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e ates
Próximo lançamento
O Sistema dos Objetos

e ates filosofia
Jean Baudrillard

A procura de um estatuto do objeto estético leva Mikel Dufrenne a se


interrogar não só das relações entre Ciência e Filosofia como a redefinir
"natureza" vendo-a prolongada na técnica e na prática humanas. Dufrenne
compreende a experiência estética como ponto de partida de todas as rotas
que a humanidade percorre: ela abre seu caminho à ciência e à ação. Ela
Arte e Semiologia I

mikel dufrenne
manifesta a aptidão do homem para a moralidade.
Expressividade do Abstrato I Estrutura e Sentido I constituem no livro alguns
dos blocos-conceitos situados no cerne da especulação estética e filosófica

-ESTÉTICA
contemporânea.

ISBN 85-273-0136-9

----,
E FILOSOFIA
9 788527 301367
Coleção Debates
Dirigida por J. Guinsburg

mikel dufrenne
ESTÉTICA
E FILOSOFIA

SBD-FFLCH-USP

1111111111111111111111111111111111111111
245592

Equipe de realização - Tradução: Roberto Figurelli; Revisão: Mary Ama-


zonas Leite de Barros; Produção: Ricardo W. Neves e Heda Maria Lopes.
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É EDITORA PERSPECTIVA

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Título do original:
Esthétique et Philosophie
© Editions KJincksieck

DEDALUS - Acervo - FFLCH-FIL

\IMIIII~lli\II!1
21000056131

SUMÁRIO

11/ Ir dução à edição brasileira 7


3' edição - 2' reimpressão
t'rrjácio:

A 'ontribuição da Estética à Filosofia ......... 23


A lgemeen Nederlands Tijdschrift voor Wijsbegeerte
en Psychologie, Assen, 56-5, dez. 1962.

Direitos reservados em língua portuguesa à


I. PROBLEMAS FlLOSOFlCOS DA ESTETICA'
EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025
01401-000 - São Paulo - SP - Brasil () Belo 35
Telefax: (O--ll) 3885-8388 NQ especial da Revue A. S. FI. DE PHI., iun-out.
"www.editoraperspectiva.com.br 1961
2002
5
Os Valores Estéticos .............. 48
Encvclopédie [rançaise, tomo XIX: Filosofia. Re-
ligião.

A Experiência Estética da Natureza 60


Revue intcrnationa!e de Philosophie, Bruxelas, 1955.
XXX, 1.

Intencionalidade e Estética. ................. 78


Revue philosophique, P. U. F., Paris, 1954, 1-3.

A "Sensibilidade Generalizadora" 89
Revue d'Esthétique, Paris, 1960, XIII, 2.

li. ARTE E SEMIOLOGIA

A Arte é Linguagem? 103


Revue d'Esthétique , Paris, 1966, XIX, 1.

Formalismo Lógico e Formalismo Estético 150


Annales d'Esthétique, Atenas, 1964.

A Crítica Literária: Estrutura e Sentido 169


Revue d'Esthétique, Paris, 1967, XX, 1.

Crítica Literária e Fenomenologia ' 187


Revue internationale de philosophie, Bruxelas, 1964,
68, 2-3.

A Propósito de Píndaro 204


Revue d'Esthétique, Paris, 1957, X, 2.
INTRODUÇÃO
À Edição Brasileira
lIl. A ARTE HODIERNA I, Embora sem igualar a importância da fenomeno-
li) 'ia no panorama da filosofia contemporânea, a esté-
Mal do Século? Morte da Arte? . . . . . . . . . . . .. 215 11 'U Ienornenológíca é, hoje, uma das correntes de maior
Revue d'Esthétique, Paris, 1964, XXII, 3-4. ('onsi tência no âmbito da estética. Sua história é re-
Objeto Estético e Objeto Técnico 238 rvntc. O ponto de partida, obviamente, deve ser pro-
The Journal of Aesthetics and Art criticism, eleve- vurudo na obra de Edmund Husserl. Apesar de Husserl
land, 1964, XXIII, 1. 11 10 ler escrito uma estética, sua vasta obra contém
('h'Ill<;ntos suficientes para propiciar o surgimento de
Da Expressividade do A bstrato. A propósito de 11111[1 stética fenomenológica. Com efeito, a história da
uma exposição de Lapoujade 257 I'~I Iica no século XX assinala várias tentativas no
Revue d'Esthétique, Paris, 1961, XIV, 2. '!'lllid de imprimir uma orientação fenomenológica à
IIl'It'xão sobre problemas que, tradicionalmente, ocu-

6 7
pam a atenção dos estetas. Assim, por exemplo, devem
dados num arco que se estende desde o estudo sobre
ser lembrados os sutis estudos de M. Geiger e as pes-
a filoscfia de Jaspers até o escrito polêmico Pour
quisas de índole fenomenológica de W. Conrad. Tanto
l'homme, cuja finalidade é "evocar o anti-hurnanismo
Geiger quanto Conrad eram integrantes do círculo
próprio da filosofia contemporânea, e defender contra
berlinense de Max Dessoir. Mas é em Das iiterarische
ela a idéia de uma filosofia que teria solicitude pelo
Kunstwerk' do polonês Roman Ingarden - um dos
hornem'",
primeiros discípulos de Husserl no tempo de Goettingen
- que deparamos com uma obra organicamente arti- Na parte estética propriamente dita: o artigo "Phi-
culada, empenhada em responder à exigência de supe- I sophie et Littérature", na Revue d'Esthétique 9, Phé-
ração do psicologismo, o qual caracterizava a filosofia 11 ménologie de l'expérience esthétique, em dois volu-
no final do século XIX. Infelizmente a Aesthetik de mes'", La notion. d":a priori"!', Le Poétiquev e Esthéti-
N. Hartmann - filósofo que tanto contribuiu para a que et Philosophiev, cuja tradução a Editora Perspecti-
formulação dos princípios e problemas de uma fenorne- v ora oferece ao leitor de língua portuguesa com o
nologia da arte - só foi publicada após a morte do título de Estética e Filosofia. É nosso intuito, nos li-
autor, ocorrida em 1953. Na Itália, é difícil avaliar a mites de uma introdução, seguir o itinerário da reflexão
extensão da influência de A. Banfi como mentor de um estética de Dufrenne e situar Estética e Filosofia no
grupo de estudiosos que ainda hoje continuam, no cam- . njunto de sua obra.
po da fenomenologia, as pesquisas do mestre iniciadas
na década de 30. Na França, J.-P. Sartre e M. Mer- 3. Phénoménologie de l'expérience esthétique foi a
leau-Ponty encarregaram-se da aclimação da fenome- obra que projetou Dufrenne no cenário internacional da
nologia husserliana. É através deles que surge a figura .. tética. O escopo da Phénoménologie é submeter a
de Mikel Dufrenne-. :xperiência estética à descrição fenomenológica, à aná-
tls transcendental e à apreensão da significação me-
2 . A obra de Dufrenne pode ser dividida, por razões tulísica. São três etapas de um itinerário que não atin-
didáticas, em dois setores: filosofia e estética. Mas iu o término com a última página da Phénoménologie,
logo devemos observar que não existe uma separação 111a continua até hoje, tendo passado por La notion
nítida entre os dois campos. A estética, para Dufrenne, d":« priori" e O Poético. O leitor, acostumado a con-
é filosofia. E não é difícil descobrir os traços do esteta clusões acabadas e definitivas, talvez se decepcione com
no Dufrenne-filósofo, No setor da filosofia incluiría- 1 obra de Dufrenne. Seus livros são o fruto de um pen-
mos: Karl Iaspers et Ia Philosophie de l'existence', es- uncnto ágil e indagador, aberto ao contato vivificante
crita em colaboração com P. Ricoeur, La Personnalité rorn a experiência e disposto a repensar os dados 'do
de base. Un concept sociologique', Language and Phi- pnssado. Só através da leitura atenta de seus livros -
losophyr, Ialons: e Pour l'homme', A simples enume- desde a Phénoménologie até O Poético, com o re-
ração dos títulos revela a amplitude de assuntos abor- I urs constante da Estética e Filosofia - é possível
(I) Halle, 1931. 1 '( rnpanhar o itinerário da fecunda reflexão do esteta
(2) Nascido em 19\0, em Clermont, Mikel Dufrenne é professor h ancês, Itinerário que não chegou ao fim visto que
efetivo de. filosofia e doutor em letras. Exerceu o magistério em vários
liceus e, atualmente, leciona estética e metafísica em Nanterre.
membro da socuu [rançaise d'esthétique e dirige, com Etienne Souriau,
:t;:
ca) tua.. p. 9.
(9) "Philosophie et Líttérature". Revue d'Esthétique I (1948) pp
a Revue d'Esthétique,
(3) Dufrenne, Mikel. Karl Jaspers et Ia Philosophie de l'existence ,
'H'I 'O~. ' ,.
en collaboration avec P .. Ricoeur. Paris, t:.d. du Seuil, 1947. (10) Dufrenne, Mike l. Phénoménologie de l'e xpérience esthétique.
(4) Dufrenne, Mikel. La Personnalité de base. Un concept socio- 1',,01 , PUF, 1953, 2v.
logique, Paris, PUF, 1953. (11) Dufrenne, Mikel. La notíon d'Ha príorí", Paris, PUF, 1959.
(5) Dufrenne, Mikel. Language and Philosophy . Bloomington. (I ) Dulrenne, Mikel. Le Poétíque, Paris, PUF, 1963. Em portu-
Indiana University Press, 1963. 11 H O Poético, tradução de Luiz Arthur Nunes e Reasylvia Kroeff de
(6) Dufrenne, Mikel. Jalons, Haia, Martinus Nijhoff, 1966. "lI/h, P. Alegre. Ed. Globo, 1969.
(7) Dufrenne. Mikel. Pour í'homme, Paris. ~d. du Seuil, 1968. (I) Dufrenne, Mikel. Esthéri que et Philosophie. Paris, :f:d. Klinck-
I•• k. 1967.

8 9
objeto percebido esteticamente. É o objeto percebido
ele, atualmente, trabalha no recenseamento dos a enquanto estético. A obra de arte, através da per-
priori 14. cepção estética, se torna objeto estético. Obra de arte
No início da Phénoménologie, Dufrenne observa: objeto estético não se identificam. O campo do
"Entendemos fenomenolozia no sentido em que Sartre bjeto estético é mais amplo. Abarca o mundo
e Merleau-Ponty aclimaram este termo na França: des- natural que, excluído da Phénoménologie, aparece em
crição que visa a uma essência, a qual é definida como estética e Filosofial6•
significação imanente ao fenômeno e dada com ele. A Longa e exaustiva é a descrição do objeto estético.
essência está para ser descoberta mas por um desvela- Paz-se mister situá-Io entre outros objetos: o objeto de
mento, não por um salto do conhecido ao desconhe- li e o objeto técnico, por exemplo. A descrição de-
cido"15. R nvolve-se através dos três planos noemáticos: o sen-
Sabemos quão difícil é o problema das diferentes sível, o objeto representado e o mundo expresso. O ob-
interpretações suscitadas pela obra de Edmund Husserl. j t estético é confrontado com os conceitos de natu-
Dufrenne filia-se à corrente francesa liderada por Sar- r' za, forma e mundo. Dufrenne, então, submete ao
tre e Merleau-Ponty. Ambos os autores, não obstante .rivo da crítica as doutrinas de inspiração fenomeno-
notórias divergências, têm influência reconhecida na )t gica de J.-P. Sartre, R. Ingarden, B. de Shloeser e
obra de Dufrenne. Ele não esconde seus receios pela W. Conrad. Tendo fundamentado seu empreendimento
direção idealista do pensamento de Husserl. Daí a pre- na realidade do objeto estético e afastado os perigos
ferência pela interpretação de Merleau-Ponty, que sa- do subjetivismo e do psicologismo, ele situa ser e apa-
lienta os aspectos existenciais da fenomenologia, e pela I' er em forma de adequação. O ser do objeto estético
leitura de Sartre, que dá relevo à idéia de intencionali- til pende da percepção e só se realiza na percepção.
dade e à dimensão antropológica. Se acrescentarmos Por fim, o problema do estatuto do objeto estético.
os nomes de Espinoza, Kant, Hegel, Wittgenstein, Hei- Visto que o objeto estético é não só um em-si, corno
degger, Bachelard e Alain, teremos o elenco dos filó- I unbém um para-si, Dufrenne recorre à fórmula quase-
sofos que mais têm influenciado Dufrenne, su] ito numa tentativa de definir o estatuto do objeto
('NI tico através da superação da alternativa do para-si
4. A Phénoménologie está circunscrita à experiência ( d em-si.
estética do espectador. Mas existe uma intercomunica-
Aos três aspectos noemáticos - descobertos na
ção entre a experiência do espectador e a experiência
ti ., rição do objeto estético - correspondem os níveis
do artista. Não é possível descrever a experiência do
ti I presença, representação e sentimento: três marcos
espectador sem ter presente, ao menos implicitamente,
a experiência do artista. Trata-se, porém, do artista tio r teiro da fenomenologia da percepção estética. :E:
I I 'rceira parte da Phénoménologie e, com ela, Du-
que a obra de arte revela. É na obra, portanto, que
se realiza o encontro entre espectador e artista. E nes- trcnnc completa a descrição da experiência estética,
se ponto a Phénoménologie é completada por outros uma das finalidades de sua obra. No plano da presença,
escritos do Autor. O Poético e Estética e Filosofia ofe- uli mta-se o tratamento dado ao papel desempenhado
recem-nos valiosos subsídios para uma fenomenologia pelo corpo na percepção, talvez um dos passos da
da criação artística. /'/1 noménologie onde mais se percebe a influência de
A maior parte da Phénoménologie está dedicada à erlcau-Ponty. No nível da representação, Dufrenne
11' 11ft a distinção entre percepção e imaginação. Todo
descrição fenomenológica seja do objeto estético, seja
da percepção estética. É de fundamental importância 11 u empenho é demonstrar que a imaginação está na
a distinção entre obra de arte e objeto estético. Este é h I c da percepção e deve ser encarada como sua cola-
hlll ItI ra. No terceiro momento noético, o Autor pro-
(14) Dufrenne, MikeL "A prtori" et Philosophie de Ia Nature .
Filosofia, 18 (1967), p. 723. 1/,) No artigo: A experiência estética da Natureza, p, 54.
(15) Dufrenne, Míkel, Phénoménologie, op, cit., pp. 4-5, nota L

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10
cura caracterizar a função do intelecto na percepção um ser anterior ao a priori: é o "a priori do a priori"
estética, função importante mas que não deve ser exa- a solução para o salto do transcendental ao ontoló-
gerada sob pena de transformar a experiência estética gico e para o exame da significação ontológica da
em mero exercício racional. O mesmo ocorre com o xperiência estética. E a busca do a priori do a priori
sentimento: sua posição, no ápice da percepção, não I va-o a uma filosofia da natureza - em O Poético
deve levar ao erro de tudo sacrificar em favor do sen- - onde a Natureza naturante é concebida como a
timento. Na atitude estética há uma espécie de osci- f nte de todo o a priori, O fato de Dufrenne ter sido
laçãc entre a atitude crítica e a ati tude sentimental. obrigado a efetuar a passagem do a priori ao ontoló-
ico, para não cair nas malhas do idealismo, situa sua
5. Terminada a descrição da experiência estética, é bra na corrente das íenornenologias de inspiração
necessário dar um passo além e submetê-Ia à análise ntológica.
transcendental. Assim como Kant fala dos a priori da
sensibilidade e do intelecto, Dufrenne procura demons- 6. Contam-se, no elenco das obras de Dufrenne, duas
trar que a experiência estética - ao atingir o ponto , letâneas: Ialons (1966) e Estética e Filosofia (1967).
culminante no sentimento como leitura da expressão Jalons, que reúne artigos sobre os filósofos que mais
- põe em ação autênticos a priori da afetividade. Tal o influenciaram, pertence às obras filosóficas propria-
é o escopo da quarta parte da Phénoménologie, intitu- mente ditas. Cabe-nos, agora, a tarefa de situar Esté-
lada: "Crítica da experiência estética". E aqui nos li 'a e Filosofia no itinerário estético de Dufrenne.
defrontamos com um exemplo típico da evolução do Os artigos que compõem a obra foram agrupados
pensamento de Dufrenne. Após a Phénoménologie, ele p ,I Autor em três grandes grupos: I. Problemas filo-
volta ao tema em questão, opondo-se à tradição kan- )ficos da estética; lI. Arte e Semiologia; IH. A arte
tiana do a priori em La notion d"'a priori", publicado hodierna. Estendem-se de 1954 - portanto logo após
em 1959. Sua finalidade é pensar o a priori corno sen- \ primeira edição da Phénoménologie - até 1967,
tido imediato do objeto conhecido e não corno condição A justificativa do título dado à coletânea encontra-
lógica do conhecimento. Há, portanto, uma deslogi- ~ na apresentação e no primeiro artigo do livro. Es-
cização do a priori. Além disso, o a priori é desdobra- f ('( i a e Filosofia porque a estética só pode ser realizada
do no objeto e no sujeito: estrutura no objeto e saber !lO âmbito de uma filosofia e porque a estética é urna
virtual no sujeito. Em La notion. d"'a priori", Dufren- vin privilegiada para a filosofia.
ne parece afastar-se do contexto da experiência esté- Assim ccmo a Phénoménologie, também o artigo
tica. Realmente, a maior parte do livro é ocupada ., contribuição da estética à filosofia tem o seu ponto
pelo repensarnento da noção de a priori, tanto do ob- IIl' partida na descrição da experiência estética, O ho-
jetivo, quanto do subjetivo. Mas na terceira parte ("O 11\ .m é um ser-no-mundo. E estar no mundo leva o ho-
homem e o mundo"), o leitor depara com algumas das II1l'm a buscar o fundamento que consiste no acordo do
mais profundas páginas do livro onde Dufrenne, após homem com o mundo. Daí a importância da experiên-
ter situado o homem e o mundo em termos de afini- ri I estética, Ela reconcilia o homem consigo mesmo.
dade, efetua o salto do transcendental ao ontológico. 1-111 manifesta a aptidão do homem para a ciência e .para
Já no final da Phénoménologie, o Autor tentara 1\ moralidade, E isso porque a experiência estética "se
a apreensão da significação metafísica da experiência ItUI na origem, naquele ponto em que o homem, con-
estética. Seu propósito, porém, ficou invalidado ao pôr tundido inteiramente com as coisas, experimenta sua
em dúvida a necessidade da crítica se voltar para a fllllllliaridade com o mundo" 17. O fato de a estética re-
cntologia. Mas em La notion d":a priori", após ter 111 tir sobre a experiência estética - uma experiência
11rif.llrlHl , segundo Dufrenne - reconduz o pensamento
ordenado a dualidade do a priori numa unidade que
abrange os dois termos, Dufrenne propõe a idéia de (I n Dufrenne, Mike1. Estética e Filosofia. op . cit ., PP. 8·9.

12 13
e a consciência à origem. Nisso reside a principal con- R. Objeto estenco e obra de arte não se identificam.
tribuiçê o da Estética à Filosofia. São visíveis, aqui, as ) conceito de objeto estético é, como vimos, mais am-
pegadas de Kant e de Merleau-Ponty. I : inclui a obra de arte e o objeto natural. f:. possí-
vel viver uma experiência estética tanto diante de uma
7. Não passa despercebido ao leitor da Phénoméno.- obra de arte, quanto perante a natureza. Toda a Phé-
logie a recusa do Autor a utilizar o belo p~ra desc~?nr 1/0 111 énologie, por razões de método, está dedicada à
a obra de arte e delimitar o campo do objeto estético. , periência estética da obra de arte.' Essa experiência
Mas se levarmos em conta três artigos de Estética e \, ob o ponto de vista fenomenológico, a mais esc1a-
Filosofia - O Belo, Os valores estéticos e Obj;to es- rcccdora de todas. E Dufrenne afirma que a contem-
tético e Objeto técnico - veremos que, no computo pla ão da obra de arte estabelece a norma da experiên-
geral, a noção do belo adquire consistência na estética ia estética. Mais uma vez Estética e Filosofia nos
de Dufrenne. oferece a complernentação necessária para termos uma
Há uma exigência de valor na vida. O valor não visão de conjunto do pensamento do Autor.
é só o que se procura. f:. aquilo ~ue é encontrad~. O Em primeiro lugar, deve ser mantida a distinção
valor é ser. O objeto - porque e valor - se afirma entre as duas experiências. Mas o lugar de relevo atri-
e persevera no seu ser. Há seis tipos diferent~s de huído à experiência diante da obra de arte não pode
valores: o útil, o agradável, o amável, o verdadeiro, o 1 'verter em detrimento da experiência estética da na-
bom e o belo. Cada qual corresponde a modos espe- turcza. Assim como não há oposição entre natureza
cíficos da intencionalidade e o conjunto abarca o campo , arte, também não é possível forjar um antagonismo
das relações do objeto com o sujeito. -ntrc as duas experiências tanto mais que Dufrenne vem
Vimos que o objeto estético é a obra. de arte, ~n- pro ressivarnente elaborando uma filosofia da Natureza.
quanto percebida esteticamente .. Se o obJeto. estet~co I.m O Poético, por exemplo, a noção de natureza é
corresponder à sua vocação, realizar sua fmalid~de m~ 11m; entada em referência ao mundo, ao homem e à
trínseca, for - numa palavra - ele mesmo, entao ser a "te. Nesse sentido, é de fundamental importância a
um objeto de valor. distinção, de origem espinoziana, entre Natureza natu-
Ao sensível, primeiro plano noemático, deve estar runtc e natureza naturada",
imanente um sentido. Quanto mais perfeita for a ade- A Natureza naturante é espontânea, capaz de re-
quação do sensível com o sentido, tanto maior será a ('1<1 ão e de expressão. E ela que inspira os artistas.
perfeição do objeto estético. E o conceito de belo, () artista, ao criar a obra de arte, responde ao apelo da
segundo Dufrenne, se identifica com a perfeição do ob-
Nruureza. A arte é, portanto, necessária à Natureza.
jeto estético. O belo é o 'perfeit~, ~ acab~do. O contr~- Mus a Natureza naturante precisada natureza naturada.
rio do belo, por conseguinte, nao e o feio. o aborti-
I' I I se revela e se exprime na natureza naturada. A
É

vo no caso de uma obra criada com pretensões a


11 1l11rCZa naturada testemunha em favor da Natureza
objeto estético. . 1\ illI rante.
O homem é um ser-no-mundo. Ele tem necessi-
No artigo A experiência estética da Natureza o
dade de se sentir bem, no mundo, entre as coisas. E
111101' encontrará ampla descrição da experiência pe-
pelo fato de precisar se sentir no mundo, o homem ~em
111111' a natureza: âmbito, condições de possibilidade,
necessidade do belo. Ele é capaz tanto de apreciar,
111l1Í1 s, vantagens. Entre essas, sobressai o sentimento
quanto de criar beleza. . Assim se justific~. a divisão
I li . naturalidade com a natureza. f:. o parentesco
proposta: estética do artista (fazer) e estética do es-
, 'I 'I que une o homem à natureza e o faz sentir-se
pectador (aparecer). A estética de Dufrenne reconhece
"li 1 mesma raça" com os entes e as forças que com-
o belo. Reabilita e enaltece o belo. Sua estética, po-
1'1 "111 semblante da natureza.
rém, para evitar os perigos do relativismo e do subje-
tivismo, não apresenta uma teoria do belo. ( t H) A grafia do termo "natureza", em maiúscula ou m-inúscula.
1111111~i " dist inção entre os dois conceitos.

14 /5

------ -- ~------
Embora não seja nosso intuito apresentar uma cação originária entre sujeito e objeto. O objeto es-
crítica à filosofia da Natureza elaborada por Dufren- tético, aliás, está duplamente ligado ao sujeito. O
ne, não podemos deixar de chamar a atenção para a artista cria a obra de arte. O espectador, através da
existência de certas dificuldades que envolvem seu ° percepção, é responsável pela epifania do objeto esté-
tico. O artista expressa seu mundo interior no objeto
empreendimento. Tais dificuldades poderiam ser com-
prendidas na pergunta: será que o empenho de Du- de modo que, na experiência estética, o espectador tem
frene em sublinhar a conaturalidade do homem com a acesso ao mundo do artista. Daí ser correto nomear o
natureza não o induziu, talvez inconscientemente, a mundo do objeto estético pelo nome do artista: mundo
favorecer a natureza em prejuízo do homem? dc Racine, Mozart ou Van Gogh.
Segundo Dufrenne, a comunicação originária entre
9. No artigo Iruencionalidade e estética, o Autor re- sujeito e objeto - conseqüência da idéia de intencio-
toma e continua a reflexão sobre certos temas básicos nalidade - encontra sua explicação última na noção
da Phénoménologie. A noção de intencionalidade está de a priori. "A intencionalidade significa, portanto, que
no âmago da reflexão filosófica. A. de Muralt vi sua- homem e o mundo são da mesma raça: a comunica-
liza duas dimensões na idéia de intencionalidade: Ie- çã que ela conota se funda numa comunidade'w.
nomenológico-transcendental e fenomenológico-descri- A fenomenologia é uma doutrina. Doutrina que
tiva. Dufrenne, juntamente com Sartre e Merleau- propõe um método. Dentre as aplicações do método
-Ponty, inclui-se na dimensão fenomenológico-descritiva, r nomenológico, sobressai - em Estética e Filosofia
Para ele, a experiência estética do espectador pode a crítica. À crítica, Dufrenne dedica dois profundos
servir para esclarecer a idéia de intencionalidade e rrtigos: A critica. literária: Estrutura e Sentido e Crítica
dar peso à interpretação merleau-pontyana. Isto por- lit irária e [enomenologia, Em ambos os artigos, além
que a percepção estética "procura a verdade do objeto, d que se refere especificamente à crítica literária, de-
assim como ela é dada imediatamente no sensível?", paramos com o pensamento de Dufrenne a respeito da
Do .mesmo modo como o artista se aliena na criação crltica de arte em geral. É o Dufrenne teórico da crí-
da obra de arte, assim o espectador se aliena na per- tlca e crítico penetrante das mais importantes teorias
cepção estética: entrega-se totalmente à manifestação qu norteiam a atividade dos críticos de hoje. Algumas
do objeto. Efetua-se, então, a redução fenomenoló- 11 ias desses artigos, principalmente as restrições em
gica. Real e irreal são neutralizados. Tudo, com f "C do estruturalismo, retomarão em Pour l'homme.
exceção do mundo do objeto estético, é posto entre () principal interesse, entretanto, reside na comprovação
parênteses a fim de que o sujeito possa apreender o 11, que os princípios da fenomenologia encontram apli-
fenômeno, isto é, o objeto, e viver uma experiência içao prática em setores de tanta atualidade, como é o
estética. I IS da crítica literária.
A obra de Dufrenne está sob o signo do binômio
monismo-dualismo inserindo-se, destarte, na problemá- I(). Não nos é possível apresentar uma análise por-
tica da filosofia moderna que não evita a oposição entre 111l'1) rizada de Estética e Filosofia. Na perspectiva em
sujeito e objeto e, ao interrogar o ser, põe em questão 'I1l nos colocamos, o principal interesse do livro reside
aquele que interroga. Não é o momento oportuno para 11 1 primeira parte. Isso porque os artigos incluídos sob
verificar se Dufrenne pertence às fileiras do monismo ou I1 t tulo de "problemas filosóficos da estética" ser-
do dualismo. Interessa-nos, porém, sublinhar a exis- VI /11 de aprofundamento e complementação a temas de
tência de um liame, tecido pela intencionalidade, entre IIIIH rtância decisiva no itinerário estético de Dufrenne.
sujeito e objeto na experiência estética. Ora, da cons- nfase que damos à primeira parte não deve levar o
tatação desse liame, ele passa à idéia de uma comuni- tor 8 menosprezar as outras duas partes. Nelas se
tI) Ibiâ., p, 58.
(19) Dufrenne, MikeJ. Estética e Filosofia, op, cir., p. 51.

