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Qualidade social da escola pública...

Qualidade social da escola pública e


formação dos docentes 1

Social quality of the public school and the shaping of teachers

Bernard Charlot*

Resumo Introdução
O texto discute a qualidade social
da escola pública e a formação docen- O Instituto Nacional de Estudos
te. Com base numa pesquisa do Insti- e Pesquisas Educacionais (Inep) do
tuto Nacional de Pesquisa e Estudos Ministério da Educação publicou, em
Educacionais (Inep) sobre a qualidade 2003 e 2004, três livrinhos sobre a
da educação nas 4a e 8a séries do ensi- “qualidade da educação”, avaliando as
no fundamental, o texto problematiza
vários conceitos, entre os quais o da 4a e 8a séries do ensino fundamental e
“qualidade da educação”, comumente a 3a série do ensino médio. Nesses se
usado de forma vaga e com um cará- estabelecem três pontos:
ter ideológico; a “qualidade social da a) Existe na escola brasileira um pro-
escola”, um conceito estranho. Cada blema de “qualidade da educação”.
sociedade tem uma escola que está de
acordo com ela, ou seja, a sociedade Com efeito, o “estágio de construção
tem uma escola com a “qualidade so- de competências” é “crítico” ou “mui-
cial” de que precisa. O texto conclui to crítico” por 60% dos estudantes
discutindo a questão de qual profes- da 4a série em português e 52% em
sor e de qual formação se fala e afir-
mando que não é qualquer formação
que pode contribuir para uma melho- *
Livre-docente pela Universite de Paris X (Paris-
ria da “qualidade da educação”. Nanterre), U.P. X, França. Doutor em Educação
também pela Universite de Paris X (Paris-Nan-
Palavras-chave: qualidade da escola, terre), U.P. X, França. Atuação profissional na
qualidade social da escola, formação Universite de Paris VIII, U.P. VIII, França. Atuou
também em universidades brasileiras como pro-
docente.
fessor e pesquisador visitante. É pesquisador do
CNPq e consultor da Unesco (escritório de Brasí-
lia, Setor de pesquisa).

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matemática. Na 8a série, as mesmas categorias reúnem 25% dos estudantes
(português) e 58% (matemática). Na 3a série do ensino médio, as percentagens
são 42% (português) e 67% (matemática). A seguir apresento a tabela completa
dos resultados.
Estágio de construção de competências (%)2
Português Matemática
4o EF 8o EF 3o EM 4o EF 8o EF 3o EM
Muito crítico 22,2 4,9 4,9 12,5 6,7 4,8
Crítico 36,8 20,1 37,2 39,8 51,7 62,6
Intermediário 36,2 64,8 52,5 40,9 38,9 26,6
Adequado 4,4 10,2 5,3 6,8 2,7 6
Avançado 0,4 0,1 - 0,0 0,1 -
Total 100 100 100 100 100 100

b) A análise estatística estabelece brasileira é medíocre, que o fenômeno


uma relação entre desempenho tem causas sociais e que a formação
crítico ou muito crítico e pobreza, dos professores constitui o melhor re-
exclusão social, trabalho infantil. médio para resolver o problema. Na
Os percentuais de estudantes com verdade, não é tão claro assim. Repa-
esse desempenho são superiores rei três problemas:
nas regiões Nordeste e Norte em a) “qualidade da educação” é uma no-
relação às regiões Sudeste e Sul. ção vaga, cujo conteúdo é antes de
Com base nesses resultados, pode- tudo ideológico;
se dizer que a questão da qualidade b) “qualidade social da escola” é uma
da educação é um problema social. noção estranha. Com efeito, do
c) A questão da formação de profes- ponto de vista sociológico, cada
sores é “um dos principais fatores sociedade tem uma escola que,
que incidem sobre a melhoria da por definição, condiz com ela. Por-
qualidade da educação. Os resul- tanto, tem uma escola que apre-
tados de diferentes sistemas de senta a “qualidade social”, de que
avaliação sugerem uma forte as- ela precisa;
sociação entre o desempenho dos c) em qual professor e de qual for-
alunos e a escolaridade do profes- mação falamos? Nessas últimas
sor, salientando a urgência de se décadas ocorreram muitas mu-
investir em programas eficazes danças na profissão e na formação
de formação inicial e continuada dos professores. Não é qualquer
dos docentes”.3 formação que pode contribuir
Com base nessas avaliações, pa- para uma melhoria da “qualidade
rece claro que a qualidade da escola da educação”.

