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RESUMO
Entrando em diálogo com pensadores clássicos e modernos (como Adorno, Brecht, Benjamin)
Boal busca na arte, enquanto processo de subjetivação capaz de alterar o estado de
subalternidade, o antidoto aos regimes de opressão. O ator, superativado politicamente em
função de Curinga, torna-se uma espécie de filósofo platônico cujas andanças para dentro e
para fora da caverna (do palco) no esforço de revelar a Verdade, não são em vão. O artigo
acompanha a tentativa de Boal de franquear a arte da proscrição platônica à luz de conceitos
de filósofos contemporâneos (Foucault, Agamben, Rancière).
ABSTRACT
Quoting classical and modern thinkers (such as Adorno, Brecht, Benjamin), Boal try to reveal in
art the antidote against oppression. In the case of theatre, actor is super-activated as jolly, a
kind of platonic philosopher whose efforts in revealing Truth is not in vain. Arguing Boal´s ideas
with contemporary philosophers’, such as Foucault, Rancière, Agamben)
Cabe notar que, ao longo de todo o seu percurso político-teatral, Boal se mantém
atento a não abastecer o sistema dominante, interrompendo constantemente
seja a sua possível integração (como artista e intelectual, detentor de fama e de
direitos autorais) e seja a abdução das técnicas pelo aparelho repressor (como
no caso do teatro do oprimido virar produto contratado por empresas). Como
aponta Walter Benjamin (1985), para manter a arte como arma na luta contra a
opressão, para impedir que entre ao serviço dos regimes de consenso e
totalitários, não basta liberar e multiplicar os meios de produção: é preciso re-
funcionaliza-los. Qualquer recurso (objeto físico ou sonoro, imagens, dados
estatísticos, slogans, provérbios, lendas, histórias e até mesmo o ator com seu
repertório gestual e verbal) pode se tornar material para um novo regime estético
desde o momento que é desnaturalizado, isso é, analisado no contexto da
opressão que simboliza ou produz. Qualquer espaço (praça, rua, salão de igreja,
de escola, de hospital psiquiátrico ou sindicato, até mesmo um teatro) pode se
tornar lugar de um novo regime estético desde que sejam suspendidas as
normas de conduta ali aplicadas como dispositivos de manutenção da vigilância,
do controle e da opressão. Qualquer arte (dança, pintura, poesia, instalação,
canto e até mesmo representação) pode se tornar uma pratica de presença que
transgrede o mapa, suspende o sentido das condutas rotineiras e revela
interrogações coletivas sobre qual sociedade o mapa hospeda e as condutas
obedecem. A produção, dentro da cartografia oficial dos espaços, de outro
“território humano”, mesmo que temporário e efêmero, mas livre de qualquer
alienação, coerção e controle pois embasado em características ideias de
convivência, tal como isonomia, acessibilidade e livre expressão de desejos de
transformação, parece constituir uma concreta estratégia de invenção de um
outro mundo. Não porém um outro mundo imaginário, sem lugar real (uma
utopia) mas, sim, um outro mundo concreto, “fora de todos os lugares reais
embora seja efetivamente localizável” (uma heterotopia, citando Foucault, 2009),
onde a realidade se dá como é e, contemporaneamente, como poderia ser.
Quando, nas cidades-estados gregas, a multidão (oi polloi) instituiu a política
como assembleia pública, o fez deslocando seus corpos no espaço urbano
aparelhado e interrompendo o fluxo ordenado do cotidiano com a tomada da
palavra por parte de quem não tem parte no comum. Para desconcerto de Platão,
a própria democracia em sua origem é um contra dispositivo, uma irrupção da
multidão dos oprimidos que revela um desajuste e dá visibilidade ao que era
invisível, dá voz ao que não era ouvido, representa o irrepresentável, como
aponta Jacques Rancière no Desentendimento (1996). Neste sentido,
reformulando a pergunta da Gayatri Spivak (1992) sobre a possibilidade do
oprimido (subaltern) falar, parece mais interessante indagar de que modo o
subalterno pode ser ouvido. A resposta de Rancière diz respeito à reintrodução
da dimensão política no espaço público, a partir da irrupção dos que não tem
parte no comum, deslocamento que por si só desvela a pura contingencia de
qualquer ordem social e denuncia a ausência de qualquer fundamento para a
opressão de um ser humano pelo outro e dominação de uma classe sobre outra.
No Espectador emancipado, Rancière reconhece neste deslocamento de corpos
e derrubada da distribuição convencional de lugares que ocorre quando
subalternos tomam a palavra, na assembleia publica assim como no teatro, mais
do que uma aventura intelectual: a “demanda de que o teatro alcance, como sua
essência, a reunião de uma comunidade” (2012, 118). Tal potência de criação
do comum – um território autônomo mesmo que temporário, onde todas as vozes
podem ser ouvidas e todos os corpos serem representados como espect-atores
de sua própria história – instituiria um novo estágio de igualdade, onde “os
diferentes tipos de espetáculo se traduziriam uns nos outros, demandando
espectadores que são interpretes ativos, se apropriam das histórias e escrevem
suas próprias histórias a partir daquelas” (ibidem): uma comunidade
emancipada.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: