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Corpo, Pulsão, Gozo - Curso Campo Psicanalítico de Salvador 2016

A pulsão em Freud e Lacan (parte I)

Marcus do Rio Teixeira

I - Introdução

Construção do conceito de pulsão

Se a teoria psicanalítica nos ensina que o corpo do falasser é desnaturado, que não é um corpo
animal; se a clínica nos mostra que ele se distingue do organismo, que não pode ser reduzido a
sistemas de órgãos regidos pelo funcionamento fisiológico; cumpre definir conceitualmente de que
forma se organiza esse corpo. Freud empenhou-se nessa tarefa desde o início da psicanálise ao
cunhar o conceito de pulsão [Trieb], que considerou no seu célebre artigo de 1915, As pulsões e
seus destinos, um dos conceitos fundamentais [Grundbegriffe] da teoria psicanalítica. Anos mais
tarde, nas Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933), ele considerou as pulsões como a
mitologia da teoria psicanalítica.

Ao comentar essa denominação, Lacan discorda do termo mito:

Afastarei, de minha parte, este termo de mito – aliás, nesse mesmo texto [As pulsões e seus
destinos], no primeiro parágrafo, Freud emprega o termo Konvention, convenção, que está mais
perto do que se trata, e que chamarei com um termo benthamiano que fiz notar àqueles que me
seguem, uma ficção.1

A associação imediata é com a sua famosa frase, presente no primeiro artigo dos Escritos e
repetida várias vezes em outros textos e nos Seminários: “A verdade tem uma estrutura de ficção”.
A referência à Bentham, por sua vez, remete ao Seminário 7, A ética da psicanálise, onde Lacan
assim define a noção: “O fictício, efetivamente, não é por essência o que é enganador, mas,
propriamente falando, o que chamamos de simbólico.”2 Na filosofia de Bentham, uma entidade
fictícia é “um objeto cuja existência é fingida pela imaginação – fingida com o propósito de um
discurso - e do qual, uma vez formulado se fala como um objeto real.”3

Trata-se para Freud, portanto, de tentar construir um conceito que dê conta da singularidade do
corpo do ser da fala, da transformação que ocorre em seu organismo. Freud tenta construir tal

1
LACAN, J. O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2008 [2ª Ed.]. p. 161.
2
LACAN, J. O Seminário, Livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. p.
22.
3
OGDEN, C. K. La teoria del language de Bentham, p. 157. Apud WAJNBERG, D. A verdade tem
estrutura de ficção. In: CESAROTTO, O. Ideias de Lacan. São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 155-159. p.
157.
conceito trabalhando, como observa Marc Darmon4, com um modelo importado, o do arco reflexo,
a partir da ideia de estímulo interno. Lacan irá retomar o problema a partir de novas referências
teóricas que se distanciam da fisiologia. Para nós, que temos como referência teórica o ensino de
Lacan, é importante destacar os pontos em que este diverge da teoria freudiana no que concerne à
teoria das pulsões. Ao contrário do que pensam alguns, constatar tal divergência não dispensa o
estudo da teoria freudiana, mas exige um conhecimento profundo desta para que possamos
distinguir rigorosamente as teses de Freud e Lacan, reconhecendo o que este último conserva da
teoria freudiana e o que acrescenta de sua lavra.

A própria escolha feita por Lacan do termo da língua francesa pulsion [pulsão] para traduzir o
Trieb freudiano não é uma mera questão de preferência de tradução, mas uma tomada de posição
teórica. É bastante conhecida a crítica de Lacan à opção de Strachey por instinct [instinto] na
tradução inglesa da Standard Edition, quando havia à disposição o termo drive.Tal opção elimina as
características singulares do Trieb (vide notas dos tradutores brasileiros5), impondo um viés
biologizante. Desde que a obra de Freud caiu em domínio público temos o privilégio de dispor de
várias traduções do artigo metapsicológico de Freud, todas de ótima qualidade, sendo que a maioria
dos tradutores adota o termo pulsão.