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Abordarei sucessivamente esses acolhidos? Se não forem enunciados os


três pontos. critérios para avaliar a qualidade, por-
tanto, se não forem definidos os obje-
tivos fundamentais a serem atingidos
Qualidade da educação: pela escola, os discursos sobre a quali-
uma noção ideológica dade têm por única função transmitir
às escondidas pseudo-evidências, cujo
A noção de qualidade da educa- conteúdo, na verdade, é ideológico.
ção apareceu nos debates na década Até os estudos sérios produzem
de 1980. Propagada pelos discursos efeitos ideológicos quando usam a no-
dos políticos, das instituições interna- ção de qualidade. É o caso dos estu-
cionais e dos jornalistas, espalhou-se dos do Inep mencionados. São estudos
rapidamente, por razões ideológicas. úteis e tecnicamente bem feitos, mas a
Aos políticos, permitiu dizer, implici- forma como os resultados são apresen-
tamente, que o problema fundamen- tados levanta três problemas:
tal não era o dos recursos atribuídos a) Enquanto foram avaliadas com-
à escola, e, sim, o do uso desses recur- petências em português e ma-
sos. É claro que essa idéia agradava temática, o título dos livrinhos
aos governos num período de arrocho anuncia estudos sobre “qualidade
orçamentário. Aos seguidores do neo- da educação”. Será que se trata
liberalismo, permitiu falar da escola da mesma coisa? Claro que não,
na lógica do mercado. As escolas, bem a “qualidade da educação” não se
como as mercadorias, são de qualidade restringe às competências nessas
variável. Nessa interpretação, a noção duas matérias. Ao anunciar um
de qualidade foi utilizada para criti- estudo sobre a “qualidade da edu-
car a escola pública, supostamente de cação”, cria-se o risco de que os
baixa qualidade, e contribuiu para o resultados estejam sendo usados
desenvolvimento da escola particular. para sustentar opiniões gerais
Aos militantes de esquerda, a noção sobre o ensino, a escola pública,
permitiu reafirmar a educação como o professor e sua formação, em
um direito e exigir uma escola pública discursos onde se falam de coisas
de qualidade para todos. outras que a aprendizagem da
Percebe-se que o conteúdo inte- leitura e a compreensão dos pro-
lectual da noção é vago. O que faz uma blemas de matématica.
educação ou uma escola ter maior b) Na verdade, o que foi avaliado é a
qualidade do que as demais? É por- diferença entre o que se espera dos
que ela possibilita passar no vestibu- alunos num determinado nível da
lar, melhor compreender o mundo e a escola, por um lado, e, por outro, os
vida, apropriar-se mesmo de saberes, saberes e competências de que se
e tornar-se um bom cidadão? É porque apropriaram mesmo. Portanto, são
a merenda é gostosa e os pais são bem

