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THe 6S ek ENSAIOS ATDEIA DE BRASIL MODERNO Octavio lant (Depio. de Citncias Socials — IFCH UNICAMP) Em cada época marcante da sua histé- fia, a sociedade brasileira tem sido levada a pensar-se novamente. E como se ela se debrugasse sobre si mesma: curiosa, inquie- ‘a, alonita, imaginosa. Nao s6 formulam- se novas interpretagées coma renovam-so as anteriores. Padem mesmo recriar-se idéias antigas, parecendo novas. Acontece que o presente problemati- co, dificil ou inovador, desafia o entendi- mento da sociodade, as explicacdes conhe- cidas. Ha influéncia de idéias. anteriores nas recentes. A originalidade destas nem sempre é plena. Multas vezes beneficiam- se de sugest6es, idéias e explicagdes pas- sadas, ainda que criticamente. E como se a partir de certas crises, rupturas, ou mes- mo revolucSes, as interpretagdes conhe gas envelhecessem. Podem ser substi das por outras; ou as antigas so recriadas, parecendo originals. Mas nao hé dévida de que quando se rompem um pouco, ou muilo, os vinculos entre 0 passado e 6 pre- sento, este € levado a pensar o novo, nova mente. A naga é levada a pensar-se por seus intelectuais, artistas, lideres, grupos, clas- ges, movimentos sociais, partidos politicos, correntes de opiniao piblica. As forgas so- ciais predominantes em cada época sao le- vadas a pensar 0s desafios com 08 quais se defrontam, os objetives que pretendem alcangar, 08 allados © opositores com os quais negociar, 0s interesses proprios € alheios que precisam interpretar. Ao pen- sar 0 presente, so obrigadas a repensar © passado, buscar e rebuscar continuida- des e inovagdes. Mesmo quando pretendem © futuro, so postas a pensar outra vez 0 passado, acomiedé-lo ao presente; ou até mesmo transtormd-lo em matriz do devir Q Brasil ja foi pensado de modo parti- cularmente abrangente em trés épocas. A partir da Declaracao de Independéncia de 1822, da Aboli¢io da Escravatura e da Pro- clamagio da Repiblica em 1888-1889 ¢ da Revolugdo de 1830. Naturalmente é con- tinua e reiterada a reflexdo sobre aspectos fundamentals e secundarios da sociedade nacional, As controvérsias entre grupos, clas- ses, movimentos sociais, partidos politicos @ corfentes de opiniao publica, compreen- dendo intelectuais, artistas. ¢ lideres, man- tom sempre em aberto os dilemas do pre- sente, das relagdes entre 0 passado © 0 presente, das possibilidades do futuro. Nas conjunturas eriticas, no entanto, quando ecorrem fupturas estruturais mais 19 20 AR TUG 6: $ ou menos ampias, ou mesmo revolugées, a naco é levada a pensar-se de novo, de modo mais abrangente, ariginal ou recar- rente. Umas vezes quer ser original, comecar tudo novamente. Qutras, nao quer sendo continuar recorrente. Em todos os casos, 6 a historia que esconde 0 segredo do pre- sente Acontece que a nacao ¢ real eimagina- ria. Localiza-se na historia e no pensamento. Estd no imagindrio de uns € outras: politi cos © escritores, trabalhadores do campo @ da cidade, brancos, negros, indios @ imi- grantes, cientistas socials, fiisofos e artistas. E seria muito outra, se nao se recriasse de quando em quando na interpretaco, fan- tasia, imaginacéo. 1. independéncia ou Morte Em 1822 o Brasil néio conseguiu entrar 1no ritmo da historia. A Declaracio de Inde- pendéncia, a Assembiéia Nacional Consti- tuinte, 05 confiftos com os portuqueses & as lutas populares no conseguiram lancar ‘© pais em um patamar mais avangado da histéria. As campanhas e os escritos de José Bonifacio, Bernardo Pereira de Vas- concelos, Frei Caneca e outros, bem como a5 rewoltas € revolugées populares, em diversas partes do pais, ndo provocaram a aboligtio do regime de trabalho escravo, a proclamacao da repdblica, o estabeleci- mento de garantias domoerdticas. Os movimentos e as idéias comprometidos com a Repiblica © a Democracia foram derrota- dos, contrelados ou simplesmente supri- midos. Acs poucos, 0 manta mondrquico recobriu muitas inquietagdes © desigualda- des, criando a ilusdo de que o poder moderador resolvia de forma benigna a maior parte dos problemas criados com 0 escravismo, as nacées indigenas, a quos- tao agréria, as diversidades regionals, Muitas inquietacées apagaram-se em dife- rentes lugares, dando lugar aos arranjos da conciliagae pelo alto. &® ENSAIOS Esse clima foi registrado por Bernardo Pereira de Vasconcelos. ‘Fui liberal, entaéo a liberdade era nova no pais e estava nas aspiracdes de todos, mas n4o nas leis, nao nas idéias préticas; o poder era tudo: fui libe- ral. Hoje, porém, ¢ diverso o aspecto da sociedade: os principios democratices tudo ganharam e muito comprometeram; a Sociedade, que ento corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganizacao e pela anarquia. Como entao quis, quero hoje Sorvila, @ por iste sou regressista. N&o sou ‘transfuga, néo abandeno a causa que defendo no dia de seus perigos, de sua fra- queza; deixc-~a no dia em que tao seguro €0 seu triunfo que até o excesso a compro- mete” *. © que prevaleceu foi o passado, a con widade colonial, 0 escravismo, 0 absolu- tismo. O modo pelo qual organizou-se o estado nacional garantiu a continuidade, conservantismo, a8 estruturas sociais her- dadas do colonialismo, o lusitanismo. Ao longo do século XIX, durante 0 Império, 0 Brasil permaneceu mais ou menos lusitano. Um lusitanismo subjacente ao regime monérquico, & casa real herdada de Portu- gal, & legitimidade mondrquica. Encontrou a formula monérquica como um modo de sgarantir a legitimidade de que necessitava 9 regime criado com a Independencia. As joreas que predominaram na organizacao do Primelro Reinado, das Regéncias e co Segundo Reinado garantiram a continui- dade, sob o regime monérquico: manto da legalidade metaférica herdada do colonia- lismmo absolutista. Eclaro que essa histéria se rompe em varios pontos. A Monarquia e os interesses que ¢la simbolizava foram postos.em causa pelos movimentos saciais locais, regionais © nacionais. E desatiados pela forca das pressées de interesses externes, principal- mente ingleses. Em meados do século XIX, as figuras dé Maua, Alves Branco ¢ Tavares Bastos, ARTLESG S$ entre muitos outros, expressaram as inquie- tacdes com um pais atrasado na corrente da histéria, anacrénico com) seu tempo. ‘Quisoram realizar reformas institucionais & sociais, de modo a jogar o pals mais perto do seu presente. Interpretando as suges- tes 6 osinteresses do capitalitma mundial, principalmente inglés, pip rain a modernizagae, naquele tempo denominada progress. ‘A Guerra do Paraguai foi mais um cho- que de ampias proporgées para 0 conjunto do pais, revelandona priticao.anacronismo de tudo que se sintetizava no escravismo na Monarquia. Todos os principais seto- res da vida nacional revelaram-se inade- quados para a ocasiao gs recursos econémicos, as instituigSes politioas, acapa- cidade militar, a subserviéncia 40s interesses. ingleses ete mostraram-se de imediato gra- ves, insuportaveis. Foi esse| 0 momento em que 0 regime monarquico € o regime de trabalho escravo revelaram|abertamente a sua inadequac&o. As forgas burguesas que germinaram por dentro ¢ por fora do escravismo e do manto mondrquico com- preenderam que cabia mudar alguma coisa. Beneficiam-se dos movimentos © partidos interessados em mudangas_no ambito da economia, politica, educ: cultura. A Convencio Republica, do initio dos anos 70, simboliza um pouco dessa transicae em curso. Uma transigao que ira efetivar- se mais abertamente a partir 1 1888-89. Essa uma parte importante da histé- ria.que $@ revola nos escritas elnas atuacdes de Tavares Bastos, Silvio Flomero, José Verissimo, Joaquim Nabuco,| Machado de Assis, Raul Pompéia e outros. Dedicaram- se a reflotir sobre 0 que era 0 século XIX brasileiro; ¢ como ele estava deslocado, atrasado, quando visto em contraponto.com ‘os paises capitalistas mais desenvolvidos € a partir das potencialidades das forcas sociais regionais e nacionais. Aproveitavam- se dos ensinamentos liberais, positivistas, evolucionistas, darninistas © outros, para estudar ¢ explicar o que era e como pode- fia transformar-se-a sociedade, a economia, a populacao, a cultura, o estado, a nagdo. Um pouco do ciima intelectual e social predominante na sociedade na segunda metade do século XIX foi registrado por José Verissimo. “O movimento de idéias que antes de acabada a primeira metade do século XIX se comegara a operar na Europa com o positivismo comtista, o trans- formismo darwinista, 0 evolucionismo spenceriano, 0 intolectualisme de Taine e Renan © quejandas correntes de pensa- mento, que, intiuindo na literatura, deviam por termo ao dominio exclusive do Roman- tismo, s6 se entrou a sentir no Brasil, pelo menos, vinte anos depois de verificada a sua influéncia ali. Sucessos de ordem poli- tica e social, e@ ainda de ordem geral, determinaram-the au facilitaram-ihe a mani- festagao aqui. Foram, entre outros, ou os principais: a Guerra do Paraguai, acordando © sentimento nacional, meio adormecida desde o fim das agitacdes revolucionarias conseqiientes. 