16 17
encontram dados de real valor que muito nos auxiliam ~eitura e estudo das demais obras de um dos vultos mais
a ter uma visão geral da obra de Dufrenne. Importantes da estética contemporânea. De fato o em-
Além dos já mencionados artigos sobre crítica, me- ~re:nd.iment~ de Mikel Dufrenne ganha em forç~ e con-
rece ser citado o longo estudo A arte é linguageml , onde sistencra se tivermos presente que sua estética preenche
Dufrenne, colocando-se na esteira de Husserl, Wittgens- uma lacuna da fenomenologia e afirma a possibilidade
tein e Merleau-Ponty, aborda, sob diferentes pontos de de uma estética Ienomenológica,
vista, o problema da linguagem. Na Phénoménologie,
a linguagem auxilia a compreensão do fenômeno da ROBERTO FIGURELLI
expressão. Em O Poético, ao confrontar a linguagem
com a prosa e a poesia, aprofunda a idéia de expressão.
Em Estética e Filosofia é visível a preocupação de Du-
frenne em delimitaras campos da Semiologia e da Lin-
güística e em esclarecer a maneira pela qual deve ser
entendida a asserção "a arte é linguagem"
Na última parte do livro, mais precisamente no
artigo Mal do século? Morte da artei , Dufrenne apre-
senta uma das mais lúcidas análises da arte contem-
porânea efetuadas na década de 60. O autor não se
contenta com observações superficiais mas, fiel à voca-
ção filosófica da Estética, procura as causas dos atuais
fenômenos artísticos para melhor cornpreendê-los e in-
terpretá-los. E no artigo Da expressividade do abstrato
Dufrenne coloca-se, como espectador, diante da pintura
figurativa e da pintura abstrata para, num segundo tem-
po, revelar-se um crítico exímio ao esclarecer e julgar
a pintura de Lapoujade. Nesse artigo não passa des-
percebido ao crítico o engajamento do artista na pro-
blemática de nossa época, como também não passa des-
percebido ao leitor o entusiasmo de Dufrenne ao real-
çar os aspectos humanos e sociais da exposição de La-
poujade.
Como todas as coletâneas que reúnem estudos efe-
tuados em momentos diversos, Estética e Filosofia é
um livro desigual. Um juízo de valor não pode deixar
de tomar em conta a diversidade de assuntos abordados,
os motivos que suscitaram os artigos e o longo período
que se estende de 1954 a 1967. Não obstante a inevi-
tável desigualdade que transparece duma leitura atenta,
cremos que é possível, com o auxílio desta introdução,
ter uma visão de conjunto da obra de Dufrenne e do
seu itinerário estético. Além de servir como comple-
mentação e aprofundamento aos temas básicos da es-
tética de Dufrenne, Estética e Filosofia é um convite à

18 19
Reuni aqui, com o gentil consentimento das re-
vistas nas quais apareceram, artigos cu]a redação se
rscalona por uma quínzena de anos. Deverei descul-
l'lr-me ou, ao menos, dar uma explicação? Para o
11111 r é um modo de fazer uma revisão, de conseguir
,It'/Iurança a respeito de si mesmo, mantendo sob o olhar
ntonremos diferentes de sua pesquisa: feliz se, na falta
'/1' um progresso certamente impossível num domínio
finde sempre se está no começo, constata, ao menos
rm seu pensamento, através dos diversos problemas que
IIhorda, certa continuidade. Quanto ao leitor, talvez
/'/t' observe que essa continuidade é posta em questão
I'do modo de escrever a palavra natureza, ora com,
fi! I sem maiúscula: sinal de que se elahorou progressi-
\'(/I//(mle a idéia de uma filosofia da Natureza. Mas

21
se faz mister acrescentar que essa filosofia impõe o
duplo modo de escrever, segundo se nomeia a natureza
naturante ou a natureza naturada. Em todo caso espero
que o leitor seja sensível à diversidade dos probLemas
suscitados nestes textos: tal tolerância somente preten-
de solicitar a reflexão e seu único mérito reside na mul-
tiplicidade de vias TUlS quais se engaja.
E necessário também justificar o título desta cole-
tânea. O primeiro artigo a isso se dedica, querendo
dizer que a estética só pode se realizar JU) interior de
uma filosofia e também que a estética é uma via privi-
legiada para a filosofia. Privilegiada para o autor, em
todo o caso; mas talvez o leitor esteja pronto a segui-Ia
por um momento.
M.D.

Prefácio

A CONTRIBUIÇÃO DA ESTÉTICA
À FILOSOFIA

I r. ~~tes de con~truir conceitos ou máquinas, enquan-


li, nc~va as. pnmeiras ferramentas,
<I, o homem criou
"~iI()~. ,e Pld~tou Imagens. Mas essa prioridade não pode
I I r CIVIDicada tanto I 1"-
I I di pe a Te 19IaO, quanto pela arte?
",_, rsputa, provavelmente, não tem sentido nesse pri~
uu-rro momento da humanidade R I' ,- ,
I II I' t d ' , J, e 19lao e arte so
I I S ar e se distInguirão verdade' , ,
11 fi .icnte com reende Irame~te, AqUI e
II Ilnme d h P r que a arte espontanea exprime
I 1\ li, o, ornem com a Natureza. E é nisto que a
a vai meditar ao considerar uma experiência
22
23
se veja nisto uma necessidade artificial despertada ou
original, ela reconduz o pensamento e, talvez, a cons- em todo o caso? orientada pela cultura; mas é sempre
ciência à origem. Nisto consiste sua principal contri- a natureza que Inventa a cultura, mesmo que seja para
buição à filosofia. nela se .negar. I7ssa sede não é nem muito exigente,
Não se trata, porém, de remontar à noite dos tem- ne~ mu_Ito consciente (e isso explica que nossa civil i-
pos: a estética não é a história, e a pré-história que ela zaçao n~o. a ~enha sempre em muita consideração e ten-
I
I explora não é a das sociedades sem história mas, na
história, a das iniciativas que em todas as épocas edifi-
da. a privilegiar a funcionalidade, por exemplo, na ar-
quitetura ~ n~ organização, do ambiente de vida); ela

I cam a cultura e descortinam uma história. Sim. Cada


,~ssas iniciativas - o olhar novo que um homem
se .torna conscia quando esta satisfeita. Por quem? Por

f lança à paisagem, o gesto novo que cria uma nova for-


ma - se inscreve na cultura. A estética, entretanto,
obJe~os que ofere~em aJ?t!nas sua presença, mas cuja
plenitude se anuncia gloriosamente no sensível. O belo
é esse valor que é experimentado nas coisas bastando
dirige a atenção para o âmbito que se situa aquém do que apareça, na _gratuidade exuberante da; imagens,
cultural. Em que é que ela se empenha? Mais do que quando a percepç~o cessa de ser uma resposta prática
em apreender o natural, enquanto se opõe e se liga ao OoU quando a praxis cessa de ser utilitária. Se o homem
cultural, em apreender o fundamental: o próprio sen- na experiência estética, não realiza necessariamente sua
tido da experiência estética, ao mesmo tempo aquilo que vocaç~.o, ~o menos manifesta melhor sua-condição: essa
a fundamenta e o que ela fundamenta. Para esta pes- expe~IencJa revela sua relação mais profunda e mais
quisa será invocado o patrocínio de Kant: o que torna :strelta c~m o mundo. Se ele tem necessidade, do belo,
possível a experiência estética é sempre a questão crí- e n medI em ue recis se sentir no mundo. Estar
tica. a qual pode ser retomada se orientarmos a crítica no mundo não é ser uma coisa entre as coisas, é sentir-
para uma fenomenologia e, depois, para uma ontologia. -se em casa en~re as, co.isas, mesmo as mais surpreen-
Outro cuidado de Kant é determinar o que essa expe- dentes e as I1!-als terríveis, porque elas são expressivas.
riência torna possível e de que modo garante a busca Or~,. um sentido se desenha na. própria carne do objeto
do verdadeiro e atesta a vocação moral do homem. Re- estet~co,. como o vento que aroma a savana; um signo
tomemos, portanto, livremente a Crítica do Iuizo, nos e felto~ O q~~l ~os remete a si mesmo: para signifi-
Mas antes de abordar o problema crítico, é neces- car, o objeto ilimita-se n?m mundo singular, e esse
sário descrever rapidamente a experiência estética. O mundo e o qu~ ele nos da a sentir. Esse mundo que
primeiro problema colocado por essa descrição já in- nos fala, nos dIZ. o mundo: não uma idéia, um esquema
tegra a estética na filosofia: o que é o hom;m-?illl!.@nto ~bs~~to, uma VIsta sem visão que viria se acrescentar
I
sensível ao~b 10 isto é, enquan o capaz-do apreciar a a visao, mas um ~s!ilo. que é ,um mundo, o princípio de
be eza segun o a normatividade do gosto, e de produ- um mundo na evidência sensível. A superfície do visí-
zi-Ia segundo os poderes da imaginação? O belo é um v~l, o que "a duplica de uma reserva Invisível" como
valor entre outros e abre caminho aos outros. Mas o d~z - etleau-Pon ~I ~ esse mundo do qüãl ela ~tá grá-
que é um valor? Não é só o que é procurado, é aquilo VIda e ue ~OnStItUl o seu sentido. Um sentido que
que é encontrado: é o próprio de um bem d$-;um ohje- ressoa. ~o mais profundo do corpo, mas que não solicita
to que resgonde a algumas de nossas tendências esatis- sua atividade como fazem uma presa, um obstáculo, uma
raz a gurnas de ffo-ssro- nec~~ãCfés. "'"í\: exigenclaae ferramenta ou mesmo um discurso, um sentido que so-
va or está enraizâdâ" na VI a eõValor está enraizado ~ent~ ,s~ dá a sentir e cuja idealidade é apenas algo
em certos objetos. Aquilo que vale absolutamente não l~a~narIo., . pe modo que aJenomenologia da ~xpe-
vale no absoluto, mas em relação a esse absoluto que é riencia estettca. e.nfrenta diretamente a questão funda-
um sujeito, quando ele se sente ou se quer satisfeito por
mental do sur81mento da representação na presença: do
um objeto, real ou imaginário, que aplaca sua sede de
bebida, de justiça ou de amor. Há uma sede de beleza (I)
A
P.
Le visible et l'!nvisible, '37. (O Visível e o Invisível. Tradução
em português pela Editora Perspectiva, Col. "Debates", 1971.)
no homem? É necessário dizer que sim, a não ser que
25
nascimento do sentido. E não nos admiramos que Mer-
leau-Ponty ten a meditado sobre a linguagem indireta coloca em jogo eSSe acordo das faculdades, e o juízo
da arte e sobre as vozes do silêncio. determinante só pode manifestar a autoridade do inte-
lecto legislador porque o juízo que reflete manifesta,
O sentido só pode aparecer nessa expenencia se primeiro, a possibilidade de um acordo de todas as
todas as potências da consciência nela já estão presen- Faculdades. ~ eriência estética rtanto, teste-
tes. A percepção estética é a percepção aberta e feliz munha uma aQtidão ...Q. homem para a ciência. A ciên-
que atesta essas potências e solicita a reflexão sobre cia é suscitada pela praxis e, sõbretudo, pelos fracassos
elas. Ao mesmo tempo, ela anuncia e prepara para a dessa praxis. ciê cia, enquanto teoria, - é cons-
consciência o seu futuro, fundamenta-o, como dizíamos trução de conceitos e, depois, e máguinas ue produ-
há pouco. Primeiro, o fato de o homem ser sensível ao -zem o jetQ1! a medica os concei!os - provém do pen-
elo indica, con orme Kant, sua iptlilãõpãr.a_a..morali- samento que é juízo. Esse pensamento é delirante en-
dade. O acordo livre das faculdades, que desperta em quanto ãimaginãÇáo exerce sua liberdade fora de todo
nÓs um sentimento de prazer, se produz quando seu controle do intelecto, como no sonho; mas o delírio se
exercício é como que sublimado: o intelecto se supera abranda e se torna promessa de razão quando a imagem
rumo à razão quando os conceitos se ampliam em idéias se carrega de sentido ou quando se torna, pela operação
estéticas e quando a brancura do lírio se torna símbolo do gênio, idéia estética. lndubiamente a poesia não
da inocência; e a imaginação se liberta do domínio do é ciência, mas a prepara, não só ao provocar o pensa-
intelecto refletindo a forma do objeto e "se divertindo mento positivo por meio de obstáculos epistemológicos,
na contemplação da figura'". O acordo situa-se, por- mas ao exercer o intelecto em objetos ainda imaginá-
tanto, em um ponto de concentração no supra-sensível, rios, E ela também a confirma: a verdade de uma teo-
que atesta a vocação do homem para a racionalidade e, ria sem re se recomenda Ror sua e egancia, como se o
no domínio prático, para a moralidade. Não é ne~s- be o ornecesse antia.a M.e_Id~ij). ,com êfêito,
sário, para aceitar essa análise, conceber o _supra-sensí- toda teoria, mesmo quando não ainda formalizada, já
ve como uma superaçao ra ical dosensível, e mora- a é formal, e só é materialmente verdadeira com a con-
lidade como a su missão a"Uma iormãPilrã trãnscen- dição de se-Io formalmente, visto que as deduções que
ente a fado conteúdo. O que retemos de Kant é, em autoriza devem, em primeiro lugar, dar prova de validez
primeiro lugar, a idéia de uma harmonia espontânea segundo critérios formais. Ora, é a forma que se re-
e feliz das faculdades; a ex eriê '~sté íc econci- vela na experiência estética; e mesmo a imaginação ma-
lia-nos conosco mesmo: ao abrir-nos à presença do terial, segundo Bachelard, é a qualidade formal do ver-
objeto, não renegamos nosso poder de conhecer, dei- bo poético que a solicita, enquanto o sonhador de ma-
xamo-nos penetrar por um sentido, sem dúvida inde- térias é "um sonhador de palavras'"; e, finalmente, a
terminado, mas insistente, que pode ser o símbolo de matéria é sempre informada. Contudo, alguém dirá que
um predicado moral, como os cumes o são da pureza a forma lógica, que se presta à necessidade lógica, não
ou as borrascas das paixões. f.lém disso, o belo não tem nada em comum com a Gestalt que se recomenda
estimula como um estímulo qu uer, e e inspira, mo i- por uma necessidade sensível; a necessidade lógica su-
Ig~---ª_alma mtelra':e ãtõfria disponível, f: sobre esse põe a linguagem - um simbolismo lógico -, e não
fundo que se desenham as figuras da moralidade, na há linguagem em arte, só há linguagem em poesia. Do
medida em que requerem simultaneamente um engaja- mesmo modo, o formalismo estético que regula uma
mento total da pessoa e o poder de superar o real ru- prática é totalmente diferente do formalismo lógico que
mo a um irreal que pode ser um ideal. constitui um objeto ideal. Certamente. Mas a forma
lógica, ainda que só exista para um pensamento capaz
também para o verdadeiro
É que o homem se di- de pureza e de rigor, tem certa "forma" que, sem ser
rige ~toâa:ã::::ã ma. O ]uízo que visa - à verdwe sensível, apela para a sensibilidade: há nela como que
(2) Kant. Critique du Lugement , § 16. (3) Poétique de Ia rê veríe, p. 10.