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duas as interpretações possíveis dos quer nos estudos estatísticos, valoriza
resultados: pode-se concluir que os às escondidas certos critérios de ava-
alunos não sabem o que eles têm de liação e, com base na avaliação assim
saber nesse nível, mas, igualmente, realizada, generaliza os resultados.
que não são pertinentes às próprias Esse processo é ideológico e gera efei-
expectativas. Nunca, porém, essa tos de mistificação. Se se quiser falar
interpretação aparece nos comentá- em qualidade da educação, sempre se
rios, como se as expectativas fossem deve dizer de qual ponto de vista se
objetos inquestionáveis, sagrados, avalia e de que se fala. Aliás, a meu
por serem oficiais. ver, é melhor não usar esse termo e fa-
c) Os resultados dos estudos são da- lar diretamente em que se quer falar.
dos numéricos (apresentados nos E quando alguém usa o termo “qua-
livrinhos). Para serem mais bem lidade”, peçam-lhe sempre em que
entendidos, os autores traduziram exatamente está falando. É uma boa
os números em categorias, cujo regra para não ser “enrolado”.
conteúdo não é ideologicamente
neutro. Certos estudantes estão
num estágio “crítico” (vocabulário
Qualidade social da escola:
da medicina). Será que eles arris- uma noção estranha
cam morrer daqui a pouco? Outros
estão num estágio “adaptado”. Fala-se no Brasil de “qualidade
Adaptado a quê? Às expectativas, social” da educação ou da escola. Não
à escola, à sociedade moderna, se usa essa noção na França e nunca a
ao século XXI? Não se sabe por- encontrei em textos escritos em inglês.
que não dizem. Alguns outros são Parece-me uma noção tipicamente bra-
“avançados” (vocabulário da corri- sileira, a não ser que seja usada tam-
da), infelizmente são raros. Quem bém em outros países da América do
lê os estudos sem distanciamento Sul. Em todo o caso, a noção apresenta
conclui que a escola brasileira é a vantagem de explicitar a postura so-
doente, quase moribunda (pois são ciopolítica de quem está falando: não
numerosos os estudantes em es- fala da qualidade no sentido neoliberal
tágio “crítico” ou “muito crítico”), do termo, e, sim, da qualidade social da
inadaptada e atrasada, quando, escola pública. Ao usar essa expressão,
na verdade, os estudos mostraram quem fala diz, implicitamente, que está
apenas que os alunos brasileiros do lado do povo.
não se apropriaram das competên- Assim, fica descartada a ambigüi-
cias em português e matemática dade ideológica. Mas nem por isso se
esperadas na sua série. torna claro o conteúdo da fala. De qual
ponto de vista uma educação ou uma
Para concluir, a noção de quali- escola pode ser considerada tendo
dade da educação, quer nos discursos, uma maior qualidade social? Por que

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o seu índice de reprovação e evasão Quando se fala de melhorar a


é menor? Por que os alunos acedem qualidade social da escola pública, há
mesmo ao saber? Por que eles não são de perguntar quem fará o trabalho.
violentos nem drogados? É de se es- A escola pública foi construída para
perar que o significado de “qualidade beneficiar os dominantes numa socie-
social” varie de acordo com a situação dade profundamente marcada pelas
social e as opções éticas e políticas de desigualdades sociais. Sendo assim,
quem a emprega. quem quer mudar essa escola, por que
Além disso, a expressão “qualida- e usando quais forças? Se essa ques-
de social” esbarra numa dificuldade tão não for levantada e levada a sério,
específica. A sociologia evidenciou a todos os discursos sobre a melhoria da
relação entre as estruturas da socie- escola pública não passarão de discur-
dade e sua escola. Cada sociedade tem sos, por mais generosos que sejam.
uma escola que, por definição, condiz Não é facil responder a essas per-
com ela; portanto, tem uma escola que guntas, muito menos quando não se é
apresenta a “qualidade social” de que brasileiro. Todavia, levantarei algu-
ela precisa. Será que, quando se fala mas hipóteses, que não têm outra am-
na qualidade social da escola pública bição senão contribuir para o debate.
brasileira, afirma-se que essa escola O Brasil demorou para generali-
deve refletir as estruturas sociais do zar o ensino fundamental, mas afinal
Brasil? Certo que não. Na expressão conseguiu. Hoje, escolariza 97% dos
“qualidade social” o termo “social” re- jovens entre 7 e 14 anos e a meta prio-
mete ao povo, aos “desfavorecidos”,4 à ritária passa a ser a generalização do
exigência de bem formar as crianças ensino médio e o crescimento do ensino
dos pobres, de possibilitar-lhes enten- superior. Desse ponto de vista, o Brasil
der a vida e a sociedade, de providen- quase pertence ao chamado “Primeiro
ciar-lhes oportunidades de ascenção Mundo”, embora tenha aproximada-
social. Assim explicitada, a noção pas- mente vinte anos de atraso com rela-
sa a ser mais clara, mas a dificuldade
ção a este. Dispõe das bases escolares
permanece: quem deve melhorar a
que lhe permitem participar da com-
“qualidade social da escola pública”?
petição econômica globalizada.
Será que essa tarefa cabe ao pró-
Entretanto, essa abordagem há
prio docente, assim convidado a traba-
de ser completada por outras consta-
lhar contra as forças dominantes da so-
tações, menos otimistas. Com efeito, a
ciedade que o paga, portanto, a cumprir
generalização do ensino fundamental
funções militantes na sua atividade pro-
foi realizada sob forma binária, com
fissional? Será que a própria sociedade
escolas públicas e particulares. A es-
pede uma melhoria da escola pública?
cola particular pode ser equiparada às
Mas se a sociedade quisesse, mesmo,
uma escola pública de qualidade social, escolas do Primeiro Mundo. Decerto,
por que ela ainda não a construiu? não é essa maravilha que às vezes pa-
rece ser nos discursos sobre a escola

