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Bernard Charlot*
Resumo Introdução
O texto discute a qualidade social
da escola pública e a formação docen- O Instituto Nacional de Estudos
te. Com base numa pesquisa do Insti- e Pesquisas Educacionais (Inep) do
tuto Nacional de Pesquisa e Estudos Ministério da Educação publicou, em
Educacionais (Inep) sobre a qualidade 2003 e 2004, três livrinhos sobre a
da educação nas 4a e 8a séries do ensi- “qualidade da educação”, avaliando as
no fundamental, o texto problematiza
vários conceitos, entre os quais o da 4a e 8a séries do ensino fundamental e
“qualidade da educação”, comumente a 3a série do ensino médio. Nesses se
usado de forma vaga e com um cará- estabelecem três pontos:
ter ideológico; a “qualidade social da a) Existe na escola brasileira um pro-
escola”, um conceito estranho. Cada blema de “qualidade da educação”.
sociedade tem uma escola que está de
acordo com ela, ou seja, a sociedade Com efeito, o “estágio de construção
tem uma escola com a “qualidade so- de competências” é “crítico” ou “mui-
cial” de que precisa. O texto conclui to crítico” por 60% dos estudantes
discutindo a questão de qual profes- da 4a série em português e 52% em
sor e de qual formação se fala e afir-
mando que não é qualquer formação
que pode contribuir para uma melho- *
Livre-docente pela Universite de Paris X (Paris-
ria da “qualidade da educação”. Nanterre), U.P. X, França. Doutor em Educação
também pela Universite de Paris X (Paris-Nan-
Palavras-chave: qualidade da escola, terre), U.P. X, França. Atuação profissional na
qualidade social da escola, formação Universite de Paris VIII, U.P. VIII, França. Atuou
também em universidades brasileiras como pro-
docente.
fessor e pesquisador visitante. É pesquisador do
CNPq e consultor da Unesco (escritório de Brasí-
lia, Setor de pesquisa).
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matemática. Na 8a série, as mesmas categorias reúnem 25% dos estudantes
(português) e 58% (matemática). Na 3a série do ensino médio, as percentagens
são 42% (português) e 67% (matemática). A seguir apresento a tabela completa
dos resultados.
Estágio de construção de competências (%)2
Português Matemática
4o EF 8o EF 3o EM 4o EF 8o EF 3o EM
Muito crítico 22,2 4,9 4,9 12,5 6,7 4,8
Crítico 36,8 20,1 37,2 39,8 51,7 62,6
Intermediário 36,2 64,8 52,5 40,9 38,9 26,6
Adequado 4,4 10,2 5,3 6,8 2,7 6
Avançado 0,4 0,1 - 0,0 0,1 -
Total 100 100 100 100 100 100
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duas as interpretações possíveis dos quer nos estudos estatísticos, valoriza
resultados: pode-se concluir que os às escondidas certos critérios de ava-
alunos não sabem o que eles têm de liação e, com base na avaliação assim
saber nesse nível, mas, igualmente, realizada, generaliza os resultados.
que não são pertinentes às próprias Esse processo é ideológico e gera efei-
expectativas. Nunca, porém, essa tos de mistificação. Se se quiser falar
interpretação aparece nos comentá- em qualidade da educação, sempre se
rios, como se as expectativas fossem deve dizer de qual ponto de vista se
objetos inquestionáveis, sagrados, avalia e de que se fala. Aliás, a meu
por serem oficiais. ver, é melhor não usar esse termo e fa-
c) Os resultados dos estudos são da- lar diretamente em que se quer falar.
dos numéricos (apresentados nos E quando alguém usa o termo “qua-
livrinhos). Para serem mais bem lidade”, peçam-lhe sempre em que
entendidos, os autores traduziram exatamente está falando. É uma boa
os números em categorias, cujo regra para não ser “enrolado”.