26 27
um estilo ideal de encadeamento dos objetos ideais. E, Ora, a mesma experiência talvez nos sugira que
por outro lado, a prática artística, se o formalismo das essa unidade não tem sua origem no logos humano,
normas nela não exaure a inspiração, cria um objeto numa atividade constituinte, mas na própria Natureza.
- real e não ideal - que "dá o que pensar", e só Pois se pode dizer, contanto que se evite qualquer in-
agrada com essa condição, na falta da qual ele deixa flexão teológica, que ela sugere à filosofia que vá do
indiferente ou só é agradável e vazio. Evidentemente transcendental à transcendência, da fenomenologia à
esse pensamento não é ainda o pensamento formal de ontologia. E ainda é Kant quem nos ensina, que pri-
um universo do discurso nem o pensamento positivo vilegia a beleza natural e que, após ter evidenciado, no
do universo científico; é, antes, o sentimen um juízo estético, o livre acordo das faculdades, considera
mundQ, de urri possível do real. as as operações que o acordo contingente da Natureza com nossas faculda-
~stroem o possível lógico como trama do real talvez des. Sim, a estéti a contemporân a, tão atenta a des-
se preparem nos atos da imaginação que se abre às fi- cobrir no artista a ativida e e um ego transcendental
guras irreais do mundo ao apreender formas ricas de ~ análogo àquele que constrói a ciência, ende qaecer
sentido. Apreender essas qualidades formais que con- Y gue a Nature a-p,rmu a-beleza. Muitas vezes o artista
ferem a um monumento, a uma sonata ou a uma pai- deve embrar ao esteta que ele é inspirado pela Natu-
reza, quanto à sua vocação e ao seu ato, e que ele

l
sagem a virtude de se expandir sem limites num mundo
possível, é imitar, na ordem do sentimento, o processo exprime a Natureza mesmo-quando dela parece se apar-
racional que construirá formalismos lógicos para ex- t~r: assim como(§; abstr~tdl na operação do sab:r,
VIsa ao real do qual~pro em, o abstrato, na produçao
plicar as aparências. Poder-se-á, assim, mostrar q~e
da arte, diz ainda um mundo que é proposto ao artista
a beleza a~la ara o sa...er: que as idéias fun-
pelo mundo. E, sobretudo, o artista é provocado pela
,damentais de invariável, de ordem, de lei, são su- beleza do mundo a produzir algo de belo onde a Natu-
geridas por certas propriedades dos objetos belos; e reza se exprime. Ora, pela beleza, a Natureza mani-
também que a criação de certos objetos da plástica ou festa sua complacência em atenção a nós. Indubia-
da música requer atividades como contar, medir, orde- mente como lembra Kant, a finalidade implicada pêlo
nar, onde a imaginação já é esquematizante, e que imi- juízo estético é uma finalidade sem fim, subjetiva e for-
tam os processos da ciência. De ois, uando a opera- ma cuja realidade reside "na finalidade interna da re-
ção da ciência tiver sido realizada, quando as aparências ~çao e nossas faciildâdés su15jetivas"s. Mas resta que
tiverem SI Oãesarma as e dominadas, o gosto das for- a Natureza se ajusta a nós: parece que imita a arte
-mas sensíveis virá reanimar o sentimento insubstituível cujas produções estão deliberadamente ordenadas para
d.e uma-plenitude-do ser,e de nOssa familiaridade nativa a felicidade da percepção. Será necessário dizer que
cOl!'LJ!le._ esse acordo é apenas contingente? Sim, tanto que se
Assim a experiência do belo convida a filosofia a concebe a natureza só sob o aspecto crítico, como o di-
verso empírico, essa matéria-prima que o intelecto in-
meditar na unidade de sentido da palavra forma (ou
forma. Mas o fenômeno da beleza convida a re ensar
também da palavra estrutura), isto é, na relação entre
a idéia déiiãfureza. A Natureza capaz de bondade é,
a forma sensível dada como Gestalt significante, pró- atraves do diverso empírico que nunca é propriamente
pria ao objeto estético, e a forma racional elaborada natural porque sempre já leva a marca da mão e do
pelos formalismos que, para compreendê-lo, substituem intelecto humano, uma potência escondida, Gaia, a Mãe,
ao objeto real um objeto ideal. Em outras palavras, e também a esposa que c ãinãõ esposo, nãõCõiDo a
ela convida a meditar na unidade dessas duas atividades matéria deseja a forma, pois ela já se revela por for-
"complementares como contrários bem feitos", dizia mas ou por imagens, mas como o incQnscien~.-d.esçja
Bachelard': a poesia e a ciência. a consciência, como a noite eseja o dia. O homem só
(4) Psychanalyse du teu, p. J.O. (5) Critique du Jugement, § 58.

28 29
é o correla to dessa Natureza porque é o seu produto, em que o homem, confundido inteiramente com as coi-
o filho; ela fala ao homem ao lhe prodigalizar imagens sas, experimenta sua familiaridade com o mundo; a Na-
nas quais se revela, para que ele a diga; sua compla- ~ureza se desvenda para ele, e ele pode ler as grandes
cência não é nem fingida nem fortuita. Isso não sig- Imagens que ela lhe oferece. O porvir do lagos pre-
nifica, evidentemente, que ela seja premeditada: só o para-se no encontro ant~ior à lingl!agem onde é o Na-
homem põe fins, mas porque ele mesmo é produzido tureza que f~la .. \.Natureza natu.ra~")..que Qrodu,z o
como fim por uma força que só nele se conhece. Assim homem e o mspua ter acesso açonsciência. Com-
a arte responde a esse apelo da Natureza: e a a e;n=- pr~e.nd~-se, por~a.nto, que certas filosofias 'optem por
me ao ex nmrr os muu_dos_dos quais está grávida. privilegiar a estética: com isso remontam à fonte e to-
a arte celebra aNªJu..r.çza. - - - . das as suas análises nela se encontram orientadas e es-
clarecidas.
Mas o sábio e o agente moral também respondem
a seu modo. Pois o mesmo apelo lhes é dirigido, a
mesma inspiração lhes. é dada: também a ciência, ao
elaborar teorias ue e.gem~rtos ommlOs e ten em a
êoiiVêi-gir numa figura do universo, iz, mas eõütro
mo o, -ª_ a ureza. EenecessárlO, Na-
e fãto, que ã
tureza se preste a isto, que o cinábrio seja constante
em sua natureza e que os corpos simples não sejam
por demais numerosos: a inteligibilidade do dado, a
conveniência quase miraculosa da verdade formal e da
verdade material, se podem ser explicadas por uma
gênese recíproca do a priori e do a posteriori, é na Na-
tur~za, ~ aspiração da Natureza à luz, que t~vez te:-
nham sua origem. E o mesmo vale dâ praxis técniêa
que, longe e fazer, em sua-essência,-violência à a-
tureza, trava amizade com ela, conhece-a e a aperfei-
o oa; e cõrii'Oêlanao-desnatura a Natureza, tambérii não
;~ aliena necessariamente o homem. Enfim, a ação moral
que procura realizar no mundo o conceito de liberdade,
que trabalha na promoção, através das vicissitudes ter-
ríveis da história, de uma República dos fins, visa a
uma relação final da Natureza e do homem: a consti-
tuição civil deve ser instaurada pelo homem conforme
sua própria razão, mas não contra a Natureza; e se
algum progresso é possível, é porque a Natureza quer
a cultura, no homem, e no mundo, como aquilo que a
desenvolve. De modo que o supra-sensível que tende
a se realizar no jogo cego das forças sensíveis talvez
seja o desejo do infra-sensível, da Natureza como fundo.
Assim a experiência estética pode ser descoberta
na partida de todas as rotas que a humanidade percor-
re: ela abre o seu caminho à ciência e à ação. E é
claro por que: ela se situa na origem, naquele ponto

30 31
I
PROBLEMAS FILOSÓFICOS
DA ESTÉTICA
o BELO .

Como nos referimos ao Belo? Essa alavra, que


tem função de adjetivo na linguagem cotidiana, torna- e
~uõs antIvo na lingua em erudita.da.filosoãa.ou daes-
tética: o jire 'lcaaõtOrna-se sujeito e ode, or sua vez,
scr--redicado, como diriam õs lógicos; assim, quando
nós dizemos "o Belo é um conceito", ou "o Belo é o
denominador comum de todas as coisas belas". O
que significa, portanto, essa dualidadq de emprego?
Consideremos, em primeiro lugar, o juízo em que
() belo é um atributo: "esta escultura é bela". É um
juízo de valor: reconhece a qualidade de certo objeto
quando esse jeto é apreendido segundo certa atitude
que é a contemplação estética. Se o modo de intencio-