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brasileira: os estudos mencionados Neste momento da história do
estabelecem que, apesar de os seus re- Brasil, ao professor da escola pública
sultados sempre serem superiores aos cabe finalizar a escola pública do fi-
da escola pública, a escola particular nal do século XIX e, ao mesmo tempo,
só atinge o nível “intermediário”.5 Mas construir a escola pública do início do
tampouco são maravilhas as escolas do século XXI, com condições de salário e
Primeiro Mundo, que também se con- de trabalho que mais correspondem às
frontam com numerosos problemas. do século XIX do que às do século XXI.
Embora haja também boas esco­ Trata-se, sim, de um desafio militante.
las públicas no Brasil, muitas escolas Trata-se de um desafio para os poderes
públicas enfrentam inúmeros proble- públicos também. Por enquanto, fala-
mas: falta de equipamentos, excesso se muito em construir as infra-estrutu-
de alunos, baixo salário dos professo- ras de que o país precisa para competir
res, competências abaixo do esperado, na economia globalizada. Na minha
altas taxas de evasão e repetência, opinião, a escola pública é uma dessas
distorção idade/série etc. Além do infra-estruturas, bem como as que pos-
mais, no Brasil encontram-se fenôme­ sibilitam o transporte ou a produção
nos que se tornaram residuais nos de energia. Por isso, precisa de inves-
paí­ses do Primeiro Mundo, como tra- timentos pesados em equipamentos,
balho infantil (6,8% dos alunos da 4a recursos humanos, salários, formação.
série do grupo etário de 5 a 14 anos
trabalham), adultos com ensino fun-
damental incompleto, analfabetismo Formar professores sim,
(mais de 11%). mas quais?
Historicamente, a escola pública
brasileira assumiu uma função so- Nas últimas três décadas, em vários
cial difícil de proporcionar à socieda- países, inclusive na França e no Brasil,
de brasileira um nível educativo de mudou profundamente o modelo de for-
sobrevivência. Hoje, as formas com mação dos professores. Para entender
que ela funciona não condizem com essa mudança há de se compreender
a ambição brasileira de competir no que o que se espera hoje do professor já
mercado internacional globalizado, de não é o que se esperava outrora.
tal modo que, a sociedade quer mes- Em países como Prússia, França,
mo “uma escola pública de qualidade Inglaterra ou Estados-Unidos, a esco-
social”. Decerto, sobram freios, consti- la primária generalizou-se no decorrer
tuídos pelos que ainda se beneficiam do século XIX. Foi o século das revo-
do trabalho infantil, do trabalho qua- luções políticas, dos levantamentos
se escravizado, do coronelismo, mas o sociais, da afirmação dos Estados-na-
Brasil que avança quer mesmo uma ções. Esperava-se da escola pública
outra escola pública. que fosse um instrumento de controle