4 Independéncia, ¢ das nos- a8 lulas no Prata; a questéo do elemento servil, comovende toda a nac&o, @ the des- pertante os brios contra a aviltante insti- tuicpdo consuetudinaria... Certos. efeitos inesperados da guerra do Paraguai, como © surdo conflito que, apenas acabada, sur- giu entre a tropa demasiado presumida do Seu papel e importancia e-0s profundos ins- tintos civilistas da monarquia, nao foram sem efeito neste momento da mentalidade nacional”?. Cabe actescentar a emergén- 1. Bernardo Pereira de Vasconcelos, citado por Euctides da Cunha, A Margem da Histéria, 6° edicto, Livre Lollo & mao Editores, Pore, 1946, p. 265. Consular também Carlos Guulherme Mota (Organ zador), 1822: Dimansdes, Editofa Perspective, S60 Paulo, 1972 2. Jase Verissima, Mistria da Literstura Bracilora 4" edi¢30, Universidade de Brasilia, Brasiia, 1963, . 249, 21 22 A RT 4 GOs € cia da propaganda republicana, influenciada pelo desenvolvimento das forgas socials intemas € pelas repercussées da queda das monarquias na Espanha em 1863 e Franca em 1870. A campanha republicana (teressou grandemente os intelectuais", principalmente ‘‘sua parte moca”. Favore- ceu 0 “livre pensamento"’, em especial o “anticatolicismo, por oposi¢aio & monarquia, oficinlmente catolica”” Todo 0 clima mental de amplos setores da Sociedade movimen- tou-se, modificou-se. ““Atuando simulta- neamente sobre 0 nosso entendimento € a nossa consciéncia, pela comogao causada nos ospiritos aptos para Ihes sofrer 0 abalo, estes diferentes sucessos produziram um salutar alvorogo, do qual evidentemente se ressentiu o nosso pensamentoe a nossa expressio literaria. As idéias, nem sempre coerentes, a5 vezes mesma desenconira- das daquele movimento, fautoras também nos acontecimentos socials ¢ politicos. apontados, chamamos aqui de moder- nas; expressamente de ‘‘pensamento moderno”# BN S Ay | G25 Eram evidentes o ecletismo, 0 anacro- nisme @ 0 exotisme, se pensamos nas convergéncias @ nos desencontros entre as idéias ¢ a realidade. A realidade social, econdmica, politica e cultural, com a qual Se defrontavam intelectuais, escritores, poli- ticas, governantes, profissionais liberais e sotores populares no se ajustava facil- mente 4s idéias e aos conceitos, 20s temas e as explicacdes, empresiados &s pressas de sistemas de pensamento elaborades em paises da Europa. Estava em curso uma fase importante no processo de cons- trug&io de um pensamento capaz de pensar a realidade nacional. “Os partidarios da modernizaeao, que atuavam na comuni- cade tradicional brasileira, neoessitavam urgente e desesperadamente de novos argumentos intelectuais para reforgar suas posicdes. Uma nova ideologia que reorgani- zasse e reexplicasse a natureza de seu ambiente social e institucional, ¢ que logi- camente ligasse seu trabalho a uma signifi- cativa meta, poderia ser emocionalmente satisfatéria © proporcionar-Ihes 20 mesmo tempo condicdes para arregimentar noves prosélitos. N&0 é de estranhar que esse grupo tenha vasculhado todos os recursos europeus & procura de concepgbes iteis a este propésito. € um erro considerd-tos, como algumas vezes tem sida feito, como um grupo de intelectuais alienados ¢ fembashacadns ante os eiiropeus, qr ade- ru meramente a determinado conceito apenas pelo prestigio de sua proveniéncia. E também apenas parcialmente certo dizer- se que eles nao entenderam o pleno sen- lida das idéias que colheram na Europa, pois, como eles os compreenderam, aque- les conceitos correspondiam exatamente ao que estavam procurando. Se assimilaram algumas vezes apenas a parte intelectual sem se preocupar com as referéncias do contexto, ou afinidade Iégica, como se bebessem vinho tinto com peixe, isto ocor- reu porque s6 necessitavam de certos pontos de sustentagda, podendo dar-se ao luxo de esquecer as belezas da consistén- cia do entendimento profundo ¢ da preci- ‘so intelectual. Na verdade. agiram com ‘surpreendente — embora inconsciente — habilidade, estabelecendo um. inteligente ‘eritério selotivo, pois antes de tudo adata- tam idéias que pudessem produzir os ofeitos desejados, atuando no processo de moder- nizagao no Brasil” Uma solucdo muito freqiente, no pen- samento e na pratica, era a combinacao de diversas correntes de idéias ¢ distintas praticas, em um singular amalgama de alguma eficdcia. Os desafios da realidade social eram, em altima instancia, uma refe- réncia constante, necessaria, decisiva. O que Bernardo Pereira de Vasconcelos havia registrado nos comecos da formagéo do estado nacional, Tavares Bastos expressou depois, ainda que em outros termos, em outro: contexte. “Conservador @ liberal, monarquista ¢ democrata, catélico e protes- tante, eutenho por base de todas as minhas convicg6es a contradic&o; néo a contrad- ¢S0 mais palavrosa do que inteligivel das antinomias de Proudhon, porém a contradi- go entre duas idéias que na aparéncia se repelem mas na realidade se completam, a contradigao, finalmente, que se resolve na harmonia dos contrastes. Eu deciaro francamente que n&o me sacrifico & Iégica das teorias extremas. Guio-me pelos fatos, combine 05 opostes, encadeio as analogias € construo a doutrina. Nao tenho um sis- tema preconcebido. Nao idolatro 0 prejuizo. ‘Ageito 9 sistema que os acontecimentos me impoem’** Vista nessa perspectiva, a Declaracao dé Independéncia arrastou-se pelo sdculo XIX. As mudangas socials, econémicas, 3. iid. p. 250. & EN Ss A | O'S politicas e culturais que ela implicava somente irdo completar-se varias décadas, muitas décadas apés, quando os regimes escravista e mondrquice entram em crise e terminam, Mas nessa época a historia mundial ja havia estabelecido outros ho zontos. Em fins do século XIX, os desafios eram distintes. Quande o pais conseguiu completar as mudancas que pareciam cabi- veis em 1822, 0 mundo capitalista ja comerava a ingressar no século XX. Ficava para tras 0 capitalismo competitive ¢ come- cava.a impor-se o monopolistico. Na pratica, © mundo acabava de ser repartide entre ag nag0esimporialistas. Poucos escapavam as infludncias dos interesses ingleses, fran- ceses, alemaes, holandeses, belgas, russos, Japoneses e norte-americanos. A emergén- cia do grande capital financeiro também inaugurava 0 século XX. Mas.ao fim do século XIX 0 Brasil ainda parecia viver no fim de século XVIN. As estruturas juridice-politicas © sociais torna- ram-se cada vez mais pesadas. Revelaram- se herangas carregadas de anacronismo. Eram evidentes 0s sinais de uma mentali- dade formada nos tempos do colonialismo portugués. A relagéo dos setores dominan- tes © do proprio govemo com a sociedade guardava os traces do colonialismo. Essa caracteristica era facilitada pela persisténcia do escravisme e da disperséo da populacao nos amplos espacos da socic- dade nacional. Ura Sociedade nao 56 muito ‘esgarcada, mas atravessada por diversida- des regionais © raciais, isto 6, sociais, econdmicas, politicas e culturals, que facilitavam 0 exercicio do mando 4. Richard Grahan, GriGretwnna e o Inicio da Modernizacao no Brasil, Trad. de Roberto Machado Ge ‘Almeida, Edtora Brasiliense, Sto Paul 4873, p. 241. Consultar também Enifia Viott da Costa, Da Monarquia & Repablica: Momentos Decisivos. Editorial Grijalbo, Sac Paulo, 1977. 5, A.C, Tavates Bastos, Cartas d0 Solitario, 8 ecigdi, Companhia Edilora Nacional, Sao Paulo, 1938, p. 181 23 24 eyes pelos detentores des instrumentos do Poder. A persisténcia do escravismo e os arti- ficios do manto monarquico configuravam. um poder estatal com as caracteristicas de uma administracao distante, estranha, alheia aos interesses populares. A legitimi dade alcancada pelos construtores do estado nacional, quando resolveram pelo regime monarquico, teve sempre o jeito de uma legitimidade imposta nao s6 polo alto, mas estrangeira,no sentido de indite- rente acs movimentos mais gerais da sociedade. 