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a tempo REVISTA DE PESQUISA EM MÚSICA

NÚMERO 3
2012/2

FACULDADE DE MÚSICA DO ESPÍRITO SANTO “MAURÍCIO DE OLIVEIRA”


VITÓRIA - ES
a tempo
REVISTA DE PESQUISA EM MÚSICA

FACULDADE DE MÚSICA DO ESPÍRITO SANTO “MAURÍCIO DE OLIVEIRA”


COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO

EDITORA
Gina Denise Barreto Soares

CONSELHO EDITORIAL
Antônio Marcos Cardoso (UFG)
Diana Santiago (UFBA)
Elizabeth Travassos (UNIRIO)
Ernesto Hartmann (UFES)
Jorge Antunes (UNB)
José Alberto Salgado (UFRJ)
José Nunes Fernandes (UNIRIO)
Luis Ricardo Silva Queiroz (UFPB)
Margarete Arroyo (UNESP)
Mônica Vermes (UFES)
Ricardo Tacuchian (UFRJ)
Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo (UDESC)
Sílvio Ferraz (UNICAMP)
Sônia Albano (UNESP)
Vanda Freire (UFRJ)

a tempo – REVISTA DE PESQUISA EM MÚSICA. Coordenação de pós-graduação / Faculdade de Música do Espírito ASSESSORIA EDITORIAL
Santo. V.3, n.3 (jul/dez 2012). Marcelo Rauta
Vitória, ES: DIO/ES, 2012 Paula Maria Lima Galama
Wander Luiz Pereira dos Santos
Semestral Wellington Rogério Da Silva

1. Música - Periódicos. REVISÃO TÉCNICA


Wellington Rogério Da Silva
ISSN 2237-7425
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO
CDD: 780.7 Daniela Ramos

CAPA, PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO


Tiragem: 500 exemplares
Sérgio Rodrigo da S. Ferreira
Sumário
08 | Editorial

11 | Rap é música? A poesia popular brasileira dos Racionais


MC’s
Jorge Nascimento

31 | Era um, era dois, era cem...: estudos musicais e alteridade


Mónica Vermes

43 | Gostosuras, bichos pavorosos e bobices em torno do en-


sino de literatura e da leitura literária: eles valem também para
a educação musical?
Maria Amélia Dalvi

63 | Contrapontos musicais: Luciano Berio e o contexto pós-


guerra
Daniel Lemos Cerqueira e Ana Cláudia Assis

73 | Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno: um olhar nacio-


nalista
Cleida Lourenço da Silva

95 | A música popular brasileira eletrônica de César Camargo


Mariano e Prisma: hibridismo ou tradição?
Alexei Figueiredo Michailowsky

107 | Importância e reflexos da banda de música no coti-


diano escolar
Eduardo Gonçalves dos Santos, Fredson Luiz Monteiro e
Samanta Adriele Neiva dos Santos
Editorial
conclusão de curso e de eventos dedicados a esse fim, tais como congressos e simpósios. Os
professores da instituição, por sua vez, têm a oportunidade de acompanhá-los nesse processo,
participando dos mesmos eventos, promovendo a troca de experiência e servindo de modelo a
ser seguido.

As transformações sociais impulsionam a mudanças nos perfis profissionais. Podemos dizer Nesse contexto, evocamos o fator de a FAMES ter instituído em 2011 a “Semana de Iniciação
que estes se configuram como consequências das mudanças paradigmáticas às quais estamos Científica”, evento que tem como objetivo desde o início estimular os alunos da graduação –
sujeitos. As questões relacionadas à teoria e à prática, dependendo da época, ganham conotações bacharelado e licenciatura em música – a se aproximarem do universo da pesquisa, sustentando
diversas, embora pertençam a um antigo debate do qual o próprio Aristóteles tomou parte. com isso um dos pilares previstos para a graduação no Brasil.
Mesmo que as distâncias entre teoria e prática sejam variáveis de tempos em tempos, temos
Chamamos então a atenção para a segunda edição do evento em 2012, que assegurou não
atualmente caminhado em direção a um imbricamento como forma de promover significados
apenas a necessidade de se fazer pesquisas na área da música, mas ressaltou a fundamental
mais inteiros às nossas abordagens. No campo musical, é evidente o valor do saber prático, já
importância da articulação do corpus do conhecimento musical com os de outras áreas. Assim,
que tocar um instrumento, cantar ou compor aponta para o tipo de relação do indivíduo com
os eixos temáticos que ganharam destaque foram: “Interfaces entre a música e outros campos
a música. Mas a necessidade de argumentação, de reflexão e de compartilhamento de saberes
do conhecimento”, “Educação musical: abordagens metodológicas e tecnológicas” e “Poéticas de
com nossos pares têm exigido a busca de conhecimentos que estão além da prática musical.
criação musical”. Dada a importância do evento para a nossa instituição, tanto para a formação
Apesar da complexidade que lhe é própria, a prática musical pode acontecer de diversas de nossos alunos quanto de nossos professores, trazemos para esta edição, em parceria com a
maneiras, até mesmo por meio de habilidades e competências adquiridas fora das instituições organização da II Semana de Iniciação Científica, artigos dos pesquisadores convidados para o
oficiais de ensino musical. Isso então tornaria a formação musical consequência de uma evento, a fim de que possam colaborar com o rápido crescimento da nossa revista, apontando
infinidade de percursos trilhados por aqueles que a buscam, considerando aqui que todo aquele alguns caminhos viáveis para o amadurecimento da pesquisa em música. Lembramos, portanto
que se expressa musicalmente é detentor de algum tipo de formação, sistemática ou não. Assim, que, ao participarem da II Semana de Iniciação Científica, esses pesquisadores já fortaleceram
a frequência regular a instituições de ensino não é condição única para tornar-se um profissional vínculos interinstitucionais e também possibilitaram a articulação da música com outras áreas
da área da música, mas apenas um dos caminhos possíveis. do conhecimento, notadamente a literatura.

No que diz respeito à formação profissional em música, a pesquisa é uma opção que, agregada Assim, abrimos a nossa edição com o artigo de Jorge Nascimento, “Rap é música? A poesia
ao indivíduo que abraça a carreira, pode trazer meios de dialogar com outros profissionais popular brasileira dos Racionais MC’s”. Nesse artigo, o autor traz a proposta de uma apreciação
ou responder às suas próprias questões a partir de referências bibliográficas adequadas e de abrangente das dimensões estéticas que compõem o rap, visto como expressão que se utiliza da
procedimentos metodológicos consistentes. Além das atribuições convencionais daquele que literatura e música dos dias atuais.
se dedica à música, a pesquisa acadêmica tem se tornado uma necessidade nas instituições de
Em seguida, Mónica Vermes assina o artigo “Era um, era dois, era cem...: Estudos musicais e
ensino em que a produção de conhecimento é valorizada e incentivada.
alteridade”, que pretende contribuir para a reflexão dos aspectos que levam a um estranhamento
Buscando incrementar a pesquisa, a Faculdade de Música do Espírito Santo “Maurício de da prática musical, sejam em relação à própria música ou ao seu estudo. Para tanto, a autora
Oliveira” (FAMES), notoriamente uma instituição formadora de músicos dedicados às práticas analisa alguns casos situados em determinados contextos.
interpretativas, tem buscado promover o encontro de seus professores e alunos com os desafios
Contribuindo com uma reflexão na área da literatura e sugerindo aproximações com a música,
da pesquisa acadêmica. Os alunos, nesse sentido, possuem desde o início de sua formação, ou
em “Gostosuras, bichos pavorosos e bobices em torno do ensino da literatura e da leitura
seja, na iniciação científica, a oportunidade de inserção na pesquisa por meio de trabalhos de
literária: eles valem também para a educação musical?”, a autora Maria Amélia Dalvi traça um
panorama sobre a formação de leitores de literatura, indicando fortes semelhanças nas questões
relacionadas ao aprendizado musical, principalmente no tocante à apreciação. Rap é música? A poesia
Dando continuidade aos trabalhos contemplados nesta edição, o artigo “Contrapontos musicais: popular brasileira dos
Luciano Berio e o contexto pós-guerra”, de autoria de Daniel Lemos Cerqueira e Ana Cláudia
Assis, tem como panorama o pensamento musical o século XX e traz as ideias desses dois
compositores de relevância reconhecida.
Racionais MC’s
No artigo de Cleida Lourenço da Silva, “Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno: um olhar
nacionalista”, a autora nos leva a uma discussão sobre a presença desses dois compositores num Jorge Nascimento
período histórico marcado pelo nacionalismo, bem como ao conhecimento de seus percursos
musicais. 1
Professor Doutor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES).
“A música popular brasileira eletrônica de César Camargo Mariano e Prisma: hibridismo ou
tradição?”, artigo apresentado por Alexei Figueiredo Michailowsky, faz parte dos estudos do
Resumo Abstract
autor. Dentre os objetivos, o do presente artigo é propor um conceito de hibridismo e analisar
um possível estado híbrido da produção musical do Projeto Prisma. Nesse texto são feitas considerações, a nível In this text considerations are made, in conjectural
conjectural, sobre o Rap, fundamentalmente a level, about the Rap music, mainly the production of
Encerrando a nossa edição, Eduardo Gonçalves dos Santos, Fredson Luis Monteiro e Samanta produção dos Racionais Mc’s. O intento é discutir Racionais Mc’s. The intent is to discuss this cultural-
Adriele Neiva dos Santos dividem a autoria do artigo sobre a “Importância e reflexos da banda sobre esse fenômeno estético-cultural, a partir de aesthetic phenomenon, as from observations and
observações e críticas provindas de teóricos, artistas, reviews from theorists, artists, cultural critics, etc.
de música no cotidiano escolar”. É um estudo sobre a Banda 12 de Março que, além de ser um críticos culturais etc. A partir do questionamento As from the question contained in the title: “Is Rap
instrumento de inclusão social, tem destacada importância na formação de musicistas. contido no título: “Rap é música?”, pretende-se music?”, we intend to evaluate this poetic-musical
avaliar essa manifestação poético-musical dentro do expression within Brazilian musical and cultural
cenário da música e da cultura brasileiras. scene.
Queremos estender nossos agradecimentos a todos aqueles que contribuíram para mais uma
edição da a tempo – Revista de Pesquisa em Música e desejar que os nossos leitores tenham Palavras-chave: Rap, Racionais MC’s, música, Keywords: Rap, Racionais Mc’s, music, culture.
cultura.
proveitosos momentos com os artigos aqui disponibilizados.

Gina Denise Barreto Soares


Editora
Uma apreciação completa das dimensões estéticas de um rap exigiria não só artísticas, apresenta-se como um desafio duplo, pois também desafia uma outra condição:
que o escutássemos, mas que também o dançássemos, sentindo seus ritmos em é poesia que deseja ter uma participação ativa dentro dos espaços socioculturais. Como
movimento. (Richard Shusterman) pondera a crítica pragmatista (SHUSTERMANN, 1998, p.164):

Para início de conversa Devemos sentir o poder artístico e estético de uma obra impressionar nossos
sentidos e nossa inteligência. (...) Mas a justificação teórica pode ajudar a criar
Pensar analiticamente o RAP dos Racionais MC`s1 através apenas da poesia feita palavra este espaço e ampliar os limites da arte pela assimilação de formas antes
escrita é mais que um risco, parte-se já de um pressuposto parcial que, inegavelmente, rejeitadas na categoria honorável da arte. Uma estratégia incontestável para
tal assimilação é mostrar que, apesar do evidente afastamento em relação às
transforma uma manifestação complexa em texto. O RAP é fundamentalmente uma convenções estabelecidas, uma forma expressiva ainda atende aos critérios
forma de estetização do real na qual à polifonia discursiva somam-se efeitos sonoros, mais decisivos para garantir o reconhecimento de sua legitimidade artística
rítmicos e as vozes, com suas entonações e formas expressivas provindas da fala. A palavra ou estética.
cantada ou canto falado do RAP possuem, por si só, efeitos significativos que expandem
e realizam o texto através de outras possibilidades que revigoram performaticamente Entendemos que pontes entre o RAP e a crítica literária e cultural é possível, enquanto
os vocábulos. O RAP é palimpsesto, há camadas significativas a serem descobertas e expressão poética performática popular, essa manifestação contemporânea é digna de
posteriormente assimiladas para que, num conjunto em que forças expressivas irradiam um olhar atento no qual suas possibilidades expressivas e suas carências ou virtudes
possibilidades em ondas de diversas camadas, os fragmentos de sonoridades múltiplas formais e estilísticas possam ser analisadas a partir de diversos campos teóricos do saber.
produzam algo em que as partes signifiquem o todo. A própria constituição da poética do RAP é baseada num ethos no qual o posicionamento
discursivo cria personas ficcionais que se posicionam muito próximas dum real pleno
Outro problema pode ser pensado como um agravante: como interpretar textos orais da periculosidade que tanto amedronta. A caracterização de uma poética bélica,
que brotam de poetas pouco escolarizados? Com que ferramentas podemos trabalhar? juntamente ao fato de se assumirem como guerreiros da selva de pedra, já nos traz
Se o aparato conceitual acadêmico é moldado para pensar manifestações poéticas uma forma de compreensão do real que só pode ser considerada como um processo de
tradicionais, cultas, como podemos encarar a produção popular e massiva produzida estetização do mesmo. Insistir numa conexão arte e vida pode parecer um disparate se
por artistas periféricos de um país periférico como o Brasil? Tal problemática foi, de certa tomarmos como base as doutrinas de não-interferência de uma certa pós-modernidade.
forma, abolida pelos chamados Estudos Culturais, mas o ranço acadêmico ainda perdura. Mas, o movimento Hip Hop se espalhou pelo mundo, provocou intervenções na música
Aqui pensamos, de forma transdisciplinar, abordar o RAP como fenômeno literário, mas pop mundial e, fundamentalmente, em muitos caos, manteve aceso o facho, pensa em
também como produto da cultura de massa e como manifestação cultural na qual o trabalhar consciências a partir da palavra e das atitudes. Diz o próprio mano Brown:
estético e o político dialogam. O RAP trabalha a palavra e, dessa forma, já emerge com Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma, sou terrorista. A frase, radical, utópica,
um potencial de possibilidades interpretativas e analíticas inerentes ao próprio ser do revela a ideia da posse de um poder que a palavra comporta que pode parecer risível aos
discurso, Borges já disse que não há palavras simples, pois todas postulam o Universo, espíritos pós-utópicos com seus ares blasé. Para (Shusterman, 2006, p. 68-69), ocorre
cujo atributo maior é a complexidade. O RAP, além de apresentar um desafio às condições uma aproximação entre a visão e prática do RAP e o pragmatismo:
1 Formado em 1990, por Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay, o grupo Racionais Mc’s destacou-
se na coletânea “Consciência Black”, lançada pela gravadora Zimbabwe Records, com os sucessos: “Pânico A teoria da catarse, de Aristóteles, embora focada na piedade e no medo,
na Zona Sul” e “Tempos Difíceis”. Em 1992, lançaram seu primeiro LP “Holocausto Urbano” que vendeu apresenta a solução estética padrão: a arte é valiosa porque permite que
cerca de 50 mil cópias. Nos anos 90 e 91 trabalharam com shows por toda a capital e interior, receberam o
Prêmio de Melhor Grupo de Rap do Ano e participaram da abertura do Show do Public Enemy no Ginásio emoções perigosas, contudo gratificantes, sejam desfrutadas, mas depois
do Ibirapuera. Em 1992 deram um importante passo, e fizeram shows na Febem e deram palestras para exorcizadas por expressá-las em mundo seguro, pois fictício, de mimese;
alunos nas escolas públicas. Em 1993, foram a atração no Teatro das Nações, com o projeto Música Negra um reino claramente distinto do real. Aristóteles, mesmo defendendo a arte,
em Ação. O sucesso total veio com o CD “Raio X do Brasil”. Conquistaram o maior Prêmio da Música Popular junta-se a Sócrates, Platão e à principal tradição da estética que opõe arte à
Brasileira o “Prêmio Sharp”, Mano Brown ganhou como compositor revelação com a música “Homem na vida real e procura mantê-la em um reino à parte. Pragmatismo e a estética
Estrada”. No final de 1997, com seu próprio selo (Cosa Nostra), lançaram o CD “Sobrevivendo no Inferno”,
que vendeu mais de 500mil cópias, sem contar os CDS piratas. No ano de 1998, lançaram dois vídeoclipes do RAP não podem aceitar essa solução, uma vez que insistimos na profunda
“Diário de um Detento” e “Mágico de Oz”. Em agosto do mesmo ano foram os vencedores do Vídeo Music conexão da arte com a vida, seu uso como instrumento para a construção da
Brasil, promovido pela MTV, recebendo os prêmios “Melhor Grupo de Rap” e “Escolha da Audiência”. Em ética e do estilo de vida de uma pessoa, um meio de engajamento político
2003 lançaram o CD “Nada como um dia depois de outro dia”. (Fonte: http:// www.capao.com.br) para aumentar a consciência e promover mais liberdade.

12 13
Luiz Tatit, situando historicamente o aparecimento do Rap no Brasil, após o Rock dos
anos 80, revela uma relação entre forma e função social da música popular interessante, Folha - Você parece estar descrevendo um esgotamento histórico...
vinculando o primeiro à orfandade que vitimou a juventude, traçando o caminho para a Chico - A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só
aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse hoje por isso parece
abertura de outras possibilidades dialógicas entre a música popular brasileira e a música pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece que
pop norte-americana: não acrescenta grande coisa ao que já foi feito.E há quem sustente isso: como
a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal
Enquanto isso, o espaço de rebeldia da juventude excluída, órfã do rock de como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido.
“atitude”, começa a se recompor em torno de um canto que radicalmente Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem
eliminava as durações vocálicas próprias da face melódica da canção, a bossa nova, que remodela tudo - e pronto. Se você reparar, a própria bossa
anunciando assim um rompimento com as formas de expressar lamúrias e nova, o quanto é popular ainda hoje, travestida, disfarçada, transformada em
desventuras amorosas. Nem passional, portanto, nem propriamente temático, drum’n’bass. Essa tendência de compilar e reciclar os antigos compositores de
esse canto recuperava a entoação pura, não pelo breque do samba nacional, certa forma abafa o pessoal novo. Se as pessoas não querem ouvir as músicas
mas pelo break da cultura hip hop oriunda de Nova York. Na verdade, as novas dos velhos compositores, por que vão querer ouvir as músicas novas
articulações entrecortadas e ritmadas do rap brasileiro inauguravam uma dos novos compositores? Quando você vê um fenômeno como o RAP, isso é
outra via de aproximação com a sonoridade norte-americana: em vez da de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o
influência pop habitual, mantida desde os tempos de Frank Sinatra, agora na sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. Estou dizendo tudo isso e
exposição crua de toda canção popular: a fala. (TATIT: 2004, p. 243 ) pensando ao mesmo tempo que talvez seja uma certa defesa diante do desafio
de continuar a compor. Tenho muitas dúvidas a respeito. Às vezes acordo com
Desenvolvendo a questão a tendência de acreditar nisso, outras não.

Folha - E o RAP? Sem abusar das relações mecânicas, parece que estamos
Dessa forma, ou seja, privilegiando o que se fala no RAP, podemos então abordar diante de uma música que procura dar conta, ou que reage a uma nova
essa manifestação poética popular que possui ancestrais antigos nas formulações configuração social, muito problemática.
expressivas do homem. Os narradores benjaminianos aqui vêm travestidos de Chico - Eu tenho pouco contato com o RAP. Na verdade, ouço muito pouca
experiências vivenciadas na luta urbana e inclusive afirmam: Eu ontem era caça e hoje, música. O acervo já está completo. Acho difícil que alguma coisa que eu
pá! Sou o predador (Otus 500). Então, sua fala é plena de autoridade. Aqui, então, será venha a ouvir vá me levar por outro caminho. Já tenho meu caminho mais
ou menos traçado. Agora, à distância, eu acompanho e acho esse fenômeno
privilegiada a palavra oral, transformada em signo para que assim possamos, de alguma do RAP muito interessante. Não só o RAP em si, mas o significado da periferia
forma, apreendê-la, mesmo com todas as ressalvas expostas. Mas a palavra oralizada, se manifestando. Tem uma novidade aí. Isso por toda a parte, mas no Brasil,
potencializada tecnologicamente, aqui possui um “alcance social” e, mesmo privada que eu conheço melhor, mesmo as velhas canções de reivindicação social,
de seus outros atributos perfomáticos, carrega ainda, em nosso entendimento, uma as marchinhas de Carnaval meio ingênuas, aquela história de “lata d’água
força comunicativa que desvela interessantes revisões da realidade. Como observa na cabeça” etc. e tal, normalmente isso era feito por gente de classe média.O
Paul Zumthor: habituados que somos, nos estudos literários, a só tratar do escrito, somos pessoal da periferia se manifestava quase sempre pelas escolas de samba,
mas não havia essa temática social muito acentuada, essa quase violência nas
levados a retirar, da forma global da obra performatizada, o texto e nos concentrar nele. letras e na forma que a gente vê no RAP. Esse pessoal junta uma multidão. Tem
Concordamos, mas note-se, porém, que aqui lidamos não com o escrito, mas com o algo aí.
transcrito, ou seja, trabalhamos com palavras que foram proferidas, e aqui utilizamos o
verbo proferir de forma ampla, também em seus sentidos primários de “estender para Não se sabe se o RAP vem definir uma nova tipologia artística que substituiria o que
diante, exercer publicamente”. Sabemos que tais palavras só se tornaram notação gráfica se conhece por canção popular no Brasil, o próprio Chico somente especula sobre a
simbólica por obra da própria indústria e pelos meios de comunicação digitalizados. questão, mas é notório que, além das temáticas, o fenômeno apresenta uma nova
Diríamos que o RAP seria um estilo oral performático, mas trataremos da palavra que, configuração do que seriam letras e músicas das canções. Usando várias espécies de
diríamos, brotou letra falada, mediada agora pela escrita. Em uma entrevista recente, apropriações de bases sonoras, com suas “letras” quilométricas, e o estilo mais recitado
o escritor/cantor/compositor Chico Buarque expõe algumas considerações sobre o que cantado – o canto falado -, o RAP revela-se como caminho de acessibilidade das
fenômeno do RAP no Brasil. Vejamos um trecho da entrevista2:
2 “Chico contra o cinismo”, entrevista publicada na Folha de S. Paulo, Ilustrada, 26.12.2004, cuja na p. 4, sob o título “A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico”.
íntegra encontra-se disponível em: http://www.chicobuarque.com.br/. O trecho em questão encontra-se

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populações periféricas das cidades para uma forma de expressão estética produzida Neste RAP introdutório estão presentes, de certa forma, muitas das temáticas
a partir do próprio lugar. Utilizando-se da tecnologia mais facilmente disponibilizada características presentes na poética dos Racionais: o caráter pedagógico, a religiosidade
atualmente, os pobres incultos estão dando um salto entre o seu mundo violento e como apoio, a exortação ao enfrentamento positivo da realidade da selva de pedra que
problemático e o mundo das mídias. O tradicional “versar” soma-se às possibilidades esmaga e inferioriza os “humildes demais”, o chamado para a atividade, para a luta. Essa
de corte e colagem de sonoridades diversas – eletrônicas, além dos tradicionais vocais poetização energética e bélica é uma tônica (ou um tônico), processo de ritualização sub-
– e criação de formas expressivas próprias. A voz do rapper é a voz poética que traz um urbana (ou periférica) da realidade, do dia-a-dia. E aqui utilizamos a palavra exortação
ethos discursivo marcante, que reitera o lugar do discurso e o faz sensível ao ouvinte em mais de uma acepção, abrindo o campo semântico que passa por encorajamento,
decodificador que “lê” as palavras proferidas numa ambientação na qual se mesclam estímulo, incitação, mas também conselho, advertência, além da conotação jurídica do
elementos vários, criando um clima que o insere num mundo representado que é a termo como apelo que o juiz faz aos jurados para que tomem suas decisões de acordo com
simulação de dados de uma realidade que lhe é familiar. Podemos tomar como exemplo a própria consciência e com os ditames da justiça. Pois dentro da guerra diária redefinida
o início do cd duplo Nada como um dia após o outro, a faixa introdutória Sou + você. As na poética dos Racionais é fundamental a idéia de que a consciência (o quarto elemento
primeiras sonoridades são: uma freada de carro, rajadas de tiros, latidos de cães, mais da cultura Hip Hop) é um dado fundamental perante os tribunais humanos e divinos (Em
tiros, som de uma motocicleta pondo-se em movimento, depois de uma pequena pausa outro RAP - Vida Loka II - está dito que O promotor é só um homem, Deus é o juiz). Assim
silenciosa, um galo que canta, som de pássaros, ruído de um despertador digital, então sendo, na introdução desse livro sonoro que é o cd, há a convocação de um processo
iniciam-se acordes musicais e, finalmente, entre o chamamento, através da voz de Mano de passagem: a saída da passividade sonolenta para a entrada na atividade guerreira
Brown, como se iniciassem as transmissões de um programa radiofônico: do enfrentamento das vicissitudes. Esse despertar para um novo dia – Vamo acordá –,
para os ouvintes da Radio Exodus é como um despertar de atitudes que venham trazer a
Bença, Mãe possibilidade desse utópico dia solar, depois da noite de tiros que retiram de circulação
Estamos iniciando nossas transmissões, alguns guerreiros.
essa é a sua rádio Exodus
Vamo acordá, vamo acordá, porque o sol não espera
demorô, vamo acordá, o tempo não cansa Um dado então é primordial: a importância dos relógios, ou seja, da marcação do tempo,
ontem à noite você pediu, você pediu.... que não é mais o tempo vulgar, mas o tempo em que se deve acordar – lembro de
uma oportunidade, mais uma chance, um esboço de centro cultural da Cidade de Deus chamado “Acorda crioulo”. Segundo
como Deus é bom, né não nego? (Shusterman, 2006, p. 160), referindo-se ao RAP dos Estados Unidos:
Olha aí, mais um dia todo seu
que céu azul loko hein? Certamente as verdades e as realidades que o hip hop revela não são as
Vamo acordá, vamo acordá verdades transcendentais e eternas da filosofia tradicional, mas antes fatos
agora vem com a sua cara mutáveis do mundo material, histórico e social. Mesmo assim, a ênfase dada à
sou mais você nessa guerra mudança temporal e à natureza maleável do real (refletidas nas datações das
a preguiça é inimiga da vitória músicas de rap e na expressão “saber que horas são”) representa uma posição
o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar metafísica respeitável, em concordância com o pragmatismo americano.
Não vou te enganar, o bagulho tá doido
ninguém confia em ninguém, nem em você
os inimigos vêm de graça, é a selva de pedra Ainda segundo o filósofo, essa é a noção é o tema central do disco de Kool Moe Dee, “Do
ela esmaga os humildes demais you know what time is it?”, e encontra uma expressão no vestuário de Flavor Flav, do Public
você é do tamanho do seu sonho Enemy: um imenso relógio que ele usa como colar. Sabendo da admiração dos integrantes
faz o certo, faz a sua do Racionais pelo grupo norte-americano, inclusive fizeram abertura do show do Public
vamo acordá, vamo acordá Enemy em São Paulo, podemos inferir que tal filiação temática faz parte de uma forma
cabeça erguida, olhar sincero
tá com medo de quê?
de persuasão para que os pretos e pobres saiam da passividade e comecem a agir, ou
Nunca foi fácil, junta os seus pedaços e desce pra arena seja, é uma característica filosófica e política do RAP “socialmente engajado” ao qual o
mas lembre-se: aconteça o que aconteça grupo paulista é filiado. Em outros RAPs a questão da hora, do despertar para tomar
nada como um dia após o outro dia. conhecimento dos fatos – independente da natureza ou do âmbito a que eles se referem

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– está presente direta ou indiretamente. Retomando o discurso poético de Sou + você, como fundamentais na própria formação do gênero nos guetos3 norte-americanos,
notamos a presença de formas verbais - demorô, iniciando, (o sol não) espera, (o tempo assim, provindo da Jamaica, o canto falado, já presente no reague tradicional, migrou
não) cansa, (agora) vem - que nos trazem a percepção de ações que possuem marcada para os EUA e ambientou-se numa fusão com outros estilos da black music. Segundo
dimensão temporal, tais formas verbais juntam-se a marcadores temporais – noite, dia, Goetz (OTTMANN, 2005):
agora, sol – e marcam a temporalidade como intrinsecamente ligada à pragmática da
atividade cotidiana, porém reafirmada como discurso metafórico que clama aos seus Nos Estados Unidos, o hip-hop é freqüentemente mitologizado em termos
ouvintes que o agora é o tempo de mudanças e que o mais importante é a sobrevivência de uma dureza quase sobrenatural sustentando o “gangsta RAP” ou um
passado ancestral distante envolvendo o “Griot”, um contador de histórias das
em meio à “selva triste”... sociedades africanas. Os rappers, supostamente informados por essa tradição
Sobre aspectos do aproveitamento das tradições orais no RAP, esclarece-nos o fragmento oral africana e vocalizando os ressentimentos de afro-americanos subalternos,
abaixo (Queiroz, 2005, p. 11-12): são transformados em uma autêntica força política de uma diáspora africana.
Além do mais, o hip-hop é ligado ao destino de afro-americanos que vivem
A tradição das narrativas orais e de outras formas poéticas da oralidade, em dificuldade no cinturão de ócio urbano abandonado por uma sociedade
flagradas através do trabalho desenvolvido por diversos escritores africanos pós-industrial.
contemporâneos vem se constituindo, em maior ou menor grau, num dado
significativo que se alia ao processo de elaboração das literaturas escritas Há toda uma discussão acerca das verdadeiras fontes tradicionais do RAP, porém,
produzidas naquele continente. Tomando-se o exemplo de alguns países
africanos de língua portuguesa, poderíamos sugerir que a retomada dessa
acreditamos que o que ocorre é um processo de absorção de tradições transformadas
oratura e, consequentemente, sua reelaboração através da palavra fixada histórica e geograficamente, somadas às mutações possibilitadas pela tecnologia e
pela escrita ou performatizada pela associação entre voz, gesto, movimento, por particularidades e especificidades culturais localizadas. Como afirma o filósofo
encenação e traço, como ocorre no rap, tem consistido num importante pragmatista (Kellner, 2001, p. 232):
elemento capaz de viabilizar não apenas uma mais completa assimilação
dessas modalidades expressivas, mas também uma contribuição efetiva no O rap também depende de virtuosismo tecnológico, e o DJ , que manipula os
sentido de afirmar positivamente as identidades culturais daqueles países. sons eletrônicos, é parte importante da equipe. Portanto trata-se de uma forma
que combina tradições orais afro-americanas com sofisticadas modalidades
Segundo o que se depreende do artigo, o tradicional canto falado dos africanos é tecnológicas de reprodução de som. Além disso, os sons do rap muitas vezes
um dos pilares fundadores do RAP contemporâneo, num processo de expansão e de são transgressivos, infringindo as regras de correção e do discurso aceitável.
retorno à África, através da mundialização da cultura Hip Hop, processo circular de Tratam-se frequentemente de sons desordenados, com ruídos de carros de
polícia, helicópteros, tiros, vidros quebrando e agitação urbana. Os sons do
trocas e hibridismos constantes que veio redefinir parâmetros das chamadas culturas rap são especialmente perturbadores quando tocados no último volume em
tradicionais, fundamentalmente por intermédio na cultura massiva: espaços públicos, anunciando que o inimigo está dentro, que a sociedade está
Em meados dos anos 60 do século passado, alimentando-se do canto falado da África, o dividida e enfrenta conflitos explosivos.
discurso sobre bases musicais eletrônicas emergidos nos bailes da periferia de Kingston,
Jamaica, amplificou-se, reeditando o contador/cantador tradicional em outra versão: o Um exemplo desses procedimentos que fundem tradição e contemporaneidade foi
toaster. Este, por sua vez, acabaria por desdobrar-se no DJ e no poeta rapper dentro da dado claramente no filme Sou feia, mas to na moda, um documentário de Denise Garcia
cultura Hip Hop que se aproximava. No início da década seguinte, o que hoje identificamos que trata, fundamentalmente, do chamado funk sensual produzido por mulheres,
como rap daria um outro salto: a crise econômica no Caribe, desencadeadora de novo principalmente na Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Ainda que tratando na maior parte
processo diaspórico, faria com que o ritmo & poesia dos toasters chegasse ao ambiente do tempo da produção das mulheres, no filme há mostras do funk mais antigo, dos anos
urbano da metrópole pós-industrial estadouniudense, ali se infiltrando e a partir dali de 3 O gueto norte-americano, o único que veio à luz do outro lado do Atlântico – os brancos de
difundindo pelo mundo inteiro, até marcar presença na África contemporânea. (Idem, diversas origens, inclusive judeus, conheceram apenas bairros étnicos, de recrutamento essencialmente
voluntário e heterogêneo, e que, mesmo miseráveis, sempre permaneceram abertos para o exterior por
p.13) meio de pequenos canais de comunicação com uma sociedade branca norte-americana compósita -,
representa a realização hiperbólica dessa lógica de dominação etnorracial imposta por um poder exterior.
Os antecedentes da oralidade na composição do que chamamos aqui de RAP é um fator Nascido nas primeiras décadas do século passado sob o impulso das grandes migrações de negros dos
estados do Sul, descendentes de escravos libertos. (Wacquant, Loïc. As duas faces do gueto. São Paulo:
preponderante na sua formação, as relações com práticas orais tradicionais são tidas Boitempo, 2008. Trad. Paulo César Castanheira. p. 18)