conteúdo não é ideologicamente
neutro. Certos estudantes estão
num estágio “crítico” (vocabulário
Qualidade social da escola:
da medicina). Será que eles arris- uma noção estranha
cam morrer daqui a pouco? Outros
estão num estágio “adaptado”. Fala-se no Brasil de “qualidade
Adaptado a quê? Às expectativas, social” da educação ou da escola. Não
à escola, à sociedade moderna, se usa essa noção na França e nunca a
ao século XXI? Não se sabe por- encontrei em textos escritos em inglês.
que não dizem. Alguns outros são Parece-me uma noção tipicamente bra-
“avançados” (vocabulário da corri- sileira, a não ser que seja usada tam-
da), infelizmente são raros. Quem bém em outros países da América do
lê os estudos sem distanciamento Sul. Em todo o caso, a noção apresenta
conclui que a escola brasileira é a vantagem de explicitar a postura so-
doente, quase moribunda (pois são ciopolítica de quem está falando: não
numerosos os estudantes em es- fala da qualidade no sentido neoliberal
tágio “crítico” ou “muito crítico”), do termo, e, sim, da qualidade social da
inadaptada e atrasada, quando, escola pública. Ao usar essa expressão,
na verdade, os estudos mostraram quem fala diz, implicitamente, que está
apenas que os alunos brasileiros do lado do povo.
não se apropriaram das competên- Assim, fica descartada a ambigüi-
cias em português e matemática dade ideológica. Mas nem por isso se
esperadas na sua série. torna claro o conteúdo da fala. De qual
ponto de vista uma educação ou uma
Para concluir, a noção de quali- escola pode ser considerada tendo
dade da educação, quer nos discursos, uma maior qualidade social? Por que
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brasileira: os estudos mencionados Neste momento da história do
estabelecem que, apesar de os seus re- Brasil, ao professor da escola pública
sultados sempre serem superiores aos cabe finalizar a escola pública do fi-
da escola pública, a escola particular nal do século XIX e, ao mesmo tempo,
só atinge o nível “intermediário”.5 Mas construir a escola pública do início do
tampouco são maravilhas as escolas do século XXI, com condições de salário e
Primeiro Mundo, que também se con- de trabalho que mais correspondem às
frontam com numerosos problemas. do século XIX do que às do século XXI.
Embora haja também boas esco Trata-se, sim, de um desafio militante.
las públicas no Brasil, muitas escolas Trata-se de um desafio para os poderes
públicas enfrentam inúmeros proble- públicos também. Por enquanto, fala-
mas: falta de equipamentos, excesso se muito em construir as infra-estrutu-
de alunos, baixo salário dos professo- ras de que o país precisa para competir
res, competências abaixo do esperado, na economia globalizada. Na minha
altas taxas de evasão e repetência, opinião, a escola pública é uma dessas
distorção idade/série etc. Além do infra-estruturas, bem como as que pos-
mais, no Brasil encontram-se fenôme sibilitam o transporte ou a produção
nos que se tornaram residuais nos de energia. Por isso, precisa de inves-
países do Primeiro Mundo, como tra- timentos pesados em equipamentos,
balho infantil (6,8% dos alunos da 4a recursos humanos, salários, formação.
série do grupo etário de 5 a 14 anos
trabalham), adultos com ensino fun-
damental incompleto, analfabetismo Formar professores sim,
(mais de 11%). mas quais?