35
naJidade ou a atitude são diferentes, outros valores são Para Platão} realmenre, saber e sabedoria exigem
invocados; se se trata de agir, poder-se-á dizer: "este q.ue o hom,em se liberte do mundo sensível e deixe de
objeto é útil"; de saber: "este objeto é verdadeiro"; viver no nível do percebido para ter acesso às idéias
de amar: "este objeto é amável". O juizo de valor es- d.onde ele r.etomará ao mundo. sensível no qual se de~
tét~o, aliás, pode ser emitido a. propósito e objetos cide o destino de seus companheiros. E essas idéias
que não parecem solicitar a atitude estética; dir-se-á, provavelmente, apenas miticamente são realidades nu~
põC"exemplo, de um ato de coragem que é belo, ou de mundo inteligível. Pois, por si mesmas, nada mais são
um raciocínio lóglco;-ou ate mesmo dê umreliz acaso. que uma lu~ ~~ra aclarar o dado ou para inspirar a con-
Isso podería induzir-nos a pensar que a noção de bele- duta. As Idelas constituem os elementos de um dis-
za é bastante elástica; mas isso também significa que Curso lógico e não oossuem ser fora da contextura-dia,
muitas coisas podem se prestar, por algum fIanco, à !etlc.a. que elas compõem, como as palavras não têm ser
atitude estética. Também acontece, de modo inverso. significante - a não ser abstratamente, nos dicionários
que nosso juízo se exprime timidamente num vocabulá- - fora da. fr_~se e .da totalidade da linguagem. Mas
rio menos categórico e que, em lugar de dizer que um entre essas idéias CUjOser é necessariamente indetermi-
objeto é belo, dizemos que é bom, valioso, autêntico, nável, porque consiste em se abolir no sentido por elas
interessante etc. engendrado, uma az.exçeção: ~Be eza. Pois ela é
Mas é sua rete!l§ão à universalidade o ue espe- ti uruca que resplandece; e a é a única - diz Fedro
cifica, em o os os casos, o juízo de valor estético. - .que tem. c: p:ivilégio de poder ser aquilo que está
ObservouiÕ Kan e é, de fato, o ponto de partida de mais em evidência e cujo encanto é o mais atraente"
sua reflexão: quando emito determinado juizo, não posso ~nquanto as outra~ id~ias, "justiça, sabedoria, não pos~
deixar de reivifídiõãr para ereãê1Jjetiviaaâe edeixar de s~em nenhuI?a luminosidade nas imagens deste mundo".
ensar gue dev~e por tod.Qs subscrito. Por certo, f: verdade, ~to apenas significa gue o objeto belo nos
também posso pronunciar juízos sub'~s, em primei- .nvoíve e emociona mais Imediatamente do que qual-
ra pessoa, ao dizer, por exemp o, ' gosto desta obra" ou ",uer out~o ?~jeto, por ue ele é, ao mesmo tempo, sen-
"prefiro isto àquilo"; mas, nessas circuns ancra , tenho 'Ivel, e slgmflcante: nessa experiência incomparável o
consciência de exprimir apenas meus gostos e, afinal, ~ nsível revela. em lugar de ocultar. C Mas é tentador
de julgar a partir de mim mesmo mais do que do objeto. ~l1po~'que aquilo que nos arrebata nos transporta fora
Portanto, distingo claramente entre [uízo objetivo e juí- daq.U1,. nu~ outro mundo, e que o seu poder lhe vem
zo subjetivo; e talvez seja necessário estar de má-fé ou da mutação da Beleza em sil
ser ingenuo por excesso de sutileza para sustentar um 1:: assim ue o cJassicismo se escuda no platonismo
relativismo total e afirmar que todo juízo ,estético é p lr.a conceber uma estética normativa, fundada sobre a
irredutivelmente subjetivo. Idéia de que há, de fato, uma idéia ou uma essência do •
Contudo, esse relativismo, encorajado de bom gra- '~". Essa idéia justificá: então, uma dupla normati-
do pela história e pela sociologia, pode ser primeiramen- vidade, ~or um lado, confere autoridade ao juízo críJ
te uma santa reação contra certo dogmatismo que pre- 11'0 exercido elas "academias", por outro lado, esta-
valeceu por muito tempo e ao qual nos conduz a subs- bclece uma concepção didática da arte que se exprime
tantivação do adjetivo belo. Com efeito, se o juizo es- IIIS "artes poéticas". Assim a idéia do Belo não con-
tético aspira à universalidade, ele é tentado a justificar rva sua transcendência: ela se concretiza e se especi-
essa as iração recorrendo a um conceito que também ri 'U em modelos determinados, dos quais os cânones da
é universal: objeto belo é aquele _que realiza e mani- rquitetura ou a regra das três unidades figuram entre
festa o beJo. - Reconhece-se aqui o movimento platônico ti mais célebres. Esses modelos impõem-se tanto ao
~nsamento que vai ser retomado, talvez com alte- r ti o que julga as obras em seu nome, quanto ao ar-
rações, pelo racionalismo clássico. ti til que deve criar conforme eles, assim como o de-

36
-,37
novas aventuras. O fruto desse esquecimento é a ma-
miurgo do Timeu cria o mundo contemplando as idéias, nutenção da tradição: o ensino de certo número âe re-
Os julgamentos proferidos pela Academia Real, no sé- ceitas que devem garantir a beleza da obra.

s:
culõ-XVI-I seriam um excelente exemplo do dogmatism Essa idéia, por certo, não é insensata. O
es ontâneo que assim se exerce na crítica e na peoa- história contesta é que uma tradição possa reivin icar o
gogia. ara prová-lo basta a seguinte pass~gem de ~m . egredo ao Belo como um monopólio, como se a idéia ,
discurso de M. de Champaigne "contra o discurso felt? do Belo se reduzisse a um sistema determinado de mo-
por M. Blanchard sobre o valor da cor": "Eu não sei, delos e a prática artística a um. sistema determinado de
senhores, se podemos crer que °
pintor se deve prop.or regras. Mas a verdade é que a arte recusa a improvi-. I' o-

outro objeto a não ser a imitação da bela e perfeita ação, ela eXige pre ~endizagem e o contacto O' Cil-
natureza. Deverá propor-se algo de quimérico e de in- c m uma traâição. Somente que essa aprendizagem,
visível? Consta, entretanto, que a mais bela qualidade que põe o artista de posse-de uma técnica e de meios de
do pintor é ser imitador da perfeita natureza, sendo im- expressão, deve libertá-Ia e não escravizá-lo; e, com
possível ao homem ir mais além "1. efeito, todo artista autêntico, quando torna consciência
Esse dogmatismo é, no fundo, ,ª-expressão da rá- de Sua vocação, exerce sua li6er àdê cnadora e aparece
tica e dos gostos estéticos de uma épo.ca· mas não tem Como revolucionário aos olhos do público ou das aca-
,disso consciência e, por isso, ajJsolutiza uma Id-éia~o dériiiás . .-_Há, é certo, gfáiides obras anônimas que se
,belo que é relativa. Justifica a promoção da idéia a~ prendem mais a uma escola do que a um indivíduO;.;
absoluto dizendo que essa idéia é impo....§.@. };leia natu~ provavelmente elas só foram possíveis porque o artista
(e nãov-propôsta -pela cultura). Em primeiro lugar, se identificcu, com profundidade suficiente, com o gênio
.ela natureza das coisas: é por isso~rtasfõfi'iíãS do seu empo para ser ver a eirarneüte inspirado por
são invoca as a r..erfeição d~ <:i!:culo - idéla.~-: 'le ao ínVés e aplicar mecanicamente processos reco-
télica -, ou _do- Reõtágono como i1l1-ª.gen:~3Ic:ocos- mendados pela escola.
mo - ídéía.medieval) ou certas proporçoes (o numero Este seria o momento de evocar a inspiração e unir
de ouro), como a SO'lutamente belas, e já presentes na i imagem do artista-artesão a imagem do ;u:tista ins-
natureza que a arte deve imitar, suposto que se descarte pirado. A i éia dessa Ioucur maravilhosa que se a 0-
dos a~tos feios. Em segundo lugar, pela- natureza dera do.arrista e o ança a ora de si mesmo também
do orne pais Q paJ;er estético peilllane.ce_o juiz ao já se encontr em !>latão_._Essa idéia significa, em
ua é mls er consultar; mas se tem a convicção, preci-?" primêlro lu ar.,--inte.r.Rretada Ror um racionalismo--UC- ~";-1L
samente, que esse prazer é determinado por uma estru> ti 'Ia desconfia - que a criação de uma ob ela é it",'r;r.&
tura imutável dksensorialidade e da razão humana de t revlSlvel e UC-a- a Ida e se eve acresceotar-'l ~
- modo que ,3!Lconsonâncias, as homoíóhias, as formaS:::: sorte ou, como às vezes se diz, a fe iCidade. Mas se a
belas ou os enunciados claros merecerão, sem re e em idéia for toma a com mais rigor, será necessário per-
toda a parte, ser chamados ~elosQ; or ue agra am, en- 'untar quem inspira a criação: se for a idéia do Belo,
quanto as dissonâncias,. os hiatos, as orma equivocas -ntão não pode ser essa idéia enquanto ela se referir a
o os enunciados confusos serão feios orque esag a- 11111 sistema de preceitos ou receitas, pois a regra força
damo Apenas se olvida que o que pare e m a o da l' não inspira. Mas poder-se-á dizer que uma idéia seja
nàtureza é, realmente, um fato de cultura, que certas inspiradora? Sim, pois os homens vivem e morrem por
harmonias agradam ao OUVI o ou certas formas plásticas ld ias: pela liberdade ou pela justiça; contanto que a
própria idéia seja bela, isto é capaz de seduzir, porque
à vista porque esses órgãos foram condicionados desde
da provém da natureza. É •necessário, portanto, que
cedo por certo ambiente artístico e, portanto, que o
1I idéia do Belo deixe ~er idéia, que não nos fale e
artista tem direito a fazer violência a gostos que, no nHO nos estirriule como uma noção abstrata, mas ue
mais das vezes, não passam de hábitos lançando-nos em ('sI ja encarnada em objetos belos.
(I) Citado por LhÕte, De Ia Palette à '~ritoire, p . .J~.
i~

39
38
Platão, por este desvio, conduz-nos a Kant. Kant, do objeto> ~ uma qualidade que atribuímos ao objeto
com efeito, propõe rirneirarnente uma teoria do juizo" para expnrnir a experiência que fazemos de certo estado
estético: com que direito posso julgar que uma coisa é de nossa subjetividade atestada pelo nosso prazer: "co-
e a. O critério é aze que ela desperta em mim: mo se, ao. chamarmos uma coisa bela, se tratasse de
prazer desinteressado, ligado só à forma do objeto e uma propriedade do objeto nele determinada por con-
(1ãõ,Como no aSsentimento, ao seu conteúdõ. O nela é. c nos e, contudo, a beleza, separada do sentimento do
portanto, áquiló que agrada. Mas Kant acrescenta: uni- sujeito, não é nada em Si"4.
versalmente, sem conceito. "Sem. conceito" quer dizer
que nao a iaela o hera, isto é, um modelo que possa Será essa a última palavra de Kant? E por ser o
belo St?1 conceito será necessário concluir que ele é
~:t:-
~

r:r'~-
crientar meu juizo e servir de padrão._O belo_ só se en-
contra em objetos sensíyeis.. e só a sensi ilidadê é o
juiz. "P~ocurar um princípio do gosto que dê, através
d:sprovldo de toda objetividade?
teuco nos ~ d~d?
Afinal o prazer es-
E é o objeto que o desperta. Se·-
longe dos indivíduos se pautarem pelo objeto para jul-
~ de con~elto$ determmado:,. um. conceito un.iversal do
garem sua beleza - "o juízo de gosto consiste preci-
,pV~':. gosto, e um trabalho estéril, VIsto que aquilo que se
samente em chamar uma coisa bela somente através da
procura é impossível e contraditório em si'": contradi-
qualidade pela qual ela se acomoda ao nosso modo de
tório, porque o rincígio do juízo estético é o senti-
mento do sujeite. e não o conceito de um objeto. De tomá-la"~, ~ont,udo. é. a coisa que manifesta essa quali-
certo modo, o objeto belo, aqui, é apenas ocasião de dade: S-,JUIZ.O~ .obJetlvo registrando-a, mesmo se ele se
r fere a subjefivi ade. O fato de o belo não ser experi-
prazer; a causa do prazer reside em mim, no acordo da
menta..do s:m que haja essa relação não significa que

I
imaginação com o ififêlécto; isto é, das <cluas faculdades
que tõdo encontro do objeto põe em jogo; mas, enquanto ele nao seja dado numa experiência irrecusável. Há
no juízo de conhecimento o intelecto governa a imagi- um fat~ do belo, mesmo se esse fato é sempre um fato
nação, na experiência estética a imaginação é livre, e o para nos.
que experimentamos é o livre jogo das faculdades e da . . É esse fato, precis~mente, que interessa '~ @ e
sua harmonia mais do que a sua hierarquia. tnsplr~ o .seu empreendimento. Mas o que o interessa, \
O aradoxo ermanece na reivindicação da univer- c.~ ~nmel~~ lugar é, sem dúvida, o apoÍo que a expe-
salidade elo juiz . de_gosto: semã=qu nãe falaríamos nencia estética pode dar à experiência moral. Há uma
de beleza, mas de agrado pois, quando julgamos que {1fima~ e entre essas uas experiências, testemunhada
uma coisa é agradável, nós não esperamos, nem exigi- pela linguagem comum, visto que "designamos objetos
"'" mos de outrem que esteja de acordo conosco. uni- belos com nomes que parecem fundados numa apre-
"\) versalidade, portanto, tem aqui seu princípio no sujeito .iação mo.ral"6: falamos de um edifício majestoso, de
Uão no o je -: é ma universalidade subjetiva. Mas uma campina ridente, de uma cor inocente ou modesta.
como então justificar essa pretensão? É suficiente su- , assim que as idéias estéticas que a poesia sugere,
por: "que em todos os homens as condições subjetivas "estas representações da imaginação que dão muito a
da faculdade de julgar são as mesmas ... o que deve ser pensar sem que nenhum conceito lhes seja adequado"
verdade pois, caso contrário, os homens não poderiam • em que ,tradução alguma seja possível na linguagem
comunicar suas representações e conhecimentos" 3. da prosa, tem algum parentesco com as idéias racionais
V ê-se que essa análise, conforme ao espírito do suscitadas pela prática moral: o belo é o símbolo dO\
idealismo transcendental, inclina Kant para a negação I cIlli ele não nos ensina o qüe é o 6em, pois o bem,
de toda, objetividade do belo; o belo não é nem uma 'orno a so uto, so pódé ser realizado e não concebido.
idéia em si, nem uma idéia no objeto, nem um conceito Mas ele no-Ia sugere. E, so retudo, o belo insinua que
objetivamente definível, nem uma propriedade objetiva somos ca azes de realizar o bem; pois o desinteresse, ~
(2)
(3)
Critique dú l ugement,
lbíd., § 38.
§ 17. (4)
(5)
(6i
lbid., § 9.
lbid., § 32.
lhid., § SR.
(J-,.,1
l/.JlJ'JZ9-
Ii ~.-o\.
--:.:---' 'I
IAI. _ U _
~

