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i CORNELIUS CASTORIADIS AS ENCRUZILHADAS | DO LABIRINTO COLECAO ' RUMOS DA CULTURA MODERNA | IL VOL. 54 Os Dominios do Homem , Tradugao. JOSE OSCAR DE ALMEIDA MARQUES Revisfo téenica RENATO JANINE, ? | | | © tradutor agradece 8 prof? JeanneMarie Gagnebin de Bons pelo inestimével auxilio na realizacao deste trabalho. A DESCOBERTA DA IMAGINACAO* NOTA PRELIMINAR Estas pdginas sio extraidas de uma obra em preparago, Pelément imaginaire, cujo primeiro volume, volume “histd- rico”, contém uma parte dedicada @ descoberta da imaginagao por Aristételes no traiado De anima (Péri psyches). Algumas indicasdes, meramente esquemdticus, sobre a orientagao ¢ 08 termos deste trabalho poderao servir ao leitor. E uma pista luminosa, embora talvez unilateral, pensar a historia da filosofia em sua vertente central como a elaboragio da Razio, homdloga & postilagao do ser como ser determi- nado, ou seja, determinidade (péras, Bestimmtheit). O risco de unilateralidade, que jé se reduz se dele tormamos conseiéncia, 6 de resto, em si mesmo, baixo. Pois 0 que niio decorre da Raztio ¢ do Ser determinado joi sempre adscrito, nessa ver- tenie central, ao infrapensével ou ao suprapensavel, a inde terminagao como simples privacto, déjicit de deteryinagio, isto &, de ser, ou a uma origem absolutamente transcendente e inacessivel de toda determinagio. Esta postulacdo acarretou, desde o inicio, 0 encobrimento da alteridade e de sua fonte, da ruptura positiva das determi- nagées jd dadas, da criagao como ndo apenas indeterminada ‘mas determinante, ou seja, como instauragio de novas deter- minagdes. Em outras palavras, ela acarretou, sempre, a oculta- ¢a0 do imagindrio radical ¢, correlativamente, @ ocultagaio do tempo enquanto tempo de criagio @ nao de repeticao. Essa ocultagiio & total ¢ flagrante no caso da dimensio social-histérica do imagindrio radical, ou seja, a imaginagio * Publicado inicialmente em Libre, m2 5, 1978. 335 social ou a sociedade instiwinte, Aqui, as motivagdes, se puc dermos nes exprimir assim, sio claras. Compete de maneira intrinseca ¢ constitutiva a instituigio conhecida da sociedade, enquanto instituigéo heterdnoma, excluir a idéia de que ela poderia ser auto-instituigto, obra da sociedade enquanto socie. dade instituinte. No méxime (tenipus modernos), @ auto-inst. ‘wigéo da sociedade serd vista como exercicio, ow aplicagio aos assuntos humanos. da Razdo por fim compreendica, Mas a filosofia nao podia deixar de recuperar a outra dimensio do imagindrio radical, sua dimensdo psiquica, ima kinagia radical do sujeito. Aqui, a ocultagéo nao podia ser radical. Ela consistiu na ocultagao do cardter radical da ima. Binagio, redugto desta iltima a um papel subalterno, ds vezes perturbador ¢ negativo, ds vezes auxiliar e instrumental, a questo levantada sempre joi a do papel da imaginagto em nossa relasio com um Verdadeiro/Falso, Belo Feio, Bem/Mal supostos como jd dados ¢ determinados por outras vias. Tra- favase, de fato, de garantir a teoria — a visio, ou constituigao — daguilo que é, daquilo que deve ser feito, daquito que tem valor, em sua necessidade, ou seja, em sua determinidade Mas a imaginagao, em sua esséneia, & rebelde & determinidade Nessa medida, ela serd, na maior parte do tempo, simples. mente obscurecida, ou relegada & “psicologia’”, ou “interpreta. da” @ “explicada’” a partir de seus produtos, mediante super. ficialidades flagrantes, como a idéia da “compensagio” da necessidade ou do desejo insatisfeitos. (A imaginacao nao é, evidentemente, efeito, mas condigito do desejo, como j4 sabia Aristételes: “néo hd desejante sem imaginagéo”, De anima, 435 b 29.) E mesmo quarido 0 papel criador da imaginagto for reconhecido, quando Kant chegar a ver na obra de arte “produzida’ pelo génio a instazragdo indeterminada e indeter- mindvel de novas determinagoes, haverd ainda “instrumemtali- dade” de um nivel superior, subordinagio da imaginagto a algo diferente dela, que fornece 0 padréo de medida de suas obras. O estatuto ontolégico da obra de arte, na Critica do juizo, ¢ reflexo ou derivado de seu estatuto de valor, que com sivte no fato de que sio apresentadas, na intuigdo, Idéias das quais a Razio néo pode, por principio, fornecer representactio discursiva. Este recobrimento, no entanto, seré por duas vezes rom: pido na historia da filosofia. Em cada unia delas, a ruptira seré dificil, antindmica, criadora de aporias insoliiveis. Aquito que & descoherto, a imaginasio, ndo se deixa reter nem conter, nem pode ser situado € posicionado em uma relacao clara, unlvaca e determindvel com a sensibilidade e 0 pensamento. E, em ambas as vezes, a ruptura serd imediatamente seguida de um total ¢ estranko esquecimento. : Arisioteles & 0 primeiro a descobrir a imaginagio — ¢ descobre-a duas vezes, isto é, ele descobre duas imaginacdes. Descobre, inicialmente (De anima, IT, 3), a imaginacao no sentido que em seguida se tornou banal, que chamarei dagui em diante de imaginacéo segunda, fixando-the a doutrina que depois dele tornou-se convencional e que reina até hoje, de Jato ¢ em essoncia. Em seguida, ele descobre outra imaginasio, com fungao muito mais radical, que com a anterior mantém quando muito uma relaedo de homonimia, ¢ que designarel aqui em diante como a invaginagio primeira, Esta descoberta ocorre em meio a0 Livro HHI do tratado De anima; ela ndo é explicitada nem tematizada como tal; rompe a ordenagio |é- ica do tratado e, 0 que € infinitamente mais importante, vir- almente faz explodir a ontologia aristotélica — vale dizer, 4 propria ontelogia. Do mesmo modo, ela serd ignorada pela interpretagdo e pelo comentério, assim como pela histbria da Jilosofia, que se servirdo da descoberta da imaginagéo segunda para encobrir a descoberta da imaginagéo primeira. Serd preciso esperar até Kant (e, depois, Fichte} para que 4 questo da imaginacdo venha a ser recolocada, renovada, aberta de maneira bem mais explicita e ampla — embora igualmente antinémica, inapreensivel e incontivel. Igualmente neste caso, 0 novo recobrimento néo tardard. Em seus escritos de juventude, Hegel prossegue e, por vezes, radicaliza 0 movi- ‘mento inaugurado por Kant ¢ Fickte: a imaginagéo, escreve ele em PE e saber, no € um “termo médio”, mas “aquilo que € primitive € origindrio". Mas esses escritos permanecerdo inéditos ou desconhecidos. Na obra publicada, a situagao é completamente diferente, Nao se achard nenhum trago do tema ou do termo imaginagte na Penomenologia do espitito. E, di pois, Hegel deslocard a énfase da imaginagdo para a memé 2 qual ele transferird as obras “‘objetivaveis” da imaginagdo fe consurard os Antigos por terem rebaixado a meméria ao grau da imaginagao: Enciclopédia, § 462, Zusatz) e o que ele continuard chamando, na Propedéutica e na Enciclopédia, de “imaginagio ativa” e “imaginagao criadora” nfo seré, de fato — consternadora banalidade, depois das Criticas kantianas —, nada mais que uma recombinacdo seletiva de dados empiricos guiada pela Idéia, Hegel restaura ¢ restabelece assim a tradi sao vulgar, sempre dominante, acerca da questio, ¢ que se imita @ reproducir a primeira eapusigiio da imuginagdo no tratado de Aristoteles: expulsdo da imaginacdo para a “psico- logia”, fixagio de seu lugar entre a sensagao e a inteleegio (obliterando completamente 0 admirdyel capitulo 9 do Livro HI do tratado De anima, refutagdo antecipada das classifica: ges de farmacéutica da Enciclopédia), caréter simplesmente reprodutivo ¢ recombinat6rio de sua atividade, estatuto defi: ciente, ilusério, enganoso ou suspeito de suas obras. E a Heidegger, sem nenhuma diivida, que se deve, com Kant e o problema da metafisica (1929), 0 restabelecimento da questo da imaginagio como questao jilosdfica ¢, ao mesmo fempo, a possibilidade de uma abordagem de Kant que rompe com a sonoléncia e 0 esgotamento neo-kantianos. Também nao hd dtivida de que Heidegger reproduz, por sua vez e por si s6, ‘num espeticulo impressionante, a sucesso de movimentos de descoberta e de recobrimento que marcaram a histéria da ques- ‘do da imaginacdo. Tratarei em outro iugar da redescoberta por Heidegger da descoberta kantiana da imaginaco, ¢ de seu carter, a mew ver, parcial e enviesado. Noto apenas, agui, que 0 “recuo” que Heidegger imputava a Kant diante do “abismo sem fundo” aberto pela descoberta da imaginagao transcendental, esse recuo, 0 préprio Heidegger o repete de- pois do livro sobre Kant. Novamente se esquece, recobre ¢ apaga a questao da imaginagéo, da qual ndo se achard nem ‘mais um trapo em seus escritos posteriores, & se suprime 0 impacto produzido por essa questio sobre qualquer ontologia (e sobre qualquer “pensamento do Ser’). Mais perto de nds, os sinais das dificuldades ¢ das aporias suscitadas pela questo da imaginagio ¢ do imagindrio persis- tem em O visivel e 0 invisivel de Maurice Merleau-Ponty. Como compreender de outro modo essa hesitacdo que ds vezes faz do imagindrio um sinénimo da ficgio irreal, do puro e simples inexistente, e