2. Ordem e Progresso Em 1888-89 0 Brasil tentou entrar no ritmo da histéria. Aboliu a Escravatura ¢ a Monarquia, proclamando a Replica ¢ 0 Trabalho Livre, Liberou foreas econémicas e politicas intoressadasina agricultura, indUs- tia e comércio. Favoreceu a imigracao de bragos para a lavoura, povoadores para as coldnias em terras devolutas e artesdos para a industria. Ao mesmo tempo, jogava a europeiza¢ao, ou no branqueamento da populacdo, para acelerar 0 esquecinento dos séculos de escravisma. Recebeu inclu- sive 0 que nao imaginava, em termos de ldslas socials, propostas singicalisias, anar- quistas, socialistas © outras. Houve uma ampla fermentacdo de idéias e movimentos sociais, principalmente nos.centros urbanos maiores e nas zonas agricolas mais ampla- mente articuladas com os mercados extermos. ‘As campanhas abolicionista ¢ republi- cana mobilizaram foreas. empenhadas em mudancas politicas ¢ sociais. Além dos obje- ivos humanitérios, quanto a0 términa do regime de trabalho escravo, abolicionistas € republicanos associaram-se na luta por conquistas. democréticas. Havia setores sotiais urbanos empenhados em democra- & BN Seas es Ss tizar 0 poder estatal ¢ as relacdes sociais. J4 era evidente, para muitos, a barreira representada pela antiga @ poderosa asso- ciagao de interesses escravacratas e mondrquicos. Mas 0 que venceu foi o into- resse da cafeicultura do Oeste Paulista, ‘em alianga com os des canavieiros, pecud- ria, seringais e outros, em diversas regiées do pais, Prevaleceram osinteresses de-seto- res burgueses emergentes, combinados ‘com os preexistentes, remanescentes. Predominaram a economia primaria ‘exportadora, a politica de governadores manejados pelo governo federal ¢ 0 patri- monialismo em assuntos privados e publicos. © liberalismo econdmico prevalecia nas relagdes econémicas extemas, nas quais sobressaia a Inglaterra. Nas relacdes inter- nas, entre setores dominantes e assala- riados, predominava o patrimonialismo. Um patrimonialismo que compreendia tanto 0 patriarcalisma da casa-grande € do sobrado como a mais brutal violéncia contra os movimentos populares no campo © cidade. A repressdo posta em pratica em Canudos, na Revolta da Vacina, no Con- testada e outros movimentos sociais, revelava algumas das possibilidades mais extremas de uma Republica simultaneamente liberal © patrimonial. Alguns aspectos dos acontecimentos simbolizados na extingo do regime de tra- batho escravo © no colapso do regime manarquico faram analisados por Caio Prado Junior. No ambito das continuidades que parecem prevalecer, ocorrem varias mudangas significativas. "No terreno eco- némico observaremos a eclosdo de um espirito que se no era novo, mantivera-se no entanto na sombra e em plano secundé- iO; @ ansia de enriquecimento, de prospe- Fidade material. Isto, na monarquia, nunca se tivera como um ideal legitimo e plena- mente reconhecide. O nove regime o consagrara. O contraste destas duas tases, anterior e posterior no advento republicano, RT A GOS se pode avaliar, entre outros sinais, pela posieo respectiva do homem de negacios, isto é, do individuo inteiramente voltado ‘com suas atividades e atengdes para 0 obje- tivo Gnico de enriquecer. No Império ele ndo representa senao figura de segundo plano, malvista aliés e de pequena conside- racao, A Republica olevara para uma posicao central @ culminante. A transformacao tera sido tao brusca e completa, que veremos as préprias classes e os mesmes individuos mais representativos da monarquia, dante ocupados unicamente com politica @ fun- Ses similares, ¢ no méximo com uma longinqua e sobranceira diregdo de suas propriedades rurais, mudados subitamente ‘em ativos especuladores © negocistas. Nin- guém escapara aos novos imperatives da época"’ =. Estava em marcha uma singular revo- lug pelo alto. Remanejavam-se pessoas, interesses, associagdes de grupos, diretri- zes no ambito do poder estatal. Mas pouco se alterava a propria sociedade, em suas relagdes.com o.poder estatal. Os diferentes getores populares, as reivindicacSes de tra- balhadores da cidade e do campo, as demandas de negros, mulatos, indios & caboclos ndo encontravam lugar nas. este- ras do poder. Modificavam-se um pouco & EN SAI OS os arranjos.do poder, das relagdes dos seto- res dominantes com os populares, do poder estatal com a Sociedade, para que nada ‘se transformasse substancialmente_ Estava em marcha a revolugée brasi- Ieira, a revolugae burguesa brasileira, que se desdabrard por décadas em manifesta- ges sociais, econémicas, politicas e culturais diversas, dispares e freqiientemente contra- ditérias. Essa é “uma revolugao lenta. mas segura e concertada, a Gnica que, rigorosa- mente temos experimentada em toda a nossa vida nacional. Processa-se, certo, sem 9 grando alarde de algumas convul- sos de superficie... A grande revoluco brasileira ndo é um fato que se registrasse ‘em um instante preciso; ¢ antes um pro- cesso demorado 8 que vem durando pelo menos ha trés quartos de século. Seus pon- to culminantes associam-se como acidentes diversosde um mesma sistema orogratico’"?. Essa é a problematica de Euelides da Cunha, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Alberto Torres, Silvio Romero, Machado de Assis, Raul Pompéia, Lima Barreto e mul- tos outros, em movimentos sociais, partidos politicos € correntes de opinige publica. ‘Queriam compreender quais eram as pers- pectivas abertas com a Republica e o regime de trabalho livre. Mas eram obrigados a refletir sobre as herancas de séculos de escravismo, patriarcalismo, diviséo entre brancos, negros @ indios. Ocorre que conti- nuavam fortes as herangas do periodo colonial ¢ da épeca monarquica, altamente determinadas pelas relagdes externas. A sociedade de castas, formada ao longo da Colénia ¢ do Império, modificavase de modo lente ¢ desigual nas décadas da Pri- meira Republica. gig, “ennipr® “aoane™ Mas as forgas Sociais ¢ os Movimentos culturais, orientados no sentido da mudanga, 8. Caio Prado Jinior, Histdria Eeonémica do Brasil, 4* Edicao, Editora Braailiense, Sho Paulo, 1983. p_ 214 7. Sérgio Buarque de Holanda, Raizes do Brasil, 2° Edigaa, Livraria José Olympic Ecitora, Rio de Janeiro, 1956, pp, 249-250. 26 A G1 ‘continuaram a operar. Por dentro e por fora dos interesses liberais: e patrimoniais, pro- dominantes dos governos republicanes, Surgiram novas propostas, outras idéias. Nesse sentido é que 1922 é uma data sim- bélica: surge o tenentismo, movimento civil militar orientado no sentido de alterar as estruturas oligarquicas prevalecentes; cri se 0 Centro Dom Vital, congregando catél ‘cos Interessados em preservar a civilizagao ‘ocidental e cristé no pais; tunda-se 0 Par- io Comunista Brasileiro, em boa parte ‘oriundo do anarco-sindicalismo ¢ empe- nhado em lutar pelo socialismo; realiza-so a Semana de Arte Moderna em Sao Paulo, procurando novos temas e novas lingu: gens para as artes € 0 pensamento social fo pais. Parece que 0 pais comega a ingres- sar no séoulo XX nesse ano. Os aconteci- mentos de 22 sugetem os prenincios de ‘ultra época, outro ciclo da historia. As mudangas sociais, econdmicas, politicas e culturais provocadas pelo ciclo da cafeicuttura estavam comecando a mani= festar-se. O pensamento social defrontava- se com novas realidades € rebuscava con- tribuigées na cultura européia, norte- americana e brasilcira. A industrializacao incipiente e o desenvolvimento das maiores cidades. criavam outros horizontes para 0 debate politico e cultural. Outra vez, os movimentos da sociedade indicavam ton- déncias diversas e antagénicas, mas Preocupadas em mudar alguma coisa. Mudar para frente ou para tras, mas mudar, para que 0 pais nao continuasse como ia: um pals que parecia atrasada, anacrénico, 3. Nacionalismo e Desenvolvimento Desde a Abolic’3o da Escravatura e a ProclamagSo da Republica, mas em escala crescente ao longo das décadas posterio- tes, muitos estavam preocupados com a questo. nacional. Interessados em recriar © pais & altura do sécule XX. Queriam com- wo Ro Preender quais seriam as condigSes ¢ Possibilidades de progresso, industrializa- 40, _urbanizacao, —_ modernizagao, europeizacao, americanizacao, civilizacso do Brasil. Apaixonados ou indiferentes, afi- tos ou ir6nicos, perguntavam-se sobre os dilemas basicos da sociedade nacional, de uma nagao que se buscava aténita depois de séoulos de escravidao: agrarismo 0 indus- trializagaa; cidade, campo e sertdo; preguica, luxtiria e