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social, político e ideológico. Tratava-se importantíssimo: existia uma profunda


de “moralizar o povo pela educação”, coerência entre o projeto político de es-
como diziam na França. Proposta cola pública e as práticas pedagógicas
pela burguesia moderna (a que prefe- dos docentes. O projeto de moralização
ria a “moralização do povo” do que o do povo realizava-se por meio de uma
uso da força) e aceita aos poucos pelo pedagogia do trabalho e da regra. A
movimento social (que precisava, ele função das instituições de formação de
também, de militantes disciplinados, docentes (na França as célebres écoles
sabendo ler e escrever, valorizando normales, imitadas por muitos países
o trabalho e afirmando a dignidade no mundo) era assegurar esse encontro
do povo), a escola pública não foi um entre um projeto político e práticas pe-
problema, foi uma solução social e po- dagógicas normatizadas.
lítica. No fim do século, razões socioe- A partir da década de 1960 mudou
conômicas acrescentaram-se às razões completamente a lógica, que passou a
idéológicas: a sociedade precisava de ser socioeconômica. O desenvolvimento
uma minoria de operários bem forma- econômico transformou profundamen-
dos e de pequenos funcionários para te os padrões de produção e de consumo
os serviços públicos ou privados. e, para essa nova sociedade, fizeram-se
Na escola primária ensinavam do- necessários produtores e consumido-
centes oriundos das camadas superio- res cujo nível de formação fosse mais
res do povo ou das camadas inferiores alto. Portanto, abriu-se a todos o início
da burguesia. Em ambos os casos, eles do ensino secundário (nas décadas de
cumpriam uma função de ligação entre 1960 e 1970) e, em seguida, este ensi-
classes sociais. Estavam, pelas condi- no todo, (nas décadas de 1980 e 1990).
ções de vida, próximos ao povo; pela Essa abertura desestabilizou os anti-
cultura, próximos à burguesia. Ganha- gos ensinos primário e secundário. O
vam pouco, mas o suficiente para terem primário tornou-se um ensino prepara-
uma vida de pequena classe média. tório ao ensino secundário e não cons-
Estavam formados ao nível de fim tituiu mais um ensino completo, tendo
do ensino fundamental e, mais tarde, em si mesmo a sua razão de ser e a sua
de fim do ensino médio (com referên- própria coerência. O ensino secundá-
cias aos níveis brasileiros atuais); rio teve de acolher as novas camadas
re­cebiam uma formação profissional sociais, cujos filhos nele encontraram
voltada à pedagogia hoje chamada de uma cultura alheia a seu modo de viver
“tradicional”; valorizavam a disciplina, e trabalhar. Foram à escola para ter
o trabalho, o respeito às regras (seja no um “bom emprego” mais tarde, como
comportamento, seja na gramática) e era o caso dos filhos da classe média,
propagavam uma cultura de base (ler, mas, ao contrário destes, sem achar
escrever, contar, geografia e história nela algum prazer ou sentido. Portan-
do país, conhecimento do meio natural to, mudou, igualmente, a relação com o
ambiente). Há de se salientar um ponto saber e a escola.