as vezes chega quase a dissolver a dis- tingao entre o imagindrio ¢ 0 real? Ai vemos Merleau-Ponty indo muito longe em sew esjorco para apagar “as antigas clivagens” — ao mesmo tempo em que algo 0 puxa para trés: sem diivida, a persistencia do esquema da percepeao, no sen: tido mais amplo, do qual ele nao chega a se desvencithar totalmente, percepeiio agora tornada experiéncia ou recepyéo ontolgica. Fragmontos deste texto foram publicados em grago, sob © titulo “A alma jamais pensa sem fantasia”, na revista ate. niense Toms (janeiro de 1977) As tradugées das passagens de Aristételes so. minhas, Freqilentemente, elas divergem bastante (e, as vezes, acerca de pontos “elementares” de sentido) das traducdes existentes. Nao me preocupei absolutamente com a elegancia Em todos os lugares onde no havia risco de mal-enten- dido, mantive os derivados vernéculos dos termos gregos (por exemplo: noema). Assim, do mesmo modo, traduzi phantasma por fantasia (phantasme). Traduzir essa palavra, como se cos tuma jazer, por imagem, representagao, etc., é infiel ¢ forte- mente interpretativo; & uma fonte de arbitrariedade, com o sradutor traduzindo phantasma ora por imagem, ora por repre- sentagdo, ora por ouira coisa a seu bel-prazer ou de acordo com 0 que ele decidiu ser um “sentido” indicado pelo con- texto, e sem que 0 leitor possa sequer suspeitar de que haveria ai um problema. Nao 6 preciso temer nenkuma confusio com 4 fantasia freudiana. A fantasia, aqui, é a obra da imaginagao, da phantasia, Quanto a saber 0 que & a phantasia, essa é a ‘questo de que trata 0 texto. Sobre minkas tradugdes de sumbébékos por comitante (em lugar do habitual acidente) ¢ do ti en cinai por aquilo que era para ser, jd me expliquei emt outro lugar (A instituigao imagindria da sociedade, op. cit, p. 258, pp. 371-372; As encruzilhadas do labirinto 1, op. cit., pp. 326-5329). Janeiro de 1978 “A alina jamais pensa sem fantasia” A questo da imaginagéo ja de inicio esté marcada pelas difi- culdades, aporias e impossibilidades que sempre a acompanhardo. Primeiro sinal disso: nfo é 16 onde Aristételes se propde explicite- mente a tratéda, ¢ onde a trata ex professo (De anima, Il, 3), 339 NS ‘que ele diz. 0 essencial do que tem a dizer sobre ela, mas sim em Outras partes, de maneica fragmentada e incidental (De anima, IIL, 7 8). Vejamos as passagens mais importantes (431 a 14 — 432 a 14): au, 609. ( 7) “Para a alma pensante, as fantasias sio como sense: ) E por fss0 que @ alma jamais pensa sem fanta “Portanto, © noético [da alma} pensa as formas (eid®) nas Fantasias ¢, jé que & nestas que se determina, para ele, 0 que deve ser buscado ou evitado, ele se move, propriamente, para fora da sensagio, sempre que lida com fantasias. (...) Em outras ocasises, € por meio das fantasias ot noemas que esto na alma que ele, como se os estivesse vendo, calcula e delibera as coisas que esta Por vir com base nas coisas presentes (....) E 0 pensemento (nous), tal como surge em ato, coincide completamente com as coisas. Mas, se Ihe € ou néo possivel pensar algum objeto como tendo-sidoseparado (Kéchorisménon), ele mesmo ndo tendo-sido-separado da grandeza, isso é algo que precisaremos examinar ulteriormente, (IIL, 8) “Recapitulemos agora o que jé dissemos acerca da alma, tepetindo que 2 alma é, de um certo modo (pés), todos os fetes; pois os seres sio ou sensiveis ou inteligtveis, € o conhecie ‘mento (épistéme) , de um certo mode, os cognosciveis (épisteta), € a sensacio, os sensiveis; de que modo isso ocorre, & preciso investigar ““O conhecimento e a sensacdo se dividem segundo os objetos {reportandose], a medida que existam em poténcia, aos objetos em Poténcia, ¢ & medida que existam em ato, aos objetos em ato. Mas © sensitivo © o cognoscente da alma so, em poténcia, precisamente © copnoscivel ¢ © sensivel. E, necessariamente, ou bem so esses esmos fisto €, 0 cognoscivel e o sensfvel] out bem so suas formas (cid®). Mas nio & posstvel que sejam esses mesmos; pois no 6 a pedra que esté na alma, mas a forma; de modo que a alma é como a mio; pois também a mio é um instrumento de instrumen- tos, © 0 pensamento forma de formas e a sensagio forma de sen siveis. E_dado que nada pode existir, parece, tende-sido-separado de grandezas sensivels e fora delas, os intéligiveis (noéta) existem Has formas sensiveis, tanto aqueles que séo ditos por absiragho 340 como os que sao disposigées e afecedes (hexeis kai pathe) de seres sensiveis, E por isso que no seria possvel aprender nem com preender qualquer coisa caso nao se sentisse nada; ¢ que, quando se pensa (théorei), € necessério ao mesmo tempo (hanta) contemplar (théorein) alguma fantasia: pois as fantasias s80 como sensasies, ‘mas sem matérie, Mas a imaginagdo € distinta da afirmagio e da negasdo, pois a verdade ¢ 0 erro dizem-se de uma complexio de noemas. Mas, nesse caso, 0 que diferenciaré os primeiros noemas das fantasias [fazendo com que eles no sejam elas]? Ou entéo [seré preciso dizer que] eles ndo so fantasias, embora nao sub- sistam sem Fantasias”. Invastio do intrativel, do aporon — esséncia da filosofia. Todas as aporias da imaginacéo aqui estéo indicadas, implicita ou explicitamente. Aquilo que a imaginagio é, e 0 dizer disso que ela &, nlio € “coerente” no sentido de qualquer légica ou dialética, Nao apenes ele nao é “claro”: a phantasia, correlato do phainesthai, surge a vista na luz, ligada ao phaos (429 a 3-4), nao se deixa ver to facilmente — e menos ainda dizer (apophainesthai). Ele escapa por todos 05 lados, nfo se contrai em eidos, nfo pode sc-mantida- junta (concipere, erfassen, be-greifen). E muito menos pode ser situada em um lugar que Ihe seria prprio, 0 lado da aisthésis (sensibilidade) e da nosis (pensamento). Tal situacZo nfo se mo- dificaré essencialmente no Unico autor que, vinte © um séculos mais tarde, saberd ver e dizer mais que Aristételes acerca da ima- ginagdo. Pois aquilo de essencial que Kant, indo além de Atisté- teles, iré descobrir na imaginagio s6 scrviré para tornar as coises ainda mais insustemtaveis que antes. e radicalmente in-contiveis Oscilagio do sensivel e do inteligivel Para Aristételes, bem como para a tradigGo filoséfica da qual le j& € herdeito, dois polos parecem ser, e sio, tomados como garantidos: 0 aisthéfon ¢ o noétor, 0 sensivel eo inteligivel, Ocupat do lugar central no tratado De anima, eles so 08 tinicos a ter peso ontoldgico — fornecem acesso aos dois grandes tipos de entes ¢, na medida do possivel, uma determinago de seu modo de ser. “Pois os seres so ou sensiveis ou inteligiveis” e, “de um certo 341 modo”, a épistémd (seber verdedeiro ¢ eerto de seu objeto) sto os épisteta, assim como a aisthesis, “de um corto modo”, sao. os aisthata, “De que modo isso ocorre, acrescenta Arist6teles, € pre- iso investigar.” F preciso investigar — surpreendentes palavras, J que se esté quase no final do terceiro ¢ ultimo Livro do tratado «, sobretudo, porque desde 0 inicio do segundo Livro, nada se fez, sob uma forma ou outra, além disso: investiger a conexfo entre 0 nous ¢ 08 nodta, a aisthasis e os aisthésa. Sera que essa frase ante cede novos ¢ extensos desenvolvimentos, proporcionais & importin- cia decisiva da questdo, seré que ela prenuncia a solucao desta”... Nao. A “solugio” é despachada em duas curtas frases: a alma é% > em poténcia (dunamei) o sensivel e 0 inteligivel — no eles mesmos “,” (auta), mas suas formas (eid®). Mas, principalmente, a questio é de imediato desvieda rumo 2 uma outra coisa: uma nova ¢ ines- perada irrupoio da questo da phantasia (jé tratada, contudo, e aparentemente esgotada, no Livro IIT, 5), mateada pela afirmagao de que todo pensamento (théorein) 6, necesséria e simultaneamente, a contemplasio (théorein) de uma fantasia. O que leva a constatar que, a bem dizer, no se sabe se e em que os primeiros noemas — os noemas irredutiveis, originérios, elementares — diferem de fantesias paras € simples. O que € certo, de qualquer modo, & gue eles no poderiam existr sem fantasins Mas, enti, como ficaré, como poderé ficar, neste caso, a bi partigio noétonaisth2ion, nodsis-aisthésis? Como acreditar que ela soja exaustiva, que ela esgoie tudo aquilo que se poderia, alguma vez, dizer que existe? A fantasia ndo € um “nada”, néo apenas porque "n6s @ temas”, como ainda porque ela est necessariamente implicada no ato de pensamento, porque é impossivel pensar sem fantasia, (Na terminologia modema, ela ndo ¢ “dado empfrico”, mas "condigdo transcendental”) Embora no seja um nada, né0 se sabe o que ela é, Evidentemente, ela ndo é sensivel: ela é “como © sensivel”, mas sem matéria, € isso introduz uma diferenca abso- Jutamente fundamental do ponto de vista da ontologia aristotslica ou de qualquer ontologia’. f iguelmente impossivel reduzir a fan- a. Para Arist6teles, nada eviste verdadeiramente sem matéria, salvo 0 pensamento pensando @ si mesino, nodsis noeséés, a atividade (énergie) ura, © ser/ente supremo — que ele também denomina Deus. 342 ‘asia, tal como a estamos