trabalho; mestigagem, arianismo © demoeracia racial; raga, pavo e nacaa; colonialismo e nacionalisme; demoeracia e autoritarismo, A historia do pensamento brasileiro esta atravessada pelo fascinio da questéo nacional. No passado ¢ no presente, si0 mMUitOS.0S que Se preccupam em compreen- dar os desafios que compéem e decampem © Brasil como nagao. E essa preocupagao se fevela particularmente acentuada nas conjunturas assinaladas @ simbolizadas pela Declarac’o.de Independéncia om 1822, Abolicgo da Escravatura e Proclamacio da Repiblica em 1888-89 ¢ Revolucdo de 1980. Esse tema aparece nas producées de publicistas, cientistas sociais, filésofos, artistas. Emdiferentes gradacées, em varias linguagens, uns @ outros passam por ele. ‘A questo nacional estd sempre presente, como desafio, obsessao, impasse ou inci- dente. Muitos esto interessados em compre- ender, explicar ou inventar. como se forma e transforma a nacdo, quais as suas forcas sociais, seus valores culturais, tradigdes, heréis, santos, monumentos, ruinas. Preo- cupanrse cam o significado das diversi- dades regionais, Gtnicas ou raciais e culturais, além das sociais, econémicas e politicas. Meditam sobre as trés ragas tris- tes, explicam a mesticagem, imaginam a demoeracia racial. Procuram as desigualda- des regionais, raciais e outras na natureza ena histéria passada. Inquietam-se com o fato de que a maior nagdo cat AARTTeG Os mundo flulua sobre a religiosidade afro indigena, Espantam-se com o divércio entre as tendoncias da sociedade civil e as do poder estatal. Debrucam-se sobre 0 pas: sado préximo e remoto, buscando raizes nos séculos de escravatura. Atravessam 0 Mar Atlantico para encontrar origens lusita- nas, africanas, européias. Olham no espelho das europas procurando modelos ¢ ideais para se vangloriarem ou estranharem. O anacronisme, bovarismo, mimetismo, exo tismo ¢ ocietismo, em matérias cientificas, filoséficas e artisticas, fascinam ou assus- tam muitos dos que se miram em espelhos. franceses, ingleses, alemaes, norle-ameri- canos ¢ outros. A Revolucaio de 1930 parece ter provo- cado uma espécie de precipitaclo das potencialidades das crises e controvérsias, herdadas do passado. Delineiam-se mais nitidamente as correntes de pensamento. ‘A marcha do processo politico © das lutas sociais, de par em par com a crise da cafel- cultura, os surtos de industrializagao, a urbanizacao, a emergéncia de um proleta- riado incipient, os movimentos sociais de base agraria, tais como o cangago € o mes- sianismo, tudo isso repunha, desenvolvia e criava desafios urgentes para cada setor € 0 conjunte da sociedade nacional. Essa © a época em que desabracham algumas das interpretacdes fundamentais, ou mesmo cléssicas, da histéria da socie- dade brasileira, Dizem respeitoas sugestées tedricas desenvolvidas pelo pensamento europeu € norte-americano, onde s¢ encon- tram tanto Simmel e Weber come Boas & Marx, dentre muitos outros. Mas também esto mais preparades para reiletir sobre 98 dilemas da sociedade. Parecem mais contemporaneos do seu tempo e lugar. Explicam as tradicdes, as herangas portu- quesas, as marcas do escravisma, os ea evolucao hi & En S Al es obstdculos e as possibilidades de formacio do povo, enquanto coletividade de cida- daos. Explicam 0 corporativismo, 0% antagonismos entre 0 publica @ @ privado, as contradigies de classe, a separacao dos poderes legislative, executive @ judiciario, a democracia, a preeminéncia do poder civil, a miss moderadora do poder militar. o estado forte, as debilidades da sociedade civil, 0 potencial das lutas populares no campo é cidade. E como se o pensamento e o pensade se encontrassem mais transparentes. Mais uma vez procure-se reduzir o hiato entre as sugestées do pensamente universal @ os temas da realidade nacional. Intelectuais formadas no espirito europeu, no outro lado do mar-oceano, mas sensiveis aos desafios do presente ¢ aos enigmas do passado, passam a explicar como se compée © decompée o Brasil como nagao. “Ao transo- ceanismo saudosista de uns ¢ ao naciona- lismo afaito e ingénuo de outros, sucederia uma geraetie na qual aparecem alguns homens dotades de uma formagao nova e de uma técnica intelectual mais adequada 4 compreensdo dos problemas de cultura e, talvez, por isso mesmo, dotados também de uma compreensdo mais exata do pais @ de nossa historia” ". Em 1930 0 Brasil realizou uma tente- tiva fundamental, no sentido de entrar no ritmo da hist6ria, tornar-se contemporaneo do seu tempo, erganizar-se segundo os inte- resses dos seus setores sociais mais avancados. Tudo 0 que vinha germinando antes se torna mais explicito ¢ desenvolve- se com a crise e ruptura simbolizadas pela Revolucdo. O que se encontrava em e560- ¢0, apenas intuido, de repente parece clari- ficarse. Foi na década de 30 que so formularam as principais interpretacdes do 8, dot Cruz Costa, Comtribuigdo & Historia das Idsiae no Brasil (O desenvolvimento da flosotta no Brasil fica nacional), Livraria José Qlympio Editors, Ria de Janciro, 1956, p. 441. 27 28 Bowe i te: e ao Brasil Modemo, configurando “uma com- Preensao mais exata de pais”. Muito do que se pensou antes, polariza-se e decanta- se nessa época. E muito do que se pensa depois arranca das interpretagdes formula- das entao. E claro que o que se pensa depois tam- bém inova. H4 outras contribuicbes sobre a formagao histérica do pais, os seus dile- mas presentes, suas possibilidades futuras. Os escritos de José Hondrio Rodrigues, Raimundo Faoro, Antonio Candido, Flores- tan Fermandes, Celso Furtado, Hélio Jaguaribe, Nelson Werneck Sodré, Guer- reiro Ramos, Cidvis Moura e muitos outros expressam continuidades e inovagées fun- damentais. Mas naquela época formularam- se algumas matrizes do pensamento so. brasileiro, no que se refere a questdes basi- cas: a Vooagao agraria 6 as possibilidades Ga industrializagao, 0 capitalismo nacional © associado, o federalismo e 0 centralismo, © civilisme ¢ o militarismo, a democracia ¢ © autoritarismo, a regido e 2 nago, a multi- plicidade racial e a formagao do povo, o Capitalismo e 0 socialismo, a modernidade © a tradicao Aiguns livros publicados nos anos 30 dio uma idéia da fecundidade intelectual dos desafios que a sociedade brasileira estava enfrentando; de como se revelain “alguns homens dotades de uma formacao novae de uma técnica intelectual mais ade- quada & compreenséo dos problemas da cultura”, da sociedade eda historia, Revelam horizontes novos no desenvolvimento do pensamento brasileiro. Simbolizam pontos de inflex8o da histéria e do Pensamento: Sérgio Buarque dé Holanda, Raizes do Brasil Caio Prado Jiinior, Evolucdo Politica do Brasil, Gilberto Freyre, Casa-Grande & Sen- zala; Roberto C. Simonsen, A Evolueao Industrial do Bra- sil, Manoel Bomfim, Brasit coe NSAIOS Nagao; Nestor Duarte, A Ordem Privada & @ Organizacao Politica Nacional, Azevedo Amaral, A Aventura Politica do Brasit, Mario ‘Travassos, Projedo Continental do Brasil; Barbosa Lima Sobrinho, A Verdade sobre a Revolucdo de Outubra, Virginio Santa Rosa, O Sentido do Tenentismo; José Maria Belo, Panorama do Brasil Tisio de Ataide, Politica, Afonso Arinos de Mello Franco, Conceito de Clvilizagao Brasileira, Paulo Prado, Paulistica. Ainda na década de 30 republicaram-se escritos ja conheci- des em décadas anteriores, passando a ser relidos em outra perspectiva: Alberto Torres, © Problema Nacional Brasiletro; Tavares Bastos, A Provincia (Estudo sobre a descentralizacao no Brasil); Oliveira Via- na, Evolucéo da Povo Brasileiro. Ao fim des anos 90 e comece de 40 continuaram ‘85 publicagdes destinadas a retomar, discu- tir ou inovar 9 que se havia proposto anteriormente, principalmente: Roberto C. Simonsen, Histéria Econémica do Brasil (1500-1820); Caio Prado Jinior, Formacao do Brasil Contemporaneo(Colénia); Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, Nordeste 6 O Mundo que o Portugués Criou: Cassiano Ricardo, Marcha para Oeste (A influéneia da “Bandeira’’ na formagao social ¢ politica do Brasil); Femando de Azevedo, A Cultura Brasileira (Introdugao ao estudo da cultura no Brasil). Haveria muito mais que mencio- nar, se fssemos fazer justica & maioria, se nao a todos. Os indicios de modernizacao, que ja $2 esbocavam com a Semana de Arle Modema, a eclosao do tenentismo e outros, acontecimentos de anos ¢ décadas-anterio- res, @ partir de 30 parecem acolerar-se. As inquistacdes S, filoséficas e artisti- cas simbolizadas nas obras de Graga