Evitemos também concluir apressadamente que o conceito de gozo na teoria de Lacan dispensa o
conceito de pulsão. A pulsão na versão lacaniana certamente diz respeito ao gozo, sobretudo no que
concerne ao Drang (pressão, impulso), como veremos mais adiante; porém, isso não é suficiente
para eliminarmos o conceito de pulsão da teoria lacaniana. Essa leitura, que considera o ensino de
Lacan como um percurso linear que avança queimando pontes atrás de si não nos fornece uma visão
coerente das suas idas e vindas, da retomada constante dos conceitos. Acerca do gozo, é interessante
checar um comentário de Colette Soler:

Ressalto, pois, uma confusão de registros em nossa abordagem desses problemas. Eu


creio que este amálgama que fazemos hoje em dia é em parte suscitado pela promoção do termo
gozo no ensino de Lacan e em nossa leitura, porque o termo gozo é um termo – não é um
conceito, gozo é um termo, é uma noção, bastante difícil de circunscrever na razão do conceito
– que pode cobrir não só todo o campo do possível com a dor, mas também todas as gradações e
as variações do registro do prazer quando elas põem em jogo o corpo.6

Pulsão/pulsões

Em um tema complexo como este, a simples escolha do singular ou do plural para falar sobre o
conceito já implica uma escolha teórica. Freud falou em pulsões porque para ele havia um

4
DARMON, M. Pulsions. In: Essais sur la topologie lacanienne. Paris: Editions de l’Association
Freudienne, 1990. p.231-257. p. 232.
5
HANNS, L. Comentários do editor brasileiro. In: FREUD, S. Obras psicológicas de Sigmund Freud,
vol. 1 - Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Pulsões e destinos da pulsão. Rio de Janeiro: Imago,
2004. p.137-144. HELIODORO TAVARES, P. Sobre a tradução do vocábulo Trieb. In: FREUD, S. As
pulsões e seus destinos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. p. 73-90.
6
SOLER, C. L’en-corps du sujet - Cours 2001-2002. Paris (sem indicação editorial). Aula de 06/02/2002.
p. 82 [tradução para uso interno: Graça Pamplona].
dualismo, inicialmente entre as pulsões de autoconservação e as pulsões sexuais, em seguida entre
Eros e Tânatos. Lacan, como veremos mais adiante, recusa ambas as formas do dualismo freudiano.
Para Soler, quando empregamos pulsão no singular: “Esse singular assinala o monismo de Lacan
em relação ao dualismo freudiano, mas ao mesmo tempo é questão”.7 Já Marie-Christine Laznik
considera que por trás do aparente monismo de Lacan há de fato um dualismo, embora não o
mesmo de Freud: “Não é entre o campo do amor - campo narcísico, diz Freud – e o da pulsão, que
reside o ponto onde Lacan faria funcionar um dualismo?”8

Para Soler:

Quando se diz a pulsão, não é nenhuma dentre elas e são todas. A pulsão no singular, com
sua permanência, designa o funcionamento conjunto, solidário, das pulsões, o que Lacan chama
em Televisão “uma instância quádrupla”. O “uma instância” é a pulsão; ela é quádrupla porque
há as quatro pulsões parciais. Numa instância quádrupla, uma só funciona sincronicamente com
as três outras.9

O orgânico e o pulsional

Então, na psicanálise, o corpo que devemos conhecer, se seguimos o ensino de Lacan – é


verdadeiramente a hipótese mais convincente – é um efeito de linguagem. Isto quer dizer que o
corpo toca o organismo, o desnatura, o modifica.10

Sabemos que o pulsional não se confunde com o orgânico. Dito isto, a relação entre o pulsional e
o orgânico não é simplesmente da ordem de uma exclusão mútua ou de um antagonismo, o orgânico
existindo independente do pulsional ou em oposição a este. Ao contrário, como vimos ao estudar o
Estádio do Espelho, o investimento do corpo real11 do bebê (leia-se: do organismo) pelo Outro,
encarnado por quem se ocupa dos cuidados maternos, insere-o no circuito pulsional.

Laznik define muito precisamente a dimensão clínica dessa entrada no circuito pulsional como
condição necessária para que o corpo possa desempenhar de forma adequada suas funções
orgânicas. Ela mostra como a mãe, ocupando o lugar de Outro primordial, supõe um sujeito ali onde
objetivamente há um organismo, possibilitando dessa forma que o sujeito daí possa advir. Ao fazê-
lo, ela instaura o circuito pulsional, permitindo com seus jogos que o bebê passe pelas três vozes
gramaticais descritas por Freud: ativa, passiva e reflexiva. Nesse processo, as zonas erógenas, com
suas bordas, são delimitadas sobre o corpo.