considerando, & definigdo da imaginagio formulada em II], 5; “movimento engendrado por uma sensagio em ato”. Essa & a definicdo da imaginagdo segunda, a tnica que € tratada em TIL, 5, € na qual se fixaram os intérpretes ¢ toda a tradicgo filoséfica e psicolégica pés-aristotélica — mas que nfio é adequada & imaginagéo de que se trata em IIL, 7 © 8, a orjgem de fantasias que ou bem sZo os “‘primeiros noemas”, ou so aguilo sem 0 qual os primeiros noemas ngo poderiam existir. Mas a fantasia tampouco é inteligivel no sentido estrito, conforme mostra a frase: ‘mas a imagin pois a verdade € 0 erro izem-se de uma complexéo de noemas”.) No mesmo instante em que ¢ reafirmada, @ divisio exaustiva daquilo que existe em sensivel ¢ inteligivel sofre um abalo com pleto. Pois um Terceiro surge, que escapa & diviséo e pde em causa seu fundamento, De fato, ele ndo surge como alguma coisa talvez deixada de fora, que indicasse que a divisio ¢ insuficiente para exaurir 0 dado, convidando pois 2 completé-la ou superésla, Ele age no ea partir do interior dessa divisio, ¢ parece tornéla impossivel {4 que esse Terceiro se encontra as vezes no Um ¢ as vezes no Outro, sem ser Um ou Outro. F a0 existir enquarto sensfvel que a fantasia ¢ aquilo que é pensado, 20 menos, aquilo que ¢ “necesseriemente também € ao mesmo tempo” (ananke hama) pensado sempré que hé pensamentc. O que significa que 0 nous 86 pode existir verdadeiramente, em alo, énergéia — isto é, no ato de pensar —, por meio desse problemitico ser-nao-ser: a fantasia Reciprocamente, € apenas 4 medida que a fantasia se distingue daquilo que faz 0 sensivel existir enguanto sensfyel — a indisso- ciagko efetiva de eidos © hulé, de forma e matéria —, sendo, por- tanto, também ela, de um certo modo, um tendosidoseparedo, como 0 inteligivel, que ele pode “ser como” (funcionar como) sensivel, ainda quando e mesmo onde este no estd presente. A ordenagao do tratadlo De anima e a ruptura do Livro IIL © tratado De anima, juntamente com muitos dos Pequenos tratados de histéria natural (Parva naturalia) — “Pequenos trata- dos de histérie psiquica” seria, de fato, o titulo correto — que 343 6 distinta da afirmagao ¢ da reese) las the so diretamente ligados © constituem uma espécie de anexos desse tratado, é, sem duivida, um dos siltimos eseritos de Atisté- teles. Apesar do que tem sido dito por grandes fildlogos (W. Jaeger, Aristotle, Fundamentals... Oxford U.P., 1962, pp. 331-334; D. Ross, Aristotle, Londres, Methuen, 1923/1964, pp. 17-19. Jaeger chege. infelizmente, 9 afiemar que o Livro III do tratady “pect liarly Platonic and not very scientific”), a unidade de sua compo- sigdo & evidente. O percurso do tratado é claro e ordenedo — bbem mais que o de outros escritos de Aristételes tal como chega- ram ands — até @ metade do Livro IIL © Livro 1 € consagrado, como é freqiiente em Aristételes, & definigéo do problema e de suas dificuldades ¢ aporias, e & expo- sigdo ¢ critica das teorias anteriores. As férmulas empregadas pre- param ou anunciam as idéias que seréo expostas ¢ defendidas @ seguir, especialmente no Livro III. O Livro If fornece a definigao aristotélica da alma — “a alma ¢ esséncia enquanto eidos de um corpo natural que possui a vida em poténcia. E a esséncia é ente- Kequia’’ (412 @ 19-21) —, e depois discute as potéacias (dunameis) da alma: nutritiva (ou vegetativa), desiderativa, sensitive, locomo- triz, dianoética, Esta discussio esté em pleno acordo com o que serd dito no insuperavel capitulo 9 do Livro III, onde Aristételes - Fecusa e refuta qualquer separaco da alma em “partes” ou “fa.’ culdades” (0 termo dunameis de Aristételes é, 0 mais das vezes, traduzido por “faculdades”; nio obstante, € claro que, para Aris Iteles, tratalse de poderes ou poténciag que se atualizam diferen- fomente, mas s6 existem efetivamente como um). E preciso notar que aqui i surge — como, aliés, no Livro 1 — uma incerteza quanto 20 estatuto © lugar da imaginagéo, que no é contada entre essas dunameis (414 a 31-52), embora seja freqiientemente mencio- nada como estando no mesmo plano que elas (413 a 22, 414 b 16, 415 @ 10-11; ef., no Livro 1, 402 b 22 — 403 a 2, 403 a 7-10). A continuagio do Livro II € dedicada ao exeme detalhado do poder nutritivo (vegetativo), e, depois, do poder sensitivo enquanto tal © dos cinco sentidos. O movimento da investigaséo néo sofre nenhuma interrupgéo entre 0 final do Livro II, que retoma o exame de certos problemas gerais da sensagao, e os dois primeiros capitulos do Livro TIT, que, apés descartarem a possibilidade de ‘um sexto sentido, desenvolvem mais a fundo a discussfio do “sen- tido comum”, ou sensagéo dos sensiveis comuns (movimento, re- ouso, niimero, figura, grandeza), jd definido em If, 6. 344 A questio da imaginagio introduzida, discutida ex professo ~ © aparentemente “resolvida” no terceiro capitulo do Livro TIT. Essa discussio — mais curta (427 a 17 — 429 a 9) que a anterior: mente dedicada & sensagdo dos sensiveis comuns (424 b 22 — 427 a 16) — culmina na definigo da imaginagéo em plena con- formidade as regies ariswiélicas: “A imaginagao seria movimento que sobrevém a partir da sensagao em ato” (429 a 1.2). O capitulo se encerra observando que, como as imagens persistem © asseme- Tham-se as sensagGes, os animais freaiientemente agém guiados por elas, ora, como as bestas, porque no possuem pensamento, ora, como os homens, porque seu pensamenio est obscurecido’ pela doenga ou pelo sono. “Quanto & imaginagéo, o que cla é © pare que existe, o que jé foi dito deve bestar.” (429 a 49). A questo esté resolvida, e Aristételes passa a tratar do pro- blema supremo sublime: 0 conhecimento e © pensamento, Os capitulos 4 8 6 ¢ maior parte do capitulo 7 do Livro III sio dedicados a0 nous, seu modo de existéncia, seus atributos ou de- terminagées, sua maneira de operar, sua inteleccéo dos divistveis e indivistveis, seu acesso & verdade (429 a 10 — 431 a 14, em seguida 431 b 12-19). Nada, nessas passagens, € dito sobre a phantasia: nada fax suspeitar que ela posse relacionar-se, de algu- ma maneira, com 0 pensamento. Mas, se 0 tratado terminasse com essas consideragées, ele no estaria completo. Pois falta discutir esta poténcia essencial de gran- de parte dos seres vivos, entre os quais o homem: 0 poder de movimento local (ou seja, de agir). A ele sio dovidamente dedi- cados os capitulos 9 @ 11 (452 a 15 — 434 a 21), onde se encontra também a digresséo refutadora da idéia de “partes” da alma (452 a 22 — 432 b 7). O tratado conclui com dois capitulos (12 € 13), que compéem, mais precisamente, uma espécie de anexo. Versando sobre @ importincia telativa dos sentidos para a vida, o caréter necessariamente composto do corpo vivo e o privilégio clementar do tato, esses capitulos igualmente poderiam caber no Livro Il, salvo no grau — bastante ténue — em que pressupdem algo da discussdo do movimento focal. A existéncia de uma ordem no percurso da investigagdo niio € desmentida 36 porque o poder de movimento local é examinado apés 0 do nous, contrariamente & hierarquia implicada pela onto- logia de Arist6teles e reafirmada na passagem j6 mencionada (414 8 3132), O movimento local, com efeito, pressupGe ao menos a 345 sensagio ¢ a imaginagio (nos animais) ¢, além delas, a intelecgiio (no homem); estas fazem parte das poténcias pelas quais a alma conhece. F Iégica, assim, além de necessério & clareza de exposi 0, que o exame das poténcias cognitivas — sensagao, imaginago, inteleceo — seja efetuado em primeiro lugar, antes de se empre- ender 0 exame da poder de movimento local. _ Contudo, uma brutal ruptura desse ordenamento do Terceiro Livro do Tratado ocorre em duas ocasides: de inicio, na sébita reaparicéo da questio da phantasia bem no meio do exame da poténcia dianoética (II, 7, 431 a 14 — b 12 e III, 8, 431 b 20 — 452 2 14; so as passagens citadas no inicio deste texto); a seguir, no insistente retorno da phantasia 20 longo de todo 0 exame da poténcia do movimento (III, 9-11, 432 b 14 — 434 21). A ruptura nio ocorre no plano da composigdo literéria. A irrupedo da phantasia em II], 7 © 8 bem poderia ser uma digressfo, um excursus — Arisisteles, como qualquer autor que pensa, isto &, que € levado por seu pensamento, faz isso habitualmente, tanto quanto Plato © infinitamente mais que os autores modernos — © a utilizagdo do termo e da idgia quando de discussie do movi- mento local, em IIL, 9-11, nfo tem, em si mesma, nada de sut- preendente, A ruptura se situa num nivel muito mais profund. 