18 19
80 e 90. Em forma de improviso, numa roda, as pessoas batem palmas substituindo as Pensando especificamente no RAP dos Racionais, trata-se de um discurso que se
percussões eletrônicas e “mandam” os seus versos. O que se observou foi que, longe da pretende prática vital. Para os rapazes de São Paulo, o RAP não é jogo, é guerra, e os
parafernália tecnológica de bases e samplers, e sem a presença do produtor, o que havia rappers, conscientes de sua missão, são considerados guerreiros (várias são as passagens
era um grupo de jovens – quase todos negros – celebrando triste, alegre ou ironicamente em que as metáforas bélicas são utilizadas como confirmação de que existe uma batalha
a vida, cantando sobre situações coletivas e individuais. que está sendo perdida pelos Manos). Sobre o termo Mano, é interessante notar que é
uma forma de aglutinação fraterna de sujeitos que estão agrupados em um sentido de
A partir dessa observação e de outras feitas em contato com funkeiros cariocas (e autoconsciência de sua função: buscar os espaços de cidadania negados pelo “sistema”.
através do filme Fala, tu4), notamos a proximidade com o samba de roda, o jongo, ou Tal categoria seria uma ampliação de um conceito que não tinha razão de ser no Brasil:
as rodas de partido alto, além de ecos cariocas dos próprios terreiros de umbanda e o brother “negro” dos EUA. O Mano será, então, uma categoria que ultrapassa fronteiras
candomblé. Embora, para um especialista em música, essas observações possam raciais ou étnicas. Em uma das canções, Negro drama, com seu caráter autobiográfico,
parecer demasiadamente simples e reducionistas, o que se percebeu foi a revitalização está dito sobre o nascimento do personagem: Família brasileira/ dois contra o mundo/
de procedimentos que estão presentes em culturas tradicionais, principalmente de mãe solteira/ de um promissor vagabundo (...) O bastardo/ mais um filho pardo/ sem pai.
origem tribal e da qual as populações pobres em geral são depositárias. No Brasil, a Ao se assumir como o “pardo”, denominação genérica dada aos seres híbridos comuns
formação circular de pessoas marcando o ritmo com as mãos, dançando, lamentando no Brasil, o discurso rejeita o embate negro X branco. Ao internalizar a nominação
ou celebrando, é forma tradicional de congregação e essas raízes se fazem presentes pejorativa daquilo que não é bem definido enquanto cor da pele, o discurso vai agir
como substrato cultural latente e como forma de manifestação estética, corporal e na direção que aponta para o Mano, ou seja, para um ser sem cor, fruto do processo
de exclusão social. Embora conscientes de que a marca epidérmica é fundamental, no
ideológica5. Inclusive o RAP brasileiro está absorvendo cada vez mais sonoridades locais, RAP dos Racionais o embate já migrou, o inimigo não é o sujeito branco – embora ele
principalmente do samba com suas diferentes cadências. Como já foi dito, aqui não se possa aparecer assim em diversas situações – mas sim o “sistema” branco capitalista que
está fazendo um tratado sobre música, não se tem conhecimento técnico do assunto e empurra para os guetos urbanos7 toda uma série de pessoas que poderiam ser definidas,
nem é nossa intenção, porém, sabendo-se do caráter extremamente coletivo e grupal inclusive, como os brancos quase pretos de tão pobres, tão poeticamente pintados por
dessas manifestações e da precariedade dos meios para produzi-las tecnologicamente, Caetano Veloso e Gilberto Gil no Rap-lamento Haiti. Mesmo sabendo que o fato de
notamos como as raízes sonoras das comunidades tradicionais estão presentes, inclusive possuir a pele escura ser um agravante ao problema da estigmatização e consequente
no próprio RAP.
anos de presença na periferia. (...) O gosto dos playboys pelo rap dos Racionais, seu consumo tolerante de
discursos antagônicos a seus interesses e a consequente integração do rap à cultura de massa hegemônica
No Brasil, geralmente, o RAP é tido como uma forma essencialista de expressão artística, seria a atitude de quem se encontra em posição de superioridade hierárquica. (...) Enquanto os Racionais MCs
nos mesmos modelos, porém apresentando especificidades que o afastaram do RAP fazem poesia a partir de sua percepção do racismo branco e da resistência negra, colocam em cena e – mais
importante – em música, a onipresença muda no Brasil da opressão e da violência. A popularidade repentina
consumido hoje nos Estados Unidos. Se, no início, as bases, samplers, sonoridades eram do rap brasileiro, sua participação na cultura hegemônica brasileira, talvez seja a evidência de uma nova
típicas dos EUA, comumente adaptações de bases de hits da black music, houve também elaboração da autoconsciência brasileira. Essa reelaboração enfatiza o fato de que a segurança física está
ao alcance de poucos, e a guerra civil de baixa intensidade entre os “excluídos” e as autoridades, envolvendo
a procura de outras referências, sendo buscadas inferências de músicos e ritmos traficantes de drogas e a polícia, é parte permanente do cenário contemporâneo. Junto com a cordialidade
brasileiros, um caso típico de releitura, movimento de hibridização de fontes externas a que parece imperar nas relações entre grupos díspares e antagônicos e que permite que a classe média afirme
partir da mescla com sonoridades e temáticas localizadas. 6 carinhosamente “nóis sofre, mas nóis goza”, outros valores sociais regem o cotidianos. O consumo branco do
rap implica, portanto, uma nova apreensão das relações sociorraciais. Em suma, esse consumo é uma forma
4 Macarrão, 33 anos, apontador do jogo do bicho, duas filhas, morador do morro do Zinco e torcedor de afirmar a violência das relações sociais; siginifica identificar-se com uma espécie de música de protesto.
do Fluminense. Toghum, 32 anos, vendedor de produtos esotéricos, budista e morador de Cavalcante. Música de protesto nos lembra os anos 60 e aí podemos afirmar (...) que o consumo do rap pela classe média
Combatente, 21 anos, moradora de Vigário Geral, frequentadora da Igreja do Santo Daime e operadora de branca talvez seja um substituto para a ação. Mas Francisco Carlos Teixeira (...) disse que cantar uma música
telemarketing. Durante 9 meses, entre 2002 e 2003, uma equipe filmou o dia-a-dia destes três cariocas da de protesto em circunstâncias de perseguição policial pode, sim, ser ação política. Os rappers, cujos primeiros
Zona Norte, que batalham e sonham em fazer da sua música, o RAP, o seu ganha-pão. O resultado é uma shows na periferia sofriam de repressão policial, certamente sabem do que ele estava falando. (SOVIK, Liv.
crônica composta pelo cotidiano, letras e dramas deste três personagens. (Sinopse do filme disponível em: What a wonderful world: música popular, identificações, política anti-racista. In: RAMOS, Sílvia (org.). Mídia
http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/fala-tu/fala-tu.htm) e racismo. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. (p. 103-104)

5 Podemos pensar no aproveitamento do Maracatu pelo chamado movimento Mangue Beat, no 7 Utilizamos o termo gueto, pois acreditamos que as favelas brasileiras se relacionam com a seguinte
Recife, ou no aproveitamento do Congo, por grupos de música pop no Espírito Santo. definição. Gueto é uma forma urbana específica que conjuga os quatro elementos do racismo repertoriados
por Michel Wierviorka – preconceito, violência, segregação e discriminação. (WACQUANT, p. 18)
6 O rap entrou no Brasil repertório da mídia nacional hoje, ou em 1998 pelo menos, depois de dez

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exclusão e vitimação por parte dos organismos estatais de controle e dos tentáculos do comunicação se ampliam.
poder – policiais, seguranças, gerentes de lojas, etc. Sabemos, porém, que o tratamento
dados ao negros é diferenciado, em todos os níveis de relações sociais. Após análises Alguns dados conclusivos
estatísticas, a professor Marcelo J. P. Paixão chegou à seguinte conclusão que, de certa
forma, conclui nossas observações sobre essa questão: Em uma entrevista, o compositor Gilberto Gil8 nos fala acerca dos conteúdos explorados
pelos letristas de RAP e as relações das letras com a realidade social na qual estão
O que essa plêiade de indicadores demonstra é a existência de uma coerência inseridos:
entre dados no seguinte sentido: i) seja qual for o indicador escolhido para
analisar as desigualdades raciais, em todos eles os negros encontram-se em Eles basicamente procuram passar para as letras e as canções toda essa vivência,
uma situação pior que a dos brancos; ii) seja qual for a região do país, os direta ou lateral, que eles têm da vida pobre, da vida difícil, da presença da
indicadores sociais e demográficos dos negros são menos favoráveis que os violência, da discriminação e do embate constante com setores incluídos da
indicadores dos brancos; iii) mesmo quando se desagregam estes dados por sociedade. O rap é uma linguagem que basicamente vem prestando serviço
gênero, o que se vê é que os homens brancos estão em melhor situação que a isso, a uma expressão de uma marginalidade, de uma excepcionalidade, de
as mulheres brancas, que estão em condições mais favoráveis que os homens um mundo social à parte, apartado. Eu não diria confinado, mas apartado, já
negros, que estão em uma situação menos grave que as mulheres negras. que tem brechas para dialogar, para fustigar, para interagir com os setores
Sendo assim, verifica-se que os argumentos de que no Brasil ser branco ou incluídos. A música é uma das formas de interação, uma das formas de dizer,
ser negro é indiferente do ponto de vista da estratificação social não são de se comunicar, de denunciar, de buscar ser ouvido, escutado e atendido. É
verdadeiros, ou, antes, pode-se argumentar que o problema social brasileiro uma ferramenta forte que, em alguns casos, pode ser vista como uma arma;
possui um evidente e nítido componente racial. (PAIXÃO, 2003, p. 80) em outros, como um instrumento de reivindicação; já em outros momentos,
como discurso mesmo, oratória, tribuna. Há todas essas dimensões.
O RAP dos Racionais, fundamentalmente nos últimos dois trabalhos (Sobrevivendo
no Inferno, de 1999 e Nada como um dia após o outro, de 2003) passou dos resquícios Se pensarmos que, segundo o próprio Mano Brown, integrante do grupo, ler Malcon X foi
de uma visão racial com ecos do movimento norte-americano, para uma visão local uma descoberta que quase o fez cometer atos que considera como “fazer umas merdas”,
interessante, em que o fundamental é a interação do pobre favelado a um processo de devido à revolta que a leitura causou, podemos pensar nessa migração ou abrasileiramento
conscientização e busca da cidadania. Segundo Maria Rita Kehl: das discussões sobre os verdadeiros inimigos, como uma revisão e adaptação de um
modelo externo à nossa realidade social. Mas, é lógico, os “branquinhos do shopping”,
Alguma coisa mudou na atitude de Brown e seus manos depois de os “playboy forgado”, ou seja, as variantes do branco bem-sucedido, inconsciente,
Sobrevivendo no inferno, onde eles demarcavam o território do rap excluindo
os “filhinhos de papai” que se faziam passar por malandros escutando os
inconsequente, quer seja como patrão, quer seja como o jovem consumista que ostenta
Racionais MCs no rádio do carro. Em 2002, os músicos mais populares do hip as marcas do poder econômico, continuam sendo alvos da crítica dos Racionais, além de
hop paulista entenderam que a potência de seu “rithm and poetry” ultrapassa serem personagens que passeiam pelas crônicas dos rappers como inimigos mortais na
barreira de classe e de raça. Ninguém consegue impedir que os jovens do guerra do dia-a-dia, ou como vítimas em potencial daqueles que estão correndo atrás do
Jardim América se identifiquem com o discurso produzido pelos moradores prejuízo histórico que as classes subalternas pagam com sua invisibilidade. E também,
do Jardim Ângela. (KEHL, 2002) muitas vezes, se apresentam como as vítimas perfeitas que propiciam as catástrofes
e tragédias urbanas relatadas epicamente na poesia do grupo. Porém, sabemos que
Mano Brown continua afirmando que não tem nada pra dizer para “os classe média”. a violência localizada, que extrapolou os limites de bairros periféricos e favelas, não é
Enquanto produto da indústria cultural, o RAP pode ser consumido por quem quer que puramente local, há as relações entre organizações internacionais com o narcotráfico e
seja, mas sabemos que o público-alvo, termo que aqui cai muito bem, continua sendo os o comércio ilegal de armas. O que aqui se pretende, sem purismos, são considerações
moradores das periferias das cidades brasileiras. Como elemento integrante da cultura sobre as demonstrações locais de fenômenos complexos a nível global, os Racionais
Hip Hop, o RAP dos Racionais é parte de um ideário político que se conjuga com uma dizem num de seus RAPs que na comunidade não há aeroportos, nem plantações de
série de orientações que reivindicam direitos e melhorias estruturais e culturais para as maconha e coca.
comunidades pobres. A maioria dos shows ocorre ainda em espaços que não são os
8 Entrevista concedida por e-mail à Folha pelo (então) Ministro da Cultura Gilberto Gil (03/04/2006).
destinados aos pop star. As aparições na TV escassearam ainda mais, porém as redes de Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u59314.shtml

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Não queremos afirmar que a violência tem como única causa a péssima distribuição dos rapers, os Racionais continuam cantando esse RAP, porém, na parte em que a
de renda no Brasil, o que se põe em destaque, nesse trabalho, são consequências reais, utopia pós-assalto é cantada pelo público -. Ih, depois, só praia e maconha / Comer todas
observadas e estetizadas como mensagem poética por um grupo musical que conhece burguesas em Fernando de Noronha – Brown faz um alerta textual contra as ilusões e
essa realidade perversa a partir de um olhar que vislumbra o “real” a partir de dentro. expectativas de gran finale : Esse é o castelo, esse é o castelo, a realidade é outra já há uns
A respeito das teias que engendram a violência local com práticas internacionais nos dias, só não vê quem não quer, na realidade a cena é triste, não pode se desesperar. E ao final
afirma, de forma contundente e esclarecedora, a antropóloga Alba Zaluar: da apresentação do RAP, tendo como fundo a voz do público repetindo o refrão, vem
mais um discurso:
A imagem do menino que com uma AR-15 ou metralhadora UZI na mão, as
quais considera como símbolos de sua virilidade e fonte de grande poder local, Alguns irmãos esperam pela liberdade da rua, outros irmãos estão na rua e sem
com um boné inspirado no movimento negro da América do Norte, ouvido liberdade (...) do outro os playboy estão acumulando fortuna, diploma. Eles
musica funk, cheirando cocaína produzida na Colômbia, ansiando por um tênis estão pensando que aqui só tem droga e destruição, mas não é isso, não, o que
Nike do último tipo e carro do ano não pode ser explicada, para simplificar a quiser tem, mas quem quiser ir pro lado bom também acha, (...) ninguém arrasta
questão, pelo nível do salário mínimo ou pelo desemprego crescente no Brasil, ninguém, não. (...) A gente tem que conscientizar que onde a corda estoura é pro
nem tampouco pela violência costumeira no sertão nordestino. Por um lado, lado dos mais fraco e o lado mais fraco, muitas vez, é o morro, é a favela. (Mano
quem levou até ele esses instrumentos do seu poder e prazer, por outro, quem Brown, em show na Chatuba, Rio de Janeiro)
e como se estabeleceram e continuam sendo reforçados nele os valores que
o impulsionam à ação na busca irrefreada do prazer e poder, são obviamente
questões que independem do salário mínimo local. Estas afirmações tem Porém, outro rapper, Afro X, afirma que é difícil não falar sobre criminalidade: “O RAP
vários desdobramentos. (ZALUAR, 2004, p. 303) está diretamente ligado ao crime porque a gente nunca vai perder a nossa raiz, a gente é
periferia”. Segundo a matéria da revista: Para ele, ex-detento que conheceu o RAP dentro
Se a juventude pobre é a maior vítima desses processos fetichistas e violentos de busca da cela, o RAP tem função educacional. “A gente tem reescrever a história dos negros no
de afirmação individual e comunitária a partir de marcas identitárias viris poderosas, é nosso país. Nossa história foi muito distorcida, e o RAP é uma música que está deixando tudo
fundamentalmente direcionada para tal juventude a mensagem de muitos RAPs dos registrado – essa é a liberdade que o RAP trouxe para a música, de falar de preso, de favelado,
Racionais. Dessa maneira, em muitas das “canções”, há recados explícitos e paternalistas de preto, de racismo”.
para a “molecada” ficar longe das armas e das drogas, não entrar em “fita errada”, ou
seja, não entrar no mundo do tráfico e da criminalidade. O caráter efêmero e passageiro Assim, potencializam-se a multiplicidade de vozes que são chamadas a participar, de
desse poder é evidenciado, juntamente às práticas positivas de conscientização racial, forma paródica, da construção de sentidos múltiplos. O dialogismo traz movimentos
cultural, de luta por melhores condições de vida para a comunidade. Estas, as práticas cambiantes entre posições intermediadas por um Eu e um Tu que se desdobram,
positivas de conscientização e busca da cidadania, sim, seriam as armas letais na caracterizando a pluralidade, produzindo o que Baktin chamaria de construção dialógica
eliminação da inconsciência coletiva da guerra fratricida que envolve os manos pobres de sentido. Assim, os caracteres persuasivos de uma prática discursiva que se sabe
das comunidades periféricas das cidades brasileiras e, fundamentalmente, de São Paulo. pedagógica seriam incorporados pela multiplicidade de vozes que participam da
construção de sentidos das narrativas da épica sub-urbana dos Racionais Mc’s. As falas e
Um fato marcante ocorrido recentemente, após o assassinato de um jovem em um falares desses outros presentes na prática poética do Rap, esses falares com juntamente
show9, foi o encontro articulado por Mano Brown para que se discutisse a importância com falares de afastam-se dos falares sobre. Através da prática do dialogismo, vozes
da mensagem dos rappers para os jovens, a violência desarticulada de algumas letras foi difusas e semi-inteligíveis somam-se possibilitando uma focalização que inverte os
criticada e discutida, inclusive foi dito pelo próprio Brown que a música Eu sou 157, que olhares que incidem sobre essas mesmas falas, nas, muitas vezes, vãs tentativas de
possui um refrão aparentemente apologético ao crime: Hoje eu sou ladrão, artigo 157/ traduzi-las.
As cachorra me amam/ Os playboy se derrete, seria retirada do repertório dos shows, pois
o refrão, descontextualizado do restante da mensagem, parece endeusar o latrocida. A oralidade tecnologicamente mediatizada é a base da prática discursiva do RAP, com
Mas num show no Rio de Janeiro, na comunidade da Chatuba, posterior ao encontro isso se quer dizer que, além das apresentações ao vivo, há a tentativa de, inclusive
com o apoio tecnológico, possibilitar a participação dos sons do mundo na execução
9 Cf. Enquanto isso na sala de justiça. Matéria de Natália Viana para o número especial da REVISTA
CAROS AMIGOS: Hip hop hoje, n. 24, jun., 2005. espetacular do Rap, nas gravações de discos e nos shows . A estruturação dos RAPs visa

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a criar o clima de junção de sonoridades e de vozes que vai redefinir o poético numa Referências
pluralidade vívida que se pretende mediadora do discurso, através da ampliação de
sonoridades, numa busca de totalidade que tem o objetivo de ser uma performance, no KEHL, Maria Rita. Quem tem moral com os adolescentes? (Duas hipóteses sobre a crise na educação no século
sentido de contar com o aparato de apoio que interceda e se some às vozes, para assim XXI). IN: Scielo. An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/
sintetizar significados complexos, como um palimpsesto de diversas camadas sonoras. scielo.php?pid=MSC0000000032002000400034&script=sci_arttext&tlng=pt

Na fala d e KL Jay , cada disco do grupo é como um livro, tem a capa e as letras.... Aí reside KELLNER, Douglas. A voz negra: de Spike Lee ao rap. In: ---. Cultura e mídia. São Paulo: EDUSC, 2001. Trad.
um fator preponderante que caracteriza a banda, a inexistência de letras nos encartes Ivone C. Benedetti.
dos discos. Há fotos e outras referências, porém o discurso tende a ser repassado
através da oralidade. Daí a dificuldade de captar a linha ideológica da “verdadeira” NASCIMENTO, Jorge. Exclusão & globalização, racismo & cultura: do RAP e outras poesias. In: Literatura:
fala, já que transcrições contidas na rede de computadores são falhas, tem omissões, e fronteiras e teorias. Programa de Pós-Graduação em Letras/ Mestrado em Estudos Literários/Ufes, 2003.
fundamentalmente, são reconstituídas através da apropriação da oralidade, da palavra Disponível em: http://www.ufes.br/%7Emlb/anais/default.asp.
cantada. Assim, se concordamos que os cds dos Racionais são como livros, estaremos
diante de um livro sui generis, um livro que é construído através da transcrição das palavras ------. Cultura e consciência: a “função” dos Racionais MC’s. Z CULTURAL – REVISTA DO PROGRAMA
cantadas, um livro oral. E qual a importância de tal fato? Parece que dessa maneira se AVAÇADO DE CULTURA CONTEMPORÂNEA – PACC/UFRJ – Ano V, n.3, 2010. Disponível em: http://www.
constitui um livro especial, é um livro para ser ouvido aos poucos, é necessário que as pacc.ufrj.br/z/ano5/3/index.php.
raspagens das camadas dos palimpsestos sonoros seja feita, refeita, para que se possa Ottmann, Goetz. Entre a fluidez e a unidade: o que é local no Hip-hop brasileiro? In: http://www.imaginario.
atingir com profundidade o caráter plural que compõe as ambientações das mensagens com.br/artigo/a0061_a0090/a0085.shtml
poéticas. O processo é longo, a decifração e/ou transcrição de mensagens de sete ou
oito minutos, com versos longos e ritmados, é o convite para a entrada em um mundo OTTMANN, Goetz. Entre a fluidez e a unidade: o que é local no Hip-Hop brasileiro. Disponível em http://www.
de absorção de mensagens perdidas na falácia tecnológica da atualidade. Os discos são imaginario.com.br/artigo/a0061_a0090/a0085.shtml
livros que servem, inclusive, para aqueles que não sabem ou não têm o costume da
leitura, é celebração ritualística de penetração num mundo de palavras, tiros, sonoridades PAIXÃO, Marcelo J. P. Desenvolvimento humano e relações sociais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
múltiplas e múltiplas vozes que compõem um todo repleto de pequenas histórias
contadas e ambientadas, musicalmente. Fechamos com as instigantes considerações de QUEIROZ, Amarino O. Griots, cantadores e rappers: do fundamento do verbo às performances da palavra.
Luiz Tatit: In: DUARTE, Zileide (org.). Áfricas de África. Recife: Programa de Pós-graduação em Letras / UFPE, 2005. (p.
11-12)
Não nos preocupemos com a canção. Ela tem a idade das culturas humanas
e certamente sobreviverá a todos nós. Impregnada nas línguas modernas, do RACIONAIS MC’s. Sobreviendo no inferno. São Paulo: Cosa Nostra, 1997. (cd)
ocidente e do oriente, a canção é mais antiga que o latim, o grego e o sânscrito.
Onde houve língua e vida comunitária, houve canção. Enquanto houver seres
falantes, haverá cancionistas convertendo suas falas em canto. (TATIT, 2006) ------. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra, 2002. (cd)

Finalizando, o que importa é que, mais que ser categorizado como um “subgênero” REVISTA CAROS AMIGOS: Hip Hop hoje, n. 24, jun., 2005.
musical, o que é discutível, o Rap dos Racionais pode ser entendido como uma forma
de expressão popular contemporânea e híbrida que pretende ser o que ele é: forma RORTY, R; GHIRALDELLI Jr., Paulo. Ensaios pragmatistas: sobre subjetividades e verdade. Rio de Janeiro:
de manifestação de vozes de jovens que historicamente estiveram silenciadas pelos DP&A, 2006.
sistemas de exclusão e estigmatização constituintes da sociedade brasileira ou, se
quisermos simplificar, apenas Ritmo & Poesia. SOVIK, Liv. What a wonderful world: música popular, identificações, política anti-racista. In: RAMOS, Sílvia
(org.). Mídia e racismo. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. (p. 103-104)

SCHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Editora

26 27
34, 1998. Trad. Gisela Domschke. Apêndices

------. Estética rap: violência e a arte de ficar na real. In: DARBY, Derrick; SHELBY, Tommie. Hip Hop e a A- O rap salva a palavra – Entrevista de José Ramos Tinhorão. Revista Época - 16/07/2004 -EDIÇÃO Nº
filosofia. São Paulo: Madras, 2006. Trad. Martha Malvezzi Leal. (p. 68-69) 322 – Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG65435-6011,00.html

TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê, 2004. ÉPOCA - O rap não seria a recuperação das raízes africanas do Brasil por meio do protesto social?

------. Cancionistas invisíveis. In: Cult, nº 105, Ano 9, 2006, pp. 54-58. Disponível em: http://www.luiztatit. Tinhorão - O rap é interessante porque marca a volta às origens do canto, ele representa a redenção da
com.br/artigos/ palavra enquanto música. O cantochão, por exemplo, é o rap da Igreja Católica: surgiu com os padres
rezando sem acompanhamento. Mas a música brasileira já tinha o seu rap, a embolada, antes de os
WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008. Trad. Paulo César Castanheira. garotões de Nova York a reinventarem.

ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004. ÉPOCA - Você não acha Marcelo D2 e Racionais genuinamente brasileiros?

Tinhorão - Eles macaqueiam os americanos, imitam até mesmo a roupa deles. Os rappers do Brasil são
como os ‘breganejos’, que exploram a música texana. O fato é que não existe mais música brasileira e não
vejo condição de aparecer nada interessante nos próximos anos.

B- Jorge Mautner, o grande artista do Kaos - Arte & Cultura - 08/02/2007- ENTREVISTA EXCLUSIVA -
Rafael Sampaio – Carta Maior – Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.
cfm?materia_id=13449

Veja o hip-hop, o funk e o rap. Quero lembrar, inclusive, que o rap é literatura. Se a letra foi abandonada em
outros estilos musicais, como a música eletrônica, com o rap a letra ganha importância. A letra está ligada
às crises sociais, mas também às crises existenciais.

C- José Miguel Wisnik, “Global e mundial”. In Sem receita – Ensaios e canções. São Paulo: Publifolha,
2004. Seguido do posfácio “Eu, você, nós dois”. p. 319-333.

Quero comentar, entre tudo o que se seguiu à época áurea da MPB (cuja centralidade no mercado musical
brasileiro parece ter durado até o início dos anos 1980), um acontecimento forte e significativamente
fora do esquadro popular-nacionalista: refiro-me ao rap de São Paulo, tal como se encontra realizado, por
exemplo, no CD Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MC’s. Para mim, esse é o mais marcante fato novo
da música no Brasil desde muito tempo, como expressão social, como linguagem, como fenômeno de
produção, distribuição e criação de público.

D- Marcelo Mirisola - Churrasco do Bactéria: Disponível em: http://noticias.aol.com.br/colunistas/

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ERA UM, ERA DOIS, ERA CEM...:
marcelo_mirisola/2003/0012.adp

Desde quando - é a pergunta que me faço - a literatura serviu para melhorar a vida e/ou tirar alguém da
marginalidade? Se serviu ou serve não é literatura. Pode ser capoeira, RAP ou qualquer meleca do gênero
que trate de bumbos, cama elástica, axés e afoxés e, no final das contas, sirva como pretexto para distrair ESTUDOS MUSICAIS E
ALTERIDADE
o miserável da realidade em que vive. O nome disso pode ser má-fé ou, para os inocentes e voluntários,
assistência social, nada a ver com literatura. Outra coisa. Quem disse pro Mano Brown que ele faz música?
Será que não basta aguentar a cara feia desses sujeitos, andar de ônibus com eles e ser assaltado na
esquina da Faria Lima com a Rebouças? Além disso tudo, ainda tenho que ouvir RAP e chamar de música?

E – Julio Medaglia – Entrevista com o Maestro Júlio Medaglia - Revista Bravo, 6/10/08, feita pela jornalista
Mónica Vermes
Marina Mantovanni.

Professora Doutora do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

- Os eruditos se dividem entre aqueles que respeitam o rap e os que não gostam nenhum pouco. Em uma
entrevista, o senhor revelou pertencer ao segundo grupo. Qual é a sua opinião sobre o gênero?
Resumo Abstract
- 95% do rap é um lixo. Quando o negro norte-americano quis mostrar que “era gente”, foi buscar dentro de
si o que havia de belo para exibir à sociedade que o hostilizava. Com isso nasceu o jazz, a mais importante Este trabalho propõe e pretende estimular a reflexão This paper presents and intends to stimulate
sobre diferentes maneiras de lidar com o Outro, com the reflection upon different ways to deal with
linguagem musical daquele país. Quando o negro mais recentemente quis fazer uma música baseada no o diferente ou estranho na música e nos estudos the Other, with what is considered different or
rancor, saiu essa droga. Uma verborragia interminável, medíocre e democrática (pois qualquer imbecil musicais. Para tal propósito se detém em casos que stranger, in music and musical studies. In order to
pode fazê-la). Boa parte do negro brasileiro hoje fica imitando em todos os detalhes a cultura do hip-hop, incluem os Festivais da Música Popular Brasileira da achieve this purpose, it observes different cases,
década de 1960, o estilo Alla turca do século XVIII, as including the Brazilian Popular Music Festivals in
se tornando colono do negro norte-americano “que não deu certo na vida” e que fica puxando fumo na
práticas interpretativas historicamente informadas the 1960s, the Alla turca style in the 18th century
periferia de Los Angeles, dizendo que a sociedade está contra ele. É uma tristeza ver o negro brasileiro trair e a atividade musical das mulheres no Rio de Europe, historically informed performance practice,
suas raízes, matar Zumbi outra vez – já que o hip-hop não tem nada de africano – e ficar macaqueando Janeiro de fins do século XIX. Versão modificada and the musical activity by women at the end of
uma cultura medíocre importada, que aqui chega através de uma indústria cultural tocada a marketing da palestra apresentada durante a II Semana de the 19th century in Rio de Janeiro. It is a modified
Iniciação Científica da FAMES, em abril de 2012, esta version of the lecture presented during the Second
externo de um país que tem história diferente do nosso. panorâmica aponta para algumas das vertentes da Undergraduate Research Week at FAMES, in April
musicologia que têm se concentrado na relação com 2002. This panoramic view points to some of the
a alteridade. areas of musicology that focus on the relation to
otherness.
F- Luiz Tatit - CANCIONISTAS INVISÍVEIS - (In: Cult, nº 105, Ano 9, 2006, pp. 54-58). Disponível em: http:// Palavras-chave: música e práticas musicais,
www.luiztatit.com.br/artigos/ alteridade, musicologia e diferença. Keywords: music and musical practices, alterity,
musicology and difference.
Um dos equívocos dos nossos dias é justamente dizer que a canção tende a acabar porque vem perdendo
terreno para o rap! Equivale a dizer que ela perde terreno para si própria, pois nada é mais radical como
canção do que uma fala explícita que neutraliza as oscilações “românticas” da melodia e conserva a
entoação crua, sua matéria-prima. A existência do rap e outros gêneros atuais só confirma a vitalidade da
canção. Ou seja, canção não é gênero, mas sim uma classe de linguagem que coexiste com a música, a
literatura, as artes plásticas, a história em quadrinhos, a dança etc. É tudo aquilo que se canta com inflexão
melódica (ou entoativa) e letra. Não importa a configuração que a moda lhe atribua ao longo do tempo.