Historicamente, a escola pública
brasileira assumiu uma função so- Nas últimas três décadas, em vários
cial difícil de proporcionar à socieda- países, inclusive na França e no Brasil,
de brasileira um nível educativo de mudou profundamente o modelo de for-
sobrevivência. Hoje, as formas com mação dos professores. Para entender
que ela funciona não condizem com essa mudança há de se compreender
a ambição brasileira de competir no que o que se espera hoje do professor já
mercado internacional globalizado, de não é o que se esperava outrora.
tal modo que, a sociedade quer mes- Em países como Prússia, França,
mo “uma escola pública de qualidade Inglaterra ou Estados-Unidos, a esco-
social”. Decerto, sobram freios, consti- la primária generalizou-se no decorrer
tuídos pelos que ainda se beneficiam do século XIX. Foi o século das revo-
do trabalho infantil, do trabalho qua- luções políticas, dos levantamentos
se escravizado, do coronelismo, mas o sociais, da afirmação dos Estados-na-
Brasil que avança quer mesmo uma ções. Esperava-se da escola pública
outra escola pública. que fosse um instrumento de controle
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Daí em diante, e ainda hoje, a Essa dificuldade cresce quando há
função central da escola não é mais de ensinar a alunos que não valorizam
de disciplinar o povo, mas de equipar o saber, como é cada vez mais o caso
os alunos com saberes e competências na escola contemporânea. Nesse caso,
úteis (versão do empresariado), com as condições básicas para ensinar não
diplomas (versão dos pais e dos alu- são reunidas quando se começa a en-
nos). Conseqüentemente, interessa-se sinar; devem ser construídas pelo pró-
pela eficácia da escola para produzir prio professor no decorrer do ensino. O
competências e levar os estudantes professor há de comprovar que vale a
aos diplomas e levanta-se a questão pena aprender, e nunca esse combate
da “qualidade” da educação e da esco- é ganho para sempre.
la. O professor passa a ser percebido Além do mais, a arma a ser usa-
como “profissional” capaz de produzir da pelo professor nesse combate lhe é
competências e estudantes diploma- imposta: ele deve ser construtivista. A
dos. Para tanto, apesar de terem sido opção construtivista é cientificamente
muito eficazes numa fase anterior da pertinente: em várias áreas de pesqui-
história da escola, as práticas pedago- sa foi estabelecido que só se apropria
gícas tradicionais e as escolas normais mesmo de um conhecimento quem o
não são adaptadas, devendo ser subs- constrói por meio da sua própria ati-
tituídas por práticas construtivistas e
vidade intelectual. A opção construti-
formação universitária.
vista atende também a um pedido da
Entretanto, ao definir o professor
sociedade que, em face das mudanças
como um engenheiro em produção de
rápidas e repetidas nas formas de pro-
alunos modernos, esquece-se de uma
dução e consumo, insta por uma educa-
caraterística fundamental e específica
ção que estimule a atividade criativa.
da sua atuação: a atividade do profes-
O problema é que a opção construti-
sor não produz diretamente os seus
efeitos, produz apenas indiretamente. vista requer que o aluno aceite aden-
O que faz o aluno ter conhecimentos e trar a atividade intelectual. Ora, essa
competências é a sua própria atividade é a maior dificuldade em que esbarra
intelectual; logo, se ele não se mobilizar o professor na escola atual.
intelectualmente, não aprenderá, seja Portanto, há de se formar o futuro
qual for a prática do docente. Decerto, professor para um método que chama-
a atuação do docente é essencial para rei de “construtivismo democrático”.
que essa atividade do aluno aconteça e Muitas vezes, o método construtivista
seja eficaz, contudo, por mais essencial só é eficaz com estudantes já dispostos
que seja, nunca é suficiente. O docente a entrar numa atividade intelectual.
deve fazer algo para que o aluno faça, O construtivismo democrático traz a
sem, com isso, ter a certeza de que o exigência de que todos os estudantes
aluno fará. Portanto, o trabalho do pro- se mobilizem. Não é fácil atingir este
fessor é estruturalmente marcado por objetivo. Todavia, conhecem-se alguns
um coeficiente de incerteza. princípios pedagógicos a serem acata-
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dos. Entre esses, os mais importantes, • deve aceitar a alteridade das cul-
a meu ver, são os seguintes: turas, das lógicas, dos sujeitos
• o trabalho do professor não consis singulares (sem, por isso, desis-
te somente em levar respostas, tir de transmitir os saberes e as
consiste também em fazer surgir competências específicos que só a
questões, problemas, que desper- escola pode propiciar aos jovens).