4 phantasia de que se trata aqui nfo tem, por assim dizer, nada a ver com @ que fot definida ex professo na aparente sedes mate igo, em II], 3. Sua relagdo com cla é somente de homonimia; suas determinagdes € fungdes nfo apenas excedem as da outra mas arecem ser incompativeis com elas; tanto seu “lugar” como sua “esséncia” se tomam incertos: e, por fim, o que dela se diz apa- rece como irreconcilidvel no s6 com 0 que o tratado buscou fixar como sendo as pottncias da alma, mas ainda com o que a obra de Aristételes, em sew conjunto, procurou destacar como determi- nagio do ser. A doutrina convencional da imaginagao segunda Pode-se, anacronicamente, chamar de convencional o trata- mento da imaginacio proposto em De anima Ul, 3; a0 descobrir 4 imaginasio segunda, Arist6teles fixa oo mesmo tempo aquclas que se tornario, a seguir, as convengSes segundo as quais seré 346 pensada — ou seja, ndo seré pensada — a imaginaco. Por essa Fazao, seu tratamento poderd parecer trivial ¢ ingénuo para o leitor contemporitteo, se este ignorar a origem das “evidéncias” que Ihe povoum o espirito, 0 que a descoberta delas exigiu ¢, sobretudo, 2 riqueza transbordante na qual ela se fez ¢ cuja tradigfo tem sido empobrecimenio, deformagao desconhecimento. No caso presente, duas observagtes talvez. permitam apreciar melhor o que era necessério para que mesmo @ imaginacio segunda pudesse ser descoberta ¢ tematizada, Pode-se duvidar de que haja falguma ver existido uma lingua que ignorasse completamente a categorie do “ficticio” trivial — lingua na qual fosse impossivel dizer a alguém, ndo “voc se engana” ou “voce mente”, mas “voce inventa”. E, ndo obstante, esse “ficticio” trivial cu menor nfo tem estatuto na ontologia ou pré-ontologia implicada pele Iingua, nfo delimita nenhuma regiao dos entes, endo € mais que ume variante inconsistente, enfraquecida, daquilo que nio existe. Isto parece estar ligado 20 no reconhecimento do imaginério como tal, 20 estatuto da realidade quase sempre atribuido, na_representagio areaica, ao sonho ou a0 delirio, indo até os termos utilizados para sua descrigdo (“esta noite ew estaya em tal lugar”, ou “ew vi Fulano”} ‘Além disso, é preciso lembrar que, pouco antes de Aristételes, © préprio Plato, embora constantemente preocupado com a phan tasia, nfo chega a penséla enquanto tal, ¢ @ concebe como um ‘misto de sensagio e de opiniao” pertencente i classe mais geral do eikén, dos icones-imagens, como sendo essencialmente imitagao 2 qual se junta uma falsa crenca acerca do tipo de realidade de seus produtos (ver a excelente discussio de Jean-Pierre Vernant, “Image et apparence dans Ia théorie platonicienne de Ix mimesis”, Journal de psychologie, n° 2, abritjunho de 1975, pp. 133-160). Esta concepedo de Pletdo seré explicitamente criticada e rejei tada por Aristételes. Ao iniciar a exposi¢ao de sua doutrina (da doutrina “convencional”), Aristételes imediatamente situa a imogi nnagdo entre as poténcias pelas quais “a alma julga — separa, krinei —e conhece um ser qualquer” (427 a 2021; 428 a 1-4). Logo de infcio, cle declara que'“'a imaginacdo é diferente da sensacdo fe do pensamento (dianoia)” (427 b 14-15). A distingo entre sen- sagdo e pensamento é postulada como evidente: a sensacio dos sensiveis proprios € sempre verdadeira, e é compartilhada por todos 6s animais, a0 passo que o pensamento pode muito bem ser falso, 347 £56 & compartilhado pelos seres dotados de logos (427 b 6-14), Ora, @ imaginacio difere da sensagéo, pois esta altima sempre & Poténcia ou ato (vista ou visio), 20 passo que hé aparigées (phai- nétai ti) independentemente dessa poténcia ou ato — como nos somhos ou nas visées que podemos ter “de olhos fechados”. A sen- sagio sempre esié presente, mas nfo a imaginagéo. Enfim, as sensacdes so sempre verdadeiras, a0 pasco que a maior parte dos Produtos da imaginagio so falsos (428 a 5-16). — Mas a imag agdo também néo é pensamento e conviegao (nobsis kai hupolep sis). Ela néo pode pertencer ao pensamento que é sempre verda- deiro, 0 nous € a épistémd, jé que hd imaginagdes falsas. E tam. pouco pode ser pensamento passivel de verdade ou erro, ou seja, opinio (doxa), pois ela depende de nds mesmos (éph’hdmin), nés podemos produzi-la & vontade, como aqueles que fabricem efigies (eidolopoiountes)’, ao passo que no esté em nosso poder ter ot no ter opinides, j& que “necessariamente estamos sempre ou do lado da verdade, ox em erro”. E a opinigo, estando necessaria- ‘mente acompenhada de crenga (pistis), provoca de imediato a Paixdo ou moro, 0 que no ocotre com a imaginacdo (crer que algo € terrivel provoca © terror, simplesmente imaginélo nfo 0 Provoca). Finalmente, a imaginaggo nao pode ser, como pensava Plato, uma mistura de sensagio e opiniao (doxa), pois sensagio ¢ doxa relativas a0 mesmo objeto podem ser falsa uma e verdadeira @ outra (0 Sol aparece como tendo um pé de didmetro, mas acre- ditase que ele é maior que a Terra habitada). E encerrando essa discussio, @ partir da constatagdo de que 4 imaginagao & uma espécic de movimento, impossivel sem @ sen- sagio, possivel apenas em rela¢o a seres sentientes e a objetos dos quais hd sensacio, e de que o ato da sensacio pode engendrar um movimento que necessariamente seré semelhante &. sensagio, ‘que Aristételes chega a jé mencionada definicgo da imaginagao, como “movimento que sobrevém a partir da sensagéo em ato”. Enquanto tal, ela poderd ser causa de muitas agSes ¢ paixdes para o ser que a possui, ¢ serd susceptivel tanto de verdade como de erro 1b. O texto de todos os manuseritos &, palevra por palavr Dossivel fazer surgit uma imagem diante ‘dos elhos, ‘poem [imagens] em ordem mneménica e fabricam efigies)...” (429 b 18:20) A redundincia da frase ¢ evitada se lermos kai oi eidolopoiountes, *e aqueles que Febricam cfigies” — idéia, al 348 Esta tiltima possibilidade & consequéncia direta da dependéncia claramente pressuposta equi, da imaginacdo relativamente & sense: cdo. Hé a sensacdo dos sensfveis prdprios (0 branco, o doce) que € “sempre verdadeira”’ (e, neste ponto, tinica ver no tratsdo, Aris. \6teles acrescenta: “ou entéo comporia apenas um erro minimo”, 428 b 19). Hé, a seguir, 2 sensacdo do objeto junio ao qual vio 95 sensiveis préprios, o objeto do qual os sensiveis préprios sio 68 comitantes: este objeto branco € percebido como o filho de Cleon, Que se trata de um objeto branco é certo, mas pode ser que néo scja 0 filho de Cleon, Ha, por fim, a sensagio dos sensi veis comuns (por exemplo, movimento, grandeza), acerca dos quais as possibilidades de erto sao as mais ponderdveis (of. a questo da grandeza aparente). Ora, diz Aristoteles, a possibilidede de ver~ dade/erro da imaginagao serd diferente, conforme 0 género de sensagdo do qual ela se origina, Se se tratar da primeira espécie de sensacdo (sensagdo de sensiveis prdprios), a imaginago sera verdadcira desde que a sensasio esteja presente, Mas, no caso das duas outras, esteja a sensacio presente ou ausente, a imaginagio seré (ou: poderia ser, éien) falsa, e isso tanto mais quanto mais distante estiver © objeto sensivel (428 b 17-30). Assim, a imaginagao aparece, ao término desta discussio, como inteiramente dependente da sensacio,-homogénea a esta e por ela causada (25 duas determinagdes estando, como se sabe, metafisica- mente ligadas em Aristételes). Ela aparece como o par supérfluo da sensagdo €, tal como apresentada aqui, parece possuir apenas uma nica e estranhfssima fungdo: multiplicar consideravelmente as possibilidades de erro inerentes as sensagdes do objeto comi- tante © tis dos sensiveis comuns, As dificuldades da doutrina convencional E verdade que no poderiamos negligenciar a complexidade do texto (necessariamentc menosprezade no resumo precedente), suas idas ¢ vindas, e contradig6es. Elas aparecem nitidamente quanto a duas questdes realmente eruciais. Em primeiro lugar — e de forma completamente independente da discusséo ¢ da critica de qualquer idéia de “partes” ov “faculdades”” da alma — a ima- ginagdo, j4 agui, faz parte do pensamento (427 b 28-30: “...0 Pensamento, distinto da senssgo, ¢ por um lado imaginagio, ¢ por outro convicgdo. ..”; ef. Livro I, 1, 403 @ 7-10) e, ao mesmo 349 tempo, como jé se viu, € diferente de qualquer espécie de pense- mento. Da mesma forma, como também se viu, ela é diferente da sensagiio, de qualquer espécie de sensagio, e se acha, por fim, efeti- vamente determinada como pura e simples remanéncia (emménein, 429 a 4.5) da sonsacio, eco debilitado ¢ distorcido, retengao de “imagem” que, estranhamente, s6 acrescenta a sensagfio um nega- live wxsitivy, uns maior possibilidade de erro. Tal concepgao da imaginacho como remanéncia da sensagio & afirmada com ainda maior clareza no pequeno tratedo De somntis (459 a 23 — 459 b 24 ¢ 460 a 31 —b 27), contemporaneo ou posterior 20 De anima (Arist6teles nele se refere explicitamente, em 459 a 14-18, & defi nigo da imaginago dada em De anima III, 3). Neste pequeno tratado, a “filiagio” da imaginagdo & sensacdo € formulada me- diante © recurso & distinedo arisiotélica esti/to deinai: “em sua existéncia efetiva (esti), a imaginagao e a sensago sio 0 mesmo, mas suas esséncias (fo d’einai) so distintas (....) 