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1236 RESENHA | CRITICAL REVIEW

VENTURINI, E. A linha curva: o espaço e


o tempo da desinstitucionalização. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2016.
Déborah Karollyne Ribeiro Ramos1

O debate sobre a desinstitucionalização na experiência italiana de psiquiatria demo-


surge com as propostas de ruptura com a crática, além de ser profundo conhecedor da
lógica manicomial até então hegemônica no Reforma Psiquiátrica brasileira, tendo acom-
tratamento da loucura. Apesar de constituir- panhado de perto suas tensões e tendências
-se temática recorrente em escritos e discus- – o que lhe confere expertise no assunto.
sões no âmbito da saúde mental coletiva, a Ao se utilizar de uma linguagem poética
desinstitucionalização está longe de ter toda e envolvente, apoiado em uma concepção
sua potencialidade teórico-prática esgotada, complexa e polissêmica de desinstituciona-
especialmente se considerarmos que este é lização para além da mera desospitalização
um processo em andamento em diversas re- da pessoa com transtorno mental, o autor
alidades do País e do mundo. Tal caracterís- desvela, ao longo de cinco capítulos, a linha
tica torna a desinstitucionalização em saúde curva que representa os caminhos da Reforma
mental sempre atual e carente de reflexões Psiquiátrica e da desinstitucionalização,
e problematizações. Outrossim, a polissemia fazendo de sua experiência prática em Ímola
que envolve o termo, aliada à relevância da – cidade situada no norte da Itália – a bússola
desinstitucionalização para o sucesso da que conduz toda a narrativa. Para intitular a
Reforma Psiquiátrica brasileira, justifica e obra, o autor busca inspiração no trabalho e
autoriza a discussão e a atualização constan- na paixão de Oscar Niemeyer – importante
te sobre o tema. arquiteto brasileiro – pelas curvas para res-
Em ‘A linha curva: o espaço e o tempo saltar o movimento e as oscilações porque
da desinstitucionalização’, livro de autoria passou (e ainda passa) a desinstitucionaliza-
de Ernesto Venturini, prefaciado por Paulo ção de indivíduos e de práticas psiquiátricas.
Amarante, encontramos uma coletânea de Ao longo do livro, Venturini demons-
artigos – alguns já publicados em literatura tra sensibilidade para retratar/refletir
internacional – que relatam a experiência sobre a desinstitucionalização psiquiátrica,
1 Universidade Federal do autor com a Reforma Psiquiátrica italia- mostrando profunda preocupação com o
do Rio Grande do Norte
(UFRN), Departamento de na e com a desinstitucionalização naquele sujeito em sofrimento psíquico. São marcas
Odontologia, Programa de país. Literatura relevante para estudiosos/ dessa publicação o forte apelo ao resgate
Pós-Graduação em Saúde
Coletiva (PPGSCol) – Natal pesquisadores da área, principalmente, da subjetividade e à solidariedade, com
(RN) Brasil. se considerarmos a participação ativa de vistas a dialetizar o poder para empode-
deborah.ribeiro.ramos@
gmail.com Venturini, juntamente com Franco Basaglia, rar o paciente. Em um discurso instigante,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1236-1238, OUT-DEZ 2017 DOI: 10.1590/0103-1104201711521

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o autor conclama a valorização da partici- O terceiro capítulo, intitulado ‘O prota-