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Daí em diante, e ainda hoje, a Essa dificuldade cresce quando há
fun­ção central da escola não é mais de ensinar a alunos que não valorizam
de disciplinar o povo, mas de equipar o saber, como é cada vez mais o caso
os alunos com saberes e competências na escola contemporânea. Nesse caso,
úteis (versão do empresariado), com as condições básicas para ensinar não
diplomas (versão dos pais e dos alu- são reunidas quando se começa a en-
nos). Conseqüentemente, interessa-se sinar; devem ser construídas pelo pró-
pela eficácia da escola para produzir prio professor no decorrer do ensino. O
competências e levar os estudantes professor há de comprovar que vale a
aos diplomas e levanta-se a questão pena aprender, e nunca esse combate
da “qualidade” da educação e da esco- é ganho para sempre.
la. O professor passa a ser percebido Além do mais, a arma a ser usa-
como “profissional” capaz de produzir da pelo professor nesse combate lhe é
competências e estudantes diploma- imposta: ele deve ser construtivista. A
dos. Para tanto, apesar de terem sido opção construtivista é cientificamente
muito eficazes numa fase anterior da pertinente: em várias áreas de pesqui-
história da escola, as práticas pedago- sa foi estabelecido que só se apropria
gícas tradicionais e as escolas normais mesmo de um conhecimento quem o
não são adaptadas, devendo ser subs- constrói por meio da sua própria ati-
tituídas por práticas construtivistas e
vidade intelectual. A opção construti-
formação universitária.
vista atende também a um pedido da
Entretanto, ao definir o professor
sociedade que, em face das mudanças
como um engenheiro em produção de
rápidas e repetidas nas formas de pro-
alunos modernos, esquece-se de uma
dução e consumo, insta por uma educa-
caraterística fundamental e específica
ção que estimule a atividade criativa.
da sua atuação: a atividade do profes-
O problema é que a opção construti-
sor não produz diretamente os seus
efeitos, produz apenas indiretamente. vista requer que o aluno aceite aden-
O que faz o aluno ter conhecimentos e trar a atividade intelectual. Ora, essa
competências é a sua própria atividade é a maior dificuldade em que esbarra
intelectual; logo, se ele não se mobilizar o professor na escola atual.
intelectualmente, não aprenderá, seja Portanto, há de se formar o futuro
qual for a prática do docente. Decerto, professor para um método que chama-
a atuação do docente é essencial para rei de “construtivismo democrático”.
que essa atividade do aluno aconteça e Muitas vezes, o método construtivista
seja eficaz, contudo, por mais essencial só é eficaz com estudantes já dispostos
que seja, nunca é suficiente. O docente a entrar numa atividade intelectual.
deve fazer algo para que o aluno faça, O construtivismo democrático traz a
sem, com isso, ter a certeza de que o exigência de que todos os estudantes
aluno fará. Portanto, o trabalho do pro- se mobilizem. Não é fácil atingir este
fessor é estruturalmente marcado por objetivo. Todavia, conhecem-se alguns
um coeficiente de incerteza. princípios pedagógicos a serem acata-

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dos. Entre esses, os mais importantes, • deve aceitar a alteridade das cul-
a meu ver, são os seguintes: turas, das lógicas, dos sujeitos
• o trabalho do professor não consis­ singulares (sem, por isso, desis-
te somente em levar respostas, tir de transmitir os saberes e as
consiste também em fazer surgir competências específicos que só a
questões, problemas, que desper- escola pode propiciar aos jovens).
tem o interesse do estudante;
Não é sempre fácil assumir es-
• o ato pedagógico deve levar em
sas posturas éticas e esses princípios
conta as “concepções” do aluno,
profissionais. Portanto, ensinar, ainda
isto é, esses conjuntos de saberes
mais ensinar em condições difíceis,
cotidianos, imagens e conhecimen­
requer um trabalho psicológico sobre
tos escolares murchos que o estu-
si mesmo que possibilite ao docente
dante já tem em mente quando
enfrentar a incerteza, o imprevisto,
recebe o ensino; a dificuldade não
as contradições. Desse ponto de vista,
é que o aluno “não sabe nada”,
considero o senso de humor como uma
como dizem muitas vezes, e, sim,
qualidade preciosa para sobreviver
que ele já sabe coisas, meio certas
numa escola pública.
e meio erradas;
É claro que essas posturas pro-
• muitas vezes o erro é o resultado
fissionais, éticas e psicológicas são
de um raciocínio que se desenrola
coerentes umas com as outras. O con-
numa lógica errada; quem pensa
junto delas reconstitui, sob uma forma
que o estudante é bobo e não ten-
adaptada à sociedade atual, aquela
ta compreender a lógica dele não
unidade do político, do profissional e
consegue corrigir esse erro.
da imagem de si mesmo que conferiu
Esses princípios professionais força e eficácia aos docentes que assu-
re­
querem uma determinada postura miram a generalização da escola pri-
ética. Assim como o médico, o policial mária na França.
e alguns demais profissionais, o pro- Esse conjunto define, igualmen-
fessor não pode atuar eficientemente te, os objetivos a serem visados pela
em bairros pobres se não acata alguns formação dos professores. É claro
princípios éticos: que a escola deve ser norteada pelos
• deve ser profundamente convenci­ princípios e posturas mencionados, o
do de que cada ser humano é que implica que haja uma coerência
edu­
cável. Quem não aposta na entre forma e conteúdo da formação:
educabilidade do ser humano não não faz sentido desenrolar por horas
consegue ensinar com eficácia, discursos sobre o construtivismo, sem
mui­to menos nos bairros pobres; nunca criar oportunidades para uma
• deve considerar a educação como atividade do formando e do grupo de
um direito fundamental do ser formandos. Isso implica, também, que
humano; o formador não adote comportamentos