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1 diferentes frentes e modalidades. O que apresento aqui é, a partir da discussão de obras
e práticas musicais de diferentes épocas e locais (as canções dos Festivais de Música
O presente trabalho é uma versão modificada da palestra apresentada durante a II Popular Brasileira da década de 1960, o estilo Alla turca do século XVIII, as práticas
Semana de Iniciação Científica da FAMES. As modificações realizadas se deram no interpretativas historicamente informadas e as mulheres musicistas no Rio de Janeiro de
sentido de adequar o texto inicial, preparado para uma exposição oral, às características fins do século XIX), uma reflexão bastante panorâmica a respeito da relação com o Outro
do texto escrito, ainda assim o texto conserva muito de sua oralidade. na música e na musicologia.
Aproveito para reiterar o agradecimento feito na ocasião a Wellington Rogério da Silva,
presidente da Comissão Técnico-Científica da II Semana de Iniciação Científica da FAMES, 2
e aos demais membros dessa Comissão pelo convite para participar do evento e a Gina
Denise Barreto Soares, coordenadora da pós-graduação da FAMES e editora da revista A O objetivo deste trabalho é, apesar da abrangência das manifestações e épocas sobre os
Tempo pelo convite para trazer este texto para a revista. quais se detém, pontual. Ele pretende ser uma reflexão e um estímulo à reflexão a respeito
das maneiras de se relacionar com o Outro colocadas pela música e pela musicologia.
Dois elementos presentes no Projeto da Semana de Iniciação Científica serviram de O título do trabalho é tomado da letra de Ponteio, de Edu Lobo e Capinan, canção
estímulo inicial para estas reflexões. São pressupostos que fundamentam a promoção vencedora do III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, realizado em 1967.
desse espaço destinado à exposição dos trabalhos de pesquisa dos alunos e a um amplo No cuidadoso levantamento feito por Zuza Homem de Mello no livro A Era dos Festivais,
debate sobre fazer música, pensar em música, ensinar música e pensar-se criticamente observamos entre os participantes desse festival, seja como compositores, letristas,
no exercício dessas atividades. A apresentação do Projeto começa com a seguinte músicos ou arranjadores, um resumo da considerável mescla de gêneros e gerações que
afirmação: dele participou: Jair Rodrigues, Renato Teixeira, Gal Costa, Chico Buarque (com Roda
Viva), Tom Zé, Johnny Alf, Claudete Soares, Wilson Simonal, Roberto Carlos, Nana Caymmi,
Torna-se óbvio que o acelerado crescimento da informação nos permite Gilberto Gil (com Domingo no Parque), Roberto Menescal, Toquinho, Victor Martins
afirmar que as paredes da sala de aula já não são mais espaço de construção de (depois famoso como parceiro de Ivan Lins), os Mutantes, Carlos Imperial, Ronnie Von,
conhecimento. Além disso, os processos de aquisição de saberes pertinentes às
áreas do conhecimento estão à disposição do indivíduo pensante dentro e fora
Ariano Suassuna, Nelson Motta, Elis Regina, Francis Hime, Vinicius de Moraes, Nara Leão,
das instituições de ensino. Tratando-se de música, seja no âmbito educacional Geraldo Vandré, Mário Lago, Agnaldo Rayol, Pixinguinha, Herminio Bello de Carvalho,
ou artístico, essa questão parece, no entanto, ainda pouco discutida, por Elza Soares, Jamelão, Sérgio Ricardo, Erasmo Carlos, Hebe Camargo, Martinho da Vila e
razões peculiares ao recente crescimento da demanda do ensino de música Caetano Veloso (com Alegria, Alegria). (MELLO, 2003, p.445-46)
nas escolas ou pela própria atividade do artista, que hoje se defronta com a
necessidade de produzir pesquisa em seu campo de atividade. (SILVA; RAUTA; Ponteio, vencedora desse festival, é um dos mais sofisticados exemplos da música popular
ADEODATO, 2012, p. 3) brasileira da década de 1960. Mais que isso, da MPB, a poderosa sigla que, em oposição
à abrangente expressão descritiva “música popular brasileira”, agrupa nesse momento
Considerando, então, que “as paredes da sala de aula já não são espaço [suficiente para um conjunto bastante restrito e específico de músicos, temas e procedimentos musicais.
a] construção de conhecimento” e que é necessário expandir o olhar e a escuta para É freqüente o desconforto com o desencontro dessas duas entidades. MPB não seria tudo
as “informações disponíveis dentro e fora das instituições de ensino”, essa abertura e aquilo que se faz em matéria de música popular no Brasil? Quando se fala em popular, a
expansão nos colocam em contato ou nos colocam ainda mais em contato com a que nos referimos? Não seria a música do povo? Na verdade, o conjunto de repertórios,
multiplicidade de formas de ser, pensar, sentir e fazer música, legitimadas ou não, práticas musicais, estilos e artistas agrupados sob a legenda MPB é muito mais restrito
aceitas ou não pelas instituições de ensino tradicionais. Trata-se de uma aventura e de que isso, há muitas coisas que ficam fora. A constituição dessa sigla e daquilo que
um desafio. abrange não foi uma decisão individual ou pontual, mas é resultado de um processo
de constituição que entrelaça aspectos musicais, aspectos políticos e aspectos culturais
A partir desse convite para olhar / ouvir o que está fora, o que está além dos muros mais amplos. Seu significado também não é congelado, o uso o tem transformado com
da escola e do universo protegido do que nos é familiar, parece-me oportuno explorar o passar dos anos, mas na década de 1960 a sigla MPB está vinculada a uma vertente
diversas formas como o diferente, o estranho aparecem e como são tratados nos estudos da canção herdeira da tradição musical da Bossa Nova, da qual conserva a sofisticação
musicais. A tarefa é vasta e complexa e tem sido enfrentada por pesquisadores em técnica; preocupada com questões sociais, políticas e econômicas do Brasil, refletidas

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não só, mas muito evidentemente em suas letras; posicionada em defesa de uma ideia A disciplina da musicologia encobre o racismo, colonialismo e sexismo que
de “pureza” das tradições culturais brasileiras, evidente no uso de instrumentos como o estão na base de muitos dos cânones singulares do Ocidente. [...] Cânones
formados a partir de “Grandes Homens” e “Grandes Obras Musicais” forjaram
berimbau e na visita a gêneros musicais consolidados da música popular, como o samba
categorias virtualmente indestrutíveis de “si” e do “Outro”, um lado para
canção e a marcha-racho.1 No afã de manter tal “pureza”, gera-se uma polarização entre a disciplinar e reduzir à singularidade, outro para ser diminuído e refutado.
MPB e a chamada música jovem, influenciada pelo rock, do qual tomaria um refrão como (BERGERON & BOHLMAN, 1992, p. 198)
nome alternativo, ie-ie-iê.2 Essa polarização culminaria numa passeata da Frente Única
da Música Popular Brasileira, no dia 17 de julho de 1967, da qual participaram Elis Regina, A partir da década de 1980, um processo de transformações acelerou-se na Musicologia.
Jair Rodrigues, Edu Lobo e Geraldo Vandré, entre outros, e que ficaria conhecida como Trata-se de uma ampliação do olhar e da escuta para um elenco mais largo de repertórios
Passeata Contra a Guitarra Elétrica.3 Delimita-se aí o que nos interessa neste trabalho: e práticas em diálogo com um conjunto cada vez mais vasto de disciplinas acadêmicas.
um nós e um eles, marcado aqui pela intolerância e pela recusa do reconhecimento da A História era entendida como mais importante (ou praticamente exclusiva) disciplina-
legitimidade dessa outra forma de fazer musical. irmã da Musicologia na avaliação feita por Joseph Kerman em seu hoje antológico
Contemplating Music: Challenges to Musicology5 de 1985, livro em que ele avalia a
3 distância que a Musicologia mantinha naquele momento da vanguarda da academia

A identificação da diferença pode levar, como nesse caso, a um choque e à tentativa de De fato, quase todos os pensadores musicais estão muito aquém das
supressão dessa diferença pela imposição de princípios e valores de um grupo ao outro “locomotivas” mais recentes da vida intelectual em geral, como veremos nas
ou mesmo à supressão do outro. Pode também levar a uma percepção da alteridade, ou páginas que se seguem. Somente alguns dos mais ousados estudos musicais
da atualidade recorrem à semiótica, hermenêutica e fenomenologia. O pós-
outridade, com o reconhecimento do outro em seus (dele) próprios termos. Ou seja, não
estruturalismo, a desconstrução e o feminismo sério ainda não estrearam na
colocar os valores do observador / auditor como padrão de referência para comparação
musicologia ou na teoria musical. (KERMAN, 1987, p.10)
a partir da qual outra pessoa possa parecer incompleta, estranha ou inferior porque é
diferente. O mesmo com relação à música, dizer que tal ou qual expressão musical é
Em outra obra de (re)avaliação da área, Rethinking Music (2001), organizado por Nicholas
incompleta, estranha ou inferior por que é ou não tocada num determinado instrumento,
Cook e Mark Everist, já encontramos um elenco muito mais vasto de problemas e
tem ou não este ou aquele tipo de melodia, se presta ou não para esta ou aquela função,
disciplinas de interlocução,6 refletindo as transformações por que a Musicologia passou
por exemplo. Essas diferenças aparecem a partir de parâmetros diferentes como etnia,
nas duas décadas entre uma obra e outra.
gênero (masculino, feminino), sexualidade, classe social, estilo musical, entre tantas
Essas novas inquietações e as tantas possibilidades de interlocução acadêmica para lidar
outras.4
com elas dizem respeito em boa medida à necessidade e disposição para enfrentar o
diferente em termos diversos daqueles que estavam estabelecidos pela tradição. Parece-
Um elemento que sintetiza a noção de excelência de uma comunidade são os cânones.
me também que estas questões estão em diálogo próximo com as preocupações que
No caso musical trata-se do conjunto de composições que se julga representar o ponto
aparecem expressas no projeto da Semana de Iniciação Científica da FAMES: manejar “o
mais alto de realização de uma série de valores. Evidentemente a seleção de critérios
aumento e a variedade das fontes de informação”; “a música e suas interfaces: saberes e
que tornam uma obra musical canônica se dá em detrimento de outros e no Ocidente a
fronteiras” e “o trânsito entre a música e outros campos de conhecimento”.
constituição do cânone musical centrou-se em valores que acabam delimitando origem
geográfica (Europa, principalmente a Europa central e ocidental), cronológica (séculos
4
XVIII e XIX) e social (burguesia) bastante específicos. Tomar tais especificidades como
valores absolutos resulta numa negação do possível valor dos Outros musicais. Nas
A identificação do “outro” em música muda, evidentemente, dependendo do ponto de
palavras de Phillip V. Bohlman:
vista / escuta, mas, para além do reconhecimento da diferença, a forma como vai ocorrer
1 Ver NAPOLITANO, História e Música, 2002. 5 O livro foi publicado em português como Musicologia (1987).
2 Tomada do refrão da canção She loves you, de John Lennon e Paul McCartney, gravada pelos 6 O volume inclui capítulos como “Ontologias da música”, “Análise em contexto”, “Os desafios da
Beatles em 1963: “She loves you, yeah, yeah, yeah”, daí ie-ie-iê. Semiótica”, “A história do cânone musical”, “O texto musical” e “O impacto da ética na produção acadêmica
3 Ver foto da passeata em MELLO, 2003, p. 182. musical”, entre muitos outros. Esses exemplos ajudam a evidenciar a medida e a forma em que o panorama
4 Ver o verbete “Alterity” em BEARD; GLOAG, Musicology: key concepts, 2005. analisado por Kerman se transformou ao longo dessas duas décadas.

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esse encontro, atrito ou choque está vinculada a uma assimetria de forças. Dentro da 5
construção histórica das práticas e discursos musicológicos tradicionais, o Eu constituiu-
se como a música erudita ocidental, representado pelo seu cânone, que lança seu olhar Passamos um tempo considerável ouvindo, tocando e, de alguma forma, dialogando
para os Outros: as várias manifestações da música popular, as músicas não-ocidentais, com compositores e, através das gravações, intérpretes de outras gerações e até mesmo
as músicas étnicas. (BORN; HESMONDHALGH, 2000) Esses Outros podem aparecer de outros séculos. Particularmente no âmbito da música erudita, há uma tradição de
representados dentro da música ocidental, podem ser alvo de apropriações e podem cuidado com as escolhas interpretativas que tem como fundamento uma preocupação
entretecer as teias de hibridismos. em realizar a música de acordo com o que seria o desejo do compositor ou as práticas
da época em que essa música foi criada. Aplicar ou não pedal, usar ou não vibrato,
Um conceito importante para o exercício de uma reflexão crítica sobre si e sobre o outro tocar somente o que está na partitura ou acrescentar ornamentação, tocar o ritmo
é o Orientalismo de Edward Said. Apresentado no livro Orientalismo: o Oriente como metronomicamente ou com quanta liberdade, são todas questões enfrentadas pelos
invenção do Ocidente, publicado originalmente em 1978, é definido pelo autor como intérpretes, obrigados a fazer escolhas o tempo todo.

um modo de abordar o Oriente que tem como fundamento o lugar especial do Essa preocupação com autenticidade parece hoje natural, no entanto, trata-se de uma
Oriente na experiência ocidental européia. O Oriente não é apenas adjacente prática relativamente recente. Historicamente tem-se interpretado um repertório de
à Europa; é também o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias acordo com as práticas correntes. Essa é a abordagem que perdura, pelo menos, até o
européias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival cultural e uma de final do século XIX. Em séculos anteriores sequer havia interesse em executar ou fazer
suas imagens mais profundas e mais recorrentes do Outro. (SAID, 2007, p.27- executar música que não fosse de sua própria época.
28)
As interpretações historicamente informadas (ou HIP – Historically Informed Performances,
Trata-se menos de uma questão relacionada ao posicionamento geográfico no globo em sua sigla inglesa) começam a surgir no século XX graças à ampliação na circulação de
que de um lugar ocupado no imaginário. Aparecem aí tanto um desejo genuíno por material, especialmente das edições resultantes dos projetos musicológicos que então
entender e conhecer uma cultura diferente quanto uma preservação do senso de eram padrão. Inicialmente tratou-se de colocar em circulação repertório pouco ou nada
diferença, distância e assimetria. conhecido, particularmente os compositores eruditos europeus de antes da segunda
metade do século XVIII, e manifestou-se na criação de sociedades musicais, conjuntos
Na música o orientalismo vai se manifestar de diversas formas diferentes, como nas instrumentais e coros. Irrompeu mais intensamente na década de 1960, com a atividade
óperas As índias galantes de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), O rapto do serralho de de músicos como Gustav Leonhardt e Nikolaus Harnoncourt, a preocupação com a
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Aída de Giuseppe Verdi (1813-1891). Nas óperas recriação das práticas interpretativas da época de J.S. Bach e a circulação de cópias de
o elemento oriental aparece não só, ou não necessariamente, em aspectos musicais, mas instrumentos antigos.
no próprio libreto, na estrutura narrativa e na construção de personagens. O mesmo
esforço no sentido de representação do Outro exótico pode também aparecer na Se em um primeiro momento o foco principal foi a obra de Bach, os repertórios foram
música instrumental, como é o caso do estilo Alla turca, exemplificado no 3º movimento se expandindo tanto para o passado (música barroca, renascentista e medieval) quanto
da Sonata para piano N. 11, K. 331 de Mozart ou no último movimento da 9ª Sinfonia Op. para períodos posteriores (segunda metade do século XVIII e século XIX). Exemplo da
125 de Ludwig van Beethoven (1770-1827). A tentativa de aproximação de Franz Liszt chegada desse espírito de reconstituição histórica ao século XIX são as gravações do
(1811-1886) daquilo que considerava ser a música tradicional húngara, forjando um style Réquiem Alemão de Johannes Brahms (1991) e das sinfonias de Beethoven (1994) por
Hongrois, constitui também uma tentativa de apropriação desse Outro exótico. John Eliot Gardiner com sua Orchestre Révolutionnaire et Romantique.

Há, no entanto, um hiato entre essas duas culturas, que diz respeito ao significado Ante excessos na ilusão da autenticidade, pautada em conceitos como objetividade e
atribuído a esses sons e a seus usos. E assim como existe uma distância entre dois fidelidade, é interessante ver a perspectiva de Richard Taruskin. Para ele, o que se costuma
mundos diferentes, existe também um hiato entre tempos diferentes. chamar de “performance histórica” trata-se, na verdade, de “uma performance moderna,
mais, de vanguarda,” e aquela considerada uma “performance moderna”, ou seja, sem
preocupação com uma reconstituição de práticas interpretativas do passado, seria,

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na realidade, histórica, pois “representa a sobrevivência de um estilo interpretativo do Observando a tabela, percebemos alguns números surpreendentes: do total de 401
século XIX, que vai desaparecendo gradualmente, rapidamente tornando-se histórica” alunos matriculados no Instituto, 347 eram mulheres. Do total de 80 alunos de piano, 76
(TARUSKIN, 1995, p.140). eram mulheres. Esse importante contingente de mulheres com formação musical oficial
contrasta com a quase total ausência de mulheres nos manuais de história da música
6 brasileira.7 Analisando publicações nos periódicos de circulação diária do Rio de Janeiro,
observamos notas de eventos musicais como o seguinte:
As mulheres são também um grupo incluído entre os Outros da música e da musicologia
ocidentais. Temos, comparativamente, um número pequeno de mulheres compositoras
conhecidas. Mas, se há trabalhos importantes que têm se dedicado à descoberta e Primera parte:
divulgação da produção musical de mulheres, parece-me igualmente importante 1 – Verdi, Caro nome, da ópera Rigoletto, Exma. Sra. D. Olívia Magalhães.
2 – a) Schumann, Reverie; b) Lee, Gavotte, para violoncelo, Exma. Sra. D.
atentar para as atividades musicais das amadoras. Noêmia Madureira, acompanhamento ao piano pela Exma. Sra. D. Julieta do
O estudo da música (no século XIX e na primeira metade do século XX) estava incluído Nascimento.
entre as habilidades importantes para a preparação de uma esposa e dona de casa. É 3 – a) Fauré, Alleluia d’amour; b) Nepomuceno, O medroso de amor, palabras de
de se imaginar, então, que uma grande quantidade de mulheres estudasse música e há J. Galeno; c) Nepomuceno, Amo-te muito, palavras de João de Deus, Sr. Carlos
registros que corroboram essa inferência. O diretor do Instituto Nacional de Música do Rio de Carvalho.
de Janeiro, Leopoldo Miguez, publicou em 1897 um relatório sobre suas observações em 4 – Godefroid, Danse des sylphes, para harpa, Exma. Sra. D. Maria Nery Ferreira.
5 – Meyerbeer, Ária da Africana, Exma. Sra. D. Virgínia de Niemeyer.
vários conservatórios musicais europeus. Nesse relatório, Miguez compara as instituições 6 – Gounod, Himno a Santa Cecília, para violinos, violoncelos, harpas e
visitadas com o Instituto e aproveita para extrair de suas observações propostas para bandoneón, Exmas. Sras. DD. Alice Barbosa, Corina Granjo, Carmita Campos e
seu aprimoramento. No final do relatório há uma tabela sintética que mostra dados das Noêmia Madureira, sob a direção do maestro G. Dufriche.
várias instituições e da qual reproduzo uma versão resumida:
Segunda parte:
1 – Nepomuceno a) Minueto; b) Anelo; c) Galhofeira, pelo autor.
2 – a) Sarasate, Nocturno de Chopin; b) Ries, Motu perpétuo, para violino, Exma.
Sra. D. Carmita Campos.
3 – a) San Fiorenzo, Lina; b) Donizetti, Ária da Favorita, Exma. Sra. D. Amanda
Feital.
4 – Meyerbeer, Dueto dos Hugonotes, Exma. Sra. D. Virgínia Noronha e o Sr.
Leopoldo Noronha.
5 – a) Mascagni, Cavalleria Rusticana, para 14 bandolins, violoncelo e piano;
b) Thomé, Serenata espagnole para bandolins e piano – Bandolins, as Exmas.
Sras. DD. Maria Pestana de Aguiar, Carmen de Oliveira, Josefina Nolasco,

Zilda Nogueira Flores, Lavínia do Amaral, Maria Virgínia Barros Pimentel,


Elvira de Magalhães Castro, Maria Luiza Ferreira da Silva, Maria Amélia Soares
de Souza, Josefa de Melo Cunha, Guilhermina Marques Lisboa, Henriqueta
Glicério, Adelaide Miné e Mercedes Alves; D. Corina Granjo; piano, D. Maria de
7 Fiz uma análise do relatório no artigo “Por uma renovação do ambiente musical brasileiro: o
relatório de Leopoldo Miguez sobre os conservatórios europeus”, Revista Eletrônica de Musicologia, vol. VIII,
dez. 2004. Disponível online em http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv8/miguez.html
Sobre a atividade musical das mulheres e os registros nos manuais de história da música brasileira, ver
VERMES, Mónica. “As mulheres como eixo de difusão musical no Rio de Janeiro da Belle Époque” In 7º
Encontro Internacional de Música e Mídia – Música, Memória: tramas em trânsito, 2011, São Paulo. Anais do
..., São Paulo; Santos: MusiMid, 2011, p. 257-265. Disponível online em http://pt.scribd.com/doc/66510916/
Tabela 1: Síntese do “Quadro Comparativo” apresentado em MIGUEZ (1897). VERMES-As-mulheres-como-eixo-de-difusao-musical-no-Rio-de-Janeiro-da-Belle-Epoque

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Magalhães Castro. (O Paiz, 12/09/1895) O abandono de uma versão única, hegemônica nos obriga a uma atitude
permanentemente crítica com relação àquilo que fazemos.
Vê-se aí que o programa é praticamente todo realizado por mulheres, num tipo de
apresentação pública que mantém características dos saraus domésticos.8 Entende- Para concluir, gostaria de voltar à letra de Ponteio, que nos apresenta um forasteiro entre
se, então, que o tipo de registro que encontramos nos manuais de história da música estranhos e o verso forte do refrão que diz “Quem me dera agora eu tivesse a viola pra
brasileira desconsidera este tipo de atividade, que se dá em formato específico, com cantar” sugerindo, como queremos crer, que a música seja uma mediação possível das
repertórios característicos e em circuito alternativo. diferenças.

7
Referências
No intuito de observar expressões de Outros na música e as formas como são tratadas
no âmbito das práticas e dos estudos musicais, passamos pelos conceitos de alteridade,
orientalismo, pela formação de cânone, a autenticidade e a performance historicamente BEARD, David; GLOAG, Kenneth. Musicology: the key concepts. London; New York: Routledge, 2005.
informada e a questão da mulher no fazer musical e no registro historiográfico desse BERGERON, Katherine & BOHLMAN, Philip V. Disciplining Music: Musicology and Its Canons. Chicago;
fazer. London: University of Chicago Press, 1992.

Retornando ao projeto da Semana de Iniciação Científica, lembramos o que estava BORN, Georgina & HESMONDHALGH, David (Eds.). Western Music and Its Others: Difference, Representation,
ali registrado e que serviu de estímulo a esta exposição: “as paredes da sala de aula já and Appropriation in Music. Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, 2000.
não são espaço [suficiente] para construção de conhecimento”, que nos remete a uma CAGE, John. De Segunda a um ano: Novas conferências e escritos de John Cage. Trad. Rogério Duprat e
passagem de John Cage no livro De Segunda a um ano: Augusto de Campos. São Paulo: Hucitec, 1985.

Lecionar, também, não é mais transmissão de um corpo de informações úteis, COOK, Nicholas; EVERIST, Mark (Eds.). Rethinking Music. Oxford: Oxford University Press, 2001.
mas é conversação, a sós, juntos, num local combinado ou não, com gente
KERMAN, Joseph. Contemplating Music: Challenges to Musicology. Cambridge (MA): Harvard University
por dentro ou por fora do que está sendo dito. A gente fala, mudando de uma
Press, 1985.
idéia pra outra como se fôssemos caçadores. (CAGE, 1985, p.21)
KERMAN, Joseph. Musicologia. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
Abrir a porta para além da sala de aula exige uma disposição para encontrar com Outros MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003.
e uma vontade de viver dúvidas, num estado em permanente construção. A abertura de
diálogos levou a Musicologia a se transformar, abandonando convicções cristalizadas MIGUEZ, Leopoldo: Organização dos conservatórios de música na Europa, Relatório apresentado ao
das práticas herdadas do século XIX para chegar a um lugar muito mais instável e Ministério da Justiça e Negócios Interiores por Leopoldo Miguez, diretor do Instituto Nacional de Música
provocador: do Rio de Janeiro, em desempenho da comissão de que foi encarregado em aviso do mesmo ministério
de 16 de março de 1895. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1897.
A história da musicologia e da teoria musical em nossa geração é uma história
NAPOLITANO, Marcos. História e Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
de perda de segurança; não sabemos mais o que é que sabemos. E isso nos
lança imediatamente na dúvida entre a confortável distinção entre o que seja SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo:
a descrição objetiva de um fato e o julgamento de valor subjetivo... (COOK; Companhia das Letras, 2007.
EVERIST, 2001, p. v)
SILVA, Wellington Rogério da; RAUTA, Marcelo; ADEODATO, Ademir. Projeto – II Semana de Iniciação
Científica. Vitória: FAMES, 2012.
8 A esse respeito, ver VERMES, Mónica. “Ser brasileiro no final do século 19: música e idéias em
torno do Instituto Nacional de Música” In VII Encontro de Musicologia História – Musicologia Histórica TARUSKIN, Richard. Text and Act: Essays on Music and Performance. New York; Oxford: Oxford University
Brasileira em Tempos de Transdisciplinaridade, 2006, Juiz de Fora. Anais do... Juiz de Fora: Centro Cultural Press, 1995.
Pró-Música, 2006, p.112-121.

40 41
VERMES, Mónica. As mulheres como eixo de difusão musical no Rio de Janeiro da Belle Époque In
ENCONTRO INTERNACIONAL DE MÚSICA E MÍDIA – MÚSICA, MEMÓRIA: TRAMAS EM TRÂNSITO, 7. Anais do GOSTOSURAS, BICHOS
... São Paulo; Santos: MusiMid, 2011, p. 257-265. Disponível online em http://pt.scribd.com/doc/66510916/
VERMES-As-mulheres-como-eixo-de-difusao-musical-no-Rio-de-Janeiro-da-Belle-Epoque
PAVOROSOS E BOBICES EM TOR-
VERMES, Mónica. Por uma renovação do ambiente musical brasileiro: o relatório de Leopoldo Miguez
sobre os conservatórios europeus, Revista Eletrônica de Musicologia, vol. VIII, dez. 2004. Disponível online
em http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv8/miguez.html
NO DO ENSINO DE LITERATURA
VERMES, Mónica. Ser brasileiro no final do século 19: música e idéias em torno do Instituto Nacional de
Música In ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA – MUSICOLOGIA HISTÓRICA BRASILEIRA EM TEMPOS
E DA LEITURA LITERÁRIA: ELES
DE TRANSDISCIPLINARIDADE, 7. Anais do..., Juiz de Fora: Centro Cultural Pró-Música, 2006, p.112-121.
VALEM TAMBÉM PARA A EDU-
Enviado para publicação em 15/11/2012. CAÇÃO MUSICAL?
Maria Amélia Dalvi
Professora doutora em Educação (Educação e Linguagens: verbal e visual) pela Universidade Federal do Espíri-
to Santo (UFES). Atualmente é professora da mesma instituição, atuando nas licenciaturas em Letras e Peda-
gogia e na pós-graduação em Letras.

Resumo Abstract
O trabalho visa a contribuir com o trabalho com o texto The work aims to contribute with the use of the literary
literário na educação básica; para tanto, no primeiro text in basic eduction; For that, at first glance, it conducts
momento, realiza uma defesa da leitura de literatura e an analysis of literature reading and its experience
de sua vivência e seu ensino; no segundo momento, and teaching; Furthermore, it contributes didactically
traz contribuições didático-metodológicas para os and methodologically for professors; Lastly, in its final
professores; por fim, nas considerações finais, pontua a considerations, points the urgency of: demystifying the
urgência de: desmistificação da literatura como inacessível; inaccessible nature of literature; diversifying genders and
diversificação dos gêneros e das épocas selecionados times selected for reading; the approximation between
para leitura; aproximação entre textos canônicos e não- canonic and non-canonic texts; incorporation of recent
canônicos; incorporação das contribuições teóricas mais theoretic contributions to the intangible and concrete
recentes às discussões realizadas no espaçotempo escolar levels of the school environment; the banishment of the
e aos materiais didáticos; banimento da fragmentação e fragmentation and decontextualization present in actual
da descontextualização das obras literárias verificadas nos literary texts in didactic materials; diversifying the reading
materiais didáticos; diversidade de leituras em contextos topics on non-didactic contexts; valorization of the reader;
não-escolares; valorização do papel do leitor; diversificação diversifying the texts inter semiotic updates strategies;
de estratégias de reatualização intersemiótica dos textos; the assembling of comparative analysis in intertextual
construção de análises comparativas em perspectivas perspective; unlinking the literature reading act to
intertextuais; desvinculação da leitura literária de práticas outdated and boring practices as the filling of forms and
repetitivas e enfadonhas tais como o preenchimento de forced review writing; appreciation of the students reading
fichas e de produção de resumos; valorização do percurso de course; approximation with the local literature production
leituras dos alunos; aproximação com os circuitos locais de and reading circuit; respect to personal choices; and the
leitura e produção de literatura; consideração das escolhas experimentation of different stands other than paper and
pessoais; e vivência de outros suportes diferentes do papel book.
e do livro.
Keywords: Literary reading, Literature teaching, Basic
Palavras-chave: Leitura Literária. Ensino de Literatura. education, Teacher training.
Educação Básica. Formação de Professores.
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O propósito deste artigo é trazer algumas contribuições para o trabalho com o texto 4) A necessidade da inserção, na História da Literatura, de autores e obras
literário em salas de aulas do ensino fundamental e do ensino médio, entendendo “esquecidos”, ou considerados menores pelo cânone [...].
5) O conhecimento dos métodos críticos para a análise literária, os quais
que a leitura literária (feita dentro ou fora do espaçotempo escolar) seja um fenômeno
propõem múltiplas possibilidades de construir significados a partir da leitura.
distinto do ensino (planejado e sistemático) de literatura – de literatura, e não de história (Hellmann, 2011, [s. p.])
da literatura ou tema congênere –, embora este (o ensino de literatura) não se dê em
separado ou à margem daquela (a leitura literária) (Beach, Marshall, 1991). Acreditamos Dialogando com Hellmann (2011), Ivanda Martins (2006a, p. 514-515) afirma que leitura,
que, possivelmente, o ensino de música e a apreciação musical vivam realidades análogas literatura e teoria literária deveriam estar estreitamente relacionadas no meio escolar –
às vividas pelo ensino de literatura e pela leitura literária. e, portanto, na formação de professores –, devido a vários motivos, dentre os quais: 1)
a própria natureza interdisciplinar do ato de ler que envolve contribuições de diversas
Por isso, na primeira parte do texto, apresentamos algumas das razões pelas quais a áreas; 2) o fato de a significação do texto literário ser construída interacionalmente, o que
leitura de literatura e o seu ensino nos parecem importantes; na segunda parte e nas evidencia as relações dinâmicas entre a literatura e o leitor; 3) a teoria literária só existir
considerações finais, trazemos algumas contribuições para os professores do ensino em função da leitura e da literatura, devendo, pois, estar presente na escola, subsidiando
fundamental e médio, porque a informação que nos chega é a de que muitos dos a prática do professor e ampliando concepções críticas sobre o fazer literário e a recriação
profissionais em exercício não tiveram ocasião, nos cursos de licenciatura, de discutir do texto pelo leitor.
as questões que cercam o ensino de literatura e a leitura literária a contento: e talvez,
mais uma vez, isso seja também a realidade da formação de professores de música – Dessa feita, levando em consideração os balizamentos expostos, passamos aos próximos
realidade que precisamos conhecer para (entre gostosuras, bichos pavorosos e bobices) itens, na esperança de contribuir com o ensino de literatura na educação básica brasileira,
transformarmos. entendendo-o como possibilidade de democratização/problematização das culturas
coletivamente construídas, mas (ainda, infelizmente) privativamente distribuídas.
Mais do que oferecer encaminhamentos, a ideia é dar a lume facetas em torno dos
temas (e não conclusões) que recorrentemente têm aparecido nos cursos de formação 1. Em defesa da leitura de literatura
inicial ou continuada de professores, sabendo que qualquer posicionamento teórico-
metodológico é sempre histórico e, portanto, dinâmico e sujeito à problematização e à Um dos méritos – para muitas pessoas, um mérito que se pode tornar um demérito – de
reinvenção. Por isso, na primeira parte do texto, apresentamos algumas das razões pelas Cultura letrada, literatura e leitura, de Márcia Abreu (2006) é mostrar didaticamente, para
quais a leitura de literatura e o seu ensino nos parecem importantes, mesmo cientes de o leitor não especializado, que o valor de uma obra é uma construção social e histórica e
que os motivos que justificam sua permanência, sob algumas vertentes, nem sempre que a distinção entre o que é literário e o que não é literário dá-se por parâmetros que não
estão afinados com a democratização da escola e das experiências culturais. são rígidos, que não são consensuais. Isso é uma contribuição significativa, na medida
em que a defesa da leitura de literatura – por mais bem-intencionada que seja – muitas
Na segunda parte e nas considerações finais, trazemos algumas contribuições para os vezes toma como argumentação a crença de que o valor é inerente à obra (justificando,
professores do ensino fundamental e médio, porque a informação que nos chega é a de assim, a legitimidade de sua indicação como leitura obrigatória/necessária) e que a
que muitos dos profissionais em exercício não tiveram ocasião, nos cursos de licenciatura, “literariedade” de um texto exista e possa ser medida e comprovada (o que está na base
de discutir as questões que cercam o ensino de literatura a contento. Conforme Risolete de questionamentos – frequentes, sobretudo entre os professores da educação infantil
Hellmann (2011), em “O ensino de literatura: algumas considerações críticas”, posta de e das séries iniciais – sobre o que indicaria se a obra é ou não é literária, e, “portanto”, se
lado a obviedade da necessidade de formação continuada do profissional da educação, deve ou não ser lida com/para as crianças).
alguns dos pressupostos que devem ser levados em conta quando falamos em formação
continuada para professores de literatura são: Ao orientar trabalhos de conclusão de curso, nas licenciaturas em Letras e em Pedagogia,
na área de ensino de literatura, ouvi por diversas vezes a pergunta: como justificar
1) A atualização da concepção de leitura.
2) Estratégias para a formação do leitor crítico.
um projeto de pesquisa que tenha como objetivo principal contribuir com/para/na
3) Debate atual sobre o alargamento do conceito de literatura, além dos textos formação de leitores literários? A necessidade de formar leitores ninguém discute; mas:
reconhecidos pela historiografia e [pela] crítica literária canônica. por que razões tais leitores precisariam/deveriam ser também leitores de obras literárias?