pação da pessoa com transtorno mental na gonismo da subjetividade’, dá seguimento à
sociedade como o principal indicador da crítica feita à objetivação dos usuários, dis-
desinstitucionalização e critica a psiquiatria cutindo a humanização da relação médico-
institucional por reduzir esse olhar. -paciente e reivindicando a existência da
O primeiro capítulo – ‘A prática’ – é com- subjetividade em um terreno científico ri-
posto por cinco artigos que visam contextua- gorosamente positivista. Ao longo de dois
lizar a experiência de desinstitucionalização artigos, o autor trata da desmistificação da
levada a cabo em um hospital psiquiátrico pretensão do saber e do poder psiquiátrico,
localizado em Ímola, à época sob direção do relata retrocessos no processo de desinstitu-
autor, contemplando erros e acertos, vitórias cionalização de Ímola e traz à luz do debate
e derrotas, atrasos e avanços experiencia- encontros e conflitos que emergem com o fim
dos durante a jornada. Ao longo do capítu- do manicômio: com a entrada de novos atores
lo, têm-se a exposição de uma sequência de em cena, novas vozes se embaralham, eis que
acontecimentos que vai desde os primeiros surge a necessidade de reabilitar a cidade.
passos rumo à desconstrução do hospital psi- Em ‘O espaço da desinstitucionalização’ –
quiátrico, passando pela promulgação da Lei quarto capítulo –, encontramos um convite à
nº 180 que instituiu a Reforma Psiquiátrica reflexão sobre a potência desinstitucionali-
italiana, criação de infraestruturas sociais de zante dos espaços; “o dentro e o fora num mo-
suporte ao ex-interno, até o fechamento do vimento dialético de construção de um novo
hospital psiquiátrico. Nesse tópico, Venturini espaço vivido”. Em uma sequência de sete
introduz no debate a temática da subjetivida- artigos, são debatidos tópicos como: a influ-
de, pondo em cena novos atores do processo ência do espaço na subjetividade da pessoa –
de desinstitucionalização – nesse caso, os pa- o estar e o habitar – em uma crítica à postura
cientes com seu olhar crítico. da psiquiatria que, “insensível à ideia do
Em ‘A dialética do poder’ – segundo capí- habitar, permanece obcecada pelo espaço, ou
tulo –, o autor desenvolve, em três artigos, melhor, com a ideia de um recipiente material
três tópicos principais: 1) Crítica à primazia ou simbólico, no qual circunscreve o objeto
conferida a dados objetivos e a própria obje- de seu domínio” (VENTURINI, 2016, p. 118);
tivação dos sujeitos em detrimento à sua sub- pontua elementos que devem ser observados
jetividade e às suas necessidades, propondo quando da avaliação dos resultados da de-
a mudança do olhar do psiquiatra, referido sinstitucionalização e quanto à garantia da
por Venturini como passivo e sem reciproci- qualidade dos serviços ofertados e da reabi-
dade, para com o sujeito que sofre; 2) Refaz litação; critica o formato/divisão das cidades
o percurso da luta contra o poder manico- que, cheias de muros e/ou barreiras reais ou
mial, exaltando a liberdade alcançada com imaginárias, não estão preparadas para os di-
o processo de desinstitucionalização, tra- ferentes; finalmente, chama a atenção para a
zendo à tona o movimento dialético da luta importância do capital social para o sucesso
e da reinvenção do cotidiano e das práticas da desinstitucionalização, ressaltando que
como fatores promotores de tensionamento características como solidariedade e coopera-
e da abertura dialética do poder; 3) Por fim, tivismo podem auxiliar nesse processo.
propõe uma tipologia da desinstitucionali- Ao longo do último capítulo – ‘O tempo
zação composta por quatro fases progressi- da desinstitucionalização’ –, o autor coloca
vas de um único processo: desospitalização, em evidência dois pontos principais: 1) a
seguida de três níveis de desinstitucionaliza- desinstitucionalização permite romper as
ção – modelo da habilitação social, inclusão fronteiras do tempo; 2) cada indivíduo tem
social, promoção social. um tempo para a desinstitucionalização.

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1238 RAMOS, D. K. R.

Conformam esse capítulo três artigos que teórico-prático com operadores como subje-
versam, em linhas gerais, sobre: as barreiras tividade, reciprocidade, espacialidade (para
da cronicidade em psiquiatria referidas pelo além da nosografia arquitetônica) e tempo-
autor como sendo o não lutar por uma legis- ralidade como fator preponderante para a
lação mais justa, não batalhar por recursos continuidade do processo de desinstitucio-
econômicos, não se preocupar com a defesa nalização – condição sine qua non para o
do profissionalismo e com a formação dos alcance de boas práticas em experiências de
profissionais e não usar indicadores idôneos desinstitucionalização, em especial, ressal-
de avaliação dos processos; a proposta de tamos como importante contribuição para
substituição da palavra reabilitação pela os estudos, saberes e práticas da Reforma
palavra habilitação, principalmente, por sua Psiquiátrica brasileira. s
referência temporal a um passado que nunca
existiu; e as palavras-chave da desinstitucio-
nalização – leveza, rapidez, exatidão, visibi-
lidade, multiplicidade, consistência.
A leitura da obra em questão promove
Recebido para publicação em maio de 2017
uma ampliação das concepções sobre de- Versão final em agosto de 2017
sinstitucionalização, sensibilizando o leitor/ Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
pesquisador para a importância do lidar

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