-
sidade de deslocamentos por regiões distantes e cuito neo-esotérico, dos salões de dança e shows
o
24 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

black, do povo-de-santo, dos antiquários, dos mais, incluindo ou não os terreiros de ascendên-
clubblers e tantos outros. cia angola e até os de umbanda; saindo do terre-
Retomando, para melhor diferenciar: ainda no propriamente religioso, o circuito pode
que pedaço e mancha tenham em comum uma abranger a capoeira, as escolas de samba, os afo-
referência espacial bem delimitada, a relação do xés e também escolas de dança, exposições de
pedaço com o espaço é mais transitória, pois arte africana, restaurantes, e assim por diante.
pode mudar-se de um ponto a outro sem se dis- Em cada um desses recortes está-se em con-
solver, já que seu outro componente constitutivo tato com o mesmo sistema simbólico e de trocas
é o simbólico, em razão da forte presença de um – continua sendo o universo do povo-de-santo –
código comum. Já a mancha – delineada pelos mas a cada ampliação (ou redução) do âmbito,
equipamentos que se complementam ou compe- sem que se perca a referência com um campo re-
tem entre si no oferecimento de determinado conhecido pelos usuários, está-se trabalhando
bem ou serviço – apresenta uma relação mais es- com questões diferentes, definidas de acordo
tável com o espaço e é mais visível na paisagem: com os propósitos, as perguntas e a literatura
é reconhecida e freqüentada por um círculo mais acionada da pesquisa.
amplo de usuários. As aplicações a outros temas de pesquisa
A noção de circuito também designa um podem multiplicar-se: assim, na minha pesquisa
uso do espaço e de equipamentos urbanos – sobre neo-esoterismo urbano (Magnani, 1999),
possibilitando, por conseguinte, o exercício da tema em que a fragmentação parecia ser a nor-
sociabilidade por meio de encontros, comuni- ma, pude descrever vários circuitos derivados do
cação, manejo de códigos –, porém de forma circuito neo-esotérico principal. Um deles é o
mais independente com relação ao espaço, sem circuito do xamanismo urbano (idem, 2000) que
se ater à contigüidade, como ocorre na mancha pode incluir xamãs indígenas, psicólogos, tera-
ou no pedaço. Mas tem, igualmente, existência peutas corporais, ayahuasqueiros, fitoterapeutas
objetiva e observável: pode ser levantado, e, com relação aos espaços, articula consultórios
descrito e localizado. na cidade com sítios nos arredores da capital
Em princípio, faz parte do circuito a totali- paulistana (para os rituais) e contatos em outras
dade dos equipamentos que concorrem para a regiões do país (Chapada Diamantina, dos Vea-
oferta de tal ou qual bem ou serviço, ou para o deiros etc.) e do exterior.
exercício de determinada prática, mas alguns Rosani Rigamonte (2001) mostrou que a
deles acabam sendo reconhecidos como ponto de cultura nordestina na cidade de São Paulo se
referência e de sustentação à atividade. Mais do apóia num circuito que inclui não apenas as co-
que um conjunto fechado, o circuito pode ser nhecidas Casas do Norte e os forrós tradicionais,
considerado um princípio de classificação. Nesse mas também pequenas cidades do interior baia-
sentido, é possível distinguir um circuito principal no como Piripá, Barrinha, Condeúba, as quais,
que engloba outros, mais específicos: o circuito entre outras, recebem considerável revoada de
dos acupunturistas ou o dos astrólogos, por exem- nordestinos já morando em São Paulo por oca-
plo, fazem parte do circuito principal neo-esotéri- sião das festas juninas. Sua inclusão no circuito
co e com ele mantém contatos, vínculos e trocas. não se dá como uma referência distante e nostál-
Por outro lado, o circuito comporta vários gica, mas como pólo efetivo num sistema de tro-
níveis de abrangência e a delimitação de seu cas de longo alcance, pois envolve, ademais, um
contorno depende das perguntas colocadas pelo particular mecanismo de envio de cartas, dinhei-
pesquisador. O povo-de-santo na cidade, como ro e bens de consumo durante todo o ano, por
mostrou Rita de Cássia Amaral (2000), tem seu meio de uma rede paralela de transporte. Seu
circuito e seu modo de vida, mas é possível, por ponto de partida e chegada é uma praça na zona
exemplo, dependendo dos objetivos da pesqui- norte da capital, a praça Silvio Romero que, nas
sa, delimitar e considerar apenas o circuito das manhãs de domingo, transforma-se num pedaço
casas africanizadas, ou estendê-lo para as de- nordestino, freqüentada por quem pretende en-
DE PERTO E DE DENTRO: NOTAS PARA UMA ETNOGRAFIA URBANA 25