0 sonho aparece como uma certa fantasia (...) claro que sonhar faz parte da sensibilidade, ¢ da sensibilidade enquanto (2) imaginagio” (459 15-22). Vao na mesma direedo formulagdes como 460 b 16-18 ¢ 461 b 58: “nto & segundo a mesma poténeia que a instincia principal [isto € da alma, to kurion) julga e que as fantasias sobrevém”. Em segundo lugar, néo podemos deixar passar em siléncio as implicagdes dos critérios propostos para distinguir a sensagao da imaginacao, e a imaginagao do pensamento — critérios que indi- quei mais acima, Aristételes opde a sensagio, "‘sempre verdadeira”, ‘03 produtos da imaginasao. ‘‘cm sua maioria falsos" (428 a 11-12) Ora, isso poderia distinguir a imaginacao da sensagio de sensiveis proprios (a nica que sempre é verdadeira), mas nfo da sensagio do objeto enquanto comitante, ou da sensacdo de sensiveis comuns; © so mesmo numerosas as formulacdes em que imaginacdo e sen- sacdo de sensiveis comuns tornamsse praticamente indiscerniveis e . Por veaes, até mesmo identificadas. Além disso, o argumento segundo o qual a sensacao sempre estaria presente, ao contrério da imaginagio (€ verdade que o sentido da passagem € pouco claro), Jificilmente se pode compatibilizar com a definicio central de ime: ginagdo em IIf, 3. Sc a sensacdo sempre est presente, cla deve estar presente em poténeia, e isso estabeleceria uma distincao no entre sensacdo e imaginacao, mas entre sensacdo em poténcia e tudo © que pode estar em ato, quer se trate de sensacdo ou de ima; ago; ¢ no se ¥€ por que a sensagio cm aio no engendraria 350 permanentemente esse “movimento” que é a imaginagio — pelo menos entre os animais que tém, em principio, possibilidade de uma imaginagio € deixando-se de lado as ‘‘formigas, as abelhas ou os vermes” (428 a 10-11). Finalmente, como conciliar a definigio a imaginago, como movimento engendrado pela sensaco em ato, com o argumento empregado pare distinguicla da doxa, segundo © qual a imaginago, contrariamente & doxa, estaria “em nosso poder"? Esté em meu poder abrir ou fechar meus olhos; mas 0 ‘movimento engendrado pela sensago em ato no explica de modo ‘algum — ¢ parece antes excluir — meu poder de evocar, uma vez fechados meus olhos, ora a laguna de Missolonghi, ora a de Veneza Podemos explicar essas hesitagdes e contradigdes se compre endermos que Aristteles esté aqui pensando, simulténea ou alters nadamente, em duas manifestagdes ou realizacées da imaginagio’ segunda, ser explicitar ou tematizar a diferenca entre elas. Ble pperisa, de um lado, em um eco, em um doubiét em geral deformado da sensagio, ou aura que a envolve, indistinguivel da sensagio dos sensiveis comuns se néo mesmo idéntico a ela (De memoria et reminiscentia, 450 a 10-11: “a fantasia é uma afecgio da sensacio comum"), retengo remanéncia de “imagens” sensiveis; ele pensa, ortanto, no fundamento da meméria — a qual scria somente uma parte” da sensagdo; e esta imaginacao, sem divida, pode ser pen- sada como “determinada”’ a partir da sensibilidade. Por outro lado, Aristételes pensa na capacidade de evocacao de tais imagens inde- pendentemente de qualquer sensacio presente, que inclui um certo poder de recombinagio (cf. os eidolopoiountes, os fabricantes de efigies’; mas Aristételes mal toca no assunto), capacidade que est “em nosso poder” € procede, assim, em linguagem moderna, de uma liberdade ou espontaneidade, e que, mesmo que quiséssemos pensé-la como “determinada”, por exemplo, por “leis psicaligicas” quaisquer (lembremos que Aristételes é 0 primeiro a fixar essas . Ou 0s inventores @ vausérios de procedimentos mnemotéenicos, ete., citadss na mesma passagem, — E absolutamente essencial constatar que ‘AvistGteles niéo recorre em nenhum momento da investigagdo averca da fan- ‘com a possivel excegio, talvez, da frase discutida na nots b, supra) fate", & technd no sentido mais geral, quer se trate da tecliné de cons ‘casas ou da techne poidtike por exceléncia, a arte postice, come dize , precisamente na Podtica, que ¢ fundamental mente @ capacidadé de tmitos", mais que a versificacio, que faz 0 poets trégico (1451 b 2627; cf. também 1480 a 21-22). Tal coisa — como, de resto, 0 essencial de qualquer echné — nfo se deina absolutamente mos. E, no entanto, ele dl 351 que foram chamadas, depois, de “leis de associagdo de idéias” por semelhanca, oposisao ou contigitidade: De memoria...., 441 b 38-20), essa eapacidads com certeza nfo estaia determinade, om see testo, pelo “movimento da sensagio em ato” que ela repro, duis. E, evidentemente, & aos produtos desta altima (da capact, dade de evocacto) endo aos daquela (da remanéncia da sensaeto) ue se reporta a auséncia de ctenca (pists) A imaginapde primeira “Tudo isso j canstitui um decisive avango em relagéo a Platio, uma modificagao do espago no qual so pensados a phantasia e Phantasma, Mesmo esse avango, porém, parece quase desprevivol Quando se tenta avaliar a importancia da reviravolta implicitamente Trezatada por Arist6teles nos capitulos 7 e 8, depois 9 a 11, do {ivro IIL. Aqui, a imaginaggo ne qual Aristételes pensa, © quc le descobre sem nomesla ou tematizé-la, é de uma ordem radical mente diferente. (Nas paginas que seguem, minha discussso se limita aos capftulos 7 ¢ 8 do Livro III e $6 ocasionalmente faz teferéncia aos capitulos 9 2 11.) Se “a alma jamais pensa sem fantasia", é claro que nfo cabe imais dizer que o imaginar esteja em nosso poder, e tampouco que & imaginacéo consista em um movimento engendrado pela sensagio £m ato. Serd que esté “em nosso poder” pensar? Nao, nés pensa. mos — ou temos uma opiniio, doxazein — sempre (excetuandorse © caso do sono ou, talvez, da doenca): “ter uma opinigo nfo esté em nosso poder, pois necessariamente estamos ou em etto ou do lado da verdade” (427 a 21). Portanto, sempre ha fantacia, née imaginamos sempre. E, ao mesmo tempo, nés certamente podemos Pensar tal objeto em vez de tal outro. E, assim, também podemos mobilizar tal fantasia (ou tal género de fantasia) em ver de tal ‘outra. Portanto, sempre podemios ter — e até mesmo, nevessa sprsionar na mimésis, Mas, do ponto de vista da ontologia “central” de Adistteles, este aprisionamento & necessévio, Ver, igualmente, sobre sexs Bepitp, mets fexIO8 “Técnica”, em As encrusilhadas do labirinto I, op 258-240, ¢ “Valor, igualdade @ imaginagio € também culminaré, de estranha mancira, em 4 todos esses pontos em 'Blément imaginaire, 352 mente temos sempre — fantasia, independentemente de um ‘‘movi- mento da sensagio em ato”. A afirmagéo de que a alma innais Ponsa sem fantasia pulveriza as determinagdes convencionais| imaginacdo (as do capitulo IIT, 3)-e torna insignificante 0 ho zonte no qual elas tinham sido introduzidas. : Mas 0 que significa a idgia de que a alma jamais pensa sem "? E sem qual fantasia? A apresentacao do objeto de pensamento 6 fio, uma primeira © capitulo 111, 8 propée, para essa questio, uma ps resposa ~~ que €,na verdade, dopla. "Néo €-a pedta que eslé na alma, mas a forma”; “‘as fantasias so como sensagdes, mas sem matéria"; “cada vez que se pensa, € necessétio contemplar, a0 mesmo tempo, alguma fantasia”. Aqui, « fantasia, a imagem in absentia do objeto sensivel, funcions como substitute ou represen- tente deste. Em finguagem moderna, 0 pensamento implica & re- Pretentago (Verirearg) do objeto penado por sua sbpreventagio Worselung, que como a senendo, mas smo a da Prensa efetiva do objeto. Nessa apresentagic, e por meio dela, pode dado tudo aqilo que perience 3 forma do objeto, no sentido mai geral da palavra forma, ou seja, tudo aguilo do objeto que pode ser pensado; portanto, 0 objeto todo salvo a sua “‘matéria”, a qual, fem todo caso, constitui 0 limite do pensdvel: nela, tomads absolu- tamente enquanto matéria, nade hé para ser pensedo. A apresentagdo de abstratos. Separagio ¢ composigéo “dado que nada pode existir, parece, tendo-sido- seprad de pumas mesic or ls, o mcg entem nas formas seniveis”, tanto os abstrates, como os que slo reaps thesis al path; sm alguma senso, nada se pode eprender {0 insino tempo, alguna fantasia” Por conspuns, fantasia ¢ imaginacio oo 0 que permite a separagio — também a compo. sip, ou sei a sintese. Os intelgiveis exisem nas formas sens vel: inteleeso de ineligivelspressupse que alguns forma sen svel sea dada como separada (sto 6, d= um maneira na qual ela jamais se dé ne realidade © em ato). Andlise.c sintese, abstra 355 cio © construgso, pressupéem a imaginagio. Nao se faz, aqui, ne: nhuma “interpretagao” do texto: Aristételes ja havia explicado que “as formas so pensadas nas fantasias” (431 b 2), e explicitedo 0 uc ele entendia por isso. Como sio pensados 0s abstratos? Quando pensamos o [nariz] arrebitado enquanto [nariz] arrebitado, mio © separamos da matéria; mas, quando o pensamos como concavi- dade em ato — v vdncavo enquanto tal —, nés 0 pensamos sem 8 came ne qual ele existe. O mesmo vale para os objetos mate- iéticos — que nio estio jamais separados da matéria —, e que 16s pensamos como separados quando pensamos as abstragdes (451 b 12-19). Nao se pode jamais sentir 0 curvo sem meatéria; ofa, pensar o curvo enquanto curvo & separé-lo da matéria na qual ‘le se coneretiza ¢ que nada tem a ver com o curvo enquanto tal; mas no se pode pensar o curvo sem “‘sentit” 0 curvo, sem pre- senga ou apresentacio do curvo; essa apresentagao — “como uma sensagao, mas