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VANNUCCI, Alessandra. Boal e a coragem de dizer a verdade.

Rio de Janeiro: PUC-Rio


(Coordenadora do Curso de Artes Cênicas, Docente do Módulo Interpretação e do Módulo
Montagem; diretora e dramaturga)

RESUMO

Entrando em diálogo com pensadores clássicos e modernos (como Adorno, Brecht, Benjamin)
Boal busca na arte, enquanto processo de subjetivação capaz de alterar o estado de
subalternidade, o antidoto aos regimes de opressão. O ator, superativado politicamente em
função de Curinga, torna-se uma espécie de filósofo platônico cujas andanças para dentro e
para fora da caverna (do palco) no esforço de revelar a Verdade, não são em vão. O artigo
acompanha a tentativa de Boal de franquear a arte da proscrição platônica à luz de conceitos
de filósofos contemporâneos (Foucault, Agamben, Rancière).

PALAVRAS-CHAVES: estética dos oprimidos.

ABSTRACT

Quoting classical and modern thinkers (such as Adorno, Brecht, Benjamin), Boal try to reveal in
art the antidote against oppression. In the case of theatre, actor is super-activated as jolly, a
kind of platonic philosopher whose efforts in revealing Truth is not in vain. Arguing Boal´s ideas
with contemporary philosophers’, such as Foucault, Rancière, Agamben)

KEY-WORDS: esthetic of the oppressed.

O insistente desafio, no pensamento do Augusto Boal, de revogar a proscrição


platônica dos artistas e readmiti-los à república, convida a argui-lo à luz dos
conceitos do filosofo grego e de seus leitores contemporâneos, mesmo que
heterodoxos como o próprio Boal. Entre outras maneiras de fazer, as artes
fundadas no cânon mimético embaralham – argumenta Platão na Republica (III)
– ao invés que iluminar o processo de subjetivação presente em experiências de
visão, pois, ao apresentar fantasmas (simulacros) ao invés que ícones (imagens
autênticas), enganam sistematicamente o espectador e o afastam do caminho
da Verdade. Ao desqualificar a arte do ator, pois como poderia alguém ser ao
mesmo tempo cidadão e enganador de cidadãos, Platão denuncia a
impraticabilidade do paradoxo; entretanto, pelo fato que tal paradoxo é
normalmente praticado, admite um regime de exceção para a arte mimética entre
outras práticas ordinárias e ordenadas de trabalho. Por ser ilusório e enganoso,
o teatro produz um deslocamento no regime de visibilidade que contradiz a
ordenação do comum e confunde a partilha de competências que definem e
limitam a participação à vida pública conforme o princípio pedagógico da
utilidade. Pra que serve o teatro? pergunta desconcertado Platão. Que tipo de
serviço político (no interesse da polis) se faz no teatro? Qual sua função na
construção da cidade ideal?