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de “coronel” universitário. É professor quality” which it needs. The text con-
universitário e pesquisador; portanto, cludes by discussing the question of
tem conhecimentos que o formando what teacher and what shaping if the
não tem, mas nem por isso sabe tudo. contending that not just any shaping
É, igualmente, um perito, que conhece can contribute to the improvement of
bem a realidade das escolas e dispõe de “educational quality”.
propostas concretas para os forman-
dos tentarem resolver os problemas Key-words: school quality, social qua-
que encontrarão na sala de aula. Por lity of the school, teacher’s shaping.
fim, é um treinador: quem se forma é
o formando, mas, para tanto, precisa
da ajuda do formador. Notas
Posto tudo isso, ainda não temos Este texto decorre da palestra ministrada por Ber-
1

a certeza de que o formando será um nard Charlot na abertura da Semana de Educação


bom professor. Como já disse, o tra- da UFS, Aracaju, no dia 30 de maio de 2005. Foi
publicado em Anais da V Semana de Educação,
balho do professor é marcado por um “Formação docente e qualidade social da escola
coeficiente de incerteza. Acrescento pública”, CDRom, Universidade Federal de Ser-
gipe, Departamento de Educação.
agora: o trabalho do formador é mar-
2
BRASIL. Ministério da Educação, Inep, Qualidade
cado por um coeficiente de incerteza da educação: uma nova leitura do desempenho
elevado ao quadrado. Sempre educar é dos estudantes da 4a série do ensino fundamental
uma aposta, formar educadores é uma (abril 2003); Qualidade da educação: uma nova lei-
tura do desempenho dos estudantes da 8a série do
aposta ao quadrado. ensino fundamental (dezembro 2003); Qualidade
da educação: uma nova leitura do desempenho dos
estudantes da 3a série do ensino médio (janeiro
Abstract 2004).
3
Livrinho sobre a 4a série, p. 4. Encontra-se a mes-
ma frase no livrinho sobre a 8a série, p. 7.
The text discusses the social qua-
O que não deixa de ser um tanto estranho, pois o
4

lity of the public school and the sha- elevador “social” não é o elevador do povo e a rubri-
ping of teachers. Based on a research ca “social” das revistas não fala das empregadas,
mas das suas donas.
of the National Institute of Research 5
Confortando a minha idéia de que talvez sejam er-
and Educational Studies (Inep) on the radas as próprias exigências relativas aos níveis a
quality of education in the fourth and serem atingidas.
eighth grades of high school, the text
makes an issue out of several concepts
among which there is the “quality of
education”, commonly used in a vague
way and with an ideological featu-
re, the “social quality of the school”,
a strange concept. Each society has
a school which is like it, that is, the
society has a school with the “social

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