sem matéria” — ¢ assegurada pela phantasia, ela se coneretiza no e através do phantasma. A imaginagéo que Arist6- teles tem em vista aqui é, portanto, abstragdo sensivel, abstragio no sensivel fornecendo o inteligivel. A abstracio € a aphairésis, a subtragao ow separagio. O phan tasma € uma sensagio abstrata, ou seja, separada; subtraida ou separada da matéria do objeto, mas igualmente separada ou sepa! vel de outros “‘momentos” da forma do objeto (posso conceber um conjunto de bolas considerando que se trata de bolas, consi- derando que elas esto arranjadas de tal ou, qual maneira, consi- derando que elas represeatam um certo ndmero). A phantasia 6, portanto, poder de efetuar separacées no sensivel, poténcia abstra. tiva presentificando o abstrato, faior universalizante ou generici- zante (mas sempre na figura) do dado. (E é, evidentemente, por ser separadora que ela € universalizante.) A mesma idéia é expressa Ro pequeno escrito De memoria... “Jé se falou da imaginagio nos escritos concernentes & alma, e If se disse que no ¢ possivel pensar sem fantasia; pois quando pensamos sucede 0 mesmo que quando desenhamos [uma figura]; neste caso, com efeito, embora no tendo nenhuma nevessidade de que a grandeza do triéngulo esicja determinada, nés desenhamos [um tridngulo] determinado segundo 2 grandeza; do mesmo modo, aquele que pensa, ainda que no pense em uma grandeza, pde ante os olhos uma grandeza que cle no pensa como tal. E, se o que ele pensa diz respeito a quantidades, embora indeterminedas, ele toma uma quantidade de- 354 terminada, mas a pens apenas como quantidade” (449 b 30 — 450 6) Esta separacio 6, eo nivel dessns consideragbes, indssociavel da composicio, a abstracio € indissocidvel da construgio, ¢ a di visio, de unificagio, Falando anteriormente da inieleccao, Atist6- tcles dizia: “Onde hé erro e verdace, ja ha uma certa composite de noemas, como que formando ume unidade”, e, depois de ter discutido esta idéia e constatado que “‘o erro esté sempre na com posigio”, ele acrescentava: “6 perfeitamente possivel chamar todas las [isto ¢, as operagdes de composigio] de divisio” (IIT, 6, 430 2.27 —b 3). O que € evidente, pois nao apenas a ordem na qual percorremos a cadeia de separagdes e composigées nfo tem impor- vincia intrinseca como, o que é mais essencial, toda introdugio da unidade € a0 mesmo tempo divisio, e tode divisto reintrodu2, dde moltiplas manciras, a unidade. No entanto, ele concluia entéo, no capitulo 6, que “o que confere unidade €, em todos os ea803, Leu 0 nous”, © pensamento (450 b 5-6). Ora, ao falar do movimento local, do desejo e de ago, no capitulo 11, Aristételes atribui também & imaginagio 0 poder de unificar: “ela pode obter uma Fanta @ pany de muito” 34 » 910) Tetase com cnr fa iltima passagem, da imaginacio deliberativa (bouleutl iddnricn a ioaginagho raconal/calealadora (ogish2, 435 b 23) © oposte & imaginagdo sensivel (aisthatike, ibid.). A tardia intro- ducto deste nove distinc — au tos de consider eon apesar disso, nfo € acompanhada de argumentos ou sequer Ge esclaesimentos mais precisos, © ¢ designads por dois termos diferentes (bouleutike/logistik®) préximes mas de nenkum modo SinGnimos — reafirma mais uma ver a ruptura que surge, em meio a0 Livro TIl, no que diz respeito & imaginasio, visto que, pouco antes, ao comegar a discutir aquilo que, entre ot animais, esté na origem do movimento, Arist6teles tinha situado novamente 2 imaginagao x0 lado do nous: “parece que estes dois estéo na cvigem do movimento: 9 deseo e now, se, consderarmos 8 jmaginagao como um tipo de pensamento” (nodsin tina, 111, 10, imagines,» implcacto evidete: &imposivel falar de asdo sem ‘“deliberacao” referente ao futuro, © € impossivel falar de “deliberagdo” sem imaginacéo — ou seja, sem introduezo/apre- sentagio de muitos (ao menos dois: 454 a 8) conjuntos de “ima fens" compostas ¢ unificadas de algo que no esté presente 355 © Esquematismo aristotélico condiso do pensamento, posto. que star a0 pensamento 0 objeto, camo sensi ondicao do pensamento, igualmente, na ra forma do objetu, os diferentes “ns sgue apresentélos como’ abstratos, igularidade separada néo s6 da “materia” gundo a forma, ou sej é forma, ou seja, de esséncias, conduzi formulasdes contidas no escrito De memoria gen ji. © formule a... das quais jé citei Antes da nova irrupea a fond ‘upetio da questio Pee, Agate PrOblemas levantadss pelo pensament de » Aristételes escreve: “O que é indivish A indivisivel, néo_segun usm ee ines sezundo 0 eidos, ele [0 nous] pipbiseceeeatey "0 indivisivel e pelo indivisivel > - ae indi ivel da alma. E isso pelo qu 9 ze, bem como 0 tempo ro al pena, ao igen cia, © no como os continues; nav. : ensa 1 medida que (en tant que) eles 280" ise ot fimo nestes [isto é 0 tempo no qual ele elo qual cle € pensado], existe algo de i due, sem diivida, néo esicja separado — tempo seja uno ¢ o comprimento mente, em qualquer continuo, 6, 450 b 14.20), da imaginagao, ao falar : que faz com que o © seja uno, E isso existe, igual- seja tempo ou comprimento” (III, dar, em um tempo indivisivel, ar sucessivamente os termos ot 356 ser decomposte, precisamente porque ela nio se deixa decompor de tal mancira. Nio obstante, 0 tempo “‘efetivo”, no qual © pelo qual « alma pensa, € ainda o tempo — indefinidamente cont{nuo € divisivel (em poténcia). Aristételes tenta primeiramente reduzir @ dificuldade, se pu dermos dizé-lo, mediante sua idéia fundamental éa combtancia. ’ Ocorre que a alme nfo pensa senfo no e pelo tempo © que tempo € divisfvel, mas isto € comitante, neste caso, portanto. extrinseco, € ndo afeta a esséncia do que esté em questo: o pen- samento da esséncia. Mas isto nfo basta para Arist6teles, © por ‘uma razo evidente. Se 0 tempo (ou 0 comprimento) no fossem seniio cominuidade ¢ divisibilidade em poténcia (lembremos que para Arist6teles @ continuidade significa a divisibilidade indefi ida: Fisica, VI, 1, 251 a 2425), 0 enigma de um pensamento indivisivel em, ¢ através de, um tempo divisivel persistitia inte gralmente. O “a medida que” (o nous pensa os indivisiveis por tum poder da alma e em um tempo @ medida que estes dltimos s80 indivisiveis) precisa encontrar, em algum lugar, um ponto de apoio. Aristételes introduz, entio, a idéia de que existe algo indi- visivel (indivisivel mesmo em poténcia, entenda-se) — embora no separado — no tempo. Esse algo é ho poiei héna ton chronon kai 10 mbkos — 0 que faz com que 0 tempo seja uno € © com- primento seja_ uno. Mas seré essa uma solugao? Aquilo que dé unidade ao tempo. aquilo em virtude de que 0 tempo ¢ uno, deve obviamente atra- vessé-lo de ponta a ponta e existit sempre ¢ em cada instante, pois & 0 que faz com que haja, em tudo e por tudo, um sé tempo. Do mesmo modo, deve estar Ié permanentemente aguilo que dé uo tempo sua divisibilidade infinita. Ora, € esse mesmo tempo que deve funcionar ora enguanto aquilo que permite o pensamento de divisiveis, ora enquanto aquilo que permite o pen samento de indivisiveis. Persiste, portanto, ainda aqui, uma ques: to sobre 0 fundamento da possibilidade da abstragdo-separagio, que permita “subtrair” do tempo ora um, ora outro desses com- ponentes nio separados. Ha ainda mais, porém. © componente universal de todos os tempos “particulares”, que fundamenta a tunidade ¢ a unicidade do tempo, o unificador do tempo, no pode, enquanto tal, fundamentar a indiviséo da inteleceao de indivist eis. O que esta tltima requer € uma unidade de segmentos do tempo — de um certo segmento do tempo — que permita tomar 337 fal segmento como escencialment tanto sua divisibilidede “intern realmente infraturavel no Uno do extrinsecas, nfo essenci uno ¢ indivisivel, e considerar " quanto sua insergio Iégica e tempo apenas como comitantes, s. Uma tal unidade, situada além de duas contradigdes ou impossibilidades, nfo se encontraré nem na fisica nem na Idgica — nem na sensagio como tal, nem no raciocinio ‘A questio, de tato, nfo esté resolvida e podese perceber, aqui, 0 limite des possibilidades da perspectiva “‘intelectualista”, Por assim dizer, dos capitulos 4 a 6 do Livro HII relatives ao ‘hous; e, sem diivida, o motivo nfo declarado que impele Aristo. teles, nos dois capitulos seguintes (7 € 8), a reintroduzir a phan. ‘asia, Elementos para a resposta so efetivamente encontrades na Passagem central de III, 8, citada no inicio deste texto, ¢ no escrito De memoria et reminiscentia “A alma jamais pensa sem fantasia." “O noético pensa os cide nas fantasias.” “E necessério, quando se pensa, contemplar 20 mesino tempo alguma fantasia.” “Mas, neste caso, 0 que dife- renciard os primeiros noemas das fantasies? Ou entdo [esses pri: meiros noemas] nfo séio fantasies, embora nfo subsistam sem fantasia” (De anima, Hl, 7 © 8). TE impossivel pensar sem fantasia, pois quando pensamos sucede © mesmo que quando desenhamos [uma figura]; também heste caso, com efeito, cmbora nfo tendo nenhuma necessidede de que @ grandeza do tringulo esteja determinada, nés desenha. mos [um triéngulo} determinado segundo a grandeza; do mesmo modo, aquele que pensa, ainda que no pense em uma grandeza, Poe ante os olhos ume grandeza que ele nfo pensa como tal. E, se © gue ele pensa diz respeito a quantidades, embora indelermi. nadas, ele toma uma quantidade determinada, mas a pensa apenas como quantidade. Qual ¢ a razio de néo ser possivel pensar o gue quer que seja sem o continuo, nem penser sem o tempo aquilo que no esté no tempo, essa é uma outra discussio (logo allos). Mes § necessério que aquilo pelo qual conhecemos a grande 2a € © movimento seja o mesmo pelo qual conhecomos também © tempo; © a famtasia € uma afeceio do sentido comum: fica claro, portanto, que o conhecimento daqueles [Isto &, da grandeza, do movimento ¢ do tempo} se faz pela sensibilidade primeira (6 prOté aisthétike); © a meméria, mesmo a dos inteligiveis, nao existe sem fantasia; de tal sorte que ela [a meméria] pertenceria 40 noético por comiténcia, mas, em si mesma (kat’ auto), perten. 