Uma primeira resposta, de Aristóteles na Poética (VI, 27) tende a reconduzir a


exceção ao princípio pedagógico apelando para um termo de derivação médica
(catarse) já utilizado em âmbito ritual, que remete ao conceito de antídoto: a
utilidade do teatro consiste no efeito de purificação das paixões através da
aplicação em dose homeopática de um remédio (farmakon) ao espectador, como
paciente de uma terapia de controle social. Tal remédio é a identificação emotiva
e sua enorme eficácia depende da passividade do espectador, levado a aceitar
a ação (drama) apresentada, o sacrifício ou castigo do herói, mesmo que injusto
e atroz, como algo natural e inevitável. O palco é lugar de exposição e cura das
doenças psicossociais; tudo pode ser mostrado ao cidadão que, sentado na
plateia, observa um outro cidadão submetido às terríveis consequências de suas
paixões excessivas e experimenta o estranho prazer (pathos) de não estar sendo
envolvido pessoalmente. O paradoxo do ator – ser ao mesmo tempo real e
simulacro – torna-se método, ferramenta ou hábito de produção (tecné) a serviço
de uma cena que faz visível uma determinada ordenação de mundo. Torna-se,
emprestando o termo inaugurado por Michel Foucault, um dispositivo, isto é, uma
“estratégia racional e combinada de relações de força” (1994: 299) funcional não
somente ao cumprimento do trabalho do ator como à manutenção do regime
representativo que, perpassando séculos, fundamenta a sociedade moderna no
cânon do “espetáculo”. Segundo Débord (1997), tal regime consiste na
separação entre a vida e suas representações, as quais tendem a tomar o lugar
da vivência (no sentido de experiência autentica) mesmo que sabidamente
falsas. A alerta de Theodor Adorno (1985, cap. III) quanto ao uso das artes
miméticas nos regimes totalitários (onde inscreve seja o fascismo e seja a
indústria cultural) como um “sono sem sonhos” capaz de alienar a multidão
trabalhadora em massa de consumidores de felicidades ilusórias, enquanto a
própria vida permanece inalcançável no mundo real, parece ecoar a
negatividade platônica. Entre outros simulacros, a arte realizada como mais uma
mercadoria na sociedade do espetáculo se esvazia de qualquer conteúdo
teleológico e produz experiências estéticas cada vez mais subjugadoras e
totalizantes.
Bertolt Brecht intervém no debate sobre os usos do teatro pela sociedade
implicando diretamente com Aristóteles e abrindo caminho para a resposta do
Boal. Se é por meio da identificação emotiva que o espectador aceita o
sofrimento do herói como natural, Brecht sugere empregar recursos cênicos que
interrompam tal ilusão e despertem o espectador de seu estado de
encantamento: na prática, ele passaria a estranhar aquele sofrimento e a
analisar de quais maneiras seria remediável. De passivo, o espectador passaria
a ser “dialético”, isto é, capaz de enxergar as contradições do real. Sem recusar
a representação nem sair do palco italiano, Brecht entende que o mesmo drama
pode ter um efeito repressor (purgar o desejo ilegítimo do espectador-paciente)
ou transformador (fazer com que o espectador-dialético se descubra capaz de
realizá-lo no mundo real); a tal mudança no regime estético corresponde uma
radical mudança de tarefas para o ator. O ator de Brecht é um lutador cujo
objetivo se dá fora do palco, na luta revolucionária; ele testemunha o drama, sem
tomar partido mas mostrando-o sob diversos pontos de vista; é do seu exercício
de abstração e distanciamento (V-effekt) que o espectador recebe os meios de
sua emancipação política. Depende do ator impedir que o teatro seja usado
como aparelho disciplinar e se torne um contra dispositivo: uma tática de
resistência criativa, com técnicas específicas que esvaziem o efeito catártico e
potenciem a insubordinação da plateia. Sendo alguém que “quer dizer
eficazmente a verdade sobre o mal estar das coisas, é preciso que o diga de
maneira que permita reconhecer as suas causas evitáveis, pois, uma vez
reconhecidas as causas evitáveis, o mau estado de coisas pode ser combatido”,
aponta Brecht (1973:56).
Na esteira de Brecht, Boal divisa na tarefa do ator um compromisso com a
coragem de dizer a verdade – não uma verdade essencialista mas imanente ao
estado de coisas que ocorre naquela determinada realidade. Sem recusar a
mimese, já que parte de expectativas realistas e de exercícios de criação
stanislawskianos (no Teatro de Arena), Boal propõe o rodizio do personagem
entre atores (função-curinga) como técnica à maneira brechtiana de interrupção
da possível ilusão cênica. O sucessivo surgimento do curinga, mediador
maiêutico entre palco e plateia (no teatro-forum, técnica do Teatro do Oprimido),
configura uma mudança de tarefa para o ator, assim como para o espectador,
ao adentrar em um regime estético esvaziado de tais expectativas. Livre de
qualquer personagem, o ator é superativado em sua presença performática
como involuntário filósofo que transpõe o limiar entre ficção e realidade,
emancipando os espectadores de sua passividade, assim como o iluminado
platônico entra e sai da caverna buscando desvendar os simulacros e fazer com
que a Verdade seja desvelada. Em nome da verbalização coletiva da Verdade,
Boal redime a arte mimética da proscrição platônica pois, neste caso, cada
reapresentação do drama configura uma nova autoria (não uma cópia) e
proporciona ao espectador (que entrando em cena torna-se espect-ator) uma
experiência estética autêntica pois, ao combater e transformar o “mau estado
das coisas” no mundo encenado, ele possivelmente se transforma (metaxis).
Assim como o filósofo, é preciso que tenha coragem o ator ou espect-ator que
queira mostrar a verdade “em sua luta contra a mentira e não como algo elevado
e genérico” (Brecht: ibidem): tal coragem consiste no ato de palavra com o qual
o sujeito revela-se para si e para a comunidade sem ser por isso sujeitado, ao
contrário, subjetivando-se. Na manutenção do paradoxo do ator, que adentra
simultaneamente dois planos de presença – eu e não eu, real e ficcional –
consiste a chave da contribuição do Boal quando atribui ao ator uma radicalidade
política totalmente oposta ao esvaziamento preconizado por Diderot (2000): ou
seja, a adoção de formas de existência coerentes e indissociáveis do
conhecimento adquirido, destinadas a promover uma transformação ontológica
do ser humano, como nas escolas filosóficas antigas – com a diferença de que,
ao passo que o iluminado cínico vive seu heroísmo até as extremas
consequências e morre, o ator sobrevive ao seu ato de coragem e constrói
coletividades. Como para a assembleia da polis regida pelo princípio da
isonomia, sem heróis e sem delegados, o ato de palavra valoriza o ator (em latim,
actor, aquele que age) como ator social, ou seja, um cidadão que toma parte do
comum pelo fato de governar e ser governado.