Aranha, A Estética da Vida; Jackson de Figuer redo, Literatura Reaciondria, Paulo Prado, Retrate do Br si, Mario de Andrade, Se tie © Ss -& Macunaima e Vicente Licinio Cardoso (organizader), A margom da Histéria da Republica, entre outros, generalizam-se desde 30. Criou-se uma atmostera diferente, nova, de ampla ebuligdo cultural, politica e social. Nao foi um marco zero. "Mas foi um eixo © um catalisador: um eixo em torne do qual girou de certo modo a cultura brasi- leira, catalisando elomentes dispersos para dispoos numa configuragao nova. Nesse sentide foi um marco historico, daqueles que fazem sentir vivarnente que houve um “antes” diferente de um ‘depois’, Em grande parte porque gerou um movimento de unifi- eaego cultural, projetando na escala da Nagao fatos que antes ecorriam no ambito das regides. A este aspecto integrador ¢ preciso juntar outro, igualmente importante: © surgimento de condigdes para realizar, difundir @ ‘normalizar’ uma série de aspira- Ses, inovagées, pressentimentos gerados no decénio de 1820, que tinha sido uma sementeira de grandes mudancas” ’. Os fermentos socials e intelectuais que vinham de anos e décadas anteriores, passam a ser vistos coma normais a partir de 30. A despeito das exiremas desigualdades socials prevalecentes, @ que exciuia amplos seto- res da populacde dos espagos culturais politicos. quo se estavam alargando, aos poucos ampliou-se a participagéo. Houve um florescimento cultural da maior significa Gao. “Isto ocomeu em diversos seteres: instrugo piblica, vida artistica e literaria, estudos histéricos € sociais, meios de ditu- so cultural come @ livre ¢ 0 radio (que teve desenvolvimento espetacular)” ° Desde antes de 30 ja era intenso 6 fecundo o debate sobre a formacdo & as 9. Antonia Candi¢o, A Educacao pela Noite 2 outros 40. Ibid, 9.182, Congultar tambem Glide Rugai Bastos, EWS AIOS perspectivas da sociedade brasileira. Recolocaram-se de forma particularmente urgente os dilemas da ques- to nacional. As perspectivas @ os impasses que se haviam aberto com a Aboligao da Escravatura, a Proclamacao da Republica, a imigracao ‘européia, as crises periddicas da econor primaria exportadora, os obstaculos inter- nos @ externes a industrializacao. colocavam-se de forma premente. Tanto assim que se multiplicaram os debates, a5 interpretagées e as direlrizes para a resolu- co, ou manejo, dos problemas nacionais. Naturalmente resgataram-se sugestOos pré- ximas © antigas, de José Bonifacio, Frei Caneca, Semarde Pereira de Vasconcelos, Tavares Bastos, Joaquim Nabuco, Silvio Romero, José Verissimo, Euclides da Cunha, Alberto Torres e outros. Mas principalmente produziram-se oulras e novas interpreta- Ges © diretrizes. Muitos debrucaram-se sobre as peculiaridades da saciedade brasi- leira, as desigualdades regionais, a heterogeneidade étnica, as herancas do escravismo,as contribuigdes des imigrantes, ‘© peso das oligarquias ou clas agrarios, o predominio do privatismo sobre 0 espirito publico, os partidos. politicos personalista: a precariedade dos processes eleitorais, as urgéncias do nacionalisme, o fascinio pelas idéias © soludes estrangeiras, a importéncia da modernizagao do aparelho estatal, © significado dirigente do estado, a conquista da cidadania e outros dilemas dg saciedade brasileira na época. E inegavel que muitos fatos estavam rectiando € agudizando desafies da socie- dade, desde os primeiros mementos do regime republicano: 0 predominio das bur- guesias paulista © mineira no bloco de Enaaios, Editora Alies, $40 Paulo, pp. 181-182. Gilborfo Freyre @ @ Formagiic da Sociedade Bras lira. Tese de Doulorada, Universidade Catdliea de $30 Paulo, 1986, mimeo: 29 30 ae TANG poder formado com a Republica ¢ expresso: também na politica des governadores; as lutas sogiais de base agraria em Canudos, Contestado 6 outras partes em que estavam em curso as ocupacées de terras devolutas @ indigenas; as greves de colonos na cafei- cuitura @ de trabalhadores assalariados nos centros urbanas com atividades industriais; © messianismo do padre Ci¢ero, em Jus. zoiro; as exigéncias e as consoquéncias da Primeira Guerra Mundial e das crisos da. cafeicultura, uma economia primaria exportadora: a emergéncia de movimentos socials, partides politicos ¢ outras manifes- tagdes de setores populares ruraiseurbanos, em lua por conguistas sociais diversas. ‘Os prenincios do Brasil Modemo esbarravam em pesadas herancas de escra- vismo, autoritarismo, coronelismo, cliente- lism. As linhas de castas, demarcando ralages Sociais e de trabalho, modos de ‘ser e pensar, subsistiam por dentro e por fora das linhas de classes em formacao. O Povo, enquante coletividade de cidadaos, ‘continuava a ser uma ficgdo politica. Ao mesmo tempo, setores do pensamento bra- vacilavam em face de inclinagdes um tanto exdticas e demoravam-se para ‘enconirar-se com a realidade socialbrasiloira. 4. Historia e Imaginagao E possivel verificar que uma parte ampla da produedo intelectual brasileira do século XX esta empenhada em compre- ender as condigdes de modemizacéo do pais. Desde as décadas finais do século XIX tomou-se cada vez mais evidente a pre- ocupagse com as implicagées sociais, econémicas, politicas © culturais da extin- ¢&0 do regime de trabalho escravo e do término do regime mondrquico. Tanto os que lutavam contra como os que eram a favor das movimentos abolicionista e repu- Os & EN S Al @s blicano pensavam ou pressentiam, queriam ou temiam as possiveis transtormacdes. A idéia de Brasil Medero esta _pre- sente. ou implicita, em escritos de Silvio Romero, José Verissimo, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Alberto Torres, Euclides da Cunha, Machado de Assis, Raul Pompéia, Lima Barreto e muitos outros. Compreendé também movimentos socials ¢ partidos pali- ticos, além de correntes de-opinigo publica, nos quais se inscrevem os catélicgs liborais, demacratas, socialistas, anarquistase outros. Depois, nas décadas de 20 e 30, torna-se muito mais explicito, com Oliveira Vianna, Vicente Licinio Cardoso, Jackson de Figuei- redo, Manoel Bomfim, Paulo Prado, Azevedo Amaral, Francisco Campos. Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Roberto C. Simonsen, Caio Prado Junior, Astrojildo Pereira @ outros. Nao hd duvida, essa pro- blematica est no horizonte de Mario de ‘Andrade, Graciliano Ramos, Portinari, Villa Lobos e assim por diante. Em seguida, sem- pre continua a desafiar o pensamento brasileiro nos escritos de José Hondrio Rodrigues, Romulo de Almeida, Celso Fur- tado, Guerreiro Ramos. Nelson Werneck Sodré, Hélio Jaguaribe, Raimundo Faoro, Antonio C8ndido, Florestan Fernandes & muitos outros. Nao se trata do imaginar que todos pretendem 0 futuro, ou o pre: sente aperfeigoado. Sao miltiplas e contraditorias as interpretacées e diretrizes deuns e outros. Trata-se de um amploleque, ng qual se encontram inclusive os que pre- ferem corrigir 0 presente pelas parametros passades, preconizande a modemizacao conservadora * Ao mesmo tempo, a marcha da soc’ dade continua @ criar e recriar_novas realidades. A sociedade e a economia, a politica e @ cultura, 0 campo a cidade, continuam a transformar-se. Em fins do século XIX e comego do XX a Amaz6nia transforma-se ne milagre da borracha. Simultaneamente, a economia cafesira expande-se om diversas areas do Centro- Oeste. E a economia agucareira ospalha- se por outras regides, além do Nordeste; expande-se em Sao Paulo. Sucedem-se € confundem-se "‘ciclos"” econémicos, acom- panhados de mudancas socias, urbanizacao, surtos de industrializagao, desenvolvimento de classes sociais, dosafios © propostas politicas, criagdes culturais. Aos. poucos, diversifica-se 0 leque do debate cientifico, filoséfico ¢ artistico, Multiplicam-se centros de estudos universitarios ¢ independentes da academia, privados e publicos. Além do Rio de Janeiro, também So Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Salva- dor, Belém e outras cidades desenvolvem novas atividades culturais. Multiplicam-se nicleos intelectuais @ politicos preocupa- dos com a tradigao @ a moderidade, procurande explicar © presente, oxorcizar © passado © imaginar o futuro. Tanto no nivel do pensamento como no das praticas de governantes e grupos sociais mais poderosos, observa-se a impa- ciéncia, pressa, sofrequidao. Algumas realizagOes famosas dao uma idéia desse lima. A construgéo da cidade de Brasilia pretende simbolizar o Brasil Modern, representa 0 coroamento de