viar encomendas a seus familiares ou deles espe- nea: nesse plano, a unidade de análise da antro-
ra alguma notícia. pologia urbana seria constituída pelas diferentes
Bruna Mantese, em sua pesquisa sobre os práticas e não pela cidade como uma totalidade
straight edge, mostra que o circuito desse seg- ou uma forma específica de assentamento, confi-
mento da cena punk hardcore estabelece uma gurando o que se entende antes por antropologia
conexão com o dos Hare Krishna e que, em vez na cidade e não – ao menos não ainda – como
de essa aproximação servir como exemplo de uma antropologia da cidade.
mais uma “dissonância” na metrópole, apresenta Para identificar essas práticas e seus agentes,
um consistente padrão de troca, com base num foi proposta uma estratégia que recebeu a deno-
interesse comum (ainda que por motivações dife- minação de um olhar de perto e de dentro, em con-
rentes, religiosas num caso, políticas em outro) traste com visões que foram classificadas como de
entre esses dois grupos, aparentemente tão dis- fora e de longe. Ao partir dos próprios arranjos de-
tantes: o vegetarianismo.19 senvolvidos pelos atores sociais em seus múltiplos
Este é, pois, um procedimento que permite contextos de atuação e uso do espaço e das estru-
encarar o problema do “caos semiológico”, aquela turas urbanas, este olhar vai além da fragmentação
impressão que se tem cada vez que se isola um que, à primeira vista, parece caracterizar a dinâmi-
determinado indivíduo confrontando-o diretamen- ca das grandes cidades e procura identificar as re-
te com a cidade; nessas condições, é inevitável a gularidades, os padrões que presidem o compor-
sensação de anonimato, fragmentação, desordem. tamento dos atores sociais. Supõe recortes bem
Essa impressão, como já foi dito, é o efeito de um
delimitados que possibilitam o costumeiro exercí-
olhar de longe e de fora; ajustando-se devidamen-
cio da cuidadosa descrição etnográfica.
te o foco da análise, contudo, é possível perceber
Identificar essas práticas significa que o re-
os diferentes circuitos que o usuário reconhece e
corte escolhido faz sentido tanto para os próprios
percorre ao estabelecer seus próprios trajetos, seja
atores como para o analista: trata-se de uma tota-
nos planos profissional, do lazer, do consumo, das
lidade empiricamente definida, mas que, capaz de
práticas devocionais, das estratégias de sobrevi-
ter os elementos que os estruturam reconhecíveis
vência e participação e muitos outros.
como padrões, pode ser descrita, formalizada,
constituindo um modelo mais geral. Aponta para
Conclusão uma lógica que transcende o contexto original,
com poder descritivo e explicativo.
Como propósito mais geral, este trabalho Desenvolvi algumas categorias que descre-
postulava que a antropologia tinha uma contribui- vem as formas como podem se apresentar alguns
ção específica para o entendimento das questões desses recortes na paisagem urbana – pedaço,
urbanas contemporâneas, diferenciando-se, por mancha, trajeto, circuito – procurando mostrar as
meio do enfoque etnográfico, das abordagens de possibilidades que abrem para identificar diferen-
outras perspectivas e disciplinas. Essa proposta tes situações da dinâmica cultural e da sociabilida-
previa também uma delimitação no amplo e vago de na metrópole: a noção de pedaço evoca laços
campo conhecido como “antropologia das socie- de pertencimento e estabelecimentos de fronteiras,
dades complexas”, reservando a denominação de mas pode estar inserida em alguma mancha, de
antropologia urbana stricto sensu para o estudo de maior consolidação e visibilidade na paisagem;
grupos sociais e suas práticas quando propriamen- esta, por sua vez, comporta vários trajetos como
te inscritos na trama da cidade, isto é, articulados resultado das escolhas que propicia a seus fre-
na e com a paisagem, equipamentos ou institui- qüentadores. Já circuito, que aparece como uma
ções urbanas, considerados não um mero cenário, categoria capaz de dar conta de um regime de tro-
mas uma parte constitutiva dessas práticas. cas e encontros no contexto mais amplo e diversi-
Trata-se de uma primeira aproximação à ficado da cidade (e até para fora dela), pode en-
complexidade da dinâmica urbana contemporâ- globar pedaços e trajetos particularizados.
o
26 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