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Frequentemente, as respostas trazidas pelas versões iniciais dos projetos de pesquisa Assim, se não é por nenhuma das razões correntemente apresentadas (o valor intrínseco
argumentavam, em consonância com o apontado no parágrafo acima, em defesa do das obras, a indubitável literariedade, as possibilidades de que os leitores assíduos
valor superior de certas obras (as literárias “propriamente ditas”) em detrimento de passassem a produzir melhores textos, de que ampliassem seu vocabulário e sua
outras (como os best-sellers, por exemplo) e em defesa da literatura como possibilidade sintaxe, de que tivessem repertório para conversar com pessoas cultas e, por fim, de que
de educação moral (ou seja, para as crianças, adolescentes e jovens aprenderem a pudessem ser aprovados para ingresso no ensino superior), por que, então, deveríamos
respeitar o próximo, a conviverem com a diferença etc.). ler e incentivar as crianças, adolescentes e jovens a lerem literatura? O que seria a
funcionalidade e a fruição – ou seja, a qualificação da presença do texto literário – de
Outras das razões pelas quais a leitura de literatura é defendida – particularmente para que nos fala Fonseca (2000), em substituição à exemplaridade e à veneração?
crianças e adolescentes que estão no ensino fundamental e para adolescentes e jovens
que estão no ensino médio – são, por exemplo, as possibilidades de que os leitores passem Primeiramente, é preciso explicitar o que estamos chamando de “leitura”. Entendemos,
a produzir melhores textos pelo contato com os autores aos quais é preciso admirar e pois, que, quando alguém lê, não realiza apenas uma decodificação ou tradução do que o
imitar, de que ampliem seu vocabulário e sua sintaxe, de que tenham repertório para autor do texto quis dizer/significar. Os sentidos são construídos, e não dados, no processo
conversar com “pessoas cultas” (o que inclui conhecer o cânone, as “escolas literárias”, de interação (processo este que é histórico, social e culturalmente situado). Quando
os autores mais representativos e suas principais “características” etc.) e de que, por fim, construímos uma leitura, estamos deixando vir à tona quem somos, o que pensamos, o
possam ser aprovadas pelo vestibular (hoje, em vias de extinção). A despeito dessas que sabemos, o que ignoramos – e que às vezes nem sabemos que ignoramos. Nossas
possibilidades atribuídas à leitura literária, contudo, leituras (de textos, de mundo) estão continuamente sujeitas à revisão. Ler, nesse sentido,
é correr riscos o tempo todo, é, noutras palavras, “andar na corda bamba”, é “sentar-se
[...] o ensino de literatura se limita, na maior parte das vezes, a traçar panoramas confortavelmente à beira do precipício”, sabendo que, a qualquer momento, o vento
de tendências e escolas literárias, de modo esquemático e desconectado do pode virar, o barranco pode desmoronar – e a nossa proposta de leitura ser deslegitimada.
trabalho analítico e interpretativo [próprio da leitura]. O ensino da língua e
da literatura se apresenta também de forma inteiramente separada e, se no
ensino fundamental, quem conduz alunos e professores é o livro didático, no Pensando assim, ler é produzir sentidos em um contexto concreto, a partir do material
médio são as apostilas que nada mais são do que compilações de vários deles. que é fornecido (pelo autor, pela edição, pelo suporte, etc.). As leituras não são uniformes,
(Chiappini, 2008, p. 08). homogêneas, perenes. Ler é ativar a possibilidade de ação sobre os textos do mundo e,
portanto, sobre o próprio mundo. As leituras que construímos (e que nos constituem) dão
Ou seja: entendendo a leitura literária e o ensino de literatura como inelutavelmente a ver nosso modo de ser, sentir, pensar e estar no mundo. Leitura não é uma experiência
entrelaçados, contudo dissociados em boa parte das práticas contemporâneas solitária, mas solidária. Ler é inserir-se no caudaloso rio da múltipla e instável experiência
(incluindo aquelas mencionadas por Lígia Chiappini, no fragmento acima), Fernanda humana, humanizando-se: toda palavra exige contrapalavras. Desse modo, não existe
Irene Fonseca (2000) também nos dá mostras da “má defesa” e do “mau uso” da literatura a figura do leitor isento, alienado do mundo, que se “esconde atrás dos livros”: ler (o
– especificamente no espaço escolar – em seu artigo “Da inseparabilidade entre o ensino que lemos, como lemos e o que fazemos com o que lemos) é uma ação política. Um
da língua e o ensino da literatura”. A autora portuguesa apresenta o estatuto que, para leitor que se acredita isento de ação (com a desculpa de “eu só estou lendo”, como se ler
ela, é necessário reivindicar para o texto literário nas aulas de língua materna: fosse uma ação passiva) é um mau leitor. Por isso, em regimes ditatoriais (explícitos ou
velados) há tanto cuidado/preocupação com a circulação de textos. Por isso também a
O estatuto que é preciso reivindicar para o texto literário na aula de língua indústria cultural investe tão maciçamente em obras que ocupem nosso tempo sem nos
materna não implica repor a sua presença constante e indiscriminada. Muito lançar ao mínimo de desconforto (e, portanto, de questionamento).
mais do que quantificar essa presença, o que importa é qualificá-la, desligando
a literatura do papel de exemplo e de objecto de veneração que tinha no
ensino tradicional: à exemplaridade substitui-se a funcionalidade, à veneração Para essa perspectiva de leitura, como, então, um texto se constroi? Parece-nos, em
a fruição, inseridas num tipo de abordagem do texto literário perspectivado a perspectiva bakhtiniana (Bakhtin, 1979, 1988; Barros, 1994), que o autor de um texto
partir da teorização linguística que o encara como lugar da plenitude funcional retoma marcas que foram deixadas em textos anteriores e constroi seu texto em diálogo
da língua. A uma relação predominantemente distante e estática substitui com textos anteriores e com as leituras que deles foram construídas. Por exemplo, eu
uma outra, mais próxima e dinâmica (Fonseca, 2000, p. 37-45). não leio adequadamente “Os sapos”, de Manuel Bandeira (1993), se não conhecer a obra
dos poetas parnasianos brasileiros. Da mesma maneira, não consigo construir sentidos

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para o poema “um dia”, de Paulo Leminski (1983), se não puder acompanhar as alusões Macunaíma, confusos e profundos como G.H. Todos nós temos um pouco de Drácula,
(intertextuais) que realiza. de Jeca Tatu, de Harry Potter, de Diadorim, de Dorian Gray, de Teseu, de Kitty aos 22, de
Emma Bovary, de Hamlet, de Peri, de Poirot, de Penélope, de Inês de Castro, de Serafim
Cada leitor inscreve nos textos suas marcas, que passam, elas também, a fazer parte do Ponte Grande, de Dom Quixote, de Aurélia Camargo, de Julien Sorel, da boneca Emília e
texto que será lido pelos próximos leitores: quanto mais ricos os textos, mais marcas a do corcunda de Notre Dame.
serem consideradas (marcas do autor, dos leitores da época em que o texto foi escrito, das
pessoas que se dedicaram a pensar aquele texto em épocas posteriores à sua publicação Quem acha que ler literatura é um jeito de se esconder do mundo, ou de viver nele
etc.). Por exemplo, eu não posso ler O Príncipe, de Maquiavel, ou O Pequeno Príncipe, de de modo fácil, está lendo/vivendo (apenas) simulacros de literatura – e precisa de ter a
Saint-Exupéry, como se eu fosse o primeiro leitor desses textos, ignorando as referências chance de ler/viver outras coisas. O mundo com seus problemas e desafios nos chega
e alusões que fazem a seu próprio contexto, bem como as apropriações deles realizadas pela leitura, todos os dias. Quem lê Os Miseráveis, de Victor Hugo, e os jornais cotidianos
por leitores anteriores. Exatamente porque os sentidos são sempre construídos por e continua insensível à exploração humana pelo capital ou Os sertões, de Euclides da
cada leitor e cada leitura é que a experiência de leitura é individual (embora seja social, Cunha, e os vídeos de ação policial na Internet e continua insensível à barbárie perpetrada
histórica e culturalmente ancorada) e irrepetível. Por melhor que eu lhe conte sobre um pelo estado e pelas forças armadas precisa ler o livro, o jornal, o vídeo de novo. Quem lê
livro que li, meu “contar” não substitui a sua própria leitura, por isso, um mesmo texto Oscar Wilde, ri e continua sua saga de pequeno-burguês ridículo, conformado e impune
é recebido de diferentes maneiras por diferentes pessoas, e em diferentes épocas ou (ou seja, sem dúvidas sobre seu lugar/sua legitimidade no mundo e sobre o sentido das
sociedades. (E mesmo uma única pessoa lê um texto de modos distintos em momentos coisas), tem que ter a chance de ler Mark Twain, e Marquês de Sade, e Lima Barreto, e
diversos da vida.) Oswald de Andrade, e Waldo Motta, e Mano Brown – que é para ver se uma hora entende
que nada é tão óbvio, simples, natural e tranquilo quanto parece.
Estudamos literatura na escola para incrementarmos nosso repertório (linguístico,
artístico, humano, sentimental etc.)|, auxiliados por um guia experiente – o professor. Quem lê literatura sabe que o mundo pode se abrir debaixo de seus pés a qualquer
Isso nos habilitará a lermos as obras literárias que quisermos. Na escola, o professor faz momento (inclusive porque conhece ficção científica), quem lê acredita que tudo (mesmo
uma seleção (compartilhada) das obras que considera fundamentais para a formação do as ações mais bárbaras, vis, desleais) é possível, porque é humano. E se prepara para isso.
leitor escolarizado (diferentes estilos, gêneros, propostas estéticas e políticas, escritas, Não com medo do mundo, mas de peito – e livro – aberto. Nos livros aprendemos como
sensibilidades), que serão estudadas (o professor ensinará como lê-las), para que se as pessoas antes de nós (e também ao nosso lado) pensaram, sentiram, reagiram ao
tornem um conhecimento / modelo / repertório a ser acionado em leituras futuras. Faz mundo: e os desdobramentos e as consequências que experimentaram, em razão das
parte dessa aprendizagem da leitura de literatura (e, portanto, da formação como leitor) escolhas que fizeram ou da falta de escolha com que lidaram. Isso, especialmente para
entender que: a) Não é qualquer leitura de um texto que é legítima: uma leitura tem que as crianças na educação infantil e nas séries iniciais, tem um valor que não poderemos
ser justificável pelo texto e pelas “instruções” ou “parâmetros” de leitura que veicula; b) nunca calcular; mas, sabemos que, se subtraído, tem consequências nefastas para a ação
Num texto nada é aleatório, nem os elementos linguísticos, nem os não linguísticos; c) no mundo, como supressão de um direito humano incompressível (Candido, 1989).
Uma leitura pode ser dada como errada se não levar em conta todos os elementos que
se articulam no texto (e fora dele); e d) O escritor (autor) dá ao texto uma organização Quando lemos, estamos mais aptos a discernir entre os diferentes tipos de ação,
interna, pensa-o como um todo e não como uma soma de partes isoladas; quem produz de narrador, de motivação, de trama. Antecipamo-nos aos conflitos narrativos, às
sentido a partir de uma parte isolada pode construir uma leitura equivocada. peripécias, às trapaças discursivas: e conseguimos talvez enxergar com maior clareza o
real, com suas sutilezas e artimanhas. Por isso, ler é uma forma de ação ética: não porque
Encarar todos esses desafios é reconhecer: a leitura de literatura, como opção de vida, os textos nos moralizem e doutrinem, mas porque a experiência de leitura nos ensina
é para corajosos, é para ousados. É para quem aceita encontrar, (também) por meio a desconfiar de tudo e de todos – e a confiar em tudo e em todos, como parte de um
da ficção, consigo mesmo e com aqueles com os quais convive cotidianamente: sua pacto ficcional, já que nenhuma palavra ou ação aparece à toa numa boa história. Tanto
mediocridade, sua banalidade, sua baixeza, sua maldade e – por que não? – seu valor, quanto acreditamos no suspeito narrador machadiano (porque, se não confiarmos, ele
seu heroísmo, sua dignidade, sua lealdade. Nenhum personagem, enredo ou jogo não nos entregará sua história), acreditamos no mundo que nos cerca e em nós mesmos,
verbal existiria se nós – os humanos – não lhes déssemos vida. Somos todos valentes sabendo que o mordomo pode ou não ser o vilão da história (como bem nos ensinou
e traiçoeiros como Ulisses, vaidosos e gentis como Sofia, alegres e mentirosos como Agatha Christie) e que, pasme!, a história pode não ter um vilão – ou só ter vilões,

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relativizando a noção de “vilania”. pequeno trecho, que poucas vezes é considerado, dessa famosa citação de Antonio
Candido – como defesa apaixonada da humanização, pela literatura: a aquisição do
Ler nos habilita a ações éticas porque nos ensina que um texto nunca começa na primeira saber. Entendemos que é possível, sim, aprender literatura, o que quer dizer aprender na
página e nunca termina no ponto final: tudo o que sentimos, pensamos e fazemos é eco literatura, com a literatura e, simultânea e indissociavelmente, aprender para a literatura
de outros textos (cujo enredo, por já conhecermos, nos habilita a analogias e, portanto, e sobre a literatura.
a escolhas mais conscientes). Nenhum de nós tem mais da espanhola Marcela, com seus
quinze meses e onze contos de réis (de Memórias póstumas de Brás Cubas), do que de 2. Contribuições para o trabalho com o texto literário na escola
Pollyanna, com seu jogo do contente (de Pollyanna e Pollyanna moça) dentro de si. E
isso não nos deve causar desconforto. Mas nos impulsionar a dar voz, cada vez com mais O ensino de literatura, na/pela escola, deve ser pensado como a aquisição de saberes
frequência, aos personagens que preferimos (embora possamos sempre escolher entre que vão além daqueles específicos ao ensino de leitura. E isso em duas dimensões:
uma extensa galeria de seres que nos habitam). Não é que a literatura vá nos tornar mais primeiramente, porque o ensino de literatura inicia-se (ou poderia iniciar-se) mesmo
“bonzinhos”, nem que ela nos fará escolher o “bem”: ela nos mostrará os mecanismos antes de as crianças tornarem-se leitoras1 da palavra; e, em segundo lugar, porque o
– e consequências – da banalização do mal e da unilaterização do pensamento e da ensino de leitura pode se fazer sem a formação de leitores – assíduos, competentes – de
ação. Não nos tornaremos seres mais “elevados”, mas menos “rasos”. Não seremos mais literatura: há muita gente que lê, e talvez até leia bem e com frequência, mas que não
ou menos evoluídos, seremos desconfiados de uma perspectiva linear e progressista de lê literatura (porque não quer, não sabe, não gosta, não tem acesso) – o que, em nossa
humanidade e de mundo. perspectiva, não deixa de caracterizar ninguém como leitor.

A leitura e a leitura de literatura nos capacitam – de dentro de nossos valores morais, de Ao realizarmos, em conjunto com a professora Neide Luzia de Rezende, um levantamento
nossas decisões acerca do certo e do errado, do bom e do mau – a entender como essas inicial a respeito das pesquisas em torno do ensino de literatura no âmbito da pós-
noções continuamente se constroem, como se legitimam, como operam nos diferentes graduação brasileira (Dalvi, Rezende, 2011), chegamos a algumas considerações,
contextos pela ação de diferentes atores sociais. A leitura e a leitura de literatura nos obtidas a partir de uma amostra de trabalhos nas áreas de Educação e Letras (Albertino,
permitem entender que a experiência humana não se faz de absolutos, de invariantes. 2008; Almeida, 2009; Cabral, 2008; Campos, 2007; Dalvi, 2010; Dias, 2007; Jesus, 2010;
Isso nos ensina pelo menos duas coisas importantes: 1) Que não podemos tomar nada Manzanatti, 2007; Meneguetti, 2009; Menezes, 2008; Moura, 2009; Moura, 2009,
como definitivo; e 2) Que o mundo (seja ele o que/qual for) está aberto e suscetível à Oliveira, 2010; Santos Neto, 2008; Severo, 2009; Soares, 2008; Souza Neto, 2008), no
nossa ação – o que é já um motivo mais do que suficiente para a defesa da formação de que se refere a tendências das pesquisas, que passamos a expor aqui. Percebe-se
leitores e de leitores de literatura. que existe um evidente impulso para a promoção de mudanças no ensino básico por
meio dos estudos desenvolvidos nos programas de pós-graduação: seja anunciando a
Assim, mais importante do que todos aqueles motivos recorrentes em defesa da leitura positividade de documentos oficiais para impulsionar uma reforma, seja por meio da
de literatura (o valor das obras, a aprendizagem da língua etc.), é que a leitura de literatura, crítica a materiais didáticos que persistem num ensino “fragmentado”, seja por meio de
feita ou não por razões do espaçotempo escolar, nos humaniza. E a humanização, para propostas que quebrem a hegemonia dos autores “canônicos” e da história da literatura
Antonio Candido, é: com a introdução de autores tradicionalmente situados fora do campo literário.

[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos Desses temas e abordagens, conforme observado (Dalvi, Rezende, 2011), sobressai
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição a preocupação com a recepção da obra pelo leitor escolar, numa perspectiva
para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar
nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do
contemporânea, que pode ser percebida inclusive pela bibliografia indicada como
mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota aporte teórico: são citados, na maioria dos casos, autores que mobilizam o conceito
de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos de “leitura” numa visada que inclui os modos de recepção em perspectiva histórica e
para a natureza, a sociedade, o semelhante. (Candido, 1989, p. 22). histórico-cultural, tendo como base o importante momento de inflexão trazido pela
estética da recepção. Do mesmo modo, as perspectivas histórico-social e interacionista
Como porta de entrada para o item seguinte, gostaríamos de dar destaque a um 1 Entendemos, contudo, que a vivência da literatura, mesmo para quem ainda não lê a palavra, seja
uma aproximação, uma possibilidade da leitura de mundo (isso em termos freirianos).

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dão suporte a essas teorias vincadas na recepção. Esses temas, abordagens e teorias alvo de discussões (e, às vezes, ataques) sobre seu uso como mero pretexto para o
remetem a uma mudança de rumos em relação ao ensino de literatura, no passado tido ensino-aprendizagem de outros assuntos (como a gramática da língua, o contexto
como um estudo por excelência do texto levado a cabo por especialistas, cuja visão histórico-social, o comportamento esperado etc.). Sobre o tema é interessante atentar
deveria ser reproduzida pelos alunos. A estética da recepção, disseminada a partir dos às considerações de Magda Soares (1999) em “A escolarização da literatura infantil e
anos de 1970, incidiu sobremaneira na história da literatura, tida como uma perspectiva juvenil”, porque elas podem ser estendidas, com as devidas mediações, ao ensino de
a ser banida do ensino, ao mesmo tempo em que trazia a idéia de recepção, ou seja, literatura em qualquer nível de escolaridade:
de uma leitura historicamente circunscrita e dinâmica da obra literária (Dalvi, Rezende,
2011). O termo escolarização é, em geral, tomado em sentido pejorativo, depreciativo,
quando utilizado em relação a conhecimentos, saberes, produções culturais;
não há conotação pejorativa em “escolarização da criança”, em “criança
Essas posições favoráveis à mudança de perspectiva do ensino de literatura estão escolarizada”, ao contrário, há uma conotação positiva; mas há conotação
explícita ou implicitamente presentes nas dissertações e teses cujo escopo é o ensino de pejorativa em “escolarização do conhecimento”, ou “da arte”, ou “da literatura”,
literatura. Assim, salta aos olhos o impulso para a mudança do/no ensino de literatura e como há conotação pejorativa nas expressões adjetivadas “conhecimento
a preocupação evidente com o aluno de hoje, ainda que não tenhamos observado de escolarizado”, “arte escolarizada”, “literatura escolarizada”. No entanto, em
forma específica a discussão voltada para as questões históricas e culturais da instituição tese, não é correta e justa a atribuição dessa conotação pejorativa aos termos
escola, capazes de dar a ver, no interior do contexto, as relações ensino-literatura (Dalvi, “escolarização” e “escolarizado”, nessas expressões.
Rezende, 2011) – a despeito da recorrência de projetos de intervenção e de pesquisa- Não há como ter escola sem ter escolarização de conhecimentos, saberes,
ação no interior dos espaçotempos escolares. artes: o surgimento da escola está indissociavelmente ligado à constituição
de “saberes escolares”, que se corporificam e se formalizam em currículos,
Feito este preâmbulo, passamos agora ao que nos parece ser uma síntese de algumas matérias e disciplinas, programas, metodologias, tudo isso exigido pela
contribuições ao trabalho com o texto literário no espaçotempo escolar, contribuições invenção, responsável pela criação da escola, de um espaço de ensino e de
essas que estão dispersas pela extensa bibliografia contemporânea em torno do tema. um tempo de aprendizagem. [...] É a esse inevitável processo – ordenação de
tarefas e ações, procedimentos formalizados de ensino, tratamento peculiar
dos saberes pela seleção, e consequente exclusão, de conteúdos, pela
1) A leitura literária vem competindo – mas, em certos aspectos e sentidos, se ordenação e sequenciação desses conteúdos, pelo modo de ensinar e de fazer
beneficiando – com outros meios de comunicação (Martins, 2006b). E isso é bom. A aprender esses conteúdos – é a esse processo que se chama escolarização [...].
televisão, a internet, o videogame são novas linguagens e suportes para os textos, que
acabam por se fertilizar e se reinventar no seio de uma dispersão de possibilidades. Portanto, não há como evitar que a literatura, qualquer literatura, [...] ao se
No que tange à escola, isso nos obriga a repensar os modos tradicionais de ler e de tornar “saber escolar”, se escolarize, e não se pode atribuir, em tese, como
dito anteriormente, conotação pejorativa a essa escolarização, inevitável
ensinar leitura e literatura, pela incorporação do mundo em acontecimento, pela e necessária. [...] Disse em tese porque, na prática, na realidade escolar essa
consideração das novas práticas, representações e apropriações (Chartier, 1990) dos escolarização acaba por adquirir, sim, sentido negativo, pela maneira como
recursos tecnológicos. Desse modo – posto de lado o caráter (pro)positivo das sugestões ela se tem realizado, no quotidiano da escola. Ou seja: o que se pode criticar,
a seguir – temos acesso a textos integrais (cuja leitura, até pouco tempo, era apontada o que se deve negar não é a escolarização da literatura, mas a inadequada,
como irrealizável, haja vista os custos de aquisição de material bibliográfico no Brasil) a errônea, a imprópria escolarização da literatura, que se traduz em sua
nas salas de informática presentes em quase todas as escolas do país; podemos dialogar deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização
ou uma didatização mal compreendidas que, ao transformar o literário em
com escritores e escritas (ainda) não mediados pelo suporte papel e pelos sistemas escolar, desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o. [...]
editoriais tradicionais; podemos enxergar em nossos estudantes a leitura e a escrita
como visceralidade (nas construções identitárias levadas a turno pelas redes sociais), [...] O “estudo” que se desenvolve sobre o texto literário, na escola, é uma
problematizando as cambiantes questões entre a fiação de personas e autorias, que atividade intrínseca ao processo de escolarização, como já foi dito, mas uma
estão sendo foco de recentes – e outras nem tão recentes assim – discussões teóricas. escolarização adequada da literatura será aquela que se fundamente em
respostas também adequadas às perguntas: por que e para que “estudar” um
texto literário? o que é que se deve “estudar” num texto literário? Os objetivos
2) A literatura sofre um processo de escolarização (seja por meio das bibliotecas escolares, de leitura e estudo de um texto literário são específicos a este tipo de texto,
dos livros indicados para leitura, das aulas de língua portuguesa etc.), tornando-se

52 53
devem privilegiar aqueles conhecimentos, habilidades e atitudes necessários literários aparecem apenas para ilustrar/exemplificar informações ou características e
à formação de um bom leitor de literatura: a análise do gênero do texto, vêm de forma fragmentada; as referências bibliográficas são omitidas; os materiais são
dos recursos de expressão e de recriação da realidade, das figuras autor-
produzidos, hegemonicamente, no eixo Rio de Janeiro-São Paulo (Pinheiro, 2006).
narrador, personagem, ponto-de-vista (no caso da narrativa), a interpretação
de analogias, comparações, metáforas, identificação de recursos estilísticos,
poéticos, enfim, o “estudo” daquilo que é textual e daquilo que é literário. 4) Conforme Rouxel (1996), Aguiar (1999), Cesar (1999) e Zilberman (2001), a escola
[...] Quase sempre, os exercícios propostos aos alunos ou são exercícios de brasileira (em analogia ao que ocorre em outros sistemas, como o francês, por exemplo,
compreensão, entendida como mera localização de informações no texto, ou discutido por Jean Verrier, 2007) ainda alimenta visões tradicionais sobre a leitura, o livro,
são exercícios de metalinguagem (gramática, ortografia), ou são exercícios a biblioteca escolar e, principalmente, a literatura – neste último caso, entendendo-a
moralizantes (Soares, 1999, p. 20-22, 43-44).
como conjunto de textos, legitimados pela própria escola, pela crítica literária e pela
mídia, dignos de admiração e imitação (e, portanto, de serem erigidos à condição de
3) A carência de um repertório teórico-analítico elementar (que deveria ser solidamente
conteúdos escolares) –, visões essas responsáveis pela mitificação e pela elitização das
construído a partir da educação infantil, pela convivência com noções tais como
práticas leitoras de literatura, às quais Vera Teixeira de Aguiar (1999) chama de auráticas,
narrativa, poema, peça teatral, narrador, enredo, personagem, tempo narrativo, espaço,
retomando Walter Benjamin, e às quais Cyana Leahy (2000) reconhece como herdeiras
fala, diálogo, rubrica, musicalidade, rima, verso, figura de linguagem, estilo etc.), o
do positivismo por que grassou a construção de nosso sistema literário e de nossa
excesso de fragmentação na seleção de textos e recortes pelos materiais didáticos e a
escola. É necessário problematizar na formação de professores e na escola básica essas
escassez de leituras literárias prévias contribuem para que o estudante dos últimos anos
visões tradicionais; a esse respeito, Ivanda Martins (2006b) argumenta que é preciso
da educação básica encare a leitura de literatura como difícil (quando não impossível) e
que a escola incentive a leitura de obras clássicas, sem, no entanto, confinar-se a ela: é
para que veja no ensino de literatura a abordagem de um objeto abstrato, inacessível e
imprescindível, pois, conforme a autora, que o professor reavalie suas leituras, a fim de
desinteressante. Nas palavras de Ivanda Martins, isso decorre, dentre outras coisas,
levar a produção de autores contemporâneos para a sala de aula e a fim de evidenciar
[...] da seleção inadequada de obras literárias, sem levar em conta as leituras que muitas obras, apesar de não terem grande representatividade no cânone, merecem
prévias dos alunos e as expectativas desse público-leitor. Além disso, as ser lidas e estudadas pela riqueza temática e estética. Desse modo seria, talvez, possível,
técnicas de abordagem ao texto literário não são diversificadas, contribuindo desconstruir os três mitos que, para Martins (2006b), têm marcado o discurso sobre a
para que o educando desenvolva uma compreensão mitificada e homogênea relação entre literatura e escola: o de que literatura é muito difícil, o de que é preciso ler
do fenômeno literário (2006b, p. 84). obras literárias para escrever bem e, por fim, o de que a linguagem literária é marcada
por uma especificidade.
A esse respeito é importante considerar a sugestão presente em alguns dos textos
constantes no já clássico O texto na sala de aula (Geraldi, 1984), de que se incorpore a Considerações finais
leitura literária e o ensino de literatura na escola desde as séries iniciais, de modo regular
e constante (por exemplo, pelas rotinas de leitura compartilhada, de leitura individual Conforme tentamos mostrar, o ensino de literatura perpassa a questão da formação
silenciosa, de troca de dicas de leitura, de atividades orais e escritas de comparação (inicial e continuada) dos professores de língua portuguesa e literatura, o que
entre textos diversos), desvinculados da prática rotineira de preenchimento de fichas de
leitura, de produção de resumos e relatórios, de verificação de compreensão etc. Nesse [...] implica enunciar questões de gênero, questões étnicas, e, sobretudo,
sentido, o desafio do professor passaria a ser ajudar aos alunos a (re)elaborarem suas defrontar-se com diferenças de ordem cultural, política e social. Em meio a
ideias sobre os textos literários e todo o mundo que os cerca (autoria, recepção, história, este debate é que a formação de professores, continuamente interrogada
por paisagens educativas diferenciadas, temporalidades dessincronizadas e
contexto, suporte, diagramação, ilustração, tradução, adaptação etc.), confrontando orientações de caráter legalista, se apresenta como um lugar de perquirição
os leitores em formação com uma multiplicidade de hipóteses (pertinentes) de leitura sobre a identidade profissional. Será, pois, deste lugar que brota a pergunta
para os textos literários, que ajudariam na compreensão de que o sentido não está da qual jamais se pode escapar, caso exista um real desejo de conhecer as
dado na superfície textual, mas é construído em interação. Isso, evidentemente, tem tantas camadas de sentido que, de forma contraditória, afirmam e negam
implicações para a qualidade e, assim, para a legitimidade dos materiais didáticos os pressupostos básicos do exercício do magistério [...]. A pergunta é: Afinal,
utilizados na educação básica, nos quais há problemas de grande monta: a quantidade quem somos nós, professoras e professores de literatura brasileira? (Gens,
de textos literários é pequena, principalmente quando se trata do gênero lírico; os textos 2008, p. 21)

54 55
Nós, os professores aos quais Armando Gens alude, no âmbito das perspectivas que que deve ser, tanto quanto possível, apaixonante (a fim de garantir que à qualidade
viemos expondo, somos aqueles que “consideramos a necessidade de que a escola some-se a quantidade de leituras).
abrigue múltiplas formas de aproximação entre sujeitos e livros, com oferta livre de
textos de diferentes linguagens, de atividades de leitura individual e coletiva” (Aguiar, Para que essa aproximação inicial se prolongue e se torne uma relação íntima, é
1999, p. 252). Isso significaria proporcionar a vivência de leituras múltiplas e de espaços imprescindível que as atividades sejam planejadas de modo lúdico, múltiplo, variado
e instâncias tais como bibliotecas públicas, livrarias, sebos, feiras literárias, encontros e versátil. Em termos metodológicos, isso se traduziria na desmistificação da literatura
com escritores, programas especializados de TV e rádio, mediadas pelo que é veiculado
por jornais e revistas (tradicionais e alternativos, em distintos suportes), catálogos, blogs, como inacessível, na diversificação dos gêneros e das épocas selecionados para
sites, chats e materiais didáticos diversos2. leitura, na aproximação entre textos canônicos e não-canônicos, na incorporação das
contribuições teóricas mais recentes às discussões realizadas no espaçotempo escolar
Não negamos, aqui, que entre as instituições importantíssimas para a intermediação e aos materiais didáticos, no banimento da fragmentação e da descontextualização
criança e leitura literária estejam a família e as demais instâncias comunitárias, que vão além das obras literárias verificadas nos materiais didáticos, na diversidade de leituras em
do espaçotempo escolar. No entanto, nos parece que a escola ainda é a instituição sobre contextos não-escolares, na valorização do papel do leitor, na diversificação de estratégias
cujos ombros está a grande responsabilidade de aproximar, mesmo (e principalmente) de reatualização intersemiótica dos textos, na construção de análises comparativas em
quando as demais possibilidades fracassam, as pessoas dos livros, especialmente perspectivas intertextuais, na desvinculação da leitura literária de práticas repetitivas
aqueles identificados como literários – cujo conhecimento íntimo e intransferível, pelo e enfadonhas tais como o preenchimento de fichas e de produção de resumos, na
processo de construção/invenção de leituras, contribui indubitavelmente, assim como valorização do percurso de leituras dos alunos, na aproximação com os circuitos locais
as demais experiências de vida, para o processo de humanização, de que fala Antonio de leitura e produção de literatura, na consideração das escolhas pessoais, na vivência
Candido (1989). de outros suportes diferentes do papel e do livro.

Nesse sentido, professores, bibliotecários, supervisores, orientadores, diretores e técnicos Finalizando o percurso empreendido, parece-nos de suma importância ressaltar que
em educação devem se fazer parceiros, tendo como meta propiciar o convívio com os nenhum dos pontos ou perspectivas apresentados reveste-se de verdade ou perenidade:
textos – e com os livros – de literatura dentro e fora do espaçotempo escolar. Um bom estão sujeitos à dúvida, à discussão, à refutação e à trapaça – no sentido de força in(ter)
começo pode ser facultar às crianças, adolescentes e jovens o direito de escolha dos ventiva e salutar com que empregamos o termo. Nesse mesmo espectro, parece-nos
materiais para leitura (na biblioteca de sala ou da escola, por exemplo). Como integrante necessário ressemantizar a oposição que Marisa Lajolo (1982) estabeleceu entre uma
desse momento inicial, pode-se pensar em uma visita guiada ou em um bate-papo educação pela literatura e uma educação para a literatura, fazendo-as confluir na formação
sobre como se organizam as bibliotecas, sua origem e história, o desenvolvimento dos de leitores inquietos e inconformados, que transponham a escola e a escolarização: que
sistemas bibliográficos e dos suportes para o texto escrito etc. Depois de escolhidas e refutem e desautorizem o ensino de literatura, tal como empreendido em cada travessia
lidas as primeiras obras, podem-se seguir atividades em que os estudantes ratifiquem sócio-histórico-cultural, reinventando-o, assim, através de processos dinâmicos de
ou retifiquem – justificando-as – suas escolhas, em que exponham suas experiências de apropriação dos textos, obras, autores e sistemas, nos quais eles, os leitores (ativos,
leitura e argumentem (oralmente e/ou por escrito) em defesa de seu ponto de vista. Esse propositivos, interessados, participativos) se ponham como os legítimos criadores que
início pode ser a porta de entrada para compreender noções como autoria, ilustração/ são – e possam dizer, com a força e a tranquilidade de um Riobaldo, no seu amanhã que
ilustrador, tradução/tradutor, adaptação/adaptador, título, editora, edição, capítulo, se há de levantar acima e além da escola: “Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado”
estrofe, capa, quarta capa, orelha, apresentação, prefácio, epílogo etc., entendendo-se, (Rosa, 1994, p. 15).
sempre, que não importa o volume de leituras realizado, mas a qualidade do percurso,

2 Do mesmo modo como nos parece que é muito mais interessante para a prática em sala de aula Referências
que cada um adquira/manipule um livro de leitura diferente e possa trocá-lo com os colegas ao longo
do ano, ao invés de todos lerem apenas um mesmo e único livro de literatura (chamados, comumente,
pela escola, de “paradidáticos”), nos parece muito mais interessante, também, que se possa trabalhar, em ABREU, M. Cultura letrada, literatura e leitura. São Paulo: Unesp, 2006.
sala de aula, com diferentes materiais e recursos didáticos. Imagine-se como seria interessante se cada
estudante pudesse manipular um livro didático diferente, trocando com o colega, para comparar como os
mesmos temas ou objetivos comparecem nos distintos materiais. AGUIAR, V. T. de. Leitura literária e escola. In: EVANGELISTA, A. et al. (Org.). A escolarização da leitura literária.