tem o interesse do estudante;
Não é sempre fácil assumir es-
• o ato pedagógico deve levar em
sas posturas éticas e esses princípios
conta as “concepções” do aluno,
profissionais. Portanto, ensinar, ainda
isto é, esses conjuntos de saberes
mais ensinar em condições difíceis,
cotidianos, imagens e conhecimen
requer um trabalho psicológico sobre
tos escolares murchos que o estu-
si mesmo que possibilite ao docente
dante já tem em mente quando
enfrentar a incerteza, o imprevisto,
recebe o ensino; a dificuldade não
as contradições. Desse ponto de vista,
é que o aluno “não sabe nada”,
considero o senso de humor como uma
como dizem muitas vezes, e, sim,
qualidade preciosa para sobreviver
que ele já sabe coisas, meio certas
numa escola pública.
e meio erradas;
É claro que essas posturas pro-
• muitas vezes o erro é o resultado
fissionais, éticas e psicológicas são
de um raciocínio que se desenrola
coerentes umas com as outras. O con-
numa lógica errada; quem pensa
junto delas reconstitui, sob uma forma
que o estudante é bobo e não ten-
adaptada à sociedade atual, aquela
ta compreender a lógica dele não
unidade do político, do profissional e
consegue corrigir esse erro.
da imagem de si mesmo que conferiu
Esses princípios professionais força e eficácia aos docentes que assu-
re
querem uma determinada postura miram a generalização da escola pri-
ética. Assim como o médico, o policial mária na França.
e alguns demais profissionais, o pro- Esse conjunto define, igualmen-
fessor não pode atuar eficientemente te, os objetivos a serem visados pela
em bairros pobres se não acata alguns formação dos professores. É claro
princípios éticos: que a escola deve ser norteada pelos
• deve ser profundamente convenci princípios e posturas mencionados, o
do de que cada ser humano é que implica que haja uma coerência
edu
cável. Quem não aposta na entre forma e conteúdo da formação:
educabilidade do ser humano não não faz sentido desenrolar por horas
consegue ensinar com eficácia, discursos sobre o construtivismo, sem
muito menos nos bairros pobres; nunca criar oportunidades para uma
• deve considerar a educação como atividade do formando e do grupo de
um direito fundamental do ser formandos. Isso implica, também, que
humano; o formador não adote comportamentos
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de “coronel” universitário. É professor quality” which it needs. The text con-
universitário e pesquisador; portanto, cludes by discussing the question of
tem conhecimentos que o formando what teacher and what shaping if the
não tem, mas nem por isso sabe tudo. contending that not just any shaping
É, igualmente, um perito, que conhece can contribute to the improvement of
bem a realidade das escolas e dispõe de “educational quality”.
propostas concretas para os forman-
dos tentarem resolver os problemas Key-words: school quality, social qua-
que encontrarão na sala de aula. Por lity of the school, teacher’s shaping.
fim, é um treinador: quem se forma é
o formando, mas, para tanto, precisa
da ajuda do formador. Notas
Posto tudo isso, ainda não temos Este texto decorre da palestra ministrada por Ber-
1
lity of the public school and the sha- elevador “social” não é o elevador do povo e a rubri-
ping of teachers. Based on a research ca “social” das revistas não fala das empregadas,
mas das suas donas.
of the National Institute of Research 5
Confortando a minha idéia de que talvez sejam er-
and Educational Studies (Inep) on the radas as próprias exigências relativas aos níveis a
quality of education in the fourth and serem atingidas.
eighth grades of high school, the text
makes an issue out of several concepts
among which there is the “quality of
education”, commonly used in a vague
way and with an ideological featu-
re, the “social quality of the school”,
a strange concept. Each society has
a school which is like it, that is, the
society has a school with the “social
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