358 ceria & sensibilidade primeira”” (De memoria. .., 449 b 31 — 450 tifica, como jé observei acima, a imaginagéo ao “sentido comum (eran de senses comun) incl amos p rimeira’”. também chamada elementar ou originéria, longo de ambas, 0 “lugar” da imaginagio nao chega a ser deter- mina, Mas ni ¢niso que reside « importinsa desta pesagen. “Nao € posivel pensar sem o tempo aquilo que no ext no tempo.” Aisicls néo diz que ¢ impossvel pensar 0 que nfo esi co tempo sem que aqusle que pensa ere, ele prpri, no tempo — asscryio evidente e desinteressante, O que ele diz & at impossivel pensar o que nfo est no tempo semt o fempo — sem contar com conribuigio de algo do tempo, sem apolarse em sige do pensomento do tempo. A rando pela gual ito ocore, dz cle, remete a uma outra discussio (allos Jogos). Mas essa outr digewsio nfo aparece em pare alguns, Se pudermos, sem aro efncia,astumiro riso de encetils, na linha de Aristteles, ove Femos rcunir esses clementos esparsos e tentar fazer passar érergtiaagulo que nés perecbemos — taves eroneamente, tales por termos lido Kant, que Arisi6teles nao leu, mas que teu Arisiételes — como sendo a dunamis do texto. io Por meio da “sersibildade primeira” — elements, origins ia — thece tempo, grandeza, movimento. Esta “sen: Sdede peta emo te sestiidade para Aas, io € “pssivdade” ou “resepividede”, mas poléncla. Notes, ince dentaimente, que nfo his para Ansel, @ priori no sentido de Kant (cu s enamnese no eentido de lati), mss € presto sobretudo lembrar qu, neste ne, a ditingdo priori posterior! no tem nenhum sentido na pernpect ee lo € @ steriori (pois "sem sensagao nada se pode aprender. ou cor preender)\s todo 6 a prior (pis “a alma 6, em potéaca, todos os sre” cn senngso 6, den cer modo, ov sence"), O i is jente, na e pela sensacd . Tiny do dam potas alse como sete € to he como senivel — assim como inteigenia em ato coincide com pletamente (holos) com os inteligivels (451 b 16-17; cf. tamt ON ania, «ala, mediante 0 sn lide primeira, comhece tempo, grandeza ¢ movimento, sem os quais nada é poss 359 Pensar. Ora, estes ultimos também so f pe ém Go fantasias, e esta assery plicita no texto, deve ser explicitada para que o entimema® (de (tstr 9s fantasas]; © a fantasia € uma afecsio do sentido Comune Ingo, é claro que w conhectmento daqucies [da grander, do wvimento e do tempo] se faz pela sensibilidade primeira”. Sem 4 fantasia de um tempo, € impossivel pensar o que esté forade. tempo. Sem a fantasia do continuo, & impossivel pensar ceci ue, sendo indivisivel segundo 0 cidos, nada tem ower Gane continuo/descontinto. ; Fee Na auséncia de fantasia, nada pode ser pensado. Para pensar ©s inteligiveis 6 preciso contemplar algume fantasia, ‘Mat inn Por sua vez, exige que se pense também o tempo ~— portanto, ue se mantenha ante os olhos alguma fantasia do tempo G imesmo vale também para os indivisveis. Pensélos implica ma fantasia, especifica sem divide, em cada caso, a0 indiviivel con sidevado, mes também implica alguma fantasia do tempo que pre sentifica — ou torna sensivel, para permanecermos 0 mits perio Possivel das expressées de Aristicles — a indivi, a despeio do fato de que o tempo € essencialmente divisivel ¢ de gus * ue 0 toma tno" no esté “separado” do tempo, e dove ser aut contemplado-pensado por meio, simultaneamente, de uma sa rastoabstragiosubtragio ¢ de uma fratura, a que permite fazer ty figura de um segmento do tempo a figura da indivisto come tat (A sti ot roblemas sio andlogos quando a fantasia de atidade determina i ie quaniade deteminada permite pensar a quentdade como Estamos certamente no limite das implica alguns dire, bem aiém dese limite — ¢ difciaente sodas continuar avanganido sob 0 disfarce do comentério on de tren Pretagfo. Notemos apents que o texto de Arisbteles carpe a exigéncin de uma fantasia do tempo que deve ser unificagée de lum tempo dado, definido, como apresentagao da indivisgo casuilo ue ndo esté no tempo. Nés podemos pensélo somente cometne 4d. Agu, como mais & frente, utilize © tet sale ia tc, utilizo © termo entimema no sentido mo- SeeRe (ae prevaleces desde Boéfo) — silogsmono qual diversas prope Permanecem implicitas ou subentendidas —, © no no que Ihe abibens © proprio Aristételes: “silogismo a parti a , snmene AetGeles: “slogismo a partir de provévels(ekotlm", Prmetos 360 | tasia/figura presentificando a permanéncia enquanto tal. O que presentifica 0 fora-do-tempo — © agora o termo se torna franca- mente inadequado: 0 que o representa, 0 que éstd ai em lugar dele — tem a ver com a fantasia/figura daquilo que esté af 0 tempo todo, © unificador do tempo. O pensamento de inteligiveis, de imutéveis. de coisas que esto foredo-tempo nao pode existir. para Arisiételes, “sem o tempo”, sem se figurar dentro ¢ através do continuo e do tempo (e também, sem diivida, do discreto: continuo © discreto sio indissociéveis). & impossfvel esquecermos que, nde no plano do pensamento, mas no plano do ser, Platio atribufa 20 tempo uma funcio andloga dentro daquilo que se poderia denominar seu Esquemetismo ontolégico, Para imprimir ‘a0 mundo “a maior similaridade possivel” 2 scu Paradigma eterno, para aproximar “o mais possivel” “‘a natureza eterna” do Vivente, ‘0 Demiurgo do Timeu (37¢-38b) inventa o tempo como “imagem mutdvel da eternidade (...) da etenidade imutével que perma nnece una, imagem mutével segundo o némero”. Em Plato, igual mente, embora em outro nivel, 0 nao-tempo € apresentado-figurado pelo tempo, ¢ o tempo, bem entendido, “existe” somente como essa apresentagiofiguracdo do ndo-tempo. £ por isso que, desde entdo © até agora, seu contedido somente pode set Repeticdo. Fantasia ¢ noema No quadro do Esquematismo aristotélico, o papel ¢ a funefio da imaginacéo so muito menos precisos mas, em compensacéo, muito mais amplos do que no Esquematismo kantiano. A fanta ja ndo ¢ simplesmente mediaco entre as categorias © 0 dado emptrico. Ela € 0 suporte de qualquer pensamento, incluindo 0 pensamento de abstratos, relativos, inteligivels © formas indi siveis’. E isto introduz uma aporia crucial, em relagdo & assercéo, central ¢ fundamental para Aristételes, de que hi um acesso direto e imediato do nous & esséncia, Assere4o formulada enfaticamente no tratado De anima, 20 final de HII, 6, pouco antes das passa- gens onde a questiio da imaginagao invade novamente 0 texto: “E toda enunciagio diz alguma coisa de alguma coisa (ti kata @. Aqui apenas posso indicar que esta canstatacho, que & como 0 limite ‘ou o horizonte do texto de Ariststeles, € 0 ponto de partds da investigagio sobre # imaginacdo radical (subjetivay em Elément imaginaire Jinos), como a afirmagdo, ¢ & sempre verdadeita ou falsa. Eo ous € verdadeito, no sempre, mas quando pensa aquilo que € segundo o que ele era para sex (ti en einai), ¢ no quando pensa alguma coisa de alguma coisa. E embora ‘a visio do [visivel] proprio seja verdadeira, quanto a saber se @ coisa branca é ou no um homem, @ resposta nem sempre é verdadeira, ¢ o mesmo vale pura tudo © que existe sem matéria” (450 b 26331). Esta aporia & produzida dirctamente pelo texto do Tratado, © as frases dos capitulos 7 8 citadas no inicio deste texto « atestam com nitidez. “A alma jamais pensa sem fantasia": por- tanto, mesmo © pensamento sobre “o que € segundo o que ele era para ser”, sobre a ousia, no pode se dar sem fantasia, As “lkimas linhas do capitulo 8 mostram que Aristételes tem plena consciéncia da dificuldade e que, mais uma yez, ele nfo a esca- moteia. "A imaginacio é distinta da afirmagio e da negagio, pois 8 verdade ¢ 0 erro dizem-se de uma complexio de noemas. Mas, neste caso, o que diferenciaré os primeiros noemas das fantasias? Ou entio [seré preciso dizer que] eles néo sio fantasias, embora nao subsistam sem fantasias.” © que ¢ verdadeiro ou falso € uma complexdo de noemas, Mais precisamente: este verdadeiro e este falso dos quais se-trata aqui, propriedades da enunciagao (phasis), resultam da comple- xo de noemas. E claro, ainda, que uma complexéo de noemas € um (outro) noema. O pensamento