Na Estética dos oprimidos, Boal parte da consideração de que regimes


simbólicos (como a estética monológica empossada pela indústria cultural na
televisão, na publicidade e também no teatro) tendem a incorporar as
desigualdades existentes no âmbito social, em sua apreensão do mundo
sensível; sendo assim, é todo um sistema estético-político, não tanto a mimese
que de tal sistema é uma das ferramentas, que precisa ser questionado. É
justamente o que faz o espect-ator quando, transitando entre eu e não eu, real e
possível, produz um deslocamento no regime de visibilidade e reconfigura a
partilha do comum entre vozes autorizadas ou menos, competentes ou não. O
movimento do espect-ator que se apropria da palavra e da cena questiona um
dos fundamentos do sistema estético vigente na indústria cultural que Boal
significativamente chama de “império”, isto é, a pressuposição de que cidadãos
destinados a governar e cidadãos os destinados a serem governados não teriam
o mesmo equipamento sensorial nem a mesma inteligência simbólica. A busca
incessante por um método (um arsenal de contra dispositivos), por parte do Boal,
visa suspender esta dicotomia ativo-passivo que no teatro burguês corresponde
à partilha da autoria entre atores-espectadores ou produtores-consumidores.
Suas inovações técnicas são táticas empíricas (variantes, maneiras alternativas
de fazer) que visam subtrair a arte do âmbito das mercadorias e devolve-la ao
âmbito da palavra, não no sentido convencional mas no sentido de comunicação
expandida às dimensões visual, plástica, tátil e auditiva: palavra como potencial
escrita do mundo, à qual todo cidadão igualmente tem direito. O que embasa o
lance utópico do Boal é uma visão dialética de mundo, em movimento constante,
em que qualquer indivíduo pode fazer sua própria história pois reconhece na
opressão não um destino individual irremediável e sim uma construção social,
com suas contradições e falhas; que pode ser reescrita. O teatro, isto é, a
representação ficcional de determinada conjuntura real, justamente por causa
deste duplo regime de visibilidade produzindo deslocamento e diferença, permite
a análise do sistema e a multiplicação de experiências autenticas de luta contra
a opressão. É um ensaio geral da revolução. Propriamente neste caso, é a
técnica que fixa a exceção do teatro (da arte, em geral) como forma desalienada
de trabalho, que elabora seu próprio sentido mesmo quando se repete.