uma larga his- toria de intentos de tornar 0 Brasil conter- poraneo do seu tempo. Uma capital nova, NSAIOS m feita sob medida, langada em tracos auda- eiosos, nas proporgies do sécule XXI; e povoada pela mesma humanidade que se pretendia esquecer, ou exorcizar. Algo semelhante havia ocorrido na época do apogeu da borracha amazénica. A Ferrovia Madeira-Mamoré, construida em plena flo- testa em fins do século XIX @ comego do XX, simboliza muito bem a faganha da audd- sia. No mesmo ano em que se inaugura, depois de um altissimo custo humano ¢ material, 0 ciclo da borracha entra em colapso. Sobra a sensacdo de absurdo atra- vessando a biografia e a histéria. "“O que ‘eu vim fazer aqui... Qual a razdo de todos esses mortos internacionais que renascem na bulha da locomotiva e vérn com seus olhinhos de chineses, de portugueses, boli- vianos, barbadianos, italianes, drabes, gregos, vindos a troce de libra, Tudo quanto era nariz e pele diferente andou por aqui deitando com uma febrinna na boca-da- noite pra amanhecer no nunca mais" ™. Em todos os lugares, combina-se 0 moderno material com 0 autoritario do mando e des- mando. Como na Madeira-Mamoré. em Canudos, Contestado, Revolta da Vacina, ocupagaes de terras, greves operarias, pra- testos contra desmandos. Uma historia na qual a modernidade esta mesclada no calei- doscopio dos pretéritos, dos “ciclos” desencontrados de tempos ¢ lugares, como 50 0 presente fosse um depésito arquealG- gico de épocas e regides. 11. Para @ belango ertico da histéria ¢ das tendéncias do ponsamento brasileira, consultar: Joo Cruz Gos- ta, Contribuicdo a Hisidria das Idéias no Brasil, José Olympia Editora, Fig de Janeiro, 1956; Dante Mo- reira Lette, © Canter Nacional Brasileira, 2* Edicio, Proneira Edltora, Séo Paulo, 1969; Carlos Guilher- me Mota, Ideologia da Cultura Brasileira, 38 Edicao, Editora Aca, S30 Paulo, 1977; Joio Camilo de Giiveira Toes, Interpretagda da Realidade Brasiaira, José Olympia Editora, Rio de Janeiro, 1969; Nek gon Wemeek Sodré, A Ideologia co Colanialismo, 2" Edicio, Editora Civilzacao Brasileira, Fa de Ja- peies, 1965; Guerreire Ramos, A Crise do Poder no Brasil, Zahar Editores, Fa de Janeiro, 1301; Flores- tan Femandes. A Sociologia ro Brasil, Editera Vazes, 1977; Leandro Kander, A Derrots da Dialética, ‘Editora Campus, Rilo de Janeiro, 1368; Reginalde Morais, Alcardo Antunes @ Vere 8. Ferrante (orgs. Inteligéncia brasileira, Ediiora Brasilionse, $40 Paulo, 1986; Antonio Paim, Historia das ld¢ias Files cas no Brasil, Editora da Universidade de Séo Paulo, Sao Pavlo, 1974. 12, Marcio Souza, Mad Maria, romance, 3° edieso, Editore Narco Zero, Rico de janeiro, 1965, pp. 346-247. Consultar também Franeisea Foot Hardman, Trem Faniaema (A Modernidace na Selva}, Companhia das Letras, Sao Paulo, 1988, 03p. caps. 5 2 6. 32 Sey es Ve Tedes, a despsita das diversidades de perspectivas ¢ propostas, pensam 0 Bra- sil Moderne, © capitalismo nacional, o capitalism associado, a industrializacao, © planejamento governamental, a reforma do sistema de ensino, a reforma agréria, a institucionalizagao de garantias democrati- cas, a superacdo da preguiga pelo trabalho e da luxtria pelo ascetismo, a mudanca das instituigdes e atitudes, a reversdo das expectativas, a revolugéo politica, a revolu- cao social. Em distintas gradacdes, as Perspectivas de uns ¢ outros abrem-se em um laque bastante amplo, compreendendo. propastas de cunho liberal, liberal-democra- tico, corporative, fascista, secialista e outras. Mas vale a pena obsorvar que esse vasto movimento intelectual — polarizado pela idéia de modemiza¢ao. conservadora, autoritéria, democratica ou socialista — fol acompanhade de um deslocamento do con- tro da vida nacional. Entre fins do século XIX @ @ primeira metade do XX, 0 centro da vida nacional desiocau-se do Nordeste, simbolicamente Recife, para o Centro-Sul, simbolicamente Sao Paulo. A chamada Escola de Recife expressa bastante bom uma época de apogeu e crise do predomi. nio do Nordeste na fisionomia do Estado Nacional. Em cera medida, a realizactio da Semana de Arte Maderna em Sao Paulo, no ano de 1922, simboliza a emergéncia de outras inquietacdes © propostas, que passarao a predominar. Mas 0 dosloca- mento ndo é nem rapido nem drastico. Alguns escritos revelam duvidas, ambigiii- dades, vacilagbes, falta de claroza. Foi complicado esse pracessode desiccamento do centro da vida nacional, desde 0 Nor- deste ao Centro-Sul, simbolizad em Recife 6 So Paulo. Em A Estética da Vida, publicado em 1920, Graea Aranha esta procurando equa- sionar os novos tempos. Um membre da Escola de Recife que se defronia com as polarizagdes emergentes na sociedado EN SAIOS nacional, procurande descortinar 0 presente e exorcizar 0 passado. “Depois de ter sido umanagao paradoxalmente classica, movida pele humanismo e pela imaginagao literaria, cis © Brasil langado no extremo da oposi- co a-cultura intelectual. Ha um pragmatismo que procura suplantar ted a intelectualismo. Ha uma filosofia de agao pratica, que dirige a energia brasileira para 9s trabalhos fisi- cos da posse da terra ¢ para a acumulacao da tiqueza. Nesse sentido 0 Brasil so ame- ricaniza e se desintegra de cosmos latino... Eis 0 paradoxo do governo brasileiro: homens nao preparados para a funcdo de governar uma nagao de destino industrial governam essa nacao... Sao Paulo, feliz- mente, € dirigido por uma elite de fazen- deiros, agricultores ¢ industriais. Os homens antiges no sao estranhos a industria, © essa perfeita conformidade entre a capaci dade, a competéncia dos governanies © 0 destino social do Estado, € que mantém o progresso de S. Paulo, o menos paradoxal dos Estados brasileiros” * Em Retrato do Brasil, publicado em 1928, Paulo Prado esta procurando equa- cionar os novos tempos. Um intelectual paulista, membro de uma familia tradicio- nal de negocios © politica, defrontando-se ‘com as polarizacdes emergentes na socio- dade nacional Fsta ansioso por construir 0 futuro. Para isso, dedica-se a um vasto exorcismo de passado. ‘Trés séculos tinham trazido © pals a essa situagéo lamentavel. A colénia, ao iniciar-se 0 século de sua inde- pendéncia, era um corpo amarfo, de mera vida vegetativa, mantendo-se apenas pelos lagos ténues da lingua e do culte... Popula- co sem nome... Pais pobre sem 0 auxilio humane, ou aruinado pela exploracao. apressada, tumultuaria e incompetente de SuaS riquezas minerais; cultura agricola e pastoril limitada € atrasada, nao suspeitando das formiddveis possibilidades das suas aguas, das suas metas, dos seus campos © praias; povoadores mesticados, suminda- se 0 indio diante do europeu @ do negro, para a tirania nos centros litoraneos do mulato € da mulata: cima amolecedor de energias, préprio para a “vida de balango”; hhipertrofia do patriotismo indolente que se contestava em admirar as belezas naturais, “as mais extraordinarias do mundo”, como se fossem obras do homem... 0 Brasil, de falo, no progride: vive e cresce, como cresce e vive uma crianga doente no lento desenvolvimento dé um corpo mal organi- zado... Para t4o grandes males parecem esgotadas as medicaedes de terapia cor- rente: € necessario recorrer 2 cirurgia.. A Revolugae vira de mais longe e de mais fundo. Sera a afirmacao inexoravel de que quando tudo esta errado, 0 melhor corretiva 6 0 apagamento de tudo que foi mal feito". Noté-se que todo esse panorama do pas- sado ¢ 0 do outro Brasil, daquele que se havia formada com matriz no Nordeste. A emergente burguesia paulista estava impa- ciente, s6frega. Queria dar andamento 203 sous interesses, ampliar 05 seus espacos de mando, conferiroutra diregiio acs assun- tas nacionais, apresentando tudo isso como se fora. uma urgéncia da salvaco nacional. Algumas das duvidas ¢ ambigliidades desses e outros. pensadores foram supera- das, ou mesmo renovadas.em outros termos, nos escritos de Oliveira Viana, Gilberto Fre- yre, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto C, Simansen e Caio Prado Junior, entre outros. Elaboraram mais @ melhor as ques- tes, os dilemas. Conseguiram reinterpretar téria do pais, explicar o presente e des- cortinar algumas tendéncias futuras. So autores que inauguram interpretacOes, codi- ficam 0 conhecimento acumulado até entao, reinterprotam momentos cruciais da histéria, conferem dura cientifica 2 suas explica- bes, estabelecem estilos de pensamento. Vale a pena atentar para os paralelis- mos nos escritos desses pensadores. Dedicaram-se