Como se vê, essas categorias não se excluem ríodo de pesquisa com bolsa PQ (2001). Agradeço a
e são justamente as passagens e articulações entre Piero Leirner, Rita de Cássia Amaral e Luiz Henrique
seus domínios que permitem levar em conta, no de Toledo, do Núcleo da Antropologia Urbana
(NAU), pela leitura da primeira versão, comentários
recorte da pesquisa, as escalas das cidades e os di-
e sugestões.
ferentes planos da análise. Elas constituem uma
gramática que permite classificar e descrever a 2 Borja, (1995, p. 11). Prossegue o depoimento: [...]
“Respondi-lhe: sim, é verdade, mas interessa-me
multiplicidade das escolhas e os ritmos da dinâmi-
mais ver que tipo de respostas é possível dar a es-
ca urbana não centrados na escolhas de indiví- ses problemas. Então já não lhe interessou a entre-
duos, mas em arranjos mais formais em cujo inte- vista e a desmarcou. Já estávamos esperando na
rior se dão essas escolhas. porta do estúdio para começar e mesmo assim a
As grandes metrópoles contemporâneas não desmarcou” [tradução minha].
podem ser vistas simplesmente como cidades que 3 Outro conceito afim é o de “cidades-regiões glo-
cresceram demais e desordenadamente, potencia- bais”. Cf. Scott, J. Allen et al., 2001.
lizando fatores de desagregação. Elas também 4 Ver, por exemplo, o contraponto feito por Caldeira
propiciaram a criação de novos padrões de troca (2000) entre Los Angeles e São Paulo. Marques e
e de espaços para a sociabilidade e para os rituais Torres (2000), entretanto, discutem a pertinência da
da vida pública. De pouco vale generalizar o de- aplicação da categoria “cidade global” ao caso de
saparecimento da velha rua, tida como símbolo São Paulo e sua posição relativa no sistema mundial
de cidades.
por antonomásia do espaço público, nem se limi-
tar a proclamar que sua função foi ocupada pelas 5 Integram o grupo dos catalães, entre outros, Jordi
Borja e Manuel de Forn e, em certa medida, tam-
“tiranias da intimidade” ou por zonas desprovidas
bém Manuel Castells.
de sociabilidade: se em determinados contextos
ficou inviável como suporte de antigos usos, a ex- 6 Entre outros, a Eco 92, no Rio de Janeiro, e a Habi-
tat II, realizada em Istambul, Turquia, de 4 a 14 de
periência da vida pública a que está associada
junho de 1996. Em São Paulo podem ser citados o
pode ser encontrada em novos arranjos. Um de- encontro em que Jordi Borja proferiu a conferência
terminado segmento do circuito de lazer, articu- La Ciudad Mundial, o “Encontro Centro XXI” orga-
lando pontos distantes na cidade, é tão real e sig- nizado pela Associação Viva o Centro (São Paulo),
nificativo para seus usuários, quanto a vizinhança em 1994, como etapa preparatória para o Seminário
no contexto do bairro. Internacional Centro XXI. E “Cultura e cidade: Semi-
nário Brasil-Alemanha”, realizado no Instituto Goe-
No entanto, cabe reafirmar, por fim, que a the de São Paulo, de 7 a 9 de junho de 2000, que
meta é seguir em busca de uma lógica mais geral. contou com a participação de pesquisadores da
Do olhar de perto e de dentro, próprio da etnogra- USP, Unicamp, UNB e, entre as instituições alemãs,
fia, para um olhar distanciado, em direção, aí sim, a Universidade de Hannover, a Universidade de
a uma antropologia da cidade, procurando desve- Berlim e a Fundação Bauhaus.
lar a presença de princípios mais abrangentes e 7 Foi muito festejada, na mídia, a intervenção com
estruturas de mais longa duração. É somente por raio laser no Viaduto do Anhangabaú, por ocasião
referência a planos e modelos mais amplos que se de uma das etapas do projeto “Arte e cidade” , em
1996, e que, por alguns segundos, projetava a ima-
pode transcender, incorporando-o, o domínio em gem do transeunte num imenso painel, dando-lhe
que se movem os atores sociais, imersos em seus momentâneo destaque, retirando-o do “anonimato
próprios arranjos, ainda que coletivos. da multidão”. Ora, bastaria acompanhar um pouco
mais esse mesmo transeunte em seu trajeto para
perceber a rede de relações (trabalho, devoção, la-
zer, vizinhança etc.) a que está integrado.
NOTAS
8 Note-se que mesmo na análise de Sharon Zukin, o
1 Este artigo tem como base uma comunicação que “vernacular” é, por definição, o elemento dominado
apresentei no I Ciclo de Seminários do Centro de da paisagem, sempre modelada pelas instituições
Estudos da Metrópole, em agosto de 2001 no Ce- detentoras do poder (2000, p. 84).
brab, São Paulo, e o Relatório “Os caminhos da me- 9 Cabe aqui mais um esclarecimento: a escolha deste
trópole”, apresentado ao CNPq no final de um pe- enfoque não significa descartar estratégias e mode-
DE PERTO E DE DENTRO: NOTAS PARA UMA ETNOGRAFIA URBANA 27