Cabe notar que, ao longo de todo o seu percurso político-teatral, Boal se mantém
atento a não abastecer o sistema dominante, interrompendo constantemente
seja a sua possível integração (como artista e intelectual, detentor de fama e de
direitos autorais) e seja a abdução das técnicas pelo aparelho repressor (como
no caso do teatro do oprimido virar produto contratado por empresas). Como
aponta Walter Benjamin (1985), para manter a arte como arma na luta contra a
opressão, para impedir que entre ao serviço dos regimes de consenso e
totalitários, não basta liberar e multiplicar os meios de produção: é preciso re-
funcionaliza-los. Qualquer recurso (objeto físico ou sonoro, imagens, dados
estatísticos, slogans, provérbios, lendas, histórias e até mesmo o ator com seu
repertório gestual e verbal) pode se tornar material para um novo regime estético
desde o momento que é desnaturalizado, isso é, analisado no contexto da
opressão que simboliza ou produz. Qualquer espaço (praça, rua, salão de igreja,
de escola, de hospital psiquiátrico ou sindicato, até mesmo um teatro) pode se
tornar lugar de um novo regime estético desde que sejam suspendidas as
normas de conduta ali aplicadas como dispositivos de manutenção da vigilância,
do controle e da opressão. Qualquer arte (dança, pintura, poesia, instalação,
canto e até mesmo representação) pode se tornar uma pratica de presença que
transgrede o mapa, suspende o sentido das condutas rotineiras e revela
interrogações coletivas sobre qual sociedade o mapa hospeda e as condutas
obedecem. A produção, dentro da cartografia oficial dos espaços, de outro
“território humano”, mesmo que temporário e efêmero, mas livre de qualquer
alienação, coerção e controle pois embasado em características ideias de
convivência, tal como isonomia, acessibilidade e livre expressão de desejos de
transformação, parece constituir uma concreta estratégia de invenção de um
outro mundo. Não porém um outro mundo imaginário, sem lugar real (uma
utopia) mas, sim, um outro mundo concreto, “fora de todos os lugares reais
embora seja efetivamente localizável” (uma heterotopia, citando Foucault, 2009),
onde a realidade se dá como é e, contemporaneamente, como poderia ser.
Quando, nas cidades-estados gregas, a multidão (oi polloi) instituiu a política
como assembleia pública, o fez deslocando seus corpos no espaço urbano
aparelhado e interrompendo o fluxo ordenado do cotidiano com a tomada da
palavra por parte de quem não tem parte no comum. Para desconcerto de Platão,
a própria democracia em sua origem é um contra dispositivo, uma irrupção da
multidão dos oprimidos que revela um desajuste e dá visibilidade ao que era
invisível, dá voz ao que não era ouvido, representa o irrepresentável, como
aponta Jacques Rancière no Desentendimento (1996). Neste sentido,
reformulando a pergunta da Gayatri Spivak (1992) sobre a possibilidade do
oprimido (subaltern) falar, parece mais interessante indagar de que modo o
subalterno pode ser ouvido. A resposta de Rancière diz respeito à reintrodução
da dimensão política no espaço público, a partir da irrupção dos que não tem
parte no comum, deslocamento que por si só desvela a pura contingencia de
qualquer ordem social e denuncia a ausência de qualquer fundamento para a
opressão de um ser humano pelo outro e dominação de uma classe sobre outra.
No Espectador emancipado, Rancière reconhece neste deslocamento de corpos
e derrubada da distribuição convencional de lugares que ocorre quando
subalternos tomam a palavra, na assembleia publica assim como no teatro, mais
do que uma aventura intelectual: a “demanda de que o teatro alcance, como sua
essência, a reunião de uma comunidade” (2012, 118). Tal potência de criação
do comum – um território autônomo mesmo que temporário, onde todas as vozes
podem ser ouvidas e todos os corpos serem representados como espect-atores
de sua própria história – instituiria um novo estágio de igualdade, onde “os
diferentes tipos de espetáculo se traduziriam uns nos outros, demandando
espectadores que são interpretes ativos, se apropriam das histórias e escrevem
suas próprias histórias a partir daquelas” (ibidem): uma comunidade
emancipada.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS:

ARISTOTELES. Poética. São Paulo: Ars Poetica, 1993


ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002
---------- e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985
BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor”, in Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo:
Brasiliense, 1985
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009
BRECHT, Bertolt. “Le cinque dificoltá per chi vuole scrivere la Veritá” in Scritti sulla letteratura e
sull'arte. Torino: Einaudi, 1973
DÉBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997
DIDEROT, Denis. Paradoxo sobre o comediante. In Obras, v.II. São Paulo: Perspectiva: 2000
FOUCAULT, Michel. Dits et ecrits, v.III. Paris: Gallimard, 1994
----------. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2009
PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001
RANCIERE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012
----------. A partilha do sensível. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005
----------. O desentendimento. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996
SPIVAK, G.C. “Can the Subaltern Speak?” In Colonial Discourse and Post-Colonial Theory. New
York: Columbia University Press, 1992, pp. 66–111.

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