40 4/
ou a obra de gênio é que são belos, modelos-a mesmo
próprio do prazer esteuco, é o índice de nossa VOCJ- rernpo exemplares e inimitáveis. Poderá ege ajudar-
çao mora. 0- sentimento estético anuncia e prepara o n s a ir mais longe? Para dizer a verdade, nós já nos
sentimentà -moral: _"Eu concordo, de bom grado, que (IV nturamos em suas paragens. É em Hegel ue se
o interesse que se atribui ao belo na arte não seja prova i: plicita a idéia - apenas esboçada por Kant - de
de um .espírito vinculado ae bem moral. Mas, ao con- 11l11areconciliação ntre a natureza c o espírito. ,egel,
trário, eu sustento que ter um interesse imediato pela ~im duvida, se interessa antes de tudo pela arte. Ele
beleza da natureza> é sempre o sinal uma alma não elabora como Kant, uma teoria do juízo estético
boa ... "7 mas ma teoría da arte e do seu devir. Do seu devir,
Observamos ue Kant, aqui, exalta o belo da na- porque, com Hegel, uma nova idéia conquistou direito
tureza. E sendo isso constante em sua rcfl~re- d cidadania em filosofia: a idéia de história. Ficamos
con uz-nos à objetividade do belo: ,t,ncontramos objetos saben o que os semblantes do be o são múltiplos e sua
na natureza que estimulam, em nós, a experiência es- diversidade é irredutível afravés do tempo. Mas isso
etica. E' essa experiência não interessa à filosofia nâ nos deve conduzir a um relativismo ou a um ceti-
transcendental só porque nos instrui sobre o sujeito, cismo superficiais, pois o devir é pensado por Hegel sob
scbre o jogo de suas faculdades c, indiretamente, sobre os auspícios da dialética: obedece a uma necessidade
sua aptidão para a mcralidade mas também porque nos lógica, gue o orienta e o racionaliza (a tal ponto que
esclarece sobre a natureza, sobre aquilo que Kant chama quase deixa de ser devir: é um problema momentoso
de "a possibilidade externa de uma natureza concor- - que não será por nós aqui abordado - saber em
dante", isto é, sobre o fato de.J!-Ilatur.eza se Rrestar à que medida a dialética pode recuperar a história e se
atividade intelectlli!." ôQ:SUjeito. Entre o diverso da o lógico não corre o risco de suprimir, de alguma forma,
in ulção "e a unidade de conceito, é possível o acordo o cronológico por ele suscitado e ilustrado).
requerido peio con eClmenta: o mundo é pensado por- Mas se esse devir é um devir lógico, é, por acaso, ~
que é pensável. Isso no-Ia prova a experiência do belo.
um devir da idéia? Não. Não há mais idéia do BelO\~'-ot
Assim a filosofia transcendental pode se completar em Hegol; ffi•• o belo ê a idêiaffie<ffia, encamada.~n- '~\
graças a uma fi os afia da natureza ou, ao menos, graças quanto o belo era, em K-ªl!J, ao ~o temp_o que sim-
a um tema que esboça uma filosofia da natureza. E o h 10 da moralidade, promessa de verdade a ui ele é a \/
privilégio cencedido à natureza repercute, ao mesmo própria verdade sob uma ferma sensível. que e, com '(
tempo, a teoria a arte: "a arte deve ter a a arência 'feio, a I eia em egef?9 m o jeto a soluto da cons-
da natureza, aina que se tenha consciência de que se ciência'Ç'islo é, a ver ade su rema em que são supe-
trã a de a íe'"; e, sobretudo, na teoria do artista: se a I adas todas as contra içoes; essa verdade não é a ver-
obra de arte deve ter a aparente liberdade de um pro- dade de qualquer objeto, é ãidenfiaade da verdade e
duto da natureza é porque a regra que preside à sua li objeto, da idéia e da natureza: o movimento do ver-
produção é dada pela natureza, a qual se manifesta dadeiro evela-se como realidade última. Ora, essa' ver-
através do homem com gênio pois o gênio é esta es- dade que a filosofia deve laboriosamente conquistar é,
pontaneidade cega "dada pe a regra enquanto natureza"; de algum modo, imediatamente dada na experiência es-
o que se chama, algumas vezes, de uma força da natu- t ~tica: a idéia nela está presente sob uma for~nsíve1.

reza. Assim, junto com as obras de gênio, também é a -:, assim que "entre os gregOsa arte foi a forma mais
natureza ue testemunha e que nos torna participantes levada sob a qual o povo se representava os deuses e
de sua disponibilidade. '
tornava consciência da verdade". E toda a história da
arte mostra o desenvolvimento da idéia sob o seü véu
. Não há po tanto idéia do belo como não há regra sensível, a tal ponto que < o espírito que 01 a mais para
d~finitiy.a para Rroduzit 0 obje o 5elo. ~O ófijêío natural
*
(Y) Hcucl. Esthérique, I. 124. As citações que seguem são extraídas
(7) Ihid., 42. \10 tomo I. que é a "pane geral" da "filosofia da arte.".
(R) l bid .. § 45.

43
42
longe se afasta desta forma objetiva, a rejeita. reentra de renovação que ela comporta na medida em que o
em si mesmo". Belo se inventa mas não se imita. Em segundo lugar,
porque, entre nós, se opera o discernimento de valores
Assim o belo é a manifestação do "ideal"; o ideal
com mais rigor do que nunca: há, no mundo, uma
não é a5strato, é a idéia presente e transparente no obje-
Bolsa das obras piásticas c das. obras literárias que
to idealizado; sejam os humildes objetos cotiâiaoos de
domina o mercado da arte. Valores uramente econô-
uma natureza morta holandesa, seja o semblante de uma
micos e totalmente provisórim, dir-se-á: mas essa co-
madona de Ratael. \ A arte não imita. Idealiza. A
tação pesa sobre o destino' dos artistas e da arte tão
arte exprime o universa no parflcu ar; "e a obra é tanto
duramente quanto o gosto dos mecenas de outrora e
mais bela quanto seu conteúdo espiritual possui uma
ela exprime, à sua maneira, os gostos de certo úblico.
verdade mais profunda: se os chineses, os hindus, os
Será necessário, portanto, deixar que esse JUIzo prático
egípcios não puderam se tornar mestres da verdadeira
tome o lugar de um juizo teórico?
beleza é porque suas concepções mitológicas, as idéias
contidas em suas obras eram ainda indeterminadas ou Não. Somente que esse juízo, se ainda reivindica
mal determinadas, em lugar de serem acabadas e ver- a universalidade, evita todo dogrnatismo. Ele não con-
dadeiras". Essa é, em Hegel, a conseqüência da intro- fronta o objeto com um cânone preestabelecido. Deixa
dução de u~rspectiva histórica: há graus do Belo, objeto realizar-se e julgar-se por si mesmo. Ter o
segundo a idéia é mais ou menos rica, ou encarnada gosto bem formado, a atenção assaz dócil, o espírito
com mais ou menos felicidade. Hegel, ao menos, não muito aberto - eis o que se requer do espectador -
cede à tentação ao dogmatismo que aprova ou condena para fazer justiça ao objeto que se propõe à sua per-
absolutamente em nome de certo modelo intemporal: cepção. Certamente, ele não será jamais assaz pru-
admite um devir do belo mas condicionado ao devir dente em seu juízo, visto que nunca está seguro de estar
da idéia; a arte, dir-se-ia hoje, recebe seu movimento de bca fé, de ser suficientemente cultivado e disponível:
mais da cultura e da visão do mundo, do qual é expres- ernpre é possível que, em conseqüência de um defeito
s'ão;-do que de st esrna, deumaexigência intrínseca. de preparação ou de um excesso de preconceitos,
. cjamos literalmente cegos ou surdes a certos objetos.
---.Julga nossa época o Belo de um modo diferente?
m tal caso, a sabedoria exige ~e suspendamos nosso
Por certo, ela se acautela, mais do que nunca, contra juizo porque serra um juíz-o sem objeto: o obieto ainda
todo dogmatismo: ela se esforça em fazer justiça a to- não existe para nós. Mas se não estamos perturbados,
dos os estilos reunidos no museu imaginário, ela con- predispostos ou impacientes, então a beleza se manifesta
descende com a extraordinária renovação das formas por si mesma e, simultaneamente, se denunciam os obje-
plásticas e sonoras que tanto o gênio da invenção, quan- t s falhos e inautênticos.
to o contacto com as artes dos selvagens suscitam nos Mas o que é, então, o Belo? Não é uma idéia ou
artistas. Por causa disso deve ser ela interditada de jul- um modelo. É uma qualidade presente em certos pbje-
gar? Alguns pensam assim e, com o pretexto de repri- t - sempre singulares - que nos são dados à per-
mir a expressão de preferências subjetivas, se aplicam .cpçãõ." - a pleni u e, expenmentada lmeaiatamente
em dar uma acolhida igual a todas as obras sem jamais pela percepção do ser percebido (mesmo se essa per-
escolher dentre elas: a palavra belo desaparece de seu .cpção requer longa aprendizagem e longa familiaridade
vocabulário. Atitude rÍl ócrita ou preguiçosa. Em pri- . m o objeto). Perfeição do sensível, antes de tudo,
meiro lugar, porque a arte não renunciou à beleza. As que se impõe com uma espécie de necessidade e logo
buscas mais desconcertantes - aquelas que, às vezes, de: encoraja qualquer idéia de retoque .. Mas é também
eScandalizam um gosto esclerosado pelos hábitos ou pre- imanência total de um sentido ao sensível, sem o que
conceitos - visam à beleza. Nós só as podemos apre- o objeto serIa IOslgni icante: agra ave, decorativo ou
ciar se tomarmos em conta' que elas obedecem à lógica deleitáve, uando ·uito-.-U õbieto el ~.ala e eJe
criadora dessa busca do belo e da perpétua exigência ~6 é De o se for verdadeira Mas o que me diz? Ele

44 (~
não se dirige à inteligência, como o objeto conceitual -
De resto, é o posmvismo, mais do que o existen-
algoritr io lógico ou raciocínio -, nem à vontade prá-
iialismo, que pode contestar à arte sua liberdade cria-
tica como o objeto de uso - sinal ou ferramenta -,
d ra. Ele fem a liberdade para recusar os possíveis que
nem à afetividade como o objeto agradável ou amável:
u arte propõe: para rejeitar a poesia em favor da prosa,
primeiramente ele solicita a sensibilidade para arreba-
a pintura em favor da fotografia, a música em favor
tá-Ia. E o sentido que ele propõe também não pode
d s ruídos; ele tem a liberdade para conhecer somente
ser justificado nem por uma verificação lógica ne~ por
uma verificação prática; é suficiente que ele seja ex- um mundo de uma dimensão. Mas se dizemos. ue U1~al "
c isa é bela, atestamos a presença de um signo cuja vjV
perimentado, como presente e urgente, pelo sentimento.
significação é irredutível ao conceito e que, entre ãríto,
Esse sentido é a sugestão de um mundo. Um mundo
nos atrai e nos empenha, falando-nos de uma Nàtíireza
que não p6âe ser definido nem em termos de coisa,
que nos fala. O gosto dá ouvidos a essa voz: é suficien-
nem em termos de 'estado de alma, mas promessa de
tc que ela o ouça, qualquer que seja a mensa em, para
ambos; e que só pode ser nomeado pelo nome do seu
que julgue que c objeto estético é belo: pelo porque
autor: o mundo de Mczart ou ae Cézanne.
.,I!.
realiza o seu destino, porque é verdadeirarnefi e, segundo
~ Esse mundo singular, entretanto, não é subjetivo. modo de ser que convem a um objeto sensível e sig-
fV~] autenticidade é o critério da veracidade estética. a- nificante. É, então, baseado num justo título ue meu
I T rece ser o mundo como~atureza naturante, através do juízo aspira'Tã univerr~líllãde, pois a universal~n-
\.... autor da obra - quan o inspirado -, que nos faz dica a bjertvid'ín'le e_essa ooJé'tividãde está assegurada
sinal e nos dá para decifrar um de seus semblantes. pelo fato de seroQró2rio objeto que se julg em mim
Cada mundo singular é um possível do mundo real. E desde qu~ se impõe a mim com toda a for a de sua
esse mundo real é, também o mundo vivido pelos ho- presença radiosa.
mens. Sartre, prefaciando uma recente exposição de
pinturas de La oujade, cujo tema .era a tort~ra e os
tumultos, escrevia que "a arte intima o artista para
instalar o reino humano em toda a sua verdade sobre
as telas e a verdade desse reino, hoje, é que a espécie
humana abrange carrascos, seus cúmplices e mártires".
Essa verdade, infelizmente, é a mais urgente para nós,
hoje, no plano ético e político. paí ser oportuno que
a arte tam em a assuma. Mas l1á outra '9'erdades-
iflcTusive a da compóteira na obra de Cézanne ou dos
cavalos na obra de Lapique - que podem ser ditas
sem traição pela arte e que podem, também, se ampli~r
nas dimensões de um mundo. Pois, como Carnap diz
da lógica, não há moral na arte: na?a de ~~sun~~, im-
posto. A úmca tarefa, e Sartre ta moem o dizia, e res-
G li
( tituir o mundo". E o mundo é o inesgotável: ele sempre
\ excede aquilo que vivem - como sua principa~ soli-
citude e principal tarefa - os homens de uma epoca.
Não se pode fazer justiça ao Belo sem. lhe reconh,ec~r
o direito de atualizar o não-atual, de dizer os possrveis
vividos ou capazes de serem vividos dos quais o mundo
está pleno, pois não se daria à Natureza - e isso no
artista mesmo - a parte que lhe corresponde.