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60
CONTRAPONTOS MUSICAIS:
LUCIANO BERIO E O CONTEXTO
PÓS-GUERRA
Daniel Lemos Cerqueira¹ e Ana Cláudia Assis²
¹ Mestre em Performance Musical pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é professor e
coordenador do Curso de Música da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

² Professora doutora em História pela UFMG e Université Le Mirail - FR (2006). Em 2010 realizou o pós-douto-
rado junto ao CESEM-UNL (Portugal) com apoio da FCT. Atualmente é professora da Universidade Federal de
Minas Gerais (FMG).

Resumo Abstract
O presente artigo, baseado na dissertação de The present work, based on author’s Master’s degree
Mestrado do autor, concentra-se em um diálogo entre dissertation, focus on a dialogue between musical
Luciano Berio (1925-2003) e Pierre Boulez (1925-), ideas from Luciano Berio (1925-2003) and Pierre
dois compositores de efetiva relevância para a Música Boulez (1925-), composers from post-war period.
do Século XX a partir do período pós-guerra. Para a Source for this work are Berio’s bibliography and
realização deste, foi utilizada a bibliografia levantada Boulez’s Stocktakings from an apprenticeship,
sobre Berio e o livro Apontamentos de Aprendiz de revealing particular composing techniques,
Boulez, estabelecendo um contraponto entre as aesthetical phylosophies and musical ideas from
ideias destes compositores, expondo características both authors.
particulares das técnicas composicionais e ideias
musicais de Berio.
Keywords: Luciano Berio, Pierre Boulez,
Composition, Contemporary Music
Palavras-Chave: Luciano Berio, Pierre Boulez,
Composição, Música Contemporânea
Introdução época, vivendo em um período que passava por mudanças particulares até então nunca
vistas na música europeia.
O presente texto baseia-se na dissertação intitulada Estudo das Ressonâncias na Sequenza
IV de Luciano Berio, defendida em março de 2009 sob orientação da profª. Drª. Ana Contrapontos Musicais
Cláudia Assis. Em “Contrapontos Musicais”, realizaremos uma discussão sobre ideias que
surgiram no período posterior ao término da Segunda Guerra Mundial, estabelecendo Após o término da Segunda Guerra Mundial, houve a necessidade de reconstruir a
um diálogo entre as ideias do compositor italiano Luciano Berio (1925-2003) e de Europa. Neste contexto de pós-guerra, os compositores passaram a realizar uma reflexão
Pierre Boulez (1925-), presentes em seu livro Apontamentos de Aprendiz, buscando sobre a conjuntura histórico-cultural, refletindo os anseios da nova ordem europeia na
compreender características da personalidade musical de cada um e suas relações com Música. Berio comenta o ideal que estava no ar:
o momento histórico em questão.
Durante os primeiros anos dos “agitados anos cinqüenta”, havia a necessidade
Particularmente, o contato de Berio com a música em sua juventude foi essencialmente geral de mudar, de esclarecer, de aprofundar e desenvolver a experiência
serial; para alguns havia a necessidade de se recusar a história, para outros,
concentrada no repertório tradicional. Nascido em Oneglia (atualmente Imperia) no mais responsáveis, havia a necessidade de reler a história e não aceitar mais
dia 24 de outubro de 1925, em um período caracterizado por grandes tranformações nada de olhos fechados. Cada um de nós dava a contribuição diferente para
na música europeia, o compositor teve como principais educadores musicais seu pai uma evolução importante da música (BERIO In: DALMONTE, 1988, p.51).
Ernesto, pianista de formação erudita que estudou no Conservatório de Milão, e seu
avô Adolfo, organista e compositor sem formação acadêmica. Estas duas personalidades As ideias coletivas dos compositores deste período contribuem para estabelecer uma
musicais contrastantes1, sendo o primeiro fruto de um sistema rígido de ensino enquanto nova forma de entender a Música, porém, suas particulares eram bastante divergentes,
o segundo improvisava e compunha valsas e polcas, permitiram a Berio vivenciar dois como nunca se viu antes na história da Música2.
mundos distintos do fazer musical. Podemos encontrar em toda sua obra elementos
musicais conflitantes que personificam estas duas personalidades tão influentes para o A ideia da tabula rasa foi primeiramente esboçada pelo filósofo inglês John Locke (1632-
compositor. 1704). Esta teoria defende que ao nascer, o ser humano não possui nenhum conhecimento,
sendo este adquirido ao longo da vida através da experiência, tentativa e erro, conceito
Em princípio, Berio almejava seguir carreira como pianista, porém, um acidente com sua associado ao empirismo (PINKER, 2004, p.23). Estabelecendo uma analogia com o
mão direita no período em que foi recrutado pelo Exército italiano tornou impossível esta contexto musical do pós-guerra, a tabula rasa na Música significa o abandono de toda
opção, fazendo com que escolhesse a carreira de compositor. É interessante mencionar a bagagem cultural existente até então, recomeçando o processo de produção cultural
que até a década de 1940, a Itália era tomada pela ditadura fascista de Mussolini, cuja sem nenhuma influência do passado. Boulez, um dos compositores mais importantes
política não permitia a execução de obras contemporâneas, outro fator que restringira do pós-guerra, é partidário desta concepção. Ele critica o sistema musical tradicional em
seu contato com a música tradicional. Assim, esta vivência com o repertório tradicional alguns trechos de seu livro Apontamentos de Aprendiz (1995)3:
se tornou uma de suas características mais marcantes: o respeito pela tradição. Assim
sendo, ingressou no Conservatório de Milão, formando-se em 1950. Seus principais (...) A obra não mais se insere numa hierarquia – confirmando-a, ou chocando-
professores foram Guilio Cesari Paribeni (1881-1964) e Giorgio Frederico Ghedini (1892- se contra ela -, mas gera a cada vez sua própria hierarquia; em suma, não
1965). haveria mais lugar para qualquer tendência ao esquema preestabelecido
ligado a funções precisamente determinadas. (...) os partidários de uma
tradição atualmente sem vida, uma vez que eles, infelizmente, tendem a
O compositor conheceu o repertório de vanguarda especialmente nos festivais de encarar os próprios hábitos e as próprias rotinas como leis naturais, imutáveis.
Darmstadt a partir de 1953, eventos que permitiram seu contato com importantes (...) A atitude que se impõe no momento: eliminar os preconceitos sobre uma
músicos de sua época, entre eles Karlheinz Stockhausen (1928-2008) e Pierre Boulez, Ordem Natural (BOULEZ, 1995, p.170-171).
personalidades que contribuíram de forma crucial para o amadurecimento de sua
2 Citação de Berio sobre esta questão: “Hoje cada compositor tem que inventar sua própria linguagem
concepção musical. Assim, Berio posicionou-se em relação ao meio musical de sua – é muito mais difícil” (WIERZBICKI, 1985).
1 Comentário que ilustra sua característica de trabalhar com elementos contrastantes: “Minha 3 Este livro possui uma seleção dos textos que ilustram o pensamento de Boulez nos períodos de 1948
obra, meu estilo, tem a característica de trazer juntas coisas diferentes.” (WIERZBICKI, 1985) a 1962. Percebemos que muitas ideias deste compositor se relacionam com o pensamento musical de Berio.

64 65
Trata-se de uma postura que busca novas concepções e modos de expressão musical, idealizador do piano preparado. Cage considera obsoletos os instrumentos adaptados
desvencilhando-se dos signos, conceitos e estereótipos da música tradicional4. Porém, à linguagem tonal por não serem mais capazes de suprir as necessidades musicais que
em oposição a Boulez, Berio afirma não acreditar nesta ideia, defendendo a importância surgiam, em especial no universo sonoro não-temperado, limitando o processo de
do conhecimento adquirido ao longo da história. Este trecho expõe o modo com que o composição (BOULEZ, 1995, p.162). Com relação aos instrumentos eletrônicos, Berio
compositor trabalhava com a história em seu processo de composição: critica sua fabricação em série, dizendo ser prejudicial à criação e contribuindo para a
“crise da Música de Hoje” (BARRETO, 1988).
(...) a tabula rasa, especialmente em Música, não pode existir. Mas essa
tendência a trabalhar com a história, na extração e transformação consciente Sob o aspecto composicional, é comum encontrar referências a Berio como sendo um
de “minérios” históricos e sua absorção em processos e materiais musicais
não historicizados, reflete a necessidade – que trago dentro de mim há muito
estruturalista, ou comentários que utilizam o termo “estrutura” para definir aspectos
tempo – de inserir organicamente “verdades” musicais, para poder abrir o musicais de sua obra. Além disso, seu contato com Humberto Eco é uma forte evidência
desenvolvimento musical em graus diferentes de familiaridade, para ampliar desta influência.
seu desenho expressivo e seus níveis perceptivos (BERIO In: DALMONTE, 1988,
p.57). O Estruturalismo começou na Literatura como uma das ramificações da Semiótica, e
sua criação é atribuída a Ferdinand de Saussure (1857-1913). Seu objetivo é descobrir
O compositor utiliza estes “minérios históricos” sob um olhar de releitura, elaborando como o significado é construído e reproduzido em uma cultura através de elementos
o material musical de forma original e consciente de suas características históricas, portadores de sentido (signos), a partir de qualquer forma de comunicação, não se
naturalmente influenciando na percepção de sua obra, caso o ouvinte esteja restringindo somente à Literatura. Juan María Solare afirmou que Berio possuía uma
familiarizado com o repertório tradicional da música erudita. Esta visão está presente em concepção estruturalista, e em seguida explicou o significado desta afirmação: “Com
sua concepção sobre instrumentos musicais que, para Berio, não são resultado apenas ‘Estruturalismo’ me refiro aqui a uma atitude intelectual que desconfia de resultados
de técnicas inovadoras de fabricação, mas envolvem um processo de transformação artísticos não respaldados por uma estrutura justificável em termos de algum sistema”
mais profundo: (SOLARE, 1998, p.65).

(...) um instrumento musical é por si mesmo uma parte da linguagem musical. Relacionando esta afirmação com a ideia de Saussure, vemos que o compositor se
Tentar inventar um novo instrumento é fútil e patético tanto quanto qualquer apropriou de parte do pensamento estruturalista, mas defini-lo como tal é um rótulo
outra tentativa de inventar uma nova regra gramatical para a nossa língua.
O compositor só pode contribuir para a transformação dos instrumentos
equivocado, pois Berio defendia uma estética vinculada à historicidade. Quanto à
musicais usando-os e procurando entender, post factum, a natureza complexa própria atribuição de rótulos, o compositor condena esta prática, devido às restrições
das transformações (BERIO In: DALMONTE, 1988, p.78). ideológicas que são impostas ao objeto rotulado de forma subentendida (BERIO In:
DALMONTE, 1988, p.50).
Esta ideia esboça a preocupação do compositor em preservar a tradição, uma vez que
modificar instrumentos musicais não inviabiliza a execução do repertório tradicional, Na segunda metade do Século XX, os compositores buscaram apontar os problemas
caso seus construtores possuam esta questão em mente. Ainda, abolir a modificação e limitações originárias das novas correntes musicais do início do século, permitindo
dos instrumentos musicais rompe com a linearidade histórica na qual os próprios um amadurecimento e melhor domínio sobre as técnicas composicionais. Entre estes
instrumentos se desenvolveram, acabando com suas chances de desenvolvimento problemas, há a dificuldade no controle das tensões ao longo da peça, a falha na busca
posterior. Porém, pode ser que Berio manteve esta posição por se preocupar com o pela composição objetiva e a falta de conceitos que pudessem definir as ideias e formas
extremismo de alguns compositores de sua época5, entre eles John Cage (1912-1992), musicais que surgiam, entre outros. O abandono das formas ligadas ao tonalismo trouxe
uma nova concepção de forma musical, e Boulez atribuiu o surgimento deste novo tipo
4 Apesar desta afirmação, Boulez escreveu três Sonatas para Piano, compostas em 1946, 1947-48 de forma a Anton von Webern (1883-1945) devido a seu estilo peculiar de trabalhar a
e 1958, e de acordo com a escolha deste título, o compositor entra em conflito com sua própria proposta
série dodecafônica ao longo da composição. Ao invés de utilizar a série em formas pré-
de rompimento com a tradição.
5 Comentário de Berio que ilustra sua preocupação: “No IRCAM, em anos passados, alguns músicos clássicas ou na forma Sonata (como fizeram Schöenberg e Berg), Webern construía a
tentaram mudar e “melhorar” a flauta: mudaram a posição dos buracos e colocaram várias chaves e (...) a forma paralelamente ao desenvolvimento do tema no contraponto, possibilitando uma
flauta podia produzir acordes e efeitos bastante singulares. Acontece, porém, que os coitados tiveram que abrir mão de Bach, Mozart, Debussy e também da minha Sequenza” (BERIO In: DALMONTE, 1988, p.78).

66 67
constante evolução do material temático6, característica que encontramos na obra sobre intervalos de tensão maior, ou então quando insistirem sobre registros
de Berio7. Boulez definiu esta nova concepção como “forma trançada”, em oposição à extremos: os graus médios e mínimos são a lógica conseqüência disso. O
grau máximo da dimensão dinâmica ocorre, obviamente, nos momentos de
anterior, chamada de “forma arquitetural” (BOULEZ, 1995, p.182). Este novo estilo de
máxima energia sonora e de máximo contraste dinâmico. O que eu chamo
forma musical denominado “pontilístico” (BOULEZ, 1995, p.32), onde o “espaço sonoro” é de dimensão morfológica coloca-se, sob certos aspectos, a serviço das outras
explorado através das dimensões verticais e horizontais, culminou no Serialismo Integral, três, funcionando como uma espécie de instrumento retórico (BERIO In:
técnica de composição onde todas as dimensões musicais (notas ou alturas, ritmos ou DALMONTE, 1988, p.84-85).
durações, intensidades e tipos de ataque) obedecem a um esquema serial. Sua criação é
atribuída a Olivier Messiaen (1908-1992) e sua obra Mode de Valeurs et d’Intensités (1949)
é considerada o marco inicial desta técnica composicional. Observamos a preocupação de Berio em conduzir a tensão ao longo do discurso musical,
compreendendo-a a partir de um problema apresentado pela música serial: sob o rigor
Em meio a estas ideias surge outra questão: o conceito de tema não era suficiente da serialização das alturas e sem o amparo das funções tonais, perdia-se a capacidade
para definir a ideia musical que seria trabalhada nesta nova concepção de forma, de conduzir níveis distintos de tensão ao longo da obra, tornando-a estática em nível
pois esta “figura sonora” não mais estava restrita às mesmas relações lógicas de altura, estrutural. Um comentário de Boulez sobre a obra de Webern demonstra este problema:
orquestração, tensão e processo de desenvolvimento provenientes do conceito de tema,
e sim à própria natureza intrínseca do som: o timbre, que engloba todas as dimensões Os planos de estruturas se renovavam paralelamente de modo idêntico; a cada
musicais. Podemos perceber aqui este contraste de ideias (gesto musical e tema, nova altura, nova duração dotada de nova intensidade. A variação perpétua –
na superfície – gerava a ausência total de variação a um nível mais geral. Uma
respectivamente):
monotonia exasperante tomava posse da obra musical (BOULEZ, 1995, p.33).
(...) as questões de escalas temperadas ou não-temperadas, as noções de
vertical e de horizontal não têm mais sentido: chega-se à figura sonora que é o Outro problema originado pela concepção serial, especialmente no Serialismo Integral,
objeto mais geral oferecido à imaginação do compositor (...) anteriormente a também foi esquivado por Berio: a busca pela composição objetiva8, onde todos os
música era um conjunto de possibilidades codificadas e aplicáveis a cada obra parâmetros musicais eram controlados sistematicamente pelo rigor do esquema serial,
de uma forma indiferenciada (BOULEZ, 1995, p.207). procedimento que praticamente eliminou o livre-arbítrio9 do processo composicional.
Sob este aspecto, o contato de Berio com Luigi Dallapiccola foi de grande auxílio. A
técnica serial de Dallapiccola consistia em espacializar a série sob diferentes regiões de
Unindo estas duas concepções, podemos compreender como se desenvolvia o altura e orquestração, utilizando fragmentos da série em suas quatro possibilidades de
pensamento composicional de Berio: a condução do material sonoro ao longo da obra e leitura (normal, retrógrada, invertida e retrógrada-invertida) através de um processo
as dimensões musicais trabalhadas, aqui ilustradas pelo compositor: conhecido como permutação, oferecendo uma liberdade composicional muito maior
do que as possíveis nos esquemas seriais rígidos. Vejamos este trecho sobre a concepção
A dimensão temporal, dinâmica, das alturas e a dimensão morfológica são de Berio deste procedimento:
caracterizadas por um grau máximo, médio e mínimo de tensão. O grau de
tensão máxima (...) da dimensão temporal ocorre nos momentos de velocidade A experiência serial nunca representou para mim a utopia de uma linguagem
máxima de articulação e nos momentos de duração máxima do som; o grau e, portanto nunca se reduziu, no meu caso, a uma norma ou a uma combinação
médio é dado sempre por uma distribuição neutra de valores bastante restrita de dados. A experiência serial significa pra mim, acima de tudo, uma
longos e de articulações bastante rápidas e o grau mínimo é constituído ampliação objetiva dos recursos musicais e a possibilidade de controlar um
pelo silêncio e pela tendência ao silêncio. A dimensão das alturas está no terreno musical mais vasto, respeitando, aliás, apreciando suas premissas
grau máximo quando as notas se deslocam sobre amplas zonas de registro, (BERIO In: DALMONTE, 1988, p.55).
6 “Material temático” refere-se ao conjunto de elementos que formam uma ideia musical tradicional
– o tema, enquanto “material sonoro” baseia-se na concepção contemporânea destes elementos – o gesto
musical. Webern já pensava sob a ótica de “material sonoro”, mas na época deste compositor o conceito 8 Boulez se refere à busca pela composição objetiva como o novo diabolus in musica, criticando
ainda não estava claramente estabelecido. os compositores dodecafônicos: “podem se entregar, em grupo ou individualmente, a uma frenética
7 “Sem dúvida a hommage de Berio às formas maleáveis expostas por Boulez durante este período masturbação aritmética” e “sabem contar até doze e por múltiplos de doze” (BOULEZ, 1995, p. 44, 138-139).
[1961] foi suficientemente sincera” (OSMOND-SMITH, 1991, p.29). 9 Termo comumente aplicado por Pierre Boulez.

68 69
Dessa forma, vemos que o compositor utiliza técnicas seriais de composição através de na utilização de técnicas composicionais contemporâneas, opondo-se à ideia da tabula
técnicas menos rigorosas, possibilitando uma maior arbitrariedade à criação musical. rasa, personificada na Música após a 2ª Guerra Mundial e defendida por diversos de
seus contemporâneos. Esta dicotomia certamente é resultado de sua formação inicial,
O que Berio define como dimensão morfológica, ou instrumento retórico, diz respeito baseada no contato estrito com o repertório tradicional e da necessidade de contribuir
à função exercida por uma seção dentro da totalidade da obra. Na Sequenza IV, por para o percurso histórico da música Ocidental, reforçando a linearidade histórica do
exemplo, próximo ao final da peça, o material sonoro se desenvolve de forma semelhante repertório musical e a transformação, contraposição e agregação entre novos elementos
ao apresentado no início, comunicando uma ideia de coda ou recapitulação. Porém, musicais e os de outrora, representantes de nossa bagagem cultural. Dessa forma,
além do material musical utilizado na recapitulação ser diferente do inicial, a técnica é fundamental a contribuição que Berio traz à Música, personificando em suas obras
composicional não é a mesma utilizada nas codas presentes em obras do repertório ideias individuais que dialogam com seu tempo e toda a história musical precedente,
tradicional, atribuindo a “sensação de coda” à dimensão morfológica, pois dentro da obra, exigindo dos intérpretes dispostos a executar sua obra um conhecimento aprofundado
esta seção realiza um papel equivalente à coda em uma peça do repertório tradicional. A do repertório de seu instrumento.
conexão entre estas seções, cada qual com sua função particular, gera a fluência e coesão
necessárias ao entendimento total da obra. Quanto ao significado particular de cada Referências
função, Berio afirma ser fruto de uma escolha consciente, graças à referência encontrada
no repertório tradicional. A dimensão morfológica estabelece um discurso através da BARRETO, Jorge Lima. Entrevista a Luciano Berio. Lisboa: Jornal de Letras, 1988.
relação entre as seções da obra ao longo do tempo, mas este não está vinculado a um
código pré-estabelecido que “cristaliza” o seu significado, como na linguagem verbal BERIO, Luciano. Entrevista sobre a Música Contemporânea (realizada por Rossana Dalmonte). Rio de Janeiro:
(BERIO, 1983, p.41). Para reforçar esta afirmação, Osmond-Smith atribui esta dimensão Ed. Civilização Brasileira, 1988.
a uma concepção retórica que ocorre na busca por elementos musicais do passado que BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995.
favoreçam o entendimento, uma vez que a linguagem musical contemporânea não
CERQUEIRA, Daniel Lemos. Estudo das Ressonâncias nas Sequenza IV de Luciano Berio. Dissertação de
possui referências que permitam sua compreensão (OSMOND-SMITH, 1991, p.15).
Mestrado. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Música da EMUFMG, 2009.

Ao observar a forma com que Berio concebe a Música, torna-se evidente sua recorrência OSMOND-SMITH, David. Berio. Nova York: Oxford University Press, 1991.
ao passado, seja para realizar uma citação ou elaborar uma nova ideia sobre o PINKER, Steven. Tabula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza. São Paulo: Companhia das Letras,
material musical. A tradição torna-se o guia de suas atitudes musicais, o que requer 2004.
um conhecimento amplo da História tanto para ouvintes quanto para intérpretes e
musicólogos que queiram ter contato com sua obra. Outra característica do compositor SOLARE, Juan María. El lenguaje musical de Luciano Berio. Clásica. n.114. Buenos Aires, jan-1998, p.65-66.
é dialogar com diversas áreas do conhecimento, não se restringindo apenas à Música. WIERZBICKI, James. Luciano Berio. St. Louis: St. Louis Post-Dispatch, 1985.
Ao compor sua série de Sequenze, Berio considerou aspectos históricos e sociais dos
instrumentos musicais, fato que transcende as abordagens técnico-musicais e exige um
conhecimento mais amplo por parte dos intérpretes que buscam o entendimento de
suas peças.

Considerações finais

A presente discussão evidencia a diversidade de correntes estéticas que surgiram


após os anos 1950, onde os compositores possuíam concepções variadas sobre a
Música, fato que caracteriza a fragmentação ideológica a partir de tal período. Sob este
aspecto, é interessante notar a forma particular com que Berio trabalha sua música,
aliando conservadorismo ao preservar elementos do repertório tradicional e ousadia

70 71
ALEXANDRE LEVY E ALBERTO
NEPOMUCENO: UM OLHAR
NACIONALISTA
Cleida Lourenço da Silva
Mestre em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professora do Curso de
Bacharelado em Piano da Faculdade de Música do Espírito Santo “Maurício de Oliveira” (FAMES)

Resumo Abstract
Este artigo é dedicado a Alexandre Levy e This article is dedicated to Alexandre Levy and
Alberto Nepomuceno. O percurso musical desses Alberto Nepomuceno. The musical career of these
compositores é discutido em uma revisão de composers is discussed in a review of the literature,
literatura, tomando como pano de fundo a presença taking as background the presence of musical
do nacionalismo musical em suas criações. nationalism in its creations.

Palavras-chave: Alexandre Levy, Alberto Keywords: Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno,


Nepomuceno, Nacionalismo musical. Musical nationalism.
O período histórico do Brasil que compreende a segunda metade do século XIX é brasileiros e os movimentos musicais europeus, observa ainda a existência de uma
percorrido por manifestações de qualidades nacionalistas. Essa assertiva é observada interpenetração de elementos musicais entre aquelas correntes. Segundo ela,
em episódios diversos, como na Guerra do Paraguai, no movimento abolicionista ou
na campanha republicana. Ao mesmo tempo, cresce o número de compositores de esses países não legaram apenas a sua própria tradição musical, mas
formação acadêmica que lançam o olhar para as tradições populares e seu uso como também contribuíram para a difusão de tendências internacionalizadas. Essa
internacionalização das correntes italiana, francesa e alemã refletiu também
material temático, vindo a intensificar-se no final do século. Nos primeiros anos da na implantação das influências musicais sobre compositores brasileiros.
República, Alberto Nepomuceno e Alexandre Levy destacam-se ao mergulharem nesse Podemos mencionar diversos casos de compositores que estudaram em
campo ainda incipiente no Brasil; o primeiro no Rio de Janeiro e o segundo em São Paulo. determinado país e que, não obstante, ressentiram-se de influências diversas
(VOLPE, 1994-95, p. 54).

Alexandre Levy nasceu numa família de músicos na capital paulista, a 10 de novembro de


1864. Cresceu no ambiente da loja de música de seu pai, a Casa Levy, que comercializava Somando-se a isso, a existência do músico viajante fazia com que a repercussão do
partituras, livros, instrumentos, sendo um meio cultural farto, onde se podiam manter repertório nacional passasse além das fronteiras dos países. Assim se podia conhecer
contatos com músicos que ali freqüentavam e com obras recém-chegadas da Europa. aquilo que acontecia na Europa como um todo. O aproveitamento de ritmos e melodias
Aos sete anos de idade, inicia os estudos de piano com Luiz Maurice, professor de origem populares era comum em obras de compositores espanhóis, poloneses, húngaros,
russa, seguindo com o francês Gabriel Giraudon. Em 1883, funda o Clube Haydn, que se russos, franceses ou alemães (estes dois últimos de forma mais sutil). Alexandre Levy
tornaria uma das sociedades musicais mais proeminentes de São Paulo. Ali atua também e Alberto Nepomuceno não deixaram de participar deste intercâmbio entre a cultura
como pianista e regente de orquestra. Em 1887, viajaria para a Europa, finalizando-se, musical popular e a concertística.
com isso, as atividades do Clube (CORRÊA DE AZEVEDO, 1956, p. 155-157; BITTENCOURT,
s.d., p. 85-86).
Na Alemanha, por exemplo, Nepomuceno tem convivência com o espírito musical
germânico, através dos Lieder de Schubert e Schumann. Já então na Noruega, conhece
No ano seguinte, Alberto Nepomuceno também iria estudar na Europa, onde Grieg – principal figura do nacionalismo deste país – por intermédio de Walborg Bang,
permaneceria até 1895 (CORRÊA DE AZEVEDO, 1956, p. 162-163). Aliás, entre os pianista, com quem se casaria e teria quatro filhos. Mantém um amistoso contato com
compositores brasileiros dessa geração, é significativo o número dos que foram buscar o compositor europeu, recebendo dele importantes ensinamentos que viriam a ser
no Velho Continente meios para o aperfeiçoamento da própria formação musical. decisivos para o firme propósito que deveria seguir: o de cultivar e desenvolver a música
Acrescentam-se como exemplos os nomes de Leopoldo Miguez, Henrique Oswald nacional (CORRÊA, 1985, p. 10).
e Francisco Braga. Num país ainda frágil em recursos musicais segundo os padrões
europeus, era natural que recorressem a essa educação, inevitavelmente ligada à idéia
de desenvolvimento. “São os compositores europeus os modelos dos brasileiros”, afirma Mário de Andrade percebe nessa etapa de convivência estrangeira dos compositores
Squeff (1983, p. 24). Daí buscarem reconhecimento mediante o estudo e a utilização de um caminho de aproximação das experiências nacionalistas brasileiras:
técnicas composicionais estrangeiras.
Pois era na própria lição européia da fase internacionalista que Alexandre Levy
e Alberto Nepomuceno iam colher o processo de como nacionalizar rápida
Por outro lado, o período de permanência no exterior possibilitava maiores relações com e conscientemente, por meio da música popular, a música erudita de uma
outras correntes nacionalistas. Ao aprimorarem seus conhecimentos gerais estudando nacionalidade (ANDRADE, 1965, p. 31).
em outros países, travando relações com novas estéticas musicais, desenvolveram
o gosto pelas coisas nacionais, sobretudo através do contato e do estudo das escolas Alexandre Levy ficaria apenas alguns meses na Europa, a custos de sua família. Em
nacionais européias. novembro de 1887, retornaria a São Paulo (CORRÊA DE AZEVEDO, 1956, p.157-159).

Maria Alice Volpe, escrevendo a respeito da interação acadêmica de compositores São daquele ano as Variações sobre um Tema Brasileiro, seu primeiro trabalho voltado

74 75
para a orientação estética nacionalista. Esta obra – composta originalmente para piano, Não obstante essa interação com o folclore brasileiro, através de ritmos ou melodias
depois orquestrada – utiliza o tema da canção folclórica Vem cá, Bitu, mais conhecido tradicionais no país, as Variações sobre um Tema Brasileiro e a Dança de Negros se baseiam
atualmente pela melodia de Cai, cai, balão. em modelos musicais europeus. As dezesseis Variações, por exemplo, revelam influência
germânica, ora schumanniana, ora mendelssohniana, ora beethoveniana.
Curiosamente, é também no ano de 1887 que Alberto Nepomuceno compõe a Dança de
Negros, para piano; uma de suas primeiras criações musicais (CORRÊA, 1985, p. 12). Há motivos, no entanto, para se considerar essa vinculação aos métodos estrangeiros
como um outro aspecto do nacionalismo. A aproximação da linguagem musical européia
denota uma relação não apenas de dependência, mas antes o ideal de emulação com
Nascido em Fortaleza a 6 de julho de 1864, aos oito anos de idade Nepomuceno muda- os estrangeiros, na medida em que busca a igualdade segundo os termos das outras
se para Recife, cidade com melhores possibilidades culturais. Tem aí suas primeiras lições nações. Não é por acaso que a apropriação do modo composicional europeu possa ser
de música com o pai, que lhe ensina solfejo e piano (CORRÊA DE AZEVEDO, 1956, p. 161). considerado uma posição do nacionalismo brasileiro. À medida que a produção dos
compositores nacionais figure ao lado dos grandes nomes da música ocidental, passa a
Em sua juventude, já se fazia notar como defensor das causas republicanas e abolicionistas, representar o Brasil frente aos padrões das “nações civilizadas”, mostrando-se, portanto,
tendo participado ativamente de várias campanhas civilistas. Em conseqüência disso, igualmente capaz.
recebe, em abril de 1883, aos dezoito anos de idade, o título de Sócio-honorário da
Sociedade Nova Emancipadora de Pernambuco (CORRÊA, 1985, p. 9). Em 1888, meses Presos às concepções tradicionais da música ocidental, Alexandre Levy e Alberto
antes de partir para a Europa, apresenta aquela Dança de Negros em sua terra natal, Nepomuceno projetam naquelas obras uma criação que seja ao mesmo tempo uma
integrando uma excursão de concertos pelo Nordeste, destinada a granjear fundos para fusão das peculiaridades culturais com a universalidade de seus discursos. Maria de
garantir seu sustento naquela viagem de estudos. Lourdes Sekeff, escrevendo sobre a formação e a afirmação da música no Brasil, declara
que

Chama atenção o fato de ter sido aquela peça apresentada, em primeira audição, a para afirmar a incipiente alma verde-amarela fazia-se necessária a produção de
uma música original, alimentada por temas populares, melódicos, fecundados
menos de um mês de a comunidade negra ser libertada pela “Lei Áurea”. Dulce Lamas em sua gênese na terra do pau-brasil, e que atendendo à preocupação
comenta o assunto: estrutural reinante, fosse tratada segundo os métodos harmônicos e
polifônicos europeus (SEKEFF, 2004, p. 4).
A nossa suposição ainda mais se robustece, quando sabemos que Nepomuceno,
aos 19 anos de idade [sic], recebeu da Sociedade Nova Emancipadora, instalada O Velho Continente mantinha-se expoente cultural da música de concerto; por isso
em Pernambuco, no ano de 1880 [sic], o Diploma de Sócio-honorário, por seus era esse um campo possível de realização daqueles compositores. Daí atribuir ao
relevantes serviços prestados à causa abolicionista. E, talvez, Nepomuceno elemento particular uma linguagem ou uma marca que pudessem ser universalmente
tenha dado a première da Dança de Negros, no Ceará, não só por estar ligado reconhecidas. Se, por um lado, interessava-lhes o objeto nacional como busca de
aos ideais abolicionistas, como também, por ter essa Província do Brasil, antes identidade diferenciada – ainda que expresso, no caso de Levy, em uma diminuta parcela
de outra qualquer, concedido liberdade ao negro e declarado a libertação dos
escravos. Mas, falando-se do Ceará, não se pode deixar de apreciar como uma
no conjunto de sua produção –, por outro, interessava-lhes também o uso de fórmulas
região prodigiosa em matéria de tradições. Podemos dizer que possui um dos européias como desejo de nivelamento.
melhores celeiros do folclore nacional (LAMAS, 1964, p. 14).
Outra realidade é a polaridade que existe na própria referência à “música brasileira”, pois
esta resulta de um sincretismo cultural, em que a interposição de elementos estrangeiros
À sua Dança de Negros, o autor lhe daria uma versão orquestral em 1891, quando se encontrava e nacionais a caracteriza.
na Europa, sob o novo título de Batuque, completando a sua Série Brasileira,1 obra que denota
forte evocação nacionalista (CORRÊA, 1985, p. 12). Eis, então, a correlacionada dualidade do nacionalismo: de um lado a imitação do
1 A Série Brasileira compõe-se de quatro partes: I. Alvorada na Serra; II. Intermédio; III. A Sesta na Rede modelo europeu como forma de autoafirmação; de outro, a valoração das peculiaridades
e IV. Batuque.