7
SOLER, C. L’en-corps du sujet, Op. Cit., aula de 06/02/2002, p. 75.
8
LAZNIK, M.-C. Por uma teoria lacaniana das pulsões. In: A Voz da Sereia - O autismo e os impasses na
constituição do sujeito. Salvador: Ágalma, 2004. p. 101.
9
SOLER, C. L’en-corps du sujet, Op. Cit., p.77.
10
Id., ibid., aula de 21/11/2001, p. 16.
11
Acerca da noção de corpo real, ver comentário na aula O corpo no estádio do espelho. Disponível em:
www.agalma.com.br
A importância da instauração do circuito pulsional é frisada pela autora, que fornece o exemplo
inverso: os casos em que, por algum motivo, o pequeno ser não é inserido nesse circuito, não é
tomado como objeto de gozo do Outro materno.

Isso assume toda sua importância quando nos lembramos a que ponto, nas crianças autistas,
essas zonas não fazem borda – seus lábios deixam escorrer a saliva, os esfíncteres não
funcionam como tal. Isso por não terem sido zonas de investimento erógeno, por não terem sido
tomadas num circuito pulsional.12

Charles Melman vai falar de erotização das funções orgânicas, ou seja, de como o organismo é
transformado pelas pulsões.

Essa erotização pode ocorrer ter sido mal conduzida – não é? – e é então preciso que, para o
funcionamento, a realização de nossas necessidades, uma vez que é o mesmo orifício para as
necessidades e para os desejos, é preciso uma erotização correta, feliz, para que as necessidades
possam igualmente se satisfazer. Não vou me engajar na patologia oral, nos problemas da
alimentação, nos problemas da defecação, etc.13

Estamos aqui completamente distantes da noção de “bio-psico-social” empregada pela psicologia.


Não se trata, para a psicanálise, de partes estanques que se juntam para compor um todo. O
funcionamento do organismo não se dá de forma estanque em relação às pulsões, mas é modificado
por elas. Quanto ao sujeito, ele está inscrito nos discursos, nos laços sociais.

Sobre o caráter acéfalo do sujeito na pulsão

No Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, depois de comentar a


definição freudiana da pulsão como uma força constante e de acrescentar a sua teoria do circuito
pulsional, Lacan14 afirma que: “Essa articulação nos leva a fazer da manifestação da pulsão, o modo
de um sujeito acéfalo, pois tudo aí se articula em termos de tensão, e não tem relação ao sujeito
senão de comunidade topológica”. Para Melman15: “As pulsões testemunham que o corpo pode ser
a sede de manifestações que escoam de toda participação subjetiva.”

Nenhuma intervenção de um sujeito é possível aí. Há uma máquina, um mecanismo, um


aparelho que se encontra aí desencadeado, ligado, e do qual sabemos que inexoravelmente isso
vai operar, isso vai se produzir da maneira que já encontramos na pessoa, no dito paciente, e que
este será eventualmente extremamente tomado pelo que lhe acontece sem ter distância, sem ter
esta divisão subjetiva que é própria do sujeito do desejo, do sujeito da fantasia.16

12
LAZNIK, M.-C. Por uma teoria lacaniana das pulsões, Op. cit., p. 93.
13
MELMAN, C. A questão do corpo em psicanálise. In: Formas clínicas da nova patologia mental e
artigos inéditos. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2004. p. 120.
14
LACAN, J. O Seminário, Livro 11..., op. cit., p. 178.
15
Id., ibid., p. 117.
16
MELMAN, C. Conclusão do Seminário de Verão de 2000. In: O Seminário de Lacan: travessia - Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano, 2002. p. 13.
O caráter acéfalo do sujeito na pulsão não é da mesma ordem que aquele ocupado pelo sujeito no
sintoma. O sintoma, enquanto formação do inconsciente, não exclui o sujeito; ao contrário, é a sua
forma de expressão mais característica, se assim podemos dizer. Enquanto sujeito do inconsciente,
ele não é reconhecido pelo eu. Aquele que sofre com seu sintoma considera-o estrangeiro (“Eu não
sou isso”), assim como o falante não reconhece o seu lapso (“Eu não quis dizer isso”). Mas é
justamente por só poder ser expresso sob a forma da negativa que o sujeito se faz presente.