los de análise abrangentes sobre a cidade com base 14 Cabe, contudo, uma ressalva: o fato de esta propos-
em técnicas de pesquisa que privilegiam dados ta empregar uma estratégia de pesquisa que impli-
quantitativos, documentais etc; ao contrário, penso ca deambular, deixando-se impregnar pelo “efeito
que são complementares e o foco aqui proposto ga- fragmentação”, não significa que a caminhada como
nha outra dimensão quando aliado às conclusões de tal deva ser descartada como técnica para o recolhi-
estudos conduzidos com outras metodologias, le- mento de um determinado tipo de dados; ao con-
vando-se em conta as questões que só podem ser trário, ela constitui valioso recurso para um primei-
levantadas por eles. ro levantamento da paisagem e seu entorno no
quais o objeto de estudo está inserido e com os
10 O termo que Merleau-Ponty usa é, na realidade, “et- quais mantém vínculos.
nologia”; é ainda comum, em determinados contex-
tos, a intercambiabilidade entre antropologia, etno- 15 Neste item retomo as categorias elaboradas à medi-
logia e etnografia. As distinções entre esses termos da que se avançava a pesquisa sobre a cidade, des-
variam e dependem de uma série de injunções, des- de Festa no pedaço (1984); alguns trechos foram
de as acadêmico-institucionais até as de tradições aproveitados de artigos e livros já publicados.
nacionais. Lévi-Strauss vincula a etnografia ao traba- 16 Esse projeto foi denominado “Os pedaços da cida-
lho de campo e a um recorte mais delimitado do ob- de “ e foi desenvolvido entre 1989 e 1990 na cida-
jeto de estudo, associando etnologia e antropologia
de de São Paulo , com apoio do CNPq e a partici-
ao estabelecimento de sínteses sucessivamente mais
pação dos integrantes do Núcleo de Antropologia
abrangentes. No entanto, afirma que “etnografia, et-
Urbana tanto na fase de coleta de dados como nas
nologia e antropologia não constituem três discipli-
discussões que se seguiam às idas a campo.
nas diferentes, ou três concepções dos mesmos es-
tudos. São, de fato, três etapas ou três momentos de 17 Ao lado do Teatro Municipal, no centro da cidade e
uma mesma pequisa e a preferência por este ou que abriga também um pedaço de roqueiros ligados
aquele destes termos exprime somente uma atenção à cena hardcore.
predominante voltada para um tipo de pesquisa que
não poderia nunca ser exclusiva dos dois outros” 18 Cf. C. N. Santos e A. Vogel (orgs.), 1985, p. 103, alu-
(Lévi-Strauss, 1991 [1954], p. 396). dindo à expressão the curse of border vacuums, tí-
tulo de um dos capítulos de Jacobs (1992, p. 257).
11 “Creio que uma outra possibilidade para a ‘antropo-
19 “O Movimento Straight Edge em São Paulo: metró-
logia das sociedades complexas’ é manter o foco tra-
pole, identidades e apropriações urbanas”, Projeto
dicional da disciplina nas instituições centrais da so-
de Iniciação Científica (PIBIC/USP/CNPq), agos-
ciedade estudada e buscar, através de uma espécie
to/2001 a julho/2002. Como a pesquisa vem reve-
de “desvio etnográfico”, um ponto de vista descen-
lando, de pouco vale apenas classificar esse grupo
trado. No caso da política, tratar-se-ia de encarar as
como mais uma “tribo urbana”; descrever seu circui-
representações nativas sobre os processos políticos
to significa identificar e explorar todas as suas cone-
dominantes como verdadeiras teorias políticas pro-
xões e sistemas de troca que, além da assinalada
duzidas por observadores suficientemente desloca-
dos em relação ao objeto para que possam produzir acima, envolve, por exemplo, contatos com grupos
visões realmente alternativas às dominantes, e de de estudo e ação anarquistas.
usar tais representações e teorias como guias para a
análise antropológica” (2001, p. 7). Essa preocupa-
ção, no campo antropológico, com o estudo das ins-
tituições centrais da sociedade, começa a sedimentar
reflexões mais sistemáticas, como ocorre no NUAP,
BIBLIOGRAFIA
Núcleo de Antropologia da Política, e também no AMARAL, Rita de Cássia. (2000), “O povo de san-
NAU (Núcleo de Antropologia Urbana da USP); para
to (e outros povos) comemora em São
este último caso, cf. Bevilaqua e Leirner (2000).
Paulo”, in J. Guilherme Magnani & Lilian
12 Trecho do editorial “Uma rede de solidão”, Folha de Torres, Na metrópole: textos de antropolo-
S. Paulo, 20 de fevereiro de 2000.
gia urbana, São Paulo, Edusp/Fapesp.
13 Ver, a propósito, a análise de Ulf Hannerz (1997) so-
bre três metáforas – fluxos, fronteiras e híbridos – ARANTES, Otília. (1998), Urbanismo em fim de li-
na antropologia que denomina de “transnacional”, nha. São Paulo, Edusp.
voltada para os estudos sobre a globalização. Para
uma polarização de dois estilos de etnografia, ver BERMAN, Marshal. (1989), Tudo que é sólido des-
a contraposição feita por Geertz (2001) entre Pierre mancha no ar. São Paulo, Companhia
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o
28 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