76 77
culturais brasileiras, frutos de sínteses diversas. As duas faces desse nacionalismo são
reconhecidas por Vanda Freire:

Esse processo de construção de identidade passa por duas etapas, não


necessariamente sucessivas: uma de imitação, em que a simples cópia do
modelo europeu é uma forma de afirmação, uma forma de se dizer no mesmo
nível que a metrópole; outra de síntese, de elaboração conjunta de elementos
musicais, segundo articulações de sentido aqui engendradas e articulações de
sentido originárias da Europa (FREIRE, 1996, p. 4).

Ao regressar ao Rio de Janeiro, em julho de 1895, Nepomuceno organiza, no mês seguinte,


um longo recital no salão do Instituto Nacional de Música,2 em que se apresenta como
organista, pianista e compositor, conforme o programa a seguir:

2 Estabelecimento privilegiado em torno do qual giravam os principais acontecimentos musicais


da época, no Rio de Janeiro, e campo onde eram travados grandes embates ideológicos, estéticos e
políticos. Prédio onde funciona atualmente a Escola de Música da UFRJ.

78
Fig. 1 - Programa Alberto Nepomuceno. Fonte: Departamento de Música da Biblioteca Nacional.
Como se pode constatar, a maior parte do repertório é constituída de composições de restante de sua produção, especialmente em suas criações pianísticas, numa acepção bem
Alberto Nepomuceno. E, ao lado de peças cantadas em sueco, alemão e francês, estão próxima à que este trabalho pretende mostrar. Segundo Bruno Kiefer,
canções em português, no total quatro: Ora, dize-me a verdade; Amo-te muito; Mater
a obra de Nepomuceno, a despeito de seu permanente interesse pela
Dolorosa e Tu és o sol; todas compostas em Paris, no ano de 1894, e entoadas ao público produção européia, tem as suas raízes estéticas na Europa do século passado.
pela primeira vez neste recital. Iniciava-se no terreno da construção de sua imensa obra Mas também no Brasil, pelo menos em parte de sua obra. Sua intenção de
vocal baseada em textos de poetas e escritores brasileiros. Tornar-se-ia um grande expressar musicalmente o Brasil [...] foi consciente, o que não quer dizer que a
defensor da canção nacional, reagindo a uma tendência comum da época, afeiçoada tenha realizado de modo linear. Aliás, a própria história da música mostra que
aos gostos italianos ou franceses, que rejeitava o idioma português para o canto, pois mudanças muito radicais nunca se realizam linearmente. Há os avanços e os
não o considerava uma língua musical. recuos; as guinadas para a direita e para a esquerda.

[...]
Sustentou, assim, violenta polêmica com críticos da imprensa, especialmente com A obra pianística de Nepomuceno é desigual e sua análise confirma a não
Oscar Guanabarino, um dos representantes da opinião musical do Brasil na época, cujos linearidade da evolução do autor para uma música brasileira (KIEFER, 1997, p.
revides se perlongaram por vários anos. O lema “não tem pátria um povo que não canta 114-116).
em sua língua”, que alguns historiadores, equivocadamente, atribuem a Nepomuceno
(PEREIRA, 1995, p. 146-147), está bem de acordo com o pensamento e com os esforços Esse processo não-linear pode ser observado ao longo da construção da obra de
do compositor em empenhar-se, pelo resto de sua vida, na campanha em benefício da Nepomuceno. As peculiaridades que caracterizam a música nacional serviram de
divulgação do canto em idioma nacional. motivação para a sua Dança de Negros, datada de 1887. Entretanto, no mesmo ano,
o autor ainda compõe várias outras peças para piano cujo título e material temático
reportam-se à orientação musical estrangeira: Berceuse, Mazurca, Romança, Une Fleur,
Não obstante, a despeito de ser em português a letra das referidas canções, a parte para citar algumas.
musical tem as suas raízes na estética estrangeira. Influenciado pelas escolas européias,
escreve no estilo delas. O tratamento melódico e harmônico, por vezes, se aproxima da
maneira de Schumann ou Grieg. A linguagem que caracteriza a música brasileira se faz Posteriormente, em sua plena campanha idealista-republicana que intentava mostrar ao
bem menos presente. Kiefer (1997, p. 115) aponta, no entanto, entre sua obra vocal, peças povo pontos de sua identidade, como o canto em vernáculo, produz Tema e Variações em
que manifestam com maior clareza a ambiência nacional, como Cantigas (1902), as duas lá menor, Improviso, Noturno e Barcarola (para mão esquerda), dentre outras. Os títulos
Trovas op. 29 (1902) e A Jangada (1920), com a inovação do quarto grau aumentado, que nos remetem a peças tradicionalmente de concerto, ligadas aos critérios estéticos da
seria muito utilizado por compositores nacionalistas posteriores. Dulce Lamas comenta música européia, bem ao gosto romântico da época.
a respeito desta obra, concluída semanas antes do falecimento do autor, ocorrido a 16
de outubro de 1920, em Santa Teresa:
Quando ainda estava na Europa, constrói um conjunto de peças que denominou Quatro
Peças Líricas op. 13. Compõem a obra: I. Anelo, II. Valsa, III. Diálogo e IV. Galhofeira. Mais uma
A Jangada, com letra de Juvenal Galeno, tem, no texto poético, um sentido vez, o mesmo jogo estético nacional-internacional permeia esse grupo de composições.
bem regionalista. Sente-se, nos seus versos, toda a paisagem cearense, ao As três primeiras peças, escritas convencionalmente dentro de um estilo europeu
passo que a parte pianística sincopada é caracteristicamente nacional. É o
estritamente romântico, são marcadas por uma influência schumanniana, por vezes até
seu canto do cisne. Como última composição, é uma página de brasilidade
chopiniana (Valsa). Marcelo Verzoni, ao analisar as estruturas das Quatro Peças Líricas,
(LAMAS, 1964, p. 26). 3
em artigo inédito, relaciona-as ainda, em alguns pontos, com a produção de Brahms,
seja na construção formal clássica, seja no manuseio das tonalidades (VERZONI, 1998, p.
Essa confrontação de ideários (nacionalista versus internacionalista4) que transparece na
7). Observa-se também, no Anelo, o aproveitamento de cromatismos, o que reporta à
construção de suas canções resulta em um jogo conflituoso que se reitera inúmeras vezes no
linguagem harmônica de Richard Wagner. E há elementos bachianos na terceira obra da
3 Grifos nossos. coleção, introduzidos principalmente na segunda seção, marcada por linhas melódicas
4 Expressão proposta por Andrade (1965, p. 27-28).

82 83
independentes e ao mesmo tempo interligadas, caracterizando um verdadeiro “diálogo”. inspirando em Rubinstein, em Beethoven, em Wagner, em Massenet, sem se
fixar em nenhum deles para ser o que era e o que será, como na Galhofeira, no
Amo-te muito, em que há calor e vida, no Tu és o sol, em que o arrebatamento
A Galhofeira – obra que alcançou grande popularidade, tornando-se, dentre as lírico se afasta da Valsa, do Diálogo e do Anelo (GUANABARINO, 1895a).
composições pianísticas do autor, principal interesse para gravações fonográficas – por
sua vez, denota expressões musicais típicas do Brasil. Os compassos introdutórios logo O texto ilustra bem a postura do compositor em relação à sua obra: ora busca a expressão
estabelecem o esquema rítmico sincopado, que predominará no acompanhamento da musical mais próxima das tradições de seu país, inspirada na natureza dos trópicos;
peça. A figuração rítmica conduzida pela voz do baixo é extraída da célula conhecida ora retrata a integração às escolas em que se formara, através da imitação do modelo
como “ritmo de tango” – –, muito encontrado nas formas populares urbanas europeu.
da época.
Quanto a Alexandre Levy, Carlos Penteado de Resende afirma que obteve de João Gomes
de Araújo Jr. – companheiro de Levy durante meses na capital francesa – a informação
de que o autor das Variações lhe teria confessado sua preocupação com a construção de
uma música de concerto mais próxima das tradições de seu País:

Discorria sobre a arte dos sons, dizendo que cada nação tinha a música
característica e que o Brasil um dia haveria de revelar a sua. Afirmava que para
escrever música brasileira era preciso estudar a música popular de todo o
Brasil, sobretudo a do Norte do país (RESENDE, 1946).

Uma inspeção em composições pianísticas de Levy do mesmo período revela,


entretanto, incontestáveis métodos musicais europeístas, a despeito daquelas intenções
Fig. 2 - Alberto Nepomuceno - Galhofeira - c. 1-4 nacionalistas. Em Paris, Levy havia escrito os Trois Morceaux op. 13 (I. Doute, II. Amour
Passé e III. Coeur Blessé), nos quais se percebem reflexos do romantismo de Schumann.
De lá trazia também a peça que seria reconhecida postumamente como uma de suas
Um dia após a realização do histórico concerto de 1895, Oscar Guanabarino declara a
principais composições para piano, o Allegro Appassionato op. 14. E novamente, esta
respeito de Nepomuceno em um artigo do jornal O Paiz:
obra faz uma referência literal ao estilo schumanniano, como o uso de hemíolas, em
divisões binárias, ternárias e quaternárias, tão abundantes na produção do compositor
Voltou [da Europa] transformado – ele o brasileiro, o nortista; com a tradição germânico.
das lendas abafada pelo saber dos mestres –, indeciso; indeciso porque na sua
alma há uma nota predominante que não adormeceu, nem se extinguiu e que Uma situação análoga ocorre com sua Sinfonia em mi menor, iniciada em Paris e concluída
há de reviver por força, desde que voltou para o ponto de partida e tem agora em São Paulo dois anos depois. Seus quatro movimentos apontam a preferência do
para inspirá-lo a imponência da natureza dos trópicos.
autor pelas escolas alemã e francesa. Essa produção é comentada pelo compositor
Harry Crowl no encarte do disco Alexandre Levy e César Guerra-Peixe – Dois Momentos da
Indeciso, dissemos, porque as suas composições não têm um cunho original, Criação Musical Erudita Brasileira:
nem se filiam constantemente a este ou àquele mestre.

Trata-se de uma obra bem situada dentro do panorama da criação musical


Nas suas produções é o trecho que se adapta ora a Mozart; como da época, o que pode ser atestado por claras referências a grandes obras
acentuadamente no Minuetto;5 ora a Schumann, mais insistentemente, e sinfônicas da segunda metade do século XIX. Logo no primeiro movimento,
percebe-se um nítido clima da Terceira Sinfonia, de Camile Saint-Säens, assim
5 A inserção do Minuetto, a que o crítico se refere, neste recital, é explicada pela nota do autor de 5 como o terceiro movimento é um Scherzo inspirado por um movimento
de agosto de 1895 do Jornal do Comércio: “Quando executou as quatro peças líricas, para piano, o público
fê-lo voltar ao estrado e o aclamou entusiasticamente. Nepomuceno agradeceu tocando um Minuetto de sua composição, que não constava do programa” (GUANABARINO, 1895b).

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análogo da música incidental para “Sonho de Uma Noite de Verão”, de Felix Convêm destacar novamente as Quatro Peças Líricas op. 13, de Alberto Nepomuceno.
Mendelssohn. Estas referências a obras de sucesso da época fazem parte de Esse jogo entre modelos estrangeiros e nacionais, exemplificado num mesmo grupo
uma prática comum a toda música ocidental e em nada desmerecem a obra
de composições – todo criado em Paris e no mesmo ano, 1894 –, torna-se objeto de
de Levy, mas ao contrário, pois qualquer grande compositor francês ou alemão
do período poderia assinar esta obra (CROWL, 1996). curiosidade. Em Anelo, Valsa e Diálogo, o compositor recorre a estruturas que norteiam
os princípios europeus que, por sua vez, retratam uma concepção de progresso, de
Ênio Squeff, ao comentar o fascínio dos brasileiros pela Europa, afirma que “são renovação. Entretanto, a última das quatro, Galhofeira, reproduz aspectos da cultura
poucos os músicos e intelectuais que não relacionam a ‘superioridade européia’ com o brasileira, através de um modelo rítmico básico inspirado em motivos da música afro-
desenvolvimento de um modelo que deveria ser imitado também nas artes” (SQUEFF, brasileira; nacionalismo esse que, da mesma forma, reflete o esforço no sentido de
1983, p.70). De certo, a imagem admiradora aos compositores europeus extrai, de liberdade e modernização.
maneira difusa, daqueles trabalhos as características nacionais. Levy e Nepomuceno
Nepomuceno recorre às conquistas européias que por sua vez espelham
realmente não escondem a admiração aos grandes mestres da música ocidental: Bach, o mundo do progresso e das contradições que este progresso enseja. Ao
Mozart, Chopin, Beethoven, Haydn, Schumann, Wagner, Debussy, Mendelssohn. Tanto transportá-los para o Brasil, o compositor coloca-se à frente de seu mundo,
que a Sinfonia em mi menor, de Levy, a este último é dedicada. ou antes, reconhece-o num certo sentido, para além do que seu mundo
objetivamente está fazendo (SQUEFF, 1983, p. 54).
Essas aplicações de brasilidade e de europeísmo refletem, paradoxalmente, duas
tendências ideárias diferentes, que dominaram o país com a deflagração do movimento Também as principais obras de Alexandre Levy voltadas para a orientação nacionalista
pela abolição da escravatura e, principalmente, com o advento da República. Uma surgem justamente em meio ao tumultuado período político-social do país, próximo
tendência, de caráter europeísta, advém do próprio desenvolvimento incipiente ao século XX: o Tango Brasileiro, para piano, e a peça orquestral Suíte Brasileira; ambos
do sistema industrial, com todas as suas implicações. O mundo que o industrialismo compostos em 1890.
representa é atravessado indissoluvelmente pelo desejo de independência, de inovação,
de prosperidade. E essa “verdadeira obsessão pelo progresso e por uma modernização A Suíte Brasileira é dividida em quatro partes: I. Prelúdio, II. Dança Rústica (Canção Triste),
civilizatória” (TRAVASSOS, 2000, p. 34), no Brasil, tinha como referencial os padrões dados III. À Beira do Regato e IV. Samba. Nela o compositor aproveita algumas melodias do
pela Europa Ocidental. folclore nacional. O Prelúdio é baseado na canção popular Vem cá, Bitu, a mesma usada
nas Variações sobre um Tema Brasileiro; e o Samba é construído sobre o tema do Balaio,
A outra tendência, de maneira oposta, inclina-se para a valorização do tema brasileiro, com o meu bem, balaio e da chula paulista Se eu te amei. Além do tratamento melódico de
objetivo de unificação nacional e afirmação de uma identidade. Daí, na elaboração artística, origem popular, o Samba explora recursos rítmicos diretamente tomados das danças
o uso de uma linguagem que assegure ao elemento vernáculo uma feição que o caracterize afro-brasileiras, com o uso abundante das síncopes.
e o diferencie das “nações civilizadas”. No entanto, esse mesmo processo de nacionalização e
construção de identidade é igualmente alimentado pela aspiração de liberdade e pelo ideal de Rodrigues Barbosa, conhecido crítico musical do Jornal do Comércio, publica um artigo
progresso, ou seja, ser nacional significa ser moderno, uma vez que o assunto nacional já era um dia após aquele concerto de estréia:
proclamado categoricamente no Velho Continente. Dessa forma, o nacionalismo brasileiro se
aprofundava segundo um desejo de modernização, na medida em que recorria à imagem e O autor do Samba é um músico de muito talento e estabelecido na cidade
semelhança dos países desenvolvidos. Mário de Andrade resume a questão da seguinte maneira: de S. Paulo. O tema ou antes os temas escolhidos para uma peça que tem
por título o Samba deviam ser por demais chulos, e toda a dificuldade estava
em tornar digno e aceitável um gênero de música que, despido das galas da
Assim, se por um lado [a música brasileira] apresenta manifestações evolutivas composição, seria intolerável num concerto como o de ontem.
idênticas às da música dos países europeus, e por esta pode ser compreendida
e explicada, em vários casos teve que forçar a sua marcha para se identificar Alexandre Levy tratou o tema com uma exuberância extraordinária.
ao movimento musical do mundo ou se dar significação mais funcional Modelou-o até a saciedade, contrapontou-o complicadamente, deu-lhe uma
(ANDRADE, 1965, p. 15). instrumentação vigorosa, cintilante, tomando por modelo as formas do grande
Massenet, e com tudo isto fez não um número de suíte, mas uma fantasia que
talvez peque por prolixidade (BARBOSA, 1890).

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As considerações que Rodrigues Barbosa deixa entrever nas linhas de seu discurso são a inventiva melódica do autor. Inequívoca a atmosfera brasileira da obra, e a
bastante sensíveis às tradições estético-musicais da época. O compositor é exaltado espontaneidade com que se encadeiam os episódios ou, por curtos momentos,
a naturalidade com que se combinam as vozes. Indisfarçável, em suma, o apuro
exatamente por ter submetido os temas (“chulos”) e o gênero popular brasileiro que
da fatura do Tango Brasileiro, que apresenta o nosso nacionalismo musical do
dá nome ao título da referida obra a um tratamento musical europeizado, dentro das século XIX, tanto como o Tango de Albeniz representa a primeira fase, então
“galas da composição”. As palavras do autor retratam a ótica de uma grande parcela da nascente, do nacionalismo espanhol (FRANÇA, 1957, p. 79).
sociedade elitista do período, que preconceituava tudo o que pudesse conter elementos
evocativos da cultura do povo, especialmente dos negros, recém-libertados.

A propósito da discriminação das práticas musicais baseadas em material retirado da


cultura popular, principalmente dos negros, consta que o polemista Oscar Guanabarino
publicou no jornal O Paiz, em 1899, uma crítica ao último concerto do ano, de obras de
Alberto Nepomuceno, na qual se referiu ao compositor como “o autor da Pagodeira”, em
alusão à Galhofeira (GUANABARINO citado por PEREIRA, 1995, p. 166). Essa provocação do
crítico se repetiria em relação a outras criações do autor. Dentre elas as peças sinfônicas
Intermédio e Batuque, da Série Brasileira, e o prelúdio da comédia lírica inacabada O
Garatuja, em que figuram elementos que trazem à memória os maxixes e lundus da
época (PEREIRA, 1995, p. 144-145, p. 154-156 e p. 201-202).

O interesse na história dos negros de um país recentemente republicano, segundo


Ênio Squeff, “seria numa dimensão ou numa complexidade que o Brasil da época não
tinha condições de aceitar sem protestos violentos”. De acordo com o autor, a reação
que Oscar Guanabarino teve ao nacionalismo musical se explica sob vários aspectos.
Um deles se relaciona à evocação gestual dos negros. O que o crítico via, por exemplo,
na construção da Galhofeira não era simplesmente a tradução do elemento popular
para a música de concerto, mas a sublimação da gestualidade escrava e com ela tudo
o que fica subentendido. O gesto, que origina o ritmo, está presente nas danças dos
escravos, manifestando sua sexualidade de forma mais aberta – a “indecência do
gesto”, como se referiam alguns. Antes, a evidência do gesto mostra que o negro saíra Fig. 3 - Alexandre Levy - Tango Brasileiro - c. 19-29
do anonimato e passara a fixar suas manifestações: “[...] é no gesto, é na manifestação
física de sua humanidade que ele impõe sua cultura”. E conclui: “[...] é o papel produtivo
qualitativamente transformado que dá ao negro um ‘status’ que até então não possuía” Observam-se, entretanto, aquelas mesmas diferenças estéticas e ideológicas nas
(SQUEFF, 1983, p. 43-52). construções musicais do Tango Brasileiro de Levy. Apesar da temática brasileira, centrada
no ritmo da música urbana carioca, permeiam traços melódicos e harmônicos europeus.
Mais de meio século depois da crítica de Barbosa, Nogueira França se referira aos textos E mesmo a rítmica nacional, que assegura a essa peça sua classificação como nacionalista,
musicais empregados por Levy de uma maneira positiva, enfatizando a brasilidade é também cercada de contradições, pois se constitui resultado de transformações e
espontânea de outra obra: confluências com outros ritmos brasileiros e estrangeiros aqui projetados.

Não assim o Tango Brasileiro, para piano. De uma graça penetrante, o Tango Retomando a atenção para os primeiros trabalhos pianísticos de Alexandre Levy, escritos
Brasileiro é uma breve página, de inteira eficácia, onde o desenho da mão direita por volta dos anos iniciais da década de 1880, encontram-se Fantasias sobre motivos do
repousa sobre a base rítmica, quase uniforme, do movimento coreográfico.
Toda a parte central, em menor, dá ensejo a que se expanda generosamente,
Guarani e da Fosca (op. 2 e op. 3, para dois pianos e piano solo, respectivamente), em
homenagem a Carlos Gomes, então amigo da família, além de várias outras peças com

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títulos em francês: Impromptu-Caprice; Romance sans Paroles, À la Hongroise e Pensée aos vinte e sete anos de idade. Sabe-se que dois dias antes lhe pediram que executasse
Fugitive (da série Trois Improvisations); Valse-Caprice; Tarantelle (para piano a quatro um novo Trio que acabara de compor, mas recusara com as seguintes palavras “deixemos
mãos) e outras. Entre suas últimas composições, figura a coleção de oito pequenas peças, isso para outra ocasião; tempo não falta” (PORTO-ALEGRE, 1892, p. 59).
para piano, intitulada Schumannianas op. 16, datada de 1891. Acentua-se em todos esses
trabalhos a reprodução de fórmulas européias, em oposição ao uso de material musical
de inspiração vernácula. A esse respeito, Bruno Kiefer se expressa da seguinte maneira: Alberto Nepomuceno teria mais tempo para fazer prosperar sua própria campanha em
benefício de uma nacionalização na música, postura que sustentaria até o final de seus
cinqüenta e seis anos de existência, deixando traços indeléveis na história da criação
A música de Alexandre Levy não é, a despeito de suas intenções nacionalistas, musical brasileira.
homogeneamente brasileira. E neste aspecto ele reflete bem as dificuldades
inerentes ao processo de nacionalização. A obra do compositor paulista ainda é
predominantemente européia, sobretudo germânica. Não seria difícil apontar Fez-se ainda notar pelo seu empenho em divulgar a obra de compositores brasileiros.
climas schumannianos, mendelssohnianos e outros. Bastaria, aliás, observar
certos títulos para se certificar disso. Apenas alguns exemplos: Schummanianas
Por volta da segunda metade da década de 1890, interessa-se pela reconstrução de um
[sic], para piano (compostas no fim de sua vida); Trois morceaux, para piano passado musical do Brasil colonial, iniciando a restauração e revisão das obras do padre
(compostos em Paris); Hymne au 14 Juillet, para orquestra (composto em 1889) José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Incentivou ainda talentos da música nacional,
(KIEFER, 1997, p. 109). encorajando Catulo da Paixão Cearense a realizar um histórico concerto no Instituto
Nacional de Música, em 1908 – o primeiro recital de violão numa sala nobre. Este ato
provocou intensos protestos do corpo docente e de parte de uma sociedade reservada,
Na verdade, não há grandes diferenças entre o Levy das Variações sobre um Tema Brasileiro com repercussões na imprensa, pois consideravam o instrumento grosseiro, impróprio
e o das Schumannianas. O primeiro, entretanto, será apontado como nacionalista para a educação musical da época (CORRÊA, 1985, p. 10-11).
porque faz uso de um tema folclórico conhecido no Brasil, e o outro, internacionalista,
por evidenciar de antemão sua inspiração no compositor europeu. Ambas as peças, no Interessou-se também pelo Tratado de Harmonia de Schoenberg (CORRÊA, 1985, p. 11).
entanto, são semelhantes entre si no que diz respeito ao tratamento musical. Porém, Ao traduzir o trabalho do compositor alemão, em 1916, e tentar implantá-lo no Instituto
nas Schumaniannas não há necessariamente um engajamento em formas de expressão Nacional de Música – em vão, pois encontra forte resistência do professorado do
que reflitam diretamente a realidade do povo. Já nas Variações, a canção folclórica é o estabelecimento –, estimula as novas gerações de estudantes às modernas aplicações
princípio básico de sua adesão à música nacionalista e também da aproximação com a musicais do mundo ocidental.
cultura popular, postura sustentada pelos nacionalistas brasileiros (e de outras nações,
de modo geral). Em 1902, aos trinta e oito anos de idade, assume a direção do Instituto Nacional de
Música, após a morte do então diretor Leopoldo Miguez (CORRÊA, 1985, p. 10). Durou no
cargo, contudo, menos de um ano, demitindo-se por não admitir certas interferências
A questão do nacionalismo na linguagem musical configurava-se como uma orientação
governamentais destinadas a satisfazer os benefícios das autoridades, como a colocação
genérica mundial. Dessa forma, “ser nacionalista” colocava os compositores brasileiros
de empregados e professores nem sempre aptos, protegidos por interesses políticos
atualizados no cenário internacional, segundo uma tendência de vanguarda.
(PEREIRA, 1995, p. 177-187). Em 1906, após o pedido de exoneração de Henrique Oswald,
reassume a direção da instituição, função que ocupará por um decênio (CORRÊA, 1985,
É nesse contexto que o nacionalismo musical brasileiro cresce no sentido de indepen-
p. 10).
dência cultural, em que a expressão nacional busca a afirmação de uma identidade. Ao
mesmo tempo, esse nacionalismo vai se expressar segundo uma linguagem aceita como
Conforme Pereira (1995, p. 227-234), nesse período, empreende a reforma do Hino
tal nos países desenvolvidos. A modernidade musical do País só poderia ser atingida
Nacional Brasileiro, regularizando a instrumentação, transpondo a tonalidade de Si b M
mediante a adaptação da matéria-prima em expressão que pudesse adquirir reconheci-
para Fá M e simplificando a linha melódica para que esta pudesse ser mais facilmente
mento no exterior.
entoada. Quanto à poesia, Nepomuceno teria pronunciado o exemplo ideológico:
Alexandre Levy teve morte inesperada e prematura, em São Paulo, a 17 de janeiro de 1892,

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...deve ser, não somente inspirada no alto sentimento de amor da Pátria, quase todos chegam ao nacional”. E Levy e Nepomuceno, talvez mais impetuosamente
mas também conter idéias elevadas sobre sua influência e ação moral que seus contemporâneos brasileiros, desse modo procederam.
no exterior, e emitir conceitos sobre as aspirações do Povo e da Nação,
glorificando ao mesmo tempo o Trabalho dignificador, a Terra nas diversas
manifestações de sua beleza natural e o Povo no seu civismo (NEPOMUCENO
REFERÊNCIAS
apud PEREIRA, 1995, p. 235).

Assim, substitui os antigos versos alusivos ao regime monárquico pela nova letra de ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. São Paulo: Martins, 1965 (escrito em 1939).
Joaquim Osório Duque-Estrada, sendo esta oficializada pelo Governo Federal somente
em 1922, em decorrência dos festejos do Centenário da Independência (PEREIRA, 1995, BARBOSA, Rodrigues. Jornal do comércio, Rio de janeiro, 21 jul. 1890.
p. 243).
BITTENCOURT, Gastão de. Conferência realizada na residência da Sra. Dona Emma Romero Reys, a 1 de
O propósito de Nepomuceno com essas transformações era promover o acesso amplo e março de 1936. In: Temas de música brasileira. Rio de Janeiro: A Noite, s. d.
fácil do Hino Nacional para toda gente nas escolas, nos quartéis, nos festejos nacionais,
nos encontros diplomáticos e nos momentos cívicos, incentivando, assim, o povo
brasileiro à consciência de sua própria identidade, através do canto comum de um hino CORRÊA, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno: catálogo geral. Rio de Janeiro: FUNARTE / Instituto Nacional
que lhe falasse sobre sua Pátria.6 Além disso, pretendia que o país se tornasse aceito – Projeto Memória Musical Brasileira, 1985.
como pertencente ao “mundo civilizado”, por meio de “sua influência e ação moral no
exterior”. Pereira acrescenta:
CORRÊA DE AZEVEDO, Luiz Heitor. 150 anos de música no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
A preocupação de Nepomuceno com relação à necessidade de o Hino Nacional
possuir uma letra adequada e conhecida, para ser cantada por todos, vinha
somar-se aos seus esforços no sentido de construir um patrimônio vocal CROWL, Harry L. Alexandre Levy e César Guerra-Peixe: dois momentos da criação musical erudita brasileira.
nacional através do canto em português. Era, mais uma vez, a afirmação da In: Alexandre Levy & Guerra-Peixe. Campos dos Goytacazes: Centro Cultura Musical de Campos/RJ, 1996.
identidade nacional que estava em jogo. Desta feita, porém, não se tratava Compact disc.
somente de compor canções em português para serem executadas pelos
artistas, mas de dotar o povo brasileiro de uma canção patriótica e difundir FRANÇA, Eurico Nogueira. Música do Brasil. Rio de janeiro: MEC / Instituto Nacional do Livro, 1957.
sua execução por todo o país (PEREIRA, 1995, p. 233-234). 7
FREIRE, Vanda Lima Bellard. Carlos Gomes, um brasileiro. Rio de Janeiro, 1996 (mímeo).
O nacionalismo de Levy e Nepomuceno transita entre as escolas européias e os modelos
nacionais. Para eles, fazia-se necessária a criação de uma música de concerto que se GUANABARINO, Oscar. Artes e artistas: Alberto Nepomuceno. In: O paiz, Rio de Janeiro, 5 ago. 1895a.
mostrasse brasileira. Para atingir essa realização, uniam seus conhecimentos obtidos
em academias a elementos retirados de expressões musicais nacionais que refletissem _________ Teatros e música – concerto Alberto Nepomuceno. In: Jornal do comércio, Rio de
a cultura do povo. Ao mesmo tempo em que se ligavam aos assuntos estéticos de
outras nações, preocupavam-se, incessantemente, com a afirmação de uma arte que Janeiro, 5 ago. 1895b.
caracterizasse a arte brasileira. No dizer de Squeff (1983, p. 39), “não é por ignorar as
escolas que surgem os nacionalistas, mas por conhecerem o outro lado da moeda que KIEFER, Bruno. História da música brasileira: dos primórdios ao início do século XX. 4. ed. Porto Alegre:
Movimento, 1997.
6 Vale aqui discutir a legitimidade dessa proposta de Nepomuceno. Sua intenção de uniformizar a
multiplicidade social do país através de uma obra que pudesse ser cantada por todos, ou seja, por qualquer LAMAS, Dulce Martins. Nepomuceno: sua posição nacionalista na música brasileira. In: Revista brasileira de
pessoa, de certa forma não foi tão bem alcançada. Afinal, a linguagem poética e mesmo a construção folclore, ano IV, n. 8/10, jan./dez. Rio de Janeiro, 1964.
melódica do Hino continuam complexas.
7 Grifos nossos.

92 93
A MÚSICA POPULAR BRASI-
PEREIRA, Avelino. Música, sociedade e política: Alberto Nepomuceno e a república musical do Rio de Janeiro.
Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de janeiro, Rio de Janeiro, 1995.

PORTO-ALEGRE, Ignacio. Alexandre Levy. In: Gazeta musical, ano II, n. 4. Rio de Janeiro, 17 fev. 1892.
LEIRA ELETRÔNICA DE CÉSAR
CAMARGO MARIANO E PRISMA:
RESENDE, Carlos Penteado de. Alexandre Levy na Europa em 1887. In: O Estado de São

Paulo. São Paulo, 19 jan. 1946.