a interpretacdes da histéria, abarcando Colénia, Império ¢ Republica. Procuram continuidades e descontinuida- des, de modo a compreender as raizes préximas e remotas do presente. E notavel © interesse que todos revolam pelo Brasil- Colénia. Lé longe, estariam procurando os segredos dos impasses e das potencialida- des com os quais sé defronta a nagéo no século XX. Uma sintese das interpretacées desenvolvidas por esses autores encontra- 8 nos séguintes livros: Evolugao do Povo Brasiteiro, por Oliveira Viana, Interpretacao de Brasil, de Gilberto Freyre; A Evolucio Industrial do Brasil, por Roberto C. Simon- sen; Evolugao Politica do Brasil, de Caio Prada Junior; e Aaizes do Brasil, por Sér- gio Buarque de Holanda. A despeito da 8nfase social, econdmica, politica ou cultu- ral, evidente em cada um, empenharam- se em apresentar explicagdes abrangentes, globalizantes. E sugerem, ou mesmo apre- sentam explicitamente, as perspectivas presentes e provaveis da sociedade. Cada um a seu modo, todos empenhar-se em explicar as condiges ¢ as possibilidades do Brasil Moderna. Suas interpretagbes do Brasil tornam- se paradigmaticas. Passam a ser referéncia constante no ensino e pesquisa universit rios, nas atividades de partidos ¢ movimentos, nas diretrizes de governantes, nas controvérsias da opiniao publiga. A des- peito das criticas possiveis, ou das lacunas reais, eonsolidam-so, institucionalizam-se. Codificam muito do que uns e outros, gru- os e classes, movimentos sociais.e partidos politicos adotam como vélido. consideram fundamental. Depois de todo um amplo debate que atravessou décadas, quando 18, Graca Aranha, A Estética da Via, Livraria Gamier, Rio de Janie, 1920, pp. 178-179 0 186, 44, Paulo Prado, Retrato do Brasil (Ensaia sobre a Tisteza Brasileiral, DuprakMayenes, S80 Paulo, 1928, pp. 148.149, 200, 271 6 213. 33 34 A R LG © 8 -& multiplicaram dividas e ambigiidades, | muitos tém a sensag&o de que o pais encon- ‘OU a Sua articulagao histérica, o seu perfil, seu caminho. Conservadores, autoritarios, iberais, democratas e socialistas ja tem a u dispor um esquema basico, uma refe- incia coerente, um paradigma para pensar agir. Assim Oliveira Viana, Sérgio Buar- we de Holanda, Gilberto Freyre, Roberto Simonsen e Caio Prado Jinior adquirem aura de classicos. A intepretacao de Oliveira Viana vem ‘stamente do pensamento conservador uropeu @ brasileiro, Privilegia a organiza- \eB0 e a atividade do Estado, conferindo-lhe: jum papel preeminente, “‘civilizador”’. |Basela-se no suposto de que a sociedade ivil € débil, incapaz, que 0 povo nao esta \cuttural e politicamente preparado para lexercer um papel ativo nos negécios publi- 05. Precisa Ser tutelado, administrado, por im poder estatal cada vez mais corporativo, ‘mico, modernizador. Essa interpretacko essoa bastante ne pensamento brasileiro, m setores empresariais, \iticos, militares, jornalis: icos, universitarios. [Gilberto Freyre vem do A interpretagao de ensamenta maderno urepau enerte americans, ‘onde se destacam Simmel ‘e Boas, entre outros. Privi- legia as formas de socia- jlidade e supera os lequivocos que associam raca © cultura. Concentra ena andlise de institu: Ges e formas sociais, tais como a familia patriarcal, las etiquetas sociais, os tipos sociais. Lida com os Intersticios ou péros da ‘sociedade civil, tomando (os como expressdes sufi Fientes desta. Focaliza 2 ) ENS Al @ Ss familia patriarcal como se fosse a miniatura da sociedade, de tal modo que 0 patriarca aparece como se fosse uma metaiora do ‘governo, € 0 patriarcalismo do poder esta- lal. As relagSes e os movimentos de grupos, castas ou classes diluem-se nas relacdes entre 05 componentes da familia patriarcal. Esse é 0 contexte em que surge a idéia de demoeracia racial, na qual nae aparece © escravo do sito nem o operario livre. Uma interpretagao muite infiuente. Ganha énfase nos mesmos lugares em que Oliveira Viana prevalece. Uma explica o Estado ¢ a outra a Sociedade A interpretacao de Sergio Buarque de Holanda tem raizes no pensamento alemao maderno, principalmente Dilthey, Rickert ¢ Weber. Desenvolve-se em um conjunto de tipos. ideais, configurando épocas, estilos de sociabilidade. Percebe de modo aberto a sociedade civil e o Estado, no passado e no presente. O homem cordial sintetiza uma parte expressiva da forma pela qual apanha momentos da historia, em moldes supra-histéricos. Uma interpretacdo bas- tante presente em meios universitarios e artisticos. A interpretag&o de Roberto C. Simon- sem tem raizes na economia politica, Léa histéria como um processo de desenvolvi- mento econémico, ne qual esto em causa ‘9 empresario, a tecnologia, o planejamento governmental, a industrializagao apoiada polo poder publico, a racionalizacéo da empresa, 0 aumento da produtividade. 0 adestramento profissional do trabalhador. a legislagao trabalhista destinada a farmalt- zar 0 mercado de mao-de-obra. Ea interpretagdo de Caio Prado Jinior tem raizes no pensamento marxista. Ana- lisa a formago social brasileira em termos de forcas produtivas e relagdes de produ- ‘cdo, expropriagéo do esoravo ¢ trabalhadar livre, desiqualdades sociais e contradicdes de classes. Apanha a historia como um caleidoscépio de ciclose ¢pocas, diversida- des © dosiguaidades sociais, econémicas, politicas eculturais; complicadas pelas diver- sidades e desiqualdades raciaise regionais. Desvenda as lutas, reformas e rupturas que demarcam épocas € perspectivas da histé- ria social brasileira, Vale a pena observar que essas inter- pretagbes classicas do Brasil estéio marcadas pela mudanca do eixo da historia. Elas tak vez tenham muito que ver com o desloca- mento do cixo de organizacao ¢ desenvolvimento da sociedade. & ENSAITIOS Gilberto Freyre nao esconde que vé a histéria na perspectiva da vigorosa matriz representada pelo Nordeste, par sua impor tncia @ historia ao longo da Colonia e Império. Por isso, provavelmente, a sua interpretagae do Brasil quarda as dimen- sS0s © as sonoridades de um imponente réquiem. Diz respeite a uma historia que teve pompa e circunstancia. O que vem depois do escravismo, engenho e patriarca- lismo, perde nitidez, parece outra coisa, ‘expressa um mundo estranho. Nesse sen- tide, podem encontrar-se ressonancias reciprocas em Sobrados e Mucambos de Gilberto Freyre ¢ Fogo Marto de José Lins do Rego. Desvendam o segredo sustenido no réquiem do patriarcalismo perdendo os jundamentos da sua pompa. Oliveira Viana e Sérgio Buarque de Holanda pensam a histéria do Brasil na perspectiva do Rio de Janeiro, da capital do pais, do Estado Nacional, do todo visto a partir do centro politico ¢ cultural. E claro que sao diferentes as suas interpretacées. A de Oliveira Viana 6 mais politica, privile- gia o poder estatal ¢ implicano autoritarismo: organizado corporativamente. A de Sérgio Buarque de Holanda é mais cultural, privile- gia a histéria da sociedade, implica na democracia. Mas talvez seja possivel afir~ mar que ambos interpretam o Brasil desde © horizonte descortinado a partir do centro politico € cultural do pais. Calo Prado Junior ¢ Roberto C. Simon- sen nao escondem que véer a histéria do Brasil na perspectiva da matriz que se esta criando em Séo Paulo. Beneficiam-se do horizonte aberto pela expansao cepitalista no campo, com base no café, ¢ a industria- lizagdo, ainda que incipiente. Percebem 0 pais em seu presente @ na sua histéria, pro- vocados pelo surto industrial que seobserva 15, Esta sintese inspira-se no trabalho de Elide Rugal bastos, Gilberto Freire ¢ 2 Formagao da Sociedade Brasileira, Tese de Oeutorado, Universidade Catoiica, S80 Paulo, 1986, mimeo. oo 36 AV Tt 47G © S Ve em varias partes, em especial em Sao Paulo. Por isso parecem mais atentos a questéo social, além de compreenderem 0s desafios e as perspectivas que se abrem com a industrializacao, 0 engajamento do aparelho estatal no desenvolvimento econd- mico em geral, € na industrializacdo em especial. Roberto Simonsen percebe a questo social na ética da harmonizacao entre o trabalho ¢ o capital, da paz social. ‘Ao passo que Caio Prado a percebe na otica das desigualdades sociais, daluta declasses. As interpretagbes classicas, seus desenvolvimentos posteriores e a propria histéria, com o Seu jogo de forcas sociais, dito camo se deslocou exo da historia da sociedade brasileira. Revelarao onde foi localizar-se a matriz do Brasil moderno. Apenas @ matriz intoma da modernidade que entusiasma e