Esse estatuto inconsciente do sujeito não é o mesmo estatuto que ele ocupa na pulsão. Nesta,
como frisa Lacan, o circuito que parte da fonte e contorna o objeto para retornar dispensa de forma
radical o sujeito, a tal ponto que não seria correto falar de ultrapassagem, mas de uma exclusão, daí
o termo acéfalo. Melman fornece o exemplo clínico:

Quando vocês têm, na clínica, alguém que tem a ver com uma pulsão, nem que seja para
tomar um exemplo inteiramente ordinário, inteiramente banal, o bebedor, vocês assistem a esse
espetáculo estranho: ele está negando ou anulando seu alcoolismo, enquanto vocês percebem
nele que ele já está preparando sua próxima bebedeira, quero dizer que um processo mental está
posto em marcha nele, que se dá se quem ele saiba; vocês pensam que ele os engana, mas na
realidade é ele que é enganado; há já o processo mental que está em andamento, quero dizer,
todo o dispositivo que se estabelece para que, de alguma forma, ele se torne o servidor, o servo
da pulsão.17

Laznik ressalta que o sujeito é acéfalo antes que se complete o remate do circuito pulsional. A
pulsão seria dessa forma um movimento que se faz sem sujeito, para produzir um sujeito ao final do
circuito.

Pulsão e linguagem

Outra questão que se impõe diz respeito à relação entre pulsão e linguagem. Ela já está esboçada
desde que Freud define a pulsão como “conceito fronteiriço”18 entre o psíquico e o somático -
lembremos que, para Freud, é o representante psíquico da pulsão que sofre o recalque. Temos ainda
em Freud a gramática das pulsões, onde a pulsão se dá numa relação com as vozes gramaticais;
ativa, passiva e reflexiva (ainda que Marc Darmon19 chame a tenção para o fato de que Lacan
lembra que isso “(...)só tem pertinência a certos sistemas linguísticos”20).

Soler destaca a importância de se estabelecer a relação entre as pulsões e os mecanismos do


inconsciente:

17
MELMAN, C. A questão do corpo..., Op. cit., p. 117-118.
18
FREUD, S. As pulsões e seus destinos. Op. cit. p. 25.
19
DARMON, M. Essais sur la topologie…, Op. cit., p. 235.
20
LACAN, J. O Seminário, Livro 11…, Op. cit., p.174.
De uma certa maneira pode-se dizer que, praticamente, a grande questão desde o início da psicanálise é
a de saber como se juntam, como se articulam entre si os mecanismos do inconsciente que aparecem pelo
viés da decifração, de um lado, e as pulsões que são, de certo modo, de outra ordem. 21

A autora aborda o tema do corpo na psicanálise e a sua relação com a linguagem partindo de duas
linhas traçadas por Lacan: o corpo que habita a linguagem, e a linguagem que se aloja no corpo.
Trata-se de temas recorrentes ao longo do ensino de Lacan, que ela mapeia no seu estudo. Para
traçarmos esse percurso devemos compreender como a pulsão inclui o Outro e a dimensão da
demanda que dela faz parte. Finalmente, temos a famosa definição de 1975: “As pulsões são, no
corpo, o eco do fato de que há um dizer” 22. Em vez de partir dela, como fazem alguns, prefiro
percorrer todo o percurso teórico para abordá-la no final. A teoria de Lacan não é uma coleção de
memes para se decorar e repetir, à maneira de um método arcaico de alfabetização.

Vimos que os problemas abordados nessa Introdução na verdade não têm nada de introdutórios,
mas guardam a complexidade do conceito. Porém não há uma receita para abordar o tema da pulsão
aliviando as dificuldades. A única maneira de avançar no estudo é nos defrontarmos com os
impasses e dificuldades que se colocam desde o início. Abordaremos a seguir os componentes da
pulsão.

21
SOLER, C. L’en-corps du sujet, Op. cit. Aula de 21/11/2001, p. 04
22
LACAN, J. O Seminário, Livro 23, O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. p. 18.

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