SEKEFF, Maria de Lourdes. A Alma Musical Brasileira. In: Brasiliana (revista da Academia Brasileira de
Música), n. 16. Rio de Janeiro, jan. 2004.
HIBRIDISMO OU TRADIÇÃO?
SQUEFF, Ênio; WISNIK, José Miguel. O nacional e o popular na cultura brasileira - música. São Paulo:
Brasiliense, 1983. Alexei Figueiredo Michailowsky
TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(PPGM-UNIRIO)
VERZONI, Marcelo. Quatro peças líricas op. 13, para piano solo, de Alberto Nepomuceno: Anelo, Valsa, Diálogo
e Galhofeira. Rio de Janeiro, 1998 (artigo inédito).
Resumo Abstract

VOLPE, Maria Alice. Compositores românticos brasileiros: estudos na Europa. In: Revista brasileira de música, Em 1984, o tecladista César Camargo Mariano propôs In 1984, keyboardist César Camargo Mariano
a inserção de instrumentos musicais eletrônicos proposed the adoption of MIDIfied electronic musical
n. 21. Rio de Janeiro: EM/UFRJ, 1994-95.
interligados via MIDI num repertório de MPB instruments in a repertoire of Brazilian popular music
instrumental com o Projeto Prisma, que estendeu- with the Prisma project, which lasted for two years
se por trinta meses compreendendo dois LPs e encompassing two albums and two concert tours.
duas turnês nacionais. Seu aspecto principal era a Its main feature were new mixes of distinctively
mistura de elementos brasileiros com estéticas pop Brazilian elements with global electronica and new
globais eletrônicas, sobretudo pelo uso de novas timbral resources. Nevertheless, the experiences
timbragens. Todavia, o contato com as máquinas with new tools pointed towards new directions,
levou os participantes a trilhar novos caminhos, o thus one can ask if that particular concoction and its
que permite indagar se essas misturas e produtos products would fit within the borders of a previously
estariam em um território previamente constituído constituted territory, or place themselves in an
ou numa zona intermediária caracterizada pela intermediate zone defined by multiplicity? This last
multiplicidade. Este último caso corresponde ao case leads us to the concept of cultural hybridization.
conceito de produto cultural híbrido. Considerando Since there are only stable cultural traditions,
que existem apenas tradições culturais estáveis e não this paper proposes a new concept based on an
culturas puras, este trabalho propõe um conceito de intersection of texts, investigating the hybrid state in
hibridismo a partir da interseção de diversos textos e the music of Prisma.
investiga a existência de um possível estado híbrido
na música do Prisma. Keywords: Brazilian popular music, Popular
electronic music, Musical hybridization, Musical
Palavras-chave: Música popular brasileira, Música tradition.
popular eletrônica, Hibridismos musicais, Tradição
musical

94
O Projeto Prisma algumas dessas novidades simplesmente não conseguem eliminar a alteridade em seu
interior. Revelam seus elementos formativos na íntegra (ou quase) e impossibilitam
qualquer classificação exata de acordo com parâmetros pré-existentes sem esbarrar
Em 1984 a empresa Alpargatas ofereceu a César Camargo Mariano a oportunidade em exceções numerosas e significativas. Diante dessas situações foi proposta uma nova
de realizar uma temporada de shows para divulgar o lançamento da nova coleção de categoria, a dos “híbridos”, englobando exatamente os seres e coisas situados em zonas
jeans de sua marca Top Plus e o músico paulistano concebeu o espetáculo Prisma1, com de fronteira. Ela vem aparecendo com particular frequência nos universos cultural e
o intuito de realizar uma experiência de criação e performance com um sistema de artístico, onde as dinâmicas incessantes e velozes de cruzamentos apresentam contornos
sintetizadores, instrumentos musicais eletrônicos e computadores interligados pelas particulares e nem sempre podem ser caracterizadas com exatidão. Os principais textos
interfaces MIDI2. Mariano já vinha realizando experiências com esses instrumentos em antropológicos sobre esse tema – alguns redigidos por autores originários de países
seu estúdio caseiro, inclusive com um grupo formado, e podia oferecer de imediato em desenvolvimento, como o argentino Néstor García Canclini (1995, 2005), o indiano
uma proposta artística desenvolvida em torno das tecnologias musicais eletrônicas. A Homi Bhabha (2004) e o libanês Marwan Kraidy (2005), destacando-se ainda a obra
montagem foi realizada no Teatro Bandeirantes de São Paulo, inicialmente durante um do sueco Ulf Hannerz (1996) – enfatizam uma ideia de cultura como parte integrante
final de semana , mas o sucesso de público e crítica acabou garantindo uma extensão do patrimônio dos Estados nacionais e investigam suas relações com os fenômenos
por mais cinco datas e atraindo um novo patrocinador – a indústria de computadores de extensão global, o que nos dias de hoje pode ser bastante criticável em razão do
SID, pertencente ao conglomerado Machline – o que rendeu a produção dos LPs Prisma fortalecimento das movimentações culturais transnacionais. Na música popular, John
(1985) e Ponte das estrelas (1986) e a realização de duas turnês por todo o Brasil. Storm Roberts intensificou a discussão sobre os diálogos entre repertórios associados
a diferentes grupos de pessoas e os respectivos produtos com The Latin Tinge (1979),
Desde o início de suas atividades, o Prisma deixava clara sua pretensão de revitalizar um estudo sobre a presença e a influência da música latino-americana no caldeirão
a música popular brasileira através do emprego das novas tecnologias eletrônicas. Em cultural dos Estados Unidos. Quanto às misturas sonoras do Brasil, destacam-se os
primeiro lugar, seus integrantes desejavam introduzir timbres sintetizados em arranjos textos de Bryan McCann (2004), Sean Stroud (2008), Frederick Moehn (2012) e Herom
para composições inéditas baseadas na MPB instrumental e também para versões Vargas (2007), todos realizando estudos de caso relativos à consolidação do que hoje
de peças escritas por outros autores. Entretanto, o repertório inicial foi baseado em denominamos como MPB através de diálogos com a música do outro e não sob uma
um show de concepção multimídia (trazendo elementos como efeitos visuais e uma perspectiva de cultura nacional pura3. Hermano Vianna (1995) e Carlos Sandroni (2001),
performance de dança de rua) e acabou incluindo técnicas e estéticas de criação e por sua vez, discutem questões relativas ao samba enquanto manifestação musical
performance musical derivadas dos meios eletrônicos utilizados. Havia entre a equipe brasileira por excelência e criticam a tão reiterada ideia de pureza da legítima cultura
um deslumbramento com as novas possibilidades, ocasionado principalmente pela pátria, influenciada por Gilberto Freyre e pelo mito das três raças.
quantidade de novas tecnologias apresentadas pela indústria de instrumentos musicais
A adoção dos instrumentos musicais eletrônicos e tecnologias MIDI no Brasil dos anos
no início dos anos 80 e pela redução de preço aplicada a cada novo lançamento. Então
80 foi caracterizada por questões absolutamente particulares. Uma rígida política de
o termo “mistura” foi adotado com frequência para descrever a música do Prisma: os
protecionismo alfandegário dificultava (se não inviabilizava) a importação legal dos
participantes do projeto partiriam dessa música brasileira instrumental e a eletrônica
instrumentos e equipamentos – sendo que a produção nacional era praticamente
seria seu veículo em busca de novos caminhos e possibilidades sonoras.
nenhuma –, e os sons eletrônicos influenciados principalmente pela música pop
Quando tomamos conhecimento de uma nova fusão de elementos musicais os resultados internacional e pelas então nascentes tendências de música eletrônica dançante – mas
alcançados sempre despertam curiosidade, não apenas por suas particularidades mas também pela música eletroacústica de concerto, já que as ferramentas e tecnologias
também em razão das reações provocadas por ela. Nesse instante tendemos a inventar utilizadas eram as mesmas e houve uma origem comum (HUGILL, 2008, p. 164-5) –
conceitos para descrever os produtos de cada mistura e gêneros para classificá-los, mas enfrentaram uma oposição pretensamente nacionalista pela qual representariam mais
uma ameaça à música brasileira e estavam associados a uma mentalidade consumista
1 Nome baseado na imagem do “espectro produzido pela luz branca (simbolizando o cérebro de tecnologias desenvolvidas e comercializadas por grandes empresas transnacionais
humano), penetrando no cristal (os teclados e os equipamentos), gerando as sete cores do arco-íris
(as sete notas musicais)” (MARIANO, 2011, p. 339) sediadas no exterior. Mesmo assim os governantes não conseguiram impedir totalmente
2 Sigla para Musical Instruments Digital Interface. O padrão MIDI foi convencionado por um
grupo de fabricantes de instrumentos musicais eletrônicos por volta de 1982 e lançado comercialmente 3 Herom Vargas trata diretamente dos hibridismos e seu texto é declaradamente
no ano seguinte. influenciado por Néstor Garcia Canclini.

96 97
a vinda dos sintetizadores, as tentativas de produção em massa de sintetizadores de ponte, posto que esta normalmente une dois pontos e a quantidade de tradições em
brasileiros não obtiveram sucesso e os sons eletrônicos se integraram à música contato pode ser maior. Essa mescla pode resultar em produtos caracterizados sobretudo
brasileira. O Prisma representou uma das primeiras e mais intensivas experiências nesse pela multiplicidade de referenciais, determinantes e configurações e pela incapacidade
sentido, e diante das suas propostas (principalmente da ênfase nos diálogos com uma de identificação absoluta com qualquer tradição cultural ou referencial teórico imediato
manifestação musical já existente em sua receita sonora) pretendo aqui investigar se sua de natureza histórica ou estética, configurando estruturas ou práticas necessariamente
música representa efetivamente um híbrido ou se as tecnologias foram simplesmente inéditas. Eles se apresentam como colchas de retalhos dispostos de forma desordenada
transportadas para um universo estético previamente existente sem transformá-lo mas perceptíveis um a um (vide CANCLINI, 2005, p. 31).
verdadeiramente e gerar uma nova estética. Para tal, busco um conceito para “música
híbrida” e “hibridismo musical” baseado na interseção das obras supracitadas e em Quando esses produtos surgem, podem trazer perspectivas de estabilização para
seguida o transporto para o contexto específico do Prisma. configurações outrora impensáveis. Nenhum dos elementos encontrados em sua
constituição pode ser descartado em favor dos outros e não há uma hierarquia
necessária entre eles. Qualquer tentativa de enquadramento em uma classificação
já conhecida falhará em razão das significativas exceções decorrentes da alteridade
Cultura e hibridismos revelada por sua constituição. Por isso, podemos definir esses produtos como híbridos
e qualquer experiência ou ação de cruzamento resultando em seu surgimento pode ser
As culturas humanas são dinâmicas por natureza e estão sempre em transformação. denominada como hibridismo.
Segundo Ulf Hannerz, “cultura é algo que as pessoas herdam, usam, transformam,
adicionam e transmitem” (HANNERZ, 1997, p. 11). Ela representa então a memória do A utilização de “mistura” como sinônimo de “hibridismo” é corriqueira mas ao mesmo
grupo ao qual pertence, e uma das principais finalidades do seu estudo é a compreensão tempo em que o híbrido sempre resulta de uma mistura, a recíproca não é verdadeira. A
da sua trajetória ao longo do tempo com todo o jogo de forças atuantes em prol das diferença entre os elementos envolvidos é imprescindível e seu encontro deve originar
transformações e das resistências. O reconhecimento e o estudo das culturas decorrem instabilidades e tensões cujo apaziguamento nunca é imediato. Muitas vezes, uma
da consciência de se fazer parte de um grupo específico, com características particulares experiência inicialmente descrita como hibridismo vai sendo repetida constantemente
e uma produção reconhecidamente própria, e da percepção da alteridade entre o que é sem grandes alterações, estabilizando-se e transformando-se em parte de uma tradição
“seu” e o que é “do outro”. unificada. Nesse momento a alteridade e o estado híbrido desaparecem. Um cruzamento
híbrido jamais indica uma solução única e natural, e não há como utilizá-lo como
A questão cultural sempre desafiou fronteiras geográficas e relações de poder: qualquer referência para prever o futuro enquanto suas repetições não se revelam constantes e
contato com o outro pode criar novas oportunidades de transmissão e transformação duradouras.
de elementos culturais. Há quem insista numa ideia de pureza étnica ou cultural mas
existem apenas tradições consolidadas e estáveis, sempre resultantes de supressões
de diferenças efetuadas por meio da força ou de um pacto, mas nunca totalmente
imunes aos cruzamentos e diálogos nascidos inclusive como reações a essas manobras. A MPB e a música eletrônica na música do Prisma
Aliás, nenhum grupo está livre de divisões e diferenças internas e nem todos os seus
A música do Prisma nasceu como parte de uma obra multimídia e condicionou-se às
membros podem reconhecer certos valores como seus. Verificamos com isso que as
imagens em alguns momentos, operando como uma trilha sonora. Isso representou
tradições permanecem pela repetição consistente de suas práticas e conteúdos no seio
uma oportunidade justificável para explorar a utilização dos ruídos não-temperados
da coletividade e pela sua transmissão sem interrupções de geração a geração.
e do áudio como materiais composicionais. Ao mesmo tempo o domínio estético
Para Néstor Garcia Canclini, o diálogo com o outro pode ser descrito como a construção desse repertório estava determinado desde o primeiro instante por consenso entre os
de uma ponte sobre um precipício. Tanto aqueles que participam dessa obra quanto participantes: era a “música brasileira instrumental”, descrita por Acácio Piedade como
os que cruzam a ponte posteriormente estão ocupando uma “zona inter” caracterizada um gênero autônomo caracterizado por uma fricção de musicalidades com o jazz: ao
pelo descontrole e pela multiplicidade. Não temos aí o encontro de duas tradições mesmo tempo em que há um idioma musical baseado nos improvisos e na valorização
estabilizadas mas o cruzamento de muitas vias não necessariamente retas – o que faz do instrumentista, encontramos um discurso nacionalista e uma pretensa expressão
com que uma imagem de encruzilhada possa talvez ser mais adequada ao caso do que a de brasilidade na música a partir de algumas tópicas: o brejeiro, estilo no qual as

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formas estão sempre passíveis de transformação por meio de subversões, brincadeiras, eletrônicos. O que prevalece para definir uma música como “eletrônica” é a influência das
desafios e exibições deliberadas de virtuosismo e audácia individuais), a época-de-ouro, possibilidades exclusivamente oferecidas pelos meios de geração do som eletrônicos
caracterizada pela inclusão de floreios melódicos das antigas modinhas, valsas, polcas e na sonoridade como um todo. Não basta a mera utilização de sintetizadores, samplers e
serestas brasileiras, evocando a ideia de um Brasil antigo carregado de lirismo, singeleza computadores: é necessário explorar seus potenciais estéticos.
e simplicidade, e a nordestina, trazendo o empréstimo de formas melódicas modais do
repertório folclórico do Nordeste para evocar uma ideia de “Brasil profundo” (PIEDADE, Essa discussão se intensificou na medida em que os instrumentos eletrônicos começaram
2011). No entanto, a produção musical brasileira desenvolvida a partir dos anos 60 a ser trazidos para tradições musicais populares originalmente desenvolvidas sem sua
está conectada a uma linha evolutiva remontando pelo menos aos primeiros dias da presença. Isso se deveu a diversos fatores, mas o principal teria sido a iniciativa da
história fonográfica no país. A evolução histórica de uma vertente cantada e de uma indústria em deixar de produzir instrumentos conforme as demandas individuais de cada
vertente instrumental na MPB parece ter ocorrido de maneira homogênea, com muitas cliente para investir em produtos padronizados, portáteis, com interfaces inspiradas em
interseções e grande integração e cooperação entre os praticantes e entusiastas. Diante algo já familiar a uma grande massa de músicos, fabricados em grande escala e com
disso percebemos que esse repertório instrumental (bem como a música do Prisma) um custo reduzido (THEBÉRGE, 1997, p. 55). Essas diretrizes levaram a uma rápida e
integra a música popular brasileira, tratada aqui não como um gênero mas como uma brutal democratização das ferramentas musicais eletrônicas e ao desenvolvimento de
tradição pretensamente nacional por excelência onde, em vez da unidade idealizada, há uma relação onde o cliente não deve necessariamente condicionar-se aos recursos
uma multiplicidade de elementos musicais oriundos dos mais diversos gêneros e lugares disponibilizados por cada produto, podendo subverter suas finalidades formulando
com um significativo histórico de cruzamentos e experiências de canibalismo cultural. A novas práticas e propostas estéticas4. A consolidação de uma nova prática influenciará o
capacidade de absorção e estabilização de novas propostas no interior desse território desenvolvimento de novos produtos pelos fabricantes.
estético revelou-se grande ao longo de sua história, o que foi ainda mais evidenciado Os responsáveis pelas tentativas de integração dos sintetizadores em em tradições
durante os anos 60 com a definitiva integração do Brasil à música pop global através da originalmente acústicas intencionavam acima de tudo explorar novos timbres. Um
bossa nova, da jovem guarda e da tropicália. Esse momento foi marcado pela resistência mesmo modelo de instrumento podia dar acesso a sons absolutamente inéditos e ao
de setores nacionalistas e conservadores em diversas situações, mas ela não foi suficiente mesmo tempo disponibilizar ao seu usuário os sons de toda uma banda ou orquestra
para deixar tais influências fora do alcance dos brasileiros e impedir seu contágio pela sob a forma de programações realizadas pela própria fábrica. Consequentemente as
música pop globalizada. especificidades técnicas dos diferentes tipos de máquinas e o desafio proposto por sua
O termo “música eletrônica” também pode ser caracterizado como “guarda-chuva”, utilização deixaram de trazer consequências estéticas significativas. Robert A. DeVoe
englobando toda e qualquer manifestação musical derivada do uso de ferramentas constatava já em 1977 os riscos de redução da proposta da electronmusic, outrora
eletrônicas. Ele se refere hoje tanto à música eletrônica, eletroacústica e concreta de aplicada a diversos domínios e conteúdos, à mera questão da timbragem:
concerto quanto aos múltiplos e diferentes gêneros associados à música eletrônica
dançante e às outras músicas populares desenvolvidas com meios eletrônicos mas não-
dançantes. Na literatura, é possível encontrar algumas propostas de definição para ele. Nos anos 70, eu percebo uma tendência à codificação dos novos princípios
Simon Emmerson o associa ao universo mais amplo da música eletroacústica e fala em de forma nessa nova música que escutamos. A máquina representa menos
o sujeito e mais os meios. O formalismo clássico está voltando ao centro das
uma música escutada através de alto-falantes ou produzida com o auxílio de meios atenções sem resistências. A reinterpretação dos mestres barrocos e clássicos
eletrônicos. Mas esse conceito se estende aqui para incluir a música acústica amplificada por pretensos virtuosos eletrônicos como Walter Carlos e Tomita é sintomática
onde a amplificação altera na essência a experiência do som e representa uma parte a essa tendência. Mas além da literal ressurreição do passado eu escuto a forma
integral da performance (EMMERSON, 2007, p. XIII). Temos aí uma dúvida: toda música do passado em novas composições [...] A electronmusic passou dos filmes
amplificada eletronicamente e escutada através de alto-falantes pode ser chamada de de ficção científica para o seriado infantil Vila Sésamo e as salas de concerto.
“música eletroacústica” e toda música produzida com o auxílio de meios eletrônicos Evidências de sua aceitação como arte podem ser encontradas até mesmo
na Disneylândia![...] Se não tivermos cuidado, a electronmusic passará a se
pode ser chamada de “música eletrônica”? Penso que não: após o advento da gravação
e reprodução do som e ante a incapacidade de realização de uma performance musical 4 Um exemplo de subversão tecnológica é a utilização de toca-discos para manipular
por meios puramente acústicos em determinadas situações e locais, qualquer tipo de discos de vinil e, através da tração manual destes pelos DJs turntablists (experts na arte de tracionar
manualmente discos de vinil para extrair novos sons disso) gerar sons em vez de meramente reproduzi-
música está sujeito a receber captação ou amplificação através de equipamentos eletro- los.

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restringir simplesmente à timbragem e uma série de sintetizadores substituirá do electro-funk dançante norte-americano, sem abandonar conexões estéticas com a
a seção de violinos de uma orquestra sinfônica (DEVOE, 1977, p. 6-8).5 MPB e também com uma imagem peculiar de músico-máquina representado pelas
interações do sequenciador e do computador com o toque do instrumentista humano.
Os arranjos sobrepõem as partes sequenciadas e as execuções em tempo real, podendo
César Camargo Mariano, por sua vez, não pretendia provocar qualquer ruptura culminar com a saída das máquinas em algum instante, restando os músicos humanos
estética com o Prisma. Seu principal interesse, a incorporação de novos timbres ao com suas nuances de intensidade e andamento e suas improvisações até o momento
padrão já consolidado da MPB, não basta para a caracterização do estado híbrido. Da em que as máquinas retornem ou não. Essa dinâmica sugere um exercício de colagem
mesma forma, os poucos projetos fonográficos nacionais desenvolvidos em torno entre as partes “eletrônicas” e “não-eletrônicas” na composição dos temas, evidenciando
das tecnologias musicais eletrônicas –como os LPs Banda Elétrica (1973), de autor os contrastes entre umas e outras.
desconhecido, e Electronicus (1974), de Renato Mendes – até então restringiam-se ao
mesmo propósito. Em princípio, os arranjos das faixas de ambos esses discos mostram- A MPB sempre privilegiou as figuras tradicionais do cantor e do instrumentista. O músico
se compatíveis com formações não eletrônicas e não há uma efetiva exploração de digital descrito por Andrew Hugill, se é que existia no Brasil de 1984, representava uma
novos elementos idiomáticos tornados possíveis exclusivamente pela eletrônica. grande exceção e a participação de um engenheiro de som na composição musical
Contudo a natureza multimídia dos espetáculos do projeto Prisma, a familiaridade através de edições e processamentos de áudio não era sequer considerada pelo padrão
dos profissionais envolvidos com o sound design através da produção de jingles e o estético dominante. Mas não havia quaisquer proibições ostensivas nesse sentido: a
próprio poder sedutor das novas tecnologias acabou estimulando o grupo a realizar tradição brasileira simplesmente não pudera ainda absorver, discutir e incorporar essas
outras experiências. Ainda que em vários temas o instrumento eletrônico disponibilize novidades em razão das barreiras tecnológicas e aduaneiras e da pouca familiaridade
novos timbres para a execução de um instrumentista (geralmente tecladista), dentro dos brasileiros com os equipamentos e a nova linguagem musical.
de um sistema temperado e respeitando um pulso rítmico definido, há uns poucos
momentos em que as tecnologias utilizadas assumem um papel central na composição
e no arranjo. Temos um exemplo no início da faixa “Prisma” (tema de abertura dos Conclusão
espetáculos de 1984 e 1985, correspondente à entrada dos músicos no palco em meio a
efeitos visuais) não podemos identificar uma nota musical sequer mas apenas eventos6 Quando tratamos de música popular, não basta a identificação de uma mistura para
de altura não determinada pelo temperamento, cuja reprodução fora do ambiente definir um híbrido: ela deve provocar uma situação de instabilidade estética e assim
eletrônico é impossível. Já em “Os Breakers”, tema concebido para uma performance de a análise passa necessariamente por cada contexto específico. No caso do Prisma, há
dança de rua inspirada na cultura hip-hop, destaca-se a utilização do som reproduzido uma óbvia heterogeneidade entre as peças de seu repertório. Algumas revelam apenas
como material composicional primário: a introdução consiste na exposição repetitiva a inserção de timbres sintetizados em arranjos plenamente compatíveis com outras
de um objeto sonoro em loop e seu desenvolvimento é realizado através de edições formações instrumentais, inclusive sem a presença da eletrônica, ou espelham-se no
em fita magnética permitindo a execução do loop ao inverso e também a formulação pop eletrônico internacional. Elas não buscam promover um diálogo de tradições ou
de variações através dos cortes e emendas simulando a performance de um DJ. Esses apresentar uma inovação estética, limitando-se à reprodução respeitosa de conteúdos
exemplos identificam-se com o universo da música eletrônica, seja sob a forma da estabilizados, e por isso não caracterizam híbridos. Limitam-se a explorar o uso das novas
musique concrète, da elektronische musik, do kraut-rock do grupo alemão Kraftwerk ou tecnologias num território já demarcado.
5 “In the 70’s I see a trend toward a codification of new form principles in the new music
we are hearing. The machine is less the subject and more the means. Classical formalism creeps irresistibly Um outro grupo de temas revela experimentações mais inusitadas e radicais e promove
back on stage. The re-interpretation of the Baroque and Classic masters by such modern electronic virtuosi o encontro de tradições diferentes, revelando uma zona de indeterminação com
as Walter Carlos and Tomita is symptomatic of the trend. But beyond the literal resurrection of the past desdobramentos imprevisíveis. Essa situação expõe uma multiplicidade de materiais
I hear the form of the past in new compositions. [...] Electronmusic has graduated from science fiction
movies to Sesame Street to the concert hall. Evidence of its acceptance as art may be found in Disneyland composicionais, timbragens, sistemas de alturas e ritmos e propostas de prática e
of all places! [...] If we are not careful, electronmusic may well become simply synthesizer voicing and a row performance que vêm e vão cruzando as fronteiras sem se estabelecer em qualquer um
of synthesizers may replace the violin section of a symphony orchestra.”
6 Por “evento” entenda-se qualquer comando MIDI registrado na programação de dos territórios envolvidos. Em alguns momentos dessas obras, podemos perceber com
um sequenciador ou computador. Os “eventos” podem significar notas musicais geradas tanto por clareza a presença de elementos musicais “eletrônicos” até então inéditos na produção
sintetizadores quanto por samplers (ou seja, a reprodução de sons amostrados digitalmente é compatível musical do Brasil, bem como tentativas de reproduzir tópicos musicais habitualmente
com o termo) e variações de andamento, compasso, toque e expressão.

102 103
descritos como “tipicamente brasileiros” com os computadores e sintetizadores. Musi, no. 23, jan/jun 2011.
Observando o panorama cultural encontrado no Brasil e também as perspectivas da
música pop eletrônica no período compreendido entre 1984 e 1986, verifica-se que as ROBERTS, John Storm. The Latin Tinge: The Impact of Latin American Music in the United States. Nova Iorque:
obras produzidas a partir dessa dualidade resistem de fato a uma classificação única Oxford University Press, 1979.
imediata e não podem ser descritas somente como MPB ou como música eletrônica,
mas apenas como híbridos caracterizados por propostas novas capazes de afetar todas SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro,
as tradições culturais envolvidas. Diante disso, podemos afirmar que a música do Prisma, Jorge Zahar, 2001.
como um todo, é parcialmente híbrida e que os hibridismos eletrônicos praticados
durante o projeto significariam a efetiva proposição de uma “música popular brasileira SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
eletrônica” ou mesmo de uma “música eletrônica brasileira”.
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PIEDADE, Acácio. “Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, musicalidade e tópicas”. Per

104 105
Importância e reflexos da
banda de música no
cotidiano escolar
Eduardo Gonçalves dos Santos¹, Fredson Luiz
Monteiro² e Samanta Adriele Neiva dos Santos³
¹ Clarinetista da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (OFES) e professor de clarinete na Faculdade de
Música do Espírito Santo (FAMES).

² Mestrando em Ciências da Educação pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT),


trombonista da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (OFES), professor de trombone da Faculdade de
Música do Espírito Santo (FAMES).

³ Mestranda em execução musical pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Resumo Abstract
A banda de música é reconhecida popularmente por The Band of Music is popularly known to be a
ser uma genuína fonte de expressão cultural. Presente genuine source of cultural expression. Present in
na sociedade desde os tempos da colonização, ela the society since colonization times, it provides
propicia o resgate histórico e social e contribui para the historic and social rescue and contributes to
a formação educacional tanto dentro da escola educational formation, as much within of school
quanto nos mais diversificados grupos e instituições as in more diversified groups and institutions of
da sociedade. O presente artigo é parte integrante the society. This article is part of the monograph
da monografia apresentada como requisito parcial presented as partial requirement to obtain the title
para obtenção do título de especialista em Arte na of specialist in Art Education by CESAP/ES. This
Educação pela CESAP/ES. Este trabalho teve por study aimed to discuss the importance of the band
objetivo discutir a importância da banda de música within the school environment with the example of
dentro do ambiente escolar tomando como exemplo Banda de Música 12 de Março that throughout its
a Banda de Música 12 de Março que, ao longo de existence has become as valuable reference tool for
sua existência tornou-se referência como valoroso social inclusion. It was noted the importance of the
instrumento de inclusão social. Constatou-se a developed work in this group as “band of music” and
importância do trabalho desenvolvido nesse grupo more than that, as a true “Educational Institution”
enquanto “Banda de Música” e, mais do que isso, forming of musicians and good people.
como verdadeira “Instituição de Ensino” formadora
de musicistas e homens de bem. Keywords: Band of Music. School. Education. Banda
de Música 12 de Março.
Palavras-chave: Banda de Música. Escola. Educação.
Banda de Música 12 de Março
Introdução sempre presentes nos festejos religiosos, políticos, cívico-militares e em momentos de
lazer e recreação. Como escola livre, vem desempenhando junto à sociedade um papel
Durante o século XIX, a banda de música foi uma das instituições musicais mais presentes de formação musical, além de influenciar na construção do papel de cidadão dentro das
e populares no Brasil. É inequívoca sua característica de “instituição educacional informal”, comunidades.
com pedagogia própria e que tem sido responsável pela formação de inúmeros músicos,
inserindo-os no meio musical e no núcleo social, tendo como referência os aspectos
musicais e de liderança, além de ter na música, um refúgio para entrar em sintonia com
o mundo, deixando de lado o stress do dia a dia (FIGUEIREDO, 1996). Segundo o dicionário Grove (ZAHAR, 1994) a palavra “Banda” pode ter sua origem
no latim medieval bandum (“estandarte”), a bandeira sobre a qual marchavam os
Composta por crianças, jovens e adultos, pessoas de classes sociais e de realidades soldados. “Durante a Idade Média, as bandas de música de jograis, tocando charamelas
diversificadas, a banda de música funciona como elo entre seus componentes misturando e bombardas nas festas reais e nas igrejas, já representavam um primeiro estagio do
raças, e apartando diferenças. Cumpre papel importante na sociedade participando das que seriam as futuras bandas de música.” (TACUCHIAN, 2009, p. 13), e até hoje esses
festas religiosas e profanas, dos momentos cívicos e políticos, promovendo apresentações pequenos grupos estão presentes nas comunidades.
em forma de concerto sempre que é solicitada pela comunidade.

Tendo por objeto o estudo sobre a importância da banda de música no processo


educacional dentro da escola, propomos com esta pesquisa uma pequena abordagem No Brasil, a tradição das bandas chegou com a colonização portuguesa. Segundo
histórica sobre este grupo, enfocando seu valor e a sua contribuição no processo Tacuchian (2009, p.13), os primeiros grupos instrumentais foram formados por índios
de aprendizagem, mostrando os reflexos da mesma. A metodologia constituiu-se e Jesuítas com o objetivo de catequizá-los. A seguir descrevemos um trecho de um
de investigação histórico-bibliográfica da Banda 12 de Março, além de entrevistas diálogo ente o Padre Manoel Nunes, por ocasião se sua visita à cidade de São Paulo, com
parcialmente estruturadas. o Jesuíta Manuel de Paiva, em 1554:
O visitante foi recebido com um conjunto instrumental de índios e portugueses,
Promovemos um estudo de caso com a Banda 12 de Março, situada na Escola Estadual
com predominância dos últimos, com a afirmação do organizador da banda
Professor Hilton Rocha, na cidade de Belo Horizonte – MG, como fonte de pesquisa sobre de que “em breve esperamos ter uma banda completa dos autóctones, pois é
o tema abordado e como elemento gerador de questionamentos, indicando outros rara a aptidão que têm estes bárbaros.” (apud ANDRADE, H. 1998, p.33).
caminhos que viessem a corroborar com o atual estudo.

O nosso interesse pela banda vem de nossa experiência desde a adolescência,


onde demos os primeiros passos musicais e que nos influenciou em busca de novos No período de colonização, o ensino da música sempre esteve ligado à igreja ou aos
ensinamentos, do constante aperfeiçoamento técnico instrumental e do fomento de senhores que promoviam em meio aos seus escravos o cultivo musical (TINHORÃO,
questões e de estudos em torno da própria banda de música. Em função de encontrarmos 1975; KIEFER, 1977). A banda da Fazenda Santa Cruz, no Rio de Janeiro, teve grande
poucos estudos realizados sobre este tema, nos sentimos instigados em colaborar para importância no desenvolvimento do trabalho musical com os escravos, por conta
o aumento de trabalhos que se voltem para a pesquisa sobre banda de música inserida desta influência, segundo Schwarcz (1999, p. 223), “nesta fazenda os mestres jesuítas
ou não no ambiente escolar. Assim, a banda de música se constitui em fonte inesgotável iniciavam musicalmente escravos e escravas ainda adolescentes, formando corais,
de informação aguçando nossa curiosidade em levantar dados e investigarmos algumas tocando instrumento, gerando novos mestres.” Todo este investimento na formação
temáticas relacionadas à mesma. musical dos escravos tinha como intuito a sua valorização como mercadoria de troca e
muitos destes conseguiam até sua própria libertação, por meio dos serviços prestados
nas apresentações e festejos da comunidade. Simão de Vasconcelos comenta sobre as
aptidões dos negros (escravos ou não):
Breve histórico sobre banda de música
São afeiçoadíssimos à música e os que são escolhidos para cantores de
As Bandas de Música estão presentes em nosso cotidiano desde a época do Brasil colônia. igreja, prezam-se muito do ofício, e gastam os dias e as noites em aprender, e
Trazidas pelos portugueses, se adequaram aos usos e costumes do povo brasileiro, ensinar outros. Saem destros em todos os instrumentos, charamelas, flautas,

108 109
trombetas, baixões, cornetas e fagotes; com eles beneficiam em canto de Importante ressaltar que por ter como uma de suas finalidades o entretenimento e
órgão vésperas, completas, missas, procissões, tão solenes como entre os o lazer da comunidade, o repertório foi se adequando às necessidades da sociedade
portugueses (ELMIRICH, 1964). de cada época e lugar. Segundo Cajazeiras (2007, p.25), a partir do século XIX e com o
intuito de agradar o público, as bandas passaram a incorporar ao seu repertório gêneros
A partir do século XVIII, os senhores de engenho tiveram grande importância na
populares em voga como: valsas, polcas, schottisches, mazurcas e maxixes. Talvez por
formação e manutenção das bandas de música. Por se encontrarem distante dos centros
essa maneira de introduzir e transformar o repertório as bandas resistam até os dias
urbanos necessitavam de grupos musicais para animarem os festejos rurais. A banda
atuais, convidando desde o jovem até o idoso a partilhar das alegrias da música.
também servia como balança para medir força e poder entre os fazendeiros e senhores
de engenho (CAJAZEIRAS, 2007, p.25).