intimida, destumbra © espanta. A rigor, pode-se afirmar que Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Roberto Simonsen e Caio Prado Inaugurarh estilos de pensar o pais, a histo- ria brasileira, os dilemas de presente, as perspectivas provaveis. Fonmam dis continuadores, dissidentes. Inclusive rosga- tam contribuigées precedentes, suscitam Drecursores. Toda obra tundamonial, con- forme escreveu também Jorge Luis Borges, no 36 cria discipulos com sores. Parece realinhar idéias, explicacées, textos, temas, linguagens, cédigos. E todo um modo de ver é explicar que se articula, juntando @ que se vé € 0 que nda se vé. Qs lineamentos da historia presente, preté- rita futura parecem clarificar-se, tornar- se mais explicitos. Servem de base para novas pesquisas, outras controvérsias, dife- rentes nagbes. E claro que a histéria do Brasil Modemo no termina aqui. Depois de 1830, virdio EN SAT OS 1945, 1964, 1985 ¢ outras datas, simboli- zando rupturas. retrocessos, aberturas. A sociedade continuou a modificar-se, em termos sociais, econdmicos, politices e cul- turais. O que nao significa que sempre se modificou para melhor, segundo os interes- ses da maioria do povo ™. A inddstria cresceu e diversificou-so. Ocapitalismo avangoumais aindano campo, de modo extensive e intensive. Acelerou- se a urbanizacdo. Desenvolveramse as classes socials. Ocorreu uma rearticulacao ampla das regides. Recriaram-se as diversi- dades e desigualdades sociais, culturais, raciais, regionais e outras. Ja se pode falar em um complexo industrial-militar, além de crescente articulagéo entre o aparelho estatal ¢ a5 multinacionais No Ambito do pensamento, surgiram novas explicagSes do Brasil, parciais ou abrangentes, Dentre os seus autores, des- tacam-se Florestan Fernandes, Antonio Candido, Raimundo Faoro, Celso Furtado, Hélio Jaguaribe, Nelson Wemeck Sodré, Guerreiro Ramos, Clévis Moura, José Honé- rio Rodrigues, entre outros. Refazem, outra vez, toda a histéria, em diferentes perspec tivas, com instrumental tedrico as vezes bastante diverso. Sdo tomades pela opiniaio publica @ em ambientes universitanes como fundadores ou continuadores. Em varios casos, so continuadores, com inavacdes importantes. Reiteram ou desenvolvem as explicacdes de Oliveira Viana, Gilberto Fre- yre, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Simonsen ¢ Caio Prado. As vezes passam a0 largo desses ¢ encontram-se com Silvio Romero, Joaquim Nabuco, Alberta Torres, Euclides da Cunha, Rui Barbosa, Jackson de Figueirede e outros. Sim, no Brasil as ciéncias socials nas- com @ desenvolvem-se marcadas pelo desafio: compreender as condigoes € as ok ia eG @) Ss possibilidades do Brasil Modoro. Tado o empenho esta em compreender 0 presente, em suas raizes préximas e distantes. Por isso, om diferentes épocas, © pensamento social debrugase também sobre © passado, tentande desco- brir segredos do presente. Mas sempre se revela 0 fascinio pela modernidade ‘como idéia, forma ou iluséo, sem questionar de onde vem, para onde vai. As tlti- mas modas provenientes dos centros culturais domi nantes-da Europa e Estados Unides podem ressoar em alguns centros culturais bra- sileiros, como novas verdades que substituem outras. Ha alguns para os quais a ultima novidade européia ou norte-americana Pode representar 0 novo paradigma para pensar, filosofar, explicar, criar. O filésofo brasileira pode imaginar que sé na Europa, isto é, em Paris, que podem encontrar- se 0s grandes problemas da filosofia. Algo semelhante diréo alguns socidlogos, antro- pélogos, economistas, historiadores, escritores, ensaistas e outros. Nesse sentido, também, é que a idéia de Brasil Moderno freqlientemente tem algo de caricatura. Primeiro, caricatura resultante da imitaco apressada de outras realidades ou configuragdes histOricas, freqtientemente implicadas em idéias, conceitos, explica- 60s, teorias. Segundo, caricatura tornada ainda mais grotesca porque superpde con 46. Uma parte importante da problematica cultural & je WN SA I O's ceitos ¢ temas a realidades nacionais miltiplas, antigas @ reeentes, nas quais mesclam-se as ciclos e as épocas da histé- ria brasileira, como em um insélito calei- doscépio de realidades e imitacaes. Continua em causa dilema das idéias exdticas, da busca da congruéncia entre o Pensamente e 0 pensado. O que ja havia sido claramente pesto por José Verissimo e Silvio Romero, continuou a pér-se para ‘os outros, ao longo das décadas, Em 1973 Paulo Emilio julgou necessario escrever: Jao somos europeus nem americanos do norte, mas destituidos de cultura origi- nal, nada nos é estrangeiro, pois tudo 0 é. ‘A penosa construgSo de nds mesmas se desenvolve na dialética rarefeita entre o ndo sere 0 ser outro”. E em 1985 Sérgio J dos tempos do popultsme @ militarismo ¢ examinada por Renalo Ortiz, A Madera Tadicao Brasileira (Cultura Brasileira e Indistria Cultural), Editaca Brast liense, Sio-Paulo, 1988. 47. Paulo Emilio Sales Gomes, Cinema: Trajoséria no Subdesenvolvimente, Editora Paz ¢ Terra, Rie de Janeiro, 1980, p. 77. Citagao Ge “Cinema: Trajetoria do Subcesenvolvimento”. publicade pela primeira vez ern 1973, na revista Argumenta, n? 1, S80 Paulo. ot 38 A Paulo Rouanet precisou escrever: “Pode- mos, sem exagero, falar na ascensao de um novo irracienalismo ne Brasil. Em todas as trincheiras e em todas as frentes, a razao esta na defensiva, ... Ele foi em parte mol- dado por influéncias externas. Em sua variedade ‘existencial’, ele talvez tenha tido ‘sua origem na contracultura americana des anes 70, que pretendia reinventar a vida a partir do festival de Woodstock e da experi- @ncia_das comunas. Em sua variedade teGrica, é preciso reconhecer que ele esti am sintonia com algumas tendéncias do Pensamento europeu, Penso em Foucault, que pelo menos segunde uma certa leitura vwé na razdo uma simples protuberancia na superficie do poder, encarregada de obser- var, esquadrinhar, normalizar, e penso nos nouveaux philosophes, que véem nos inven- lores de sistemas meros agentes do gulag — 08 maitrespenseurs.. Mas. as raizes internas 40 igualmente inegaveis. Sem nenhuma divida, 0 irracionalismo brasileiro nao 6 uma “idéia fora do lugar”, Talvez a Politica educacional do regime autoritdria Seja 0 mais importante desses fatores inter nos. Durante 20 anos, ola extirpou metodicamente dos curriculos tudo 0 que tivesse que ver com idéias gerais e com valores humanisticos... Os egressos desse sistema educacional deficitério transformam, simplesmente, seu nZo-saber em normas de vida e em modelo de uma nova forma de organizacgo das relacses humanas” ®. Sob diversos aspectos, a historia do Pensamento brasileira no Sécula XX pode ser visia como um esfores persistonte @ rei- & ENSA Gs terada de compreender @ impulsionar as condicées da modemizacao da sociedade nacional. Primeiro, no sentido de fazer com que a sociedade e 0 Estado, compreen- dendo as instituigdes sociais, econdmicas, politicas e culturais, aproximom-so dos padrées estabelecidos pelos paises capita- listas mais desenvolvidos. Segundo, no sentido de conhecer, vaiorizar ou exorcizar ridades da formacao social brasi- Ieira, tais como os séculos de escravismo, a diversidade racial, a mesticagem, o tré- pico, © lusitanismo, 0 europeismo etc. E Obvio que esse esforco de compreensio & compromise nao se organiza sempre na mesma direedo. Uns preconizam a moder- itizaga em moldes democraticos; outros ‘em termos conservadores, ou simplesmente autoritérios. Ha aquoles que réivindicam reformas sociais amplas; outros até mesmo @ revolucao social. Um ou outro chega a idealizaro escravismo, o regime monarquico, © colonialisme lusitano, o alpendre da casa- grande. Na emaranhado dos desafios que compéem e descompoem o Brasil como nage, as producdes cientificas, filoséficas @ aftisticas podem revelar muito mais 9 ima- gindrio do que a histéria, muito menos a aco real do que a ilusdria, Mas nao na duvida de que a histéria seria irreconheci- vel sem o imagindrio. Alguns segredos da Sociedade revelam-se melhor, precisamente ha forma pela qual ela aparece da fantasia. As vezes, a fantasia pode ser um momento superior da realidade. 18, Sérgio Paulo Rouanet, As Raades db liuminisma, Companhia das Letras, S30 Paulo, 1987, pp. 124-125. Gitacio co capitulo “O navo icracionalisma brasilelro", pubjieade pola primeira vez na Faina de Seo Paulo, S80 Paulo, 17 de novembre ae 1985.

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