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o
166 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

DE PERTO E DE DENTRO: INSIDER AND A CLOSE-UP DE PRÈS ET DE L’INTÉ-


NOTAS PARA UMA ETNOGRA- VIEW: NOTES ON URBAN RIEUR: NOTES POUR UNE
FIA URBANA ETHNOGRAPHY ETHNOGRAPHIE URBAINE

José Guilherme Cantor Magnani José Guilherme Cantor Magnani José Guilherme Cantor Magnani

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Antropologia; Etnografia; Metrópole; Anthropology; Ethnography; Metro- Anthropologie; Ethnographie; Mé-
Cultura urbana; Circuito polis; Urban culture; Circuit tropole; Culture urbaine; Circuit

O texto busca pôr em relação duas By interrelating two lines of analy- Ce texte cherche à mettre en rapport
linhas de análise, uma sobre cidade sis, one having to do with the city deux courants d'analyse : celui consa-
e outra sobre etnografia. O objetivo and the other with ethnography, cré à la ville et celui consacré à l'eth-
é discutir as possibilidades que este this paper seeks to discuss possibi- nographie. Il a pour but de discuter
enfoque, próprio da antropologia, lities which are opened by an anth- les possibilités offertes par cette der-
abre para o estudo da dinâmica ur- ropological approach to the study nière, proprement anthropologique, à
bana. Tomando como ponto de par- of urban dynamics.Discussion of l'étude des dynamiques urbaines.
tida a apresentação de alguns qua- analytical charts for study of con- Partant de la présentation de quel-
dros analíticos sobre o fenômeno temporary urban phenomena al- ques cadres analytiques du phéno-
urbano contemporâneo, caracteriza- lows for a characterization of what mène urbain contemporain, caractéri-
dos como um “olhar de fora e de may be termed as an "outsider and sés par un "regard de l’extérieur et de
longe”, é desenvolvida a perspectiva long-distanced view". A contrasting loin", on y développe la perspective
da etnografia, chamada, por contras- "insider and close-up view" is outli- ethnographique appelée, par contras-
te, de um “olhar de perto e de den- ned.Theoretical presuppositions are te, "regard de près et de l’intérieur".
tro”. Explicitados os pressupostos explicated and research strategy is Les fondements théoriques de ce
teóricos que sustentam essa posi- proposed. As a way o demonstra- courant étant présentés, une stratégie
ção, é apresentada uma estratégia tion, recent ethnographic examples de recherche se présente, fondée sur
de pesquisa com base nessa argu- are used. Finally, it is suggested that ces arguments. Cette stratégie est en-
mentação para, finalmente, mostrar a "distanced" view may effectively suite utilisée sur des exemples eth-
seu uso em alguns exemplos etno- broaden and complement the pro- nographiques plus récents. Nous
gráficos mais recentes. O argumento posed perspective, making possible suggérons, finalement, qu’un regard
termina sinalizando que um olhar an articulated project involving well "éloigné" peut élargir et compléter
“distanciado” amplia e complementa delimited ethnographic research de- la perspective proposée, rendant
a perspectiva proposta, possibilitan- sign and more general levels and possible l'articulation d'un découpa-
do a articulação do recorte etnográ- models of analysis. ge ethnographique bien cerné et
fico, bem delimitado, com planos e des plans et modèles d'analyse plus
modelos mais gerais de análise. généraux.

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