Foi com a chegada de D. João VI com a corte portuguesa, no Rio de Janeiro em 1808, A Banda 12 de Março
que as bandas ganharam novo fôlego e começaram a se alastrar pelo país. Dois anos
mais tarde, em 27 de março de 1810, D. João VI, assinou o decreto estabelecendo que Fundada em 1975, a Banda 12 de Março tem este nome por ter sido nesta data realizada
cada regimento militar deveria ter um corpo de músicos militares composto de 12 a a aula inaugural com os alunos que nela se faziam presentes. Localizada no bairro Vale
16 executantes. E a partir de 1814, nos quartéis, têm inicio a difusão do ensino e da do Jatobá, no município de Belo Horizonte, a Banda 12 de Março desenvolveu durante
prática de instrumentos mais modernos em substituição às antigas bandas, ou ternos e sua história um grande papel social no que tange à formação humana e capacitação
quaternos, de tocadores de charamelas, pífanos, trombetas, caixas e timbales. (SALLES, profissional, enfatizando sua atuação no processo de formação da identidade brasileira
2004, p. 223). e do público em geral. A prova deste investimento é vislumbrada em inúmeros músicos
profissionais e amadores, de destaque no Brasil e no mundo, os quais iniciaram o
Com a Abolição da Escravatura em (1888), as bandas da fazenda perderam força e espaço aprendizado ainda na adolescência, neste berço de cultura.
para as bandas dos centros urbanos. A concentração da população nas cidades fez com
que determinasse outro tipo de relação social onde foram criados espaços específicos Tocando coisas de amor por mais de três décadas, sob a batuta sempre firme do professor
para as festividades e apresentações. maestro Francisco José Pires Guimarães, a Banda 12 de Março enfeitou a cidade, produziu
músicos, formou homens. Como fruto deste trabalho, a Banda possui em sua fonografia
No século XIX, juntamente com a revolução industrial, os instrumentos musicais passaram um LP e dois CDs que resgatam os costumes mineiros.
por vários aperfeiçoamentos na sua construção, proliferaram, e foram amplamente
divulgados. Dentro deste contexto com as inovações tecnológicas e os avanços da ciência, Ao longo de sua trajetória elevou o nome de Belo Horizonte e de Minas Gerais no
as bandas também foram beneficiadas com a chegada de novos instrumentos e com a cenário artístico musical e nacional colecionando no decorrer dos anos diversos títulos
melhoria dos mesmos. A partir desta época as bandas passam a ter um instrumental e agraciamentos. Nos anos de 1985 e 1986 sagrou-se campeã do concurso promovido
fixo, bem diferente das bandas da fazenda, sendo assim constituídas: requinta como pelo Exército Brasileiro, em 1992 venceu o 1º Concurso de Bandas de Música Civis de
instrumento mais agudo, clarinetas reforçadas muitas vezes por um sax soprano, 3 a 4 Minas Gerais, através do programa “Pra ver a Banda Tocar” promovido pela Secretaria de
trompetes, algumas trompas de harmonia, os chamados “saxhorns”, 3 a 4 bombardinos e Educação e Cultura de Minas Gerais. Em 1996, foi homenageada pela com a Comenda
barítonos, sax altos e tenor, trombone, souzafones e 2 a 3 percussionistas, para o bombo, do Mérito Artístico Rômulo Paes através da Câmara Municipal de Belo Horizonte e está
caixa clara e pratos. Com esta formação a banda se difundiu como grupo instrumental classificada entre as cinco melhores bandas do país.
sólido, como difusor e mantenedor das culturas locais em vários estados brasileiros.
Durante 31 anos a Banda desenvolveu o trabalho de formação musical em parceria
Vasconcelos (1964) nos relata que a Banda do Corpo de Bombeiros, do Rio de Janeiro, foi com a escola SESI Hamleto Magnavacca, no Bairro Vale do Jatobá, formação esta que
o primeiro grupo a gravar os primeiros discos de gramofone no Brasil, por volta de 1902 tinha como público alvo estudantes daquela instituição e moradores do entorno. Em
e que a Casa Edison lista diversas chapas e cilindros registrados por ela com repertório dezembro de 2006, a pretexto de “contenção de despesas”, a escola demitiu o professor
variado. Segundo Salles (2004) as gravações para a Casa Edison deixaram um estilo e maestro fundador da Banda 12 de Março e, conseqüentemente, rompeu o vínculo de
inconfundível da banda de música popular brasileira, misturando as bandas de coreto às apoio àquele tão respeitado e reconhecido grupo musical.
bandas de circo, muito utilizadas em sua formação em programas de auditório e rádio.
Em janeiro de 2007, os trabalhos da banda passaram a ser realizados na Escola Municipal

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Professor Hilton Rocha, acrescido da confecção de instrumentos de percussão, até a para o ensino superior em todas as áreas.” Os artigos 32 e 36 da LDB de 1996 determinam:
construção da tão sonhada sede própria. Atualmente Banda 12 de Março atende sob a
O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e
denominação ASSOCIAÇÃO CULTURAL MAESTRO FRANCISCO JOSÉ PIRES GUIMARÃES, gratuito na escola pública, terá por objetivo a formação básica do cidadão,
sendo uma associação cultural sem fins lucrativos, com autonomia administrativa e mediante: [...] a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político,
financeira, regida por um estatuto social interno. da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;

Frente aos desafios desse novo milênio, a Banda 12 de Março vem proporcionando à O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo
comunidades alternativas musicais como forma de entretenimento cultural, além de e as seguintes diretrizes: I - destacará a educação tecnológica básica, a
atuar efetivamente na formação cívica, cultural e humana dos públicos atendidos em compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo
histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa
suas apresentações. como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da
cidadania;

A importância da banda de música no cotidiano escolar


Em 18 de agosto de 2008, é promulgada a lei 11769, alterando a referida lei nº 9.394/96,
A música tem se mostrado de inúmeras formas um poderoso recurso educativo a ser para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica, acrescido
utilizado no cotidiano escolar. Campos (2008) explana a respeito desta afirmação: de mais um parágrafo, ficando assim configurada:
[...] se a educação musical ainda não é prática oficializada, os grupos vocais
 § 6o A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do
e instrumentais assumem papel importante no que se refere à socialização,
componente curricular de que trata o § 2o deste artigo.” (NR)
à disciplina e à ampliação de experiências musicais. Desse modo, as bandas
e fanfarras constituem elementos importantes na forma escolar. (CAMPOS, Art. 2o  (VETADO)
2008).
Art. 3o  Os sistemas de ensino terão 3 (três) anos letivos para se adaptarem
Barbosa (1997, p.43), afirma que a tradição das bandas de música escolares surgiu nos às exigências estabelecidas nos arts. 1o e 2o desta Lei.
Estados Unidos, entre as décadas de 1910 e 1940, através da metodologia do ensino
coletivo. O impacto positivo desta pedagogia, o ensino coletivo, ficou nitidamente Apesar de termos encontrado em nossa pesquisa dados referentes à introdução da
comprovado nos concursos de bandas nacionais, onde no ano de 1923, “havia entre educação musical no Brasil, sendo as bandas de música como “escolas informais”, existe
350 a 400 bandas escolares nos EUA e 30 delas, possivelmente 1.400 estudantes, uma lacuna referente à regulamentação e implantação das bandas de música no ensino
participaram do primeiro concurso de âmbito nacional”. E no ano de 1940, houve 1.949 regular.
escolas participantes deste mesmo concurso, evolvendo 57.373 estudantes.
Inúmeros podem ser os benefícios alcançados através da inserção da banda de música
No Brasil, o ensino da música passou a ser obrigatório nas escolas, durante o Estado no cotidiano escolar. Segundo Campos (2008):
Novo (1937-1945), onde o governo Getulio Vargas preocupou-se em estimular o
o aprendizado musical torna-se apenas um dos aprendizados possíveis.
sentimento patriótico nas escolas e agremiações civis e, com isso, o então maestro Vínculos são formados a partir da relação que os participantes estabelecem
Heitor Villa-Lobos, criou e desenvolveu o meio principal de educação musical concebido uns com os outros e com a música – vínculos baseados na amizade, no
por ele que foi o canto orfeônico, movimento dentro do qual “atuou como regente e reconhecimento, na disciplina e no prazer proporcionado pela prática musical
organizador de grandes massas corais e como compositor” focando na “perspectiva do (CAMPOS, 2008, p.107).
desenvolvimento do cidadão brasileiro e de suas potencialidades musicais” (AMATO,
2007, p.214). Entretanto, em 1971, o Canto Orfeônico foi substituído pela Educação Sendo assim, a banda de música pode ser uma importante ferramenta de introdução de
Musical com bases na LDB. Segundo Oliveira (2000, p.48), “a partir da homologação conceitos relacionados à socialização, ou seja, a banda se torna, algumas vezes, o único
da nova lei de diretrizes e bases da educação (LDB 9394/96), grandes aprimoramentos local em que as crianças e jovens se relacionam promovendo a troca de experiências
foram atingidos em todos os níveis de ensino, como a criação de diretrizes curriculares socioculturais, além das atividades musicais (CAMPOS, 2008, p. 107). Os ensaios e as

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apresentações públicas da banda de música se tornam ocasiões propícias e privilegiadas suas funções a preparação do jovem para o seu desenvolvimento profissional e para a
para que os integrantes se coloquem em sintonia uns com os outros, aprendendo a se vivência de sua arte, que estes sejam “músicos preparados, acima de tudo, para colocar
escutarem mutuamente, conhecendo-se, respeitando-se e aceitando-se. suas atividades a serviço da sociedade. [...] O humano, meus amigos, como objetivo da
educação musical” como nos afirma Koellreutter (1998, p. 45).
Ainda dentro deste contexto, sobre a importância de se fazer algo em grupo, seja em
uma banda de rock, coral, banda de música ou qualquer grupamento musical, criando Diante da evolução tecnológica e da era globalizante em que vivemos Bastian (2009,
assim um forte laço entre os componentes, formando um grupo solidário que trabalha p. 17), aborda em seu livro “Música na Escola”, que na Alemanha, as autoridades estão
não somente o lado musical como também a questão do coletivo. “Em resumo, há uma preocupadas em investir maciçamente em computadores pessoais para cada aluno
diversidade que tende à unidade, na qual cada parte acha apoio nas outras e se fortalece do país, no intuito de que possam sair do isolamento social, em prol de uma maior e
com as outras.” (SNYDERS, 2008, p.91). melhor comunicabilidade. Sendo assim, o autor propõe a seguinte questão: “Pode ser
o computador uma panacéia contra o isolamento, a solidão, as dificuldades de contato,
Dentro do contexto de socialização e comunicação, Koellreutter (1990, p.44), aborda a falta de competência social? Isso ainda está por ser provado” e complementa o seu
o ensino da música de forma funcional à sociedade, como sendo algo que venha a pensamento nos dizendo que “então usemos também nós os aparelhos, aqueles que
contribuir para a conscientização do homem e o desenvolvimento da população, usando a pesquisa sobre a música e seus efeitos prescreveram [...] e exijamos com o mesmo
a música como veículo de preservação da comunicação interpessoal, trabalhando os direito: um instrumento musical para cada estudante” (BASTIAN, 2009, p. 18). Informa-
sentimentos de medo, melancolia, solidão e tristeza. Sendo assim a “educação musical nos ainda, que a linguagem musical não precisa de manual, mas, “não obstante isto é
deve transformar-se num instrumento de progresso, de soerguimento da personalidade compreendida no mundo inteiro – como sinal dos tempos.” Longe de querermos aqui
e do estímulo à criatividade”. afirmar ou firmar qualquer idéia contra ou a favor dos avanços e descobertas tecnológicas,
simplesmente buscamos em nossa pesquisa dados e ferramentas que nos auxiliem no
entendimento da importância da educação musical e da contribuição das bandas de
Em face do avanço tecnológico e aos processos de globalização pelos quais passa o música no processo de aprendizagem e de formação do ser como um todo.
planeta caracterizando assim a sociedade moderna, o mesmo autor acredita que:
Além de fornecer uma maior socialização e comunicação entre os alunos e componentes
[...] somente aceitando a educação musical como meio que tem a função da banda de música o ensino musical propicia aos seus participantes e ao regente uma
de desenvolver a personalidade do jovem como um todo; de despertar e maior evolução e troca de experiências que “apesar de ser notória a importância dada
desenvolver faculdades indispensáveis ao profissional de qualquer área de à disciplina e ao comportamento, é fundamental ressaltar que o trabalho desenvolvido
atividade, como por exemplo, as faculdades de percepção, as faculdades de
comunicação, as faculdades de concentração (autodisciplina), de trabalho
[...] contribui para o enriquecimento de experiências e conhecimentos musicais [...]”
em equipe, ou seja, a subordinação dos interesses pessoais aos do grupo, as (CAMPOS, 2008, p. 108). Sendo assim, as atividades da banda de música dentro e fora
faculdades de discernimento, análise e síntese, desembaraço e autoconfiança, a do ambiente escolar contribuem não só na ampliação e troca de experiências musicais
redução do medo e da inibição causados por preconceitos, o desenvolvimento como também na incorporação de valores, comportamentos e no enriquecimento da
de criatividade, do senso crítico, do senso de responsabilidade, da sensibilidade vivencia sócio-musical.
de valores qualitativos e da memória, principalmente, o desenvolvimento
do processo de conscientização do todo, base essencial do raciocínio e da É importante ressaltar que a banda de música, muitas vezes, pode ser o fator de inclusão
reflexão (KOELLREUTTER, 1998, p. 43-44). social, em face da escassez de oportunidade que muitas pessoas têm na sociedade e
dentro das próprias escolas e que “em sua maioria, os alunos vêm de uma família que
não tem condições de comprar um instrumento ou de investir financeiramente em aulas
Dentro do processo de aprendizagem musical, habilidades e laços são criados e de música” (CAMPOS, 2008, p. 107) e enxergam na banda de música a oportunidade de
estimulados. O grupo funciona como laboratório, onde seus participantes contribuem inserção tanto dentro da escola como dentro da sociedade.
mutuamente para o desenvolvimento e crescimento tanto pessoal quanto coletivo, onde
cada um traz suas próprias experiências pessoais e onde estas são somadas e divididas Ao educar alunos dentro do contexto musical, além de fornecer e afirmar todos os
com as outras pessoas. Além disso, a educação musical e a banda de música têm dentre conceitos acima expostos a banda de música “garante a continuidade da cultura. O
empreendimento educativo, comum nas escolas das filarmônicas, assim como de

114 115
qualquer escola, tem a responsabilidade de transmitir e perpetuar a experiência humana Sendo assim deixamos aqui esta afirmativa do autor acima citado que, segundo ele,
considerada cultura.” (CAJAZEIRA, 2004, p. 28). Desta forma, aprender a tocar um descreve e norteia o papel educador e da importância da banda de música como
instrumento, segundo a autora, não é o único nem o principal objetivo da escola quando instituição que promove a troca de experiências socioculturais, trabalhando o senso de
está orientando seu futuro músico ou aluno, “além da responsabilidade musical estão coletividade e disciplina, mudando comportamentos e formando músicos e cidadãos
sendo incutida a responsabilidade com a preservação cultural e com a continuidade da conscientes de seu papel na sociedade, além de contribuir para a melhoria do cenário
cultura”. educacional das escolas e comunidades no Brasil.
Deste modo sendo, a cultura também é colocada como parte integrante na formação do
aluno e na sua perpetuação dentro da sociedade.
Relatos socias da Banda 12 de Março

A priori, nossa intenção com as entrevista realizadas junto aos membros da Banda 12 de
Neste sentido, pode-se dizer perfeitamente que a cultura é o conteúdo março, pais dos alunos, professor da banda e a direção da escola foi ilustrar os aspectos
substancial da educação, sua fonte e sua justificação última; a educação não é discutidos no decorrer do nosso trabalho, tais como, relacionamento familiar, reflexos na
nada fora da cultura e sem ela. Mas, reciprocamente, dir-se-á que é pela e na
educação, através do trabalho paciente e continuamente recomeçado de uma
aprendizagem escolar, disciplina, aspectos socioculturais, entre outros.
‘tradição docente’ que a cultura se transmite e se perpetua: a educação ‘realiza’
a cultura como memória viva, reativação incessante e sempre ameaçada, fio
A seguir citamos alguns relatos no que se refere à disciplina, na visão do estudante:
precário e promessa necessária da continuidade humana (FORQUIM, 1993, p. “O estudo musical exige raciocínio mais rápido, tanto na teoria quanto na
14). prática, isso no aprendizado escolar me ajudou bastante, pois, [...] tudo se
tornou mais dinâmico. [...] Com a música, inevitavelmente você cria uma rotina
Dentro de nossa pesquisa, e em especial dentro deste tópico procuramos abordar de estudos mais rígida, para a própria evolução no seu instrumento, e isso se
apenas alguns aspectos importantes que a música pode proporcionar aos alunos, voltou também para o aprendizado escolar, a disciplina tomou parte de todos
ressaltando a importância da socialização, comunicação, disciplina, comportamento, os meus estudos, e claramente me ajudou bastante.” (Ariane, 18 anos).
inserção social e propagação da cultura, bem como “o quanto as experiências “Para estudar música você tem que se empenhar e estudar bastante [...] a música
proporcionadas por uma banda de música podem influenciar a vida de seus integrantes. O exige [...] concentração e disciplina, com isso eu acabei me dedicando mais aos
aprendizado musical torna-se apenas um dos aprendizados possíveis.” Segundo a autora estudos (escolares) para conseguir entrar em uma universidade boa para me
“vínculos são formados a partir da relação que os participantes da banda estabelecem tornar um bom profissional.” (Yure, 17 anos).
uns com os outros e com a música – vínculos baseados na amizade, no reconhecimento,
“A música me ajudou na disciplina, atenção e percepção, além de me mostrar
na disciplina e no prazer proporcionado pela prática musical.” (CAMPOS, 2008. p. 107).
qual caminho eu queria seguir.” (Gabriela, 20 anos).

Podemos observar também noções de valores pessoais, relacionamentos familiares e


socioculturais:
A banda de música é, para minha vida, um grupo de referência; uma experiência [...] A banda me ajudou não só no amor pela música, mas também na construção
da qual até hoje retiro ensinamentos e lições de vida. Nela convive boa parte do caráter na minha formação como pessoa. [...] me mostrou os vários modos
da minha adolescência e juventude. Passava, constantemente, mais tempo na onde podemos colocar a música clássica e que todos têm direito a ouvir isso. A
sede da banda do que no convívio de minha casa. A banda era a outra família, comunidade pode perceber que a música é para todos, tendo assim um melhor
uma segunda família. Ali aprendi a respeitar regras; a compartilhar problemas convívio banda de música-escola-comunidade.” (Gabriela, 20 anos).
e soluções; a construir novas aspirações, opiniões, atitudes, ou seja, adquiri
outra visão do mundo (LIMA, 2005, p. 12). “[...] descobri uma das coisas que eu mais amo que é estar no meio da música,
[...] na banda fiz um grupo de amigos que considero muitos como família, e
tenho o maestro como meu mentor. Além da música, a banda me proporcionou
uma vivência que é de extrema importância com a pessoa que eu sou hoje.”

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(Ariane, 18 anos). As oportunidades acontecerão para as pessoas que estão preparadas.” (Leandro
Siqueira, pai das alunas Julia e Beatriz).
“[...] além de conviver com vários tipos de pessoas tendo que aprender a lidar
com a diversidade e conhecendo melhor o outro, com a banda e todas as “[...] é para isto que ela está estudando, já cursa ensino superior em música”. A
atividades musicais em geral aprendemos que cada um deve fazer sua parte, sua meta é um dia fazer parte de uma orquestra de renome. (Ailze de Freitas,
mas também dependemos do outro para obter um bom resultado, assim mãe da aluna Ariane).
aprendendo a compartilhar e aprender com todos, não importa a classe, raça,
condição social ou qualquer outra divisão. (Bárbara, 17 anos).

“Em resumo, há uma diversidade que tende à unidade, na qual cada parte acha apoio O presente artigo não tem a pretensão de trazer contribuições originais, visto que
nas outras e se fortalece com as outras.” (SNYDERS, 2008, p. 91), notamos no depoimento o tema é amplamente discutido, entretanto o estudo de caso aqui proposto vem
da aluna Bárbara, a importância do desenvolvimento do trabalho individual dentro da como componente do trabalho em foco, reforçando o entendimento com relação à
banda, visando, ao final, um melhor resultado coletivo. Ainda dentro deste contexto, a contribuição da banda de música no processo educacional e fomentando uma maior
Banda 12 de Março desenvolve um papel fundamental no trabalho com as diversidades, discussão em torno do tema.
atuando não só no ambiente musical, como também dentro da sociedade, reforçando
valores éticos, morais e na formação do caráter do cidadão.

Estes e outros benefícios também são notados e citados pelos pais, como nos exemplos Conclusão
a seguir: Este estudo teve por objeto analisar e pesquisar sobre a importância da banda de
“[...] o conhecimento da arte, desenvolve a técnica a agilidade e a rapidez do música no processo educacional, procurando mostrar o trabalho desenvolvido
raciocínio, aliado à formação da disciplina, ética moral, bem como a formação dentro do ambiente escolar, seus reflexos na aprendizagem, aspectos sócio-culturais,
do cidadão.” (Ronaldo Camargo, pai das alunas Cínthia e Maria Theresa). comportamentais e de coletividade, proporcionados pelas bandas de música.
“[...] A música tem forte relação com o sentimento, promove o relacionamento Realizamos levantamento sobre o escasso, porém rico material disponível sobre o assunto,
humano e tem como premissa a disciplina. [...] devido à disciplina que é
exercitada, as notas da escola melhoraram e como acompanho elas nas aulas
buscando relacioná-lo com a educação musical que tem, por sua vez, uma produção
o nosso relacionamento também melhorou.” (Leandro Siqueira, pai das alunas de natureza teórica bastante expressiva. Além disso, fizemos um estudo de caso com a
Julia e Beatriz). Banda 12 de Março, da cidade de Belo Horizonte, como ponte e complemento ao tema
abordado, procurando enriquecer e fomentar o universo da pesquisa em educação e
“[...] A atenção e a disciplina que a música exige podem ser repassadas para o dia sua ligação com a música, em especial com a banda de música.
a dia na sala de aula através de atividades que exigem tais competências. [...] Na
escola não temos mais recebido bilhetes de reclamação sobre o comportamento Refletindo sobre as questões levantadas, percebemos a real importância da banda de
dela.” (Silvia de Souza, mãe da aluna Dayanne). música no contexto da educação musical presentes dentro da escola ou nas comunidades
Quando perguntados sobre as possibilidades profissionais para os seus filhos que espalhadas pelo Brasil. Conservatório do povo, guardiã da música popular brasileira e
estudam música, os pais se mostraram otimistas, tanto na possibilidade da carreira por ser uma instituição dinâmica e de constante mutação, a banda de música ao longo
musical, quanto nas contribuições dadas pela música para qualquer carreira que seus de sua história aprendeu a se moldar e acompanhar as transformações e necessidades
filhos venham a escolher. da sociedade de acordo com a época e com o público.

“[...] Hoje em dia, vários são os seguimentos [...] que o profissional da música Como se viu ao longo deste trabalho, chegamos a algumas conclusões positivas acerca
pode trilhar desde as fileiras do exército brasileiro às outras instituições militares da utilização da música na escola, mas encerramos esta pequena pesquisa ainda com
e ainda orquestras, banda profissionais, etc.” (Ronaldo Camargo, pai das alunas dúvidas a serem solucionadas. Assim, pretendemos incentivar, estimular e provocar
Cínthia e Maria Theresa). debates e questionamentos sobre as variantes em torno do tema que viabilizem
“[...] A música é uma preparação para vida, e os bons empregos dependem disso.
o interesse e a produção de novos estudos e pesquisas sobre o papel das bandas de
música enfocando seu papel social, cultural, educacional e tantos outros que não foram

118 119
abordados neste texto, mas que merecem toda atenção do pesquisador e estudioso Peirópolis, 2001.
mais aguçado.
CAJAZEIRA, Regina. A Importância das Bandas na Formação do Músico Brasileiro. In: CAJAZEIRA, Regina;
Dessa forma, anotamos a importância de se realizarem estudos voltados ao trabalho OLIVEIRA, Alda (Org.). Educação musical no Brasil. Salvador: P&A, 2007. p. 24-28.
feito pelas bandas de música na escola e sinalizamos algumas propostas observando
os benefícios que a mesma tem oferecido à comunidade escolar e a sociedade, CAMPOS, Nilcéia Protásio. O aspecto pedagógico das bandas e fanfarras escolares: o aprendizado musical
atentando para a necessidade de implantação de programas que viabilizem a formação e outros aprendizados. Revista da ABEM, Porto Alegre, v.19, p. 103-11, 2008.
e capacitação dos regentes e dos músicos; apoio financeiro e de material didático para
as instituições; incorporação da banda de música no currículo escolar em todo o país; CASEY, Donald. Descriptive research: techniques and procedures. In: COWELL, R. (ED.) Handbook or research
desenvolvimento de metodologias que facilitem a transmissão dos conhecimentos on music teaching and learning: a Project or the Music Educators National Conference. New York: Schirmers
musicais; fomento a pesquisas em musicologia histórica e educação musical ligadas Books, 1992.
à banda de música; dentre outras sugestões e caminhos que podem ser apontados e
assinalados com relação ao estudo, divulgação, ensino e pesquisa em bandas de música. ELMERICH, Luis. História da Música. 3ª. Ed. Boa Leitura, São Paulo, 1964.
FORQUIM, Jean-Claude. Cultura e escola: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar.
Assim, entendemos ter apenas contribuído para o desenvolvimento do tema, sabendo
Tradução de Guacira Lopes Louro. Porto Alegre: Art Médicas, 1993.
que são inesgotáveis as fontes para futuras incursões e que o assunto merece uma
discussão mais aprofundada por todos aqueles que se consideram amantes e admiradores
FIGUEIREDO, Leda Maria Gomes de Carvalho. Bandas de música: fenômeno cultural e educacional no
da banda de música e de seu papel educacional perante a sociedade.
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ponto. Texto em parágrafo único, espaço simples, justificado, com no máximo 150 palavras.
3 - Os procedimento de envio são os seguintes: Fonte: Times New Roman, corpo 10, para todo o resumo.

3-1- Os trabalhos devem ser enviados por e-mail como anexo em formato “doc” ou “docx”
para o endereço eletrônico que segue: d) Palavras-chave: em número de 03 a 05, duas linhas abaixo do resumo, em português, inde-
pendente da língua em que o texto tiver sido escrito. Colocar o termo Palavras-chave, em caixa
baixa, primeira letra em maiúscula. Fonte: Times New Roman, corpo 10. Cada palavra-chave em
atempo@fames.es.gov.br caixa-baixa com apenas a primeira letra maiúscula. As palavras-chave devem estar separadas
por ponto.
3-2- A seguir, o mesmo deverá ser enviado pelo correio, em uma cópia impressa e outra em CD
– Rom para o seguinte endereço: c) ABSTRACT: duas linhas abaixo das palavras-chave, colocar a palavra ABSTRACT em caixa alta,
corpo 10, seguida de ponto. Redigir o texto em inglês, em parágrafo único, espaço simples, jus-
a tempo – Revista de Pesquisa em Música tificado com o máximo de 150 palavras. Fonte: Times New Roman, corpo 10, para todo abstract.
Faculdade de Música do Espírito Santo “Maurício de Oliveira” (Fames)
Coordenação de Pós- Graduação d) Keywords: em número de 03 a 05, duas linhas abaixo do abstract. Fonte: Times New Roman,
Praça Poli Monjardim, 60, Centro, Vitória, ES corpo 10. Cada Keyword em caixa-baixa com apenas a primeira letra maiúscula. As keywords
C.E.P. 29010-640 devem estar separadas por ponto.

4 – O trabalho para submissão não deve conter nenhuma referência a sua autoria, estas devem 8 - 2 – Elementos textuais:
vir sinalizadas como XXXXX e, em caso de aprovação, o trabalho retornará ao autor para que
a) Fonte: Times New Roman, corpo 12, alinhamento justificado ao longo de todo o texto.
sejam inseridas tais informações.
b) Espaçamento: simples entre linhas e parágrafos, duplo enre partes do texto (tabelas, ilustra-
ções, citações em destaque, etc).
5 – Em outro arquivo deve vir a identificação do(s) autor(es) com nome completo, vínculo ins-
titucional, cargo, endereço para correspondência, fone, fax e e-mail além do Curriculum Lattes
resumido em que conste a titulação, as principais atividades na área e o título das principais c) Citações: no corpo do texto, serão de até 03 linhas, entre aspas duplas. Fonte: Times New Ro-
man corpo 12. Quando as citações forem maiores do que 03 linhas, devem ser destacadas fora 2007.
do corpo do texto. Fonte: Times New Roman, corpo 10, em espaço simples, com recuo de 4cm à
esquerda.  Todas as referências das citações ou menções a outros textos  (tanto nas incluídas no
corpo do texto, como as que devem aparecer em destaque) deverão ser indicadas, após a cita- Monografias, dissertações e teses:
ção, com as seguintes informações, entre parênteses: sobrenome do autor em caixa alta, vírgula,
ano da publicação, abreviatura de página e o número desta. Exemplo: (SWANWICK, 1999, p. ALFONSO, Neila R. Prática coral como plano de composição em Marcos Leite e em dois coros infantis.
15-16). Evitar a utilização de idem ou ibidem e Cf. Quando for utilizado o apud, colocar as mes- 2004, 154 f. Dissertação (Mestrado em Música). Programa de Pós-Graduação em Música, UNIRIO,
mas informações solicitadas anteriormente para o autor do texto de onde a citação foi retirada. Rio de Janeiro, 2004.
Exemplo: (DELEUZE, 1987, apud KASTRUP, 2001, p. 217). Incluir todos os dados de ambos os
,PAIVA, S.R. Aspectos da biologia celular e molecular de espécies de Plumbaginácea. 1999. 120 f.
autores e colocar somente as obras consultadas diretamente nas Referências.
Dissertação (Mestrado em Ecologia) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
d) Notas de rodapé: devem ser utilizadas, se necessárias, para contribuir com a clareza do texto. Rio de Janeiro, 1999.
Fonte: Times New Roman, corpo 10.
DUARTE, Mônica de Almeida. Por uma análise retórica dos sentidos da música na escola. 2004. 265
f. Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Faculdade de Educação Escolar) – Faculdade de Edu-
e) Títulos e subtítulos das seções: ao serem constituídos por palavras, não utilizar numeração cação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.
arábica, inclusive Introdução, Conclusão, Referências e elementos pós-textuais, sem recuo de pará-
grafo, em negrito, com maiúscula somente para a primeira palavra da seção. Ao serem constituídos Congresso, Conferências, Encontros e outros eventos:
apenas por números,  colocar o número seguindo as mesmas regras anteriores e sem pontuação.
BORÉM, Fausto. Afinação integrada no contrabaixo: desenvolvimento de um sistema sensó-
rio-motor baseado na audição, tato e visão. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL
f) Elementos ilustrativos: tabelas, figuras, fotos, etc., devem ser inseridas no texto, logo após DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM MÚSICA, 10. Anais do ... Goiânia, agosto, 1997, p. 53-58.
serem citadas, contendo a devida explicação na parte inferior da mesma, numeradas sequen-
cialmente. Serão referidas, no corpo do texto, de forma abreviada. Exemplo. Fig. 1. Fig. 2, etc Citação de citação:
8 – 3 - Elementos pós-textuais: MARINHO, Pedro. A pesquisa em ciências humanas. Petrópolis: Vozes, 1980 apud
MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Técnica de pesquisa. São Paulo: Atlas, 1982.
Referências: seguir normas da ABNT em uso (NRB-6023/02). Usar espaçamento 1 entre as li-
nhas das referências e espaco 1,5 entre uma referência e outra,  alinhamento à esquerda.
Documentos eletrônicos:
Incluir a data de envio do artigo para publicação.
CARPEGGIANI, Schneider. Pernambuco num concerto de muitos ritmos. NordesteWeb, 9 de abr.
EXEMPLOS DE REFERÊNCIAS 2001. Disponível em: www.nordesteweb.com/not04/ne_not_20010409a.htm Acesso em: 19 fev.
2007.
Artigo de periódico:
CD-ROM:
FERNANDES, José Nunes. Pesquisa em educação musical: situa-
ção do campo nas dissertações e teses dos cursos de pós-graduação stric- KOOGAN, A.; HOUASSIS, A (Ed.) Enciclopédia e dicionário digital 98. Direção geral de André Koo-
tu senso brasileiros. Revista da ABEM, Porto Alegre, v.15, p. 11-26, set. 2006. gan Breikman. São Paulo: Delta: Estadão, 1998. 5 CD-ROM. Produzida por Videolar Multimídia.

Livros:

GREEN, Barry. The inner game of music. New York: Doubleday, 1986.
 

Capítulos de livros:

SANTOS, Regina Márcia S; REQUIÃO, Luciana. A educação musical no estado do Rio de Janeiro.
In: OLIVEIRA, A; CAJAZEIRA, R. (Orgs.) A Educação Musical no Brasil. Salvador, Sonare, p. 129-144,

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