46 47
tf
vf $'
'~
berano, dando mais sabor ao festim. [ yalor d~us ue
se ~xp:nr~enta, .na consumação: mas a consumação,
aqui, nao e est uca.
, ~~será necessário, para afirmar um valor mais
autentico, colecar a 05ra ae arte fora do alcance no
empíreo, onde rema a beleza? Mas se a idéia do belo
não é co.nduzida pelo pensamento metafísico, que a
eleva ao impensável e a separa da estética o céu me-
tafísico corre o risco de ser um céu acadêmico e o valor
não mais se manifesta a não ser pela afirmaçã'(; de nor-
mas exteriores ao propor um modelo objetivo como fi-
nalidade. Tal valor só serve para instituir um valor
de permuta que medirá e sancionará a diferença entre
obra e modelo, a docilidade do artista às normas social-
mente aprovadas. Mas os especuladores só jogam em
valores seguros; a história não tarda em lhes ensinar
que as normas têm o seu em o. averia, por acaso
uma história se o artista lhes fosse constantemente dó~
cil e se, afinal, a obra não criasse suas próprias normas?
b necessário, portanto, retomar à idéia de um va-
lor imanente à obra e que""sej;- ro riamente estético:
em que condições pode sê-lo? É suficiente que a obra
eja considerada propriamente como obra, isto é, como
objeto estético e não como objeto útil. Nem é preciso
acrescentar qualquer especificação à idéia de valor: o
valor é sem re o valor de uso, mas tudo deRende -do
gênero do uso: o sócio dos concertos não usa de Mo-
zart como o convidado do arcebispo. Provavelmente
OS VALORES ESTÉTICOS não é necessá~io, para obter essa conversão da atenção,
ue a obra seja arrancada de seu contexto cultural, em-
Como pode a arte revelar-se portadora e criadora 17 ra isso, hoje em dia, aconteça freqüentemente com as
de valores? E de que valores? O chefe de tribo que artes antigas ou selvagens que enchem nossos museus:
ordena um fetiçhe, o príncipe que encomenda o seu uma igreja pode ser bela sem prejuízo de sua funcio-
retrato, o arcebispo de Salzburgo que solicita apetite nalidade, um retrato sem que seja esquecido o mo-
musique de nuit não pensam em termos de valor es- delo. E talvez mesmo tenha sido necessário que o ato
tético: eles obedecem a ritos que dizem respeito à sal- .riador fosse inspirado por esse contexto para ter toda
vação, glória ou prazer. A arte ainda não foi inventada sua densidade, toda sua veracidade. Além disso. talvez
ou, ao menos, eles não a reconheceram: eles não enco- s 'ja necessário que esta cultura, de alzuma for~a nos
,
mendam obras de arte, mas os instrumentos do culto stcja presente também através da obra,"" contanto que a
ou da cerimônia cujo valor reside na eficácia; como a obra, aqui, seja a verdade da cultura e não a cultura
1\ verdade da obrª-. . or conseguinte, com a condição de
pólvora ao explodir mas também como um monumento
ao regular a cerimônia, assim a obra de arte se abole nosso olhar fixar a própria obra e fruí-la de modo desin-
ao cumprir sua missão, honrando o ancestral ou o so- tercssado, isto é, sem ser impulsionado por nenhum

48 49
comovcnte e irrefutável aos olhos -do moralista; mas o
outro interesse senão o estético, sem dela fazer nenhum
sujeito apenas reconhece um valor que está no objeto
outro uso a não ser o estético.
e pelo qual o objeto se afirma e persevera em seu ser,
sendo, precisamente, o seu ser a permissão de certo uso
e. se quisermos, a proposta para certos fins. Mas ele
A relação do valor ao uso não condena, em ne-
só pode responder a esta finalidade externa porque res-
nhum-caso --ovãlor a ser subjetízo: O uso, ao contrário,
ponde a uma finalidade interna; ele só ode estar sub-
reVela a objetividade do valor, como certas proprieda- metidc a nor as - da utilidade do deleite ou dõVaÍor
des pertencem ao objeto e se manifestam quando ex-
estético - no caso de serem suas próprias normas.
perimentadas. . Mas somos ainda ~enta?os a acusar ?
valor de subjetividade porque ele implica uma valori-
zação: não há valor que não seja apre~iado, '~?:é o valor é,
que não se confronte o objeto a um determina o cnteno, 9.Qktó de alor·r~0=-:v'"'a710:':'r~n-:ã~0~'!':'n:::'a-dt;:a~d;-.::t::e:':::x:':'te-':r
ao ob-
e, por acaso, a escolha do critério não é ~ma oecI._ao
jeto, é o objeto mesmo enquanto responde ao sel!.S0n-
subjetiva? Mas o critério pode ser escolhido precisa-
celto e satisfaz à sua vaca ão. Mas qual é a vocação
mente por manifestar o ser ?o ?bjeto: p.ex"A a :o~ustez o o jeto estético? Se dissermos que sua vocação é
ou o rendimento de uma maquina de preferência a ele- agradar, além de não ser verdade a respeito do sublime
gância ou preço; o sabor de um ~rut~ de preferência (e há, talvez sempre, algo de sublime no belo) exce-
ao brilho. Por outro lado, a valonzaçao pode ser em- demo-nos: pois medimos o valor por aquilo que pode
pregada na compatação de objetOs para classificá~l.os em ser o despotismo de uma subjetividade. lndubiamente
função desse critério, como os alunos são classificados a obra de arte existe para alguém, mas ela só espera
conforme as diversas disciplinas que lhes são ensinadas. ser reconhecida - apreciada, se quisermos - mas não
Mas o valor relativo não é o valor ~to: em terra julgada; a obra de arte espera a perce ão ue lhe faça
e cego quem tem um olho é rei. E a ~alorização justiça. Isso quer úer que e a e, essencialmente, um
verdadeira ou primeira é aquela queJ a~ormente a o je o a ser percebido: ela encontra a plenitude do
toôa comparação, reconhece o valor intrínseco _do _in: Seu sere õ princípio mesmo do seu valor na plenitude
comparável, o valor que não se mede, que na~ est~ do sensível. Agradar não é afagar a. sensualidade, é,
subordinado a um critério exterior porque o objeto e principalmente, satisfazer a sensibilidade.
a si mesmo, parâ''o juiz, o seu Próprio critério, e requer as isto é suficiente para suscitar o prazer esté-
ser julgado em si mesmo, requer julgar, ele mesmo, a tico e especificar o valor estético? É suficiente que a
si: index sui. Não é, por acaso, lá em cima que se obra de arte ofereça o semblante de uma necessidade
fundam os juízos de comparação? Os pontos de refe- sensível e que esteja plena de um acordo perfeito? Não.
rência mais firmes, numa escala de valores, são aqueles Pois não é possível que o sensível não seja significante;
nos quais o valor parece se manifestar - presente ou não lhe basta ser soberanamente exaltado e ordenado,
ausente - num objeto incomparável e requerer o que é necessário que ele assuma sua função de linguagem
chamamos uma valorização verdadeira como fundamento e que, nele, o splendor ordinis provenha de um sentido:
de todo juízo e valor, na meuida em que esses juízos sendo a diferença entre a linguagem da prosa e a da
esteiam fundados. poesia, precisamente, a imanência do sentido ao signo ..
O J?bjeto belo é a uele ue realiza p.Qgeu do s.@-
. Assim o valor é ser, plenitude de ser: ser verda-
SÍ\'el, -a -e1 açao otal do sensível e do sentido e ue,
deirarileil'te isto é, segunuo sua verdade; e, sem dúvida,
'aSsim, Suscita o lIvre acordo-illi. sensibilidade e do in- I
é "iiêcessário qüe" essa verdade seja reconhecida ou rea-
têlecto~ -- - I
lizada, que o fruto verdadeiramente saboros~ se
derreta em degustação na boca do homem sequioso, Mas, com isso definimos apenas a beleza, que
ou que o ato verdadeiramente moral se proponha como é a perfeição do objeto estético enquanto estético: valor

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geral ou, antes, canornco, cujo lugar, ao lado de cinco
outros valores, se poderia justificar por uma espécie de Van Gogh não me conta Ima história de cadeiras,
de dedução tran.?-ce.!2dental: o útil, o agradável, o amá- ela me .?fere~e o mundo de Van Gogh, mundo no qual
vel, o verdadeiro, o bem. Todos esses respondem a as P,lIXOCStem um.a COr porque as cores são paixões,
modos específicos da intencionalidade e o conjunto p~rque todas ~s c?lsa~ padecem a insuportável necessi-

n
talvez cubra o campo das relações fundamentais do dade de uma J,ustJça Impossível. O objeto estético Sig-

ri'
objeto com o sujeito. Cada um desses valores, incom- nifica -- :~e belo com a condi ão de significar _
paráveis entre si, circunscreve um domínio próprio, or- C"',_"I."o do mundo Com a ,ubjoüvidado, uma di-
denado para uma exigência que diz respeito, ao mesmo mens~o do mundo; ele nao me propoe uma verdade a
tempo, ao objeto e ao sujeito: nisso esses valores são respeito do mundo, e!e me descortina o mundo como ~
formais. Mas o problema da criação dos valores esté- !o~te de verdade. POIS o mundo não é, para mim, um f
ticos só se põe sob a conâião-.fu: uralizar-o-valor. objeto de saber ante~ de ser um objeto de deslumbra- ~
De fato, não podemos permanecer na idéia de um men.to e de rcconhecimenny, O objeto estético tem um
valor forma: é o próprio objeto-=-- cada objeto desde s:ntldo porque ele é um sentido - sexto ou nono sen-
que seja belo - que é valor e segundo o seu ser sin- tido - cuja aquisição logo me é facultada, se eu me
gular. É necessário, portanto, para diferençar os valores dedico a e~s.e objeto,. e cuja especificidade é propria-
estéticos, com o inconveniente de multiplicá-Ias infini- mente espiritual: pOIS é a faculdade de ressentir o
tamente, passar do formal ao material e considerar afe:I~~ e não o visível,. o táctil ou o auditivo. O objeto
mais de perto cada essência singular, ou seja, retomar ~~etl:o resume e expnme numa qualidade afet;a mex-
~o entido que cada objeto estético propõe. ~f1ml~el a totali,:Iade sintética do mundo: ele me faz
Esse sentido inseparável do signo defin o estilo.J co~preen~er o mundo ao compreendê-Ia em si mesmo
I ~ pois o estilo, longe de ser uma coletânea deecei as c >e_atrave~ de sua mediação que eu o reconheço antes
~icas impessoais e inexpressivas, define uma maneira d..s.E2nhece-lo e que eu nele me reencontro antes de me
de fazer como maneira de dizer. Mas o qUe é dito? ter encontrado.
\
O que a sonata pode dizer e dizer tão bem quanto um
poema, uma teia ou um monumento? Não pode ser um
sentido conceitualizável ao qual a qualidade sensível . Detenhamo-no, por um instante, pois, agora, es-
da linguagem seria indiferente: a mensagem do belo é tamos capacitado, para ~efinir os valores estéticos no
Q sem conceito. Aqui a linguagem remonta à sua origem: l~ral. ~~cusando fazer deles modelos exteriores ~o
~ ela não é um meio anônimo, e transportável para a co- objeto, d:z~amos: os valores são os objetos mesmos en-
municação, de um sentido que se poderia dizer de outra quanto sao _verdadeiramente aquilo que pretendem ser.
maneira, como se traduz a geometria euclidiana em geo- e~quanto sao verdadeiros. Digamos agora: enquanto
metria riemaniana, ou o falado em morse: a linguagem .~ao focos de verdade: E o que neles especifica o valor
inventa e carrega em si o seu sentido. Sentido implícito p en a?e gue revelam sob as espécies de uma quali-
conseqüentemente ou, ao menos, todo envolvido no sen- dade af~tl~a. Acaso pO,de ser chamado valor o grotes-
sível, sentido nascente, claro e indistinto, irrefutável e, c.a, o trágico ou o elegíaco ou, antes, o matiz de sen-
contudo, sem prova: um pré-sentido, de certo modo. tImento. próprio a tal ou qual obra, a alegria de Bach,
Visto que o sentido não comporta nenhuma determi-
nação explícita, ele figura a possibilidade luminosa de
a serenidade de Matisse, a intensidade de Rernbrandr e
aquela at~osfe.ra indefinível cnde nos mergulham um
uma multiplicidade indefinida de sentidos, o anúncio n:osa,lco bizantino, uma máscara sudanesa ou um jar-
feito ao intelecto por uma razão que ainda não se dirn a Ia francesa? Por que dizer valor e não essência?
conhece como razão. É por isso que o objeto estético Porque a essência nao designa sempre o essencial g o
não fala de uma coisa ilêm sequer quando a representa:
essencial agui não .é explicitável e reduzível à idéia geral,
e~fãl-a do- munao que é uma idéia da razão. A cadeira
mas deve ser sentido como se sente o perfume de uma

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flor ou de uma virtude; e também porque esse essencial
aparece num domínio que está ordenado para um va- exis_tência; o valor é um possível que espera sua real i-
lor e sob a condição de adotar a atitude que esse valor zaçao, mas ue e, ele mesmo.cuma figura do real:-Isso
sclicita. Contudo, para justificar esse termo, é suficien- sera visto mais claramente ao aprofundarmos a análise
te renunciar a fazer do valor o mgo de uma ierarqui- da objetividade própria à significação estética.
zação. ndi.l5lamente o homem consagra boa parte de O valor ~ue o objeto estético revela - e que ele
-Sua atividade a exprimir preferências ou estabelecer vale ao revelar - é uma gualidade afetiva pela qual
classificações. E essas preferências não são todas sub- se desvela um mundo. Que mundo? Nós evocamos o
jetivas pois o valor, considerado formalmente, Ihcs mun o de Van Gogh, como também o mundo de Mo-
empresta autoridade: o belo opõe-se ao feio e pa- zart, de Michelangelo ou de Valéry. Trata-se, portan-
rece estar sujeito a graus; pode-se discutir indefinida- to, de um ser do mundo para um ser no mundo: não
mente sobre o mais ou menos belo. Mas o valor talvez para um.a subjetividade transcendental, e sim para uma
seja, primeiramente, uma exigência mais para a ação do pessoa singular. É nisso que a revelação estética difere
que para o juizo; na medida em que é formal, o valor da . 'dê~cia racional: to mundo sugerido pela idéia
apela para o ato que o realiza e tanto pior se esse ato ka~tJan _e u~ mundo Impessoal e objetivo como a pró-
destina a ação a uma dialética que fará, cem sua des- pna razao, e a promessa ou o voto de uma fôfãlidade
graça, a felicidade da reflexão. A afi arão dela iõfêhgível afinal conquistada pelo intelecto. O mundo
significa: age de modo que produzas obras que, longe ~uge~ido pelo oBjeto. estético é a irradiaçao de umã
de serem malogradas, sejam obras verdadeiras e capa- qualidade afetiva, a exp-eriência urgeQ!.e.:e precária na
zes de solicitar a contemplação) E im lica também um qual o homem descobre num instante o sentido de seu
iml2erafvo p.ara o e~ eclli.S!..2!::age de ~fâças destino, quando ele está totalmente engajado nessa pro-
justiça às coisas belas; sê tu mesmo para deixá-Ias ser va. O artista está sempre presente em sua obra e tanto
em ti e por ti mas, ao mesmo tempo, cala-te a fim de mais presente, quanto mais discreto: nós reconhecemos
deixá-Ias falar. Ora, se o valor se nos manifesta como ~elhor sua voz quando ela profere uma palavra que não
exigência - fazer ser o deixar ser - e porque o valor e a sua.
reside no ser do objeto e, singularmen e, naqUI o que
-o infmma e lhe dá um estilo: no sentido que ° anima,
Com efeito, se o ue a obra exprime é.,o mundo
pelo qual ele é o que é e dá provas do seu acabamento.
O valor é G objeto porque está no coração de. objeto em certa relação com uma pessoa - e poderemos al-
corno seu princípio e seu fim. Criar valores será criar gum dia nos libertar dessa correlação? - não é reciso
~,9.hjetos. Criar valores estéticos será produzir obras no- cre~.--9.!1e a essoa.-5eja, a9..':!i, constituinte ou mesmo
vas carregadas de um novo sentido, iniciadoras de um ~nferprete do mundo. É possível que o tema da cons-
tituição deva presidir a uma teoria do conhecimento a
novo estilo, mensageiras de um novo mundo.
um~ teoria d.a arte: é o ternã'' da ins Ira ão)Essa aÚe-
Contudo, essa identificação entre valor e obra pode naçao do artista em sua obra preserva-nos de acreditar
ser posta em questão se se contesta que ° valor possa na sll~jet.i~idade do mundo estético. O mundo que a
ser criado. Qual é, portanto, a parte do criador? Tal- obra significa tem, por certo, necessidade de uma cons-
vez seja necessário, ao mesmo tempo, lhe conceder o c!ência para aparecer como também requer a consciên-
poder e lhe recusar a iniciativa; pois o valor, com efeito, era do espectador para ser reativado; pois só existe
não é simplesmente um sentido subjetivo, homo additus ao aparecer à luz ,natural de uma consciência. É por isso
naturae, produto. de uma invenção arbitrária; é neces- que podemos designar esse mundo pelo nome do artista,
sário que o valor seja expresso e essa expressão é, real- como as terras desconhecidas pelo nome do primeiro
mente, invenção; mas antes de o ser, ela preexiste de qu~ nelas desembarca. O artista é o viajante feliz que,
algum modo como a essência leibniziana que aspira à apos ter longamente navegado sobre as águas da dúvi-
da, nas trevas do esforço, pode, enfim, bradar: terra! A
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é, precisamente, essa potência do possível interior ao
obra está pronta! Por que pronta? Porque se diz algu- real. Ele é, em primeiro lugar, essa promoção do por-
ma coisa que não podia se dizer de outro modo. vir, pcrque ele é o tempo. É por isso que o artista
Porque o mundo foi dito. Sim, é o mundo, eterna 'qtI o ouve é chamado a criar duas vezes: criar uma
personagem em busc~ de autor, que. solicita e sustenta obra e uma obra que seja nova; pois o tempo recusa a
o artista em seu paciente empreendimento. Quando o repetição: quem e assu me não pode refazer o que foi
autor revela um mundo através da obra, é o mundo que feito; era necessário que Giotto renunciasse a Masaccio,
se reve a 2átria de toda verdade. Quer dizer que o El Greco a Tintoretto ; a única fidelidade que devemos
mundo é a soma de todos Os mundos singulares pro- a um mestre é aprender dele a tornarmo-nos nós mes-
postos pela arte? Não a som~, mas a ~onte. Como o mos; a uma tradição, ser revolucionários:. viver uma
universo se reflete em cada manada, assim o mundo se duração criadora. Mas o tempo que é o mundo é o
reflete no~spel~os mundos estéticos. ~a~ a verd~de tempo do mundo; ele é a realidade do real. Que real?
não é um jogo de espelhos, o a arecer nao e o ser, e o Todas as coisas: o céu por cima do telhado, a palmeira
aparecer do ser: são semblantes do ~undo que apare- sobre o fundo do deserto, o sorriso da amante. O mun-
cem nesses espelhos como tantos possiveis autenticados de não está escondido em alguma parte: ele está aí,
pelo real. O possível aqui - ? imaginário - atesta a infinito sem cessar anunciado no finito, coisa em si
força silenciosa do real, a potencJa do ·mundo. cintilante em cada aparência, saber presente em cada
~
sonho. É por isso que Espinoza contempla uma mosca
singular, Van Gogh pinta uma cadeira e Ravel um jar-
Vê-se aqui o destino da subjetividade. Estar no dim s?b a chuva; mas os mo~tros imaginados por Goya /
mundôe azer )2arte do mundo. O mundo não é mundo também são do mundo, e os deuses da epopeia, desde
"S"eTh mim maÍseu e eu não sou o outro do mundo; eu -que a arte os fixou, porque o imaginário é uma ima-?;!S
existo no interior da correlação da qual sou um dos ter- gem possível, refletida na consciência estética, desse n
mos: só há mundo para mim, mas eu não sou .0 !:'undo; real cuja significação é inesgotável. '?
o que parecia nascer de mim me faz nascer, aldeia kan-
Talvez artist não seja sensível a essa necessi-
tiana retoma à natureza, natura naturans; entretanto,
dade que o m n o tem dele para Se verificar; então ele
eu continuo sendc sua testemunha indispensável e ,for- mesmo se procura, p ocura seu estilo sem saber que
mal. Mas o meu testemunho diz respeito ao possível:
ele mesmo é procurado; crê realizar-se enguanto rea-
esse mundo que é meu ,- o mundo de Van Gogh .ou liza o mundo. Mas é preciso, com efeito, que ele se
de Mozart como também o mundo do verão opres~lvo realize: criar é, antes de tudo, criar em si - ou deixar
ou da leve primavera, o mundo do abandono ou da mo- ser - um órgão assaz sensível para experimentar e
cência - é um mundo possível, e a poss~vel t~stemunha dizer um novo semblante do mundo; só os generosos
em favor do real: o possível que eu projeto e uma ver- são suficientemente ricos para acolher e neles deixar
dade do real que me conduz e me justifica. desabrochar esse semblante. O artista, ao se procurar,
Tal é também - e é nosso propósito - o destino procura a uilo ue pode encontrar o mundo: toda Qb-ra
do artista, subjetividade por excelência.. po?emos, ago- é subj~Qara ser objet~v~ visto ser esta sua maneira
ra tentar me ir sua criatividade. Cnar e um modo de ser veraz.
eminente de realizar o destino da subjetividade: ser
Mas é necessário, ainda, criar a obra na qual o
necessário ao mundo sendo necessitado por ele. ~sse
valor se deponha e o mundo revele um dos seus senti-
apelo, que o artista ouviu - na .inquietude ou na mo-
dos sob a forma de uma qualidade afetiva. Ora, o pró-
cência, pouco importa - é o mundo que o profere.
prio da arte - nós o assinalamos suficientemente - é
Talvez o artista não o saiba: o mundo assume a voz da
que o sentido nela está totalmente enga jado no sensível;
obra esboçada, desse possível irritante e fascinante que
e o sensível, longe de se enfraquecer e apagar ao entre-
exige seu acabamento. Mas é o mundo que fala: ele

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gar o sentido, exalta-se e brilha. O artista, portanto, do-se inzenuamente o herdeiro de uma tradição e, tal-
trabalha para a epifania do sensível e não para o ad- vez' - :u penso no homem gótico, no escultor dogão,
vento do valor: entretanto, o sentido que o dirige é dado no mosaísta bizantino - o campeão de uma fé.
por acréscimo. Artesão, em primeiro lugar, como Alain
o repete: um estilo e uma técnica perpassados por um E isso, enfim, nos sugere que o espectador tam-
sentido, eis ° que ele inventa ao se engalfinhar com a bém é'necessário
-é-ele-quem
para o advento dos valores estéticos:
epaTa o estético do reli!iioso, do mágico
matéria. A invenção da espiritualidade gótica foi, pri-
meiramente, a invenção de uma nova técnica de andai- u o u !TiafIO, quem apreende o va or em sua ureza
me; a invenção do mundo de Bach, a assinalação da
e ue, no ~íl'iãgInãno, compõeo co.§..mossempre
inacaba o. O espectadÕrtãiü13ém tem uma tarefa: o
gama moderada. Estaríamos, com isso, sendo injustos
para com ° gênio do inventor? Absolutamente . .1a~a
ape o que da obra a ser feita se eleva ao artista, ele-
va-se da obra feita ao espectador: pois essa obra tam-
que a invenção técnica tenha propriedade de um estilo
bém quer ser percebida e que, na glória do sensível,
é "necessário ~e o rocessc: ~par~ça como ~ obra ~ a pelo ato comum daquele que sente e do sentido, brilhe
expressão de uma personalidade capaz, me~o se. ela
o valor estético. Assim o espectador colabora com o
o-ignora, e entrar em uma nova relação com o mundo,
advento do valor não porque o cria, mas porque sem-
de apreender-e fixar um novo aspecto real. Não inventa
pre pode lhe recusar audiência; todavia, sabemos, mu!to
úrnvãlor quem quere não basta querer; mas o querer bem o que o público dá à obra pela força da admiração.
e o agir só podem se referir ao objeto e não ao sujeito,
à matéria e não ao sentido. O artista não quer inventar Através disso se entrevê o estatuto dos valores es-
um valor, ele quer fazer uma obra. Como o sentido, téticos. Estatuto du lamente precário porque ds valo-~'
na obra de arte, está totalmente imanente ao sensível, restêm, ao mesmo tempo, de ser. ~ri~dos p~~o trabàl~o "i j
t~,~
a'SSim a .nvenção do sentidç, .-no artista, é totalmente
imanente à. manipulação dg sensível, a esgirituªlidade
artístico e reativados pela expenencia estética do es-
pectador. Eles têm a preca~edade daqu!lo 5ue é se~tido
e contudo não são nem vaos nem arbitrários,
ç~
POIS os .
otalmente imanente à tecnicidade. Visto que jamais
v~lores exprimem o mundo, do qual vislumbram os sem-
há possibilidade para .desquaflfícãr a tecni,ci~~de: o
blantes possíveis sob qualidades afetivas; mas. o nlu_~do
fazer não é somente a prova do pensar, e ja certa
só é mundo em relação a uma subjetividade que ele
maneira de pensar e de viver conforme o pensamento.
éõ'iiipreende e que a compreende: parodiando uma' cé-
O trabalho do artista como o do sábio moderno num - ebre fórmula de Kant sobre o tempo, diríamos: eu
outro plano, reconcilia ação e contemplação. ~z estou no mundo e o mundo está em mim. O valor es-
quem pensa com as mãos. tético atesta essa reciprocidade paradoxal: criado pela
.:- Talvez nãó haja também possibilidade para su- iniciativa da fantasia e, contudo, imperioso; contingen-
perestimar o artista. Um estilo ode ser coletiv~:. a te e, contudo, necessário; submetido à percepç~o e, con-
arquitetura romana, os pftrrrí lVOS flamengc:s,. a musl.ca tudo, irrefutável; imaginário e, contudo, verídico. Mas
francesa do século XVII criam valores anornmos, am- talvez seja esse o caráter de todo valor: se o homem
da que claramente reconhecíveis, e compete aos peritos, é o ser das distâncias, o valor é o ser de nenhures e,
quando eles o conseguem, o cuidado de promover pro- contudo, presente e ativo em toda a parte; pois o valor
cessos de paternidade que interessam à história das ~r- não exprime nem o ser do homem nem o ser do mundo,
tes mas não à história dos valores. E, portanto, o estilo mas o liame irrompível do homem e do mundo, segundo
que manifesta o valor, mas não é necessário que seja o qual o homem cria ao se criar porque é criado:, le-
o estilo de um indivíduo. Ou, antes, é suficiente que o vando o mundo e, no entanto, a ele consagrado ate se
indivíduo tenha assumido esse estilo e tenha preferido
estar em sua obra a estar em sua biografia; que ele se
tenha feito, sem o saber, o instrumento do valor fazen-
~~~-----~-------------
alienar na ex eriência estética.

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