discursivo produz noemas por complexéo de noemss. Reciprocamente, um dado noema pode set analisado em outros noeatas. Essa andlise deve encontrar um término, chegar a noemas inanaliséveis, aos primeiros nocmas ‘Mas, nesse caso, em que eles setdo diferentes das fantasias? Ou serd preciso dizer, antes, que eles no so fantasias, embora nao possam subsistir sem fantasias? Mas por que os primeiros noemas poderiam ser fantasias? Ora, que outra coisa poderiam ser? O que sio os primeitos noemas? Alguné intérpretes (como Ross) quiseram yer nos “pri- meiros noemas” os noemas “menos abstratos", os mais prdximos dda sensaco. Mas, se se tratasse disso, teria Aristételes sentido a necessidade de acrescentar que cles no poderiam existir sem fan- tasias, algo que, neste caso, constitui quase que ums banalidede, apenas repetindo, sem nada acrescentar de novo, o que ele jé tinha dito dez linhas acima? Apds escrever que os inteligiveis existe nas formas sensiveis, de sorte que nada se pode aprender ou compreender sem sensagdo, € que, sendo as fantasias. como as 362 sensagdes, mas sem matéria, & necessério, quando se pensa, con templar algume fantasia, por que iria Arist6teles retornar & ques- tio para afirmar que o noema “vermelho” néo pode existir sem 4 fantasia “vermelho”? De qualquer maneira, quer scjam menos abstratos ou mais abstratos, os noemas sia complexées de noemas. E todo noema aque eu penso, diz Aristtoles, en o penso consierando 20 mesmo tempo “alguma fantasia”, Sei que ele nfo passa de uma fantasia — mas por qué? Porque eu posso analisé-lo em noemas. Soja um witngulo. Nie posto pensslo sem una fantasia — uma imagem, representagio ou “intui¢go pura” do triéngulo, O tridngulo, con- tudo, nfo ¢ apenas essa fantasia, Ele € também um noema, © aque se tradur pelo fato de que ele pode ser “analisado” em outros noemas (ou “‘composto” por meio destes), ou seja, ser definido: figura plana rotiinen fechade de tr los. Tes: um e um ¢ un. Mas seré que figura e um sio analisdveis (ou componiveis)? Em que difere o noema figura da fantasia figura? Em que 0 noema tum difere da fantasia wm? SHEE Os inteligveis exisem nas formas sensves, Nilo bé aeesso 20 inteligivel a nao ser sobre 0 corpo do sensivel. Mas a alma nio tem necessidade de que o sensivel esteja ai “em pessoa”, para ele pensar o imclipivel: a present em sto da materia de sense go no sorescenta, como tal, nada ao pensamenio. Mais sind: “a matéria em si mesma é incognoscivel” (Metafisica Z, 10, 105 48), nio ¢ a matéria da sensacdo como tal que poderis ser pen seda, A solugdo € forecida pela imaginagdo: ¢ necessirio e sufi ciente que algo existe “como” (hdsper) sensacéo, ¢ que seja sem mmatéria. E necessério € suficiente que o sensivel seja representado pela fantasia, De sorte que a fantasia necesseriamente (enanid) est presente, sempre que h4 pensamenfo; 0 pensimento &, 30 these tempo ¢ de um co golpe (ama, contemplaco da fantasia Desse modo, a alma pode proceder, sobre 0 corpo incorpéreo fantasia, & separagio dos intlpiveis — ¢ a partis disso © pense tnento pode comecar seu trabalho prdprio de complexdo, sntse, atribuicdo, do ti kata tinos. A questio de seber por onde ela efet vamente comegou tem, evidentemente, pouquissima importincin; € possivel que els descubra que tal noema ‘“abstrafdo” (= sepa rado) diretamente da fantasia pode e deve ser recomposto a partie de_nocmas mais clementars, Em todo 0 caso, ela devert Geter-se em algum ponto, desembocendo nos primeitos, ou clti- ‘mos, noemas © que sio esses noemas, ¢ em que se diferenciam das fanta: Sias? A questio 36 adquire pleno sentido se supusermos que i sabemos em que se distinguem das fantasias os noemas interme. dlidtios. Ora, também estes sempre surgem acompanhados de fam. taslas — mas so, por sua vez, analisiveis em outros noemas Esta € a Gnica diferenga, Sob pena de perderse no infinite. isto no indetcriminado, a anaise deve terminar em algum ponto. preciso que haja noemas inanaliséveis; 0 que quer dizer, igual mente, indefiniveis. Como distingui-los, entio, das Fantasias? Eles S80 polos terminais, que nfo admitem definigio © que nao podem ser objeto de pensamento discursiva, E 6 de termos [horoi], na verdade, que fala Aristételes na bem conhecida passagem da Etica a Nicémaco: “Dos tetmos pri meiros ¢ iiltimos ha nous e no logos” (VI. 12, 1143 a 35) raduzo: apreensio pensante, e nao intelecgéo discursiva, Fsses fermos, ele os donomina os simples (hapla), na Metafisica: “E claro, portamto, que no ha investigagio ou aprendizado relatives 208 simples, e que sua busca é de outro género” (Z, 17, 1041 b 9) © togos existe na e pela complexdo (sumploke), ele & complexe. Os termos primeiros © dltimos nao podem ser engendrados pela complexio. Sintese e anélise s6 podem ter lugar nos elos intermedi rios da cadleia do logos; suas dus extremidades devem ser finadas, © dadas, de outra maneira, O logos nio pode fornecer os termos xtremos, jd que sua operacio os pressupoe. Na Ftica a Nicémace, Aristételes relaciona ao nous a possibilidade destes termos extre mos. No tratado De anima, a situagao deles torna-se mais obscura, E verdade que a parte principal do tratado, que expe a doutrina Sonvencional, esclarece e precisa, de maneira perfeitamente coe. rente com a liso do restante do Corpus, a natureza de tais termos extremos © dos correspondentes poderes da alma: em uma des extremidades, a sensagéo de sensiveis proprios, sempre verdadei Os; na outra, 0 nous, o pensamento enquanto pensamento acerea daquilo que denominei, em outra ocasifo, seu pensdvel préprio, a csséncia, © “aquilo que € segundo o que ele era para ser” pen- samento que, também ele, é sempre verdadeiro. Entre esses dois rochedos, as torrentes incertas da sensacio de sensiveis comuns, da imaginagdo, do pensamento atributivo (ti kata tinos), onde ¢ verdadeizo ¢ 0 falso so igualmente possiveis, Porém, nas passa. ens excéntricas e explosivas do tratado, das quais trato aqui, a Otganizacdo ¢ totalmente diversa, “A alma jamais pensa sem fan. {asia."" A proposiedo ¢ universal ¢ absoluta, sem restrigdo, Neces. 364 | re se contempla algume fanta- ariamente, quando se pens, semp sia, A questéo da natureza dos termos extremos, dos termos que precedem toda discursividade, toda complexdo de noemas, vena enti ineitavelnente,¢ em um horzonte distin, Ho, qual " o mais teria, néo mais tem, sent a resposta precedente nio meis Nest contento, os termes ektretnos no pode sais! consist: nas sericfas, de outro. "O' que permenece a amy Yad, e nas essicas 3 oc ees tempos "precede Yoda tsebrsividade. Ou sles i alque' so fantasies; ov no podem exitr sem fantais. Em qualquer caso.» aprensio devere dar de uma 96 vez, fama, a8 wniversa lida, ou metho, na genercdade, ¢ ow fire. Endo € io ating, evidente? Que o um, por exemplo (ou 2 fir), no ia realmente pensive (ents “penso” ¢ eplieat © ue quer dey penser 0 um), mas fgurvel/maginivel/representivel, condo Impensvel de todo pensemento, que € dado somente somo figura afigurans, — tudo iso quose nio_admite,discusio, Pato i . “yiivel” — visivel “Ia fora”, abia, mas afirmava que © um ora “vist “ Sade outa lado" lante” (eked). Arise, de fo, dis sim, 0 um “visvel", mas “dentro”, na alma — por meio de ‘uma fantasia, com uma fantasia ou como uma fantasia. © an € fantasia? Talvez. Mas que fazer, enti, da persistente afirmas le Aristoteles: 0 um € © ser so 0 mesmo? cd ot Meveee note de pavagea que atl resurge 2 problemi do Esquematismo, ¢ com muito maior intensidade, Que os pri os nocmas nao existem sem fantasia no pode significa: sem fantasies qt is. Os primeiros noemas no fantasias quaisquer, no importe quas. io plese elo que &. para umd fantasia, coresponder a um “primelro noema”, ou Ihe ser hombloga? O que pode significar a “homolog ou “orrespondéncia” entre uma fantasia e um “primeiro noc Duplicagao e oscilagao do verdadeiro © mesmo Jm branco que no se opusesse 20 negro seria ; ites ihe uele que se opée eo negro? Uma Tue que jemais anco que aquele qu «ge jamais prodursse sombre seria sinds a mesma for que essa que nig pode iluminar nada sem, de imedist, fazer surgir uma sombre? No tratudo De anima (¢ em outros lugares, Catto ema aléthes (verdadeiro) assume yue falo aqui), @ palavra suprema dhs sigificagees, quase ser relagdo una com # outa 365 A ssensagdo dos sensiveis préprios & “sempre verdadeita”. Esta sensagio verdadeira nio se opde a uma sensaglo false: ndo ppode haver sensacio (de sensiveis proprics) que seja tulsa ( féell mostrar que a sensago “patolégica” ndo cria neahum problema quanto a isto, na perspectiva de Aristételes). —- 0 percamenro pelo nous, de seus pensiveis préprios, de eséncias, & "sempse Yerdadcito”, « ele ngo se opoe um pensamento de essence taloos nido pode haver pensamento de esséncias que seja falso’. Sensa, Gio de préprios © pensamento de préprios sao sempre verdadeiros eles existem ou néo existem; contudo, quando existem, 36 tem uma tinica modalidade de ser e podese dizer, indiferentemente, que eles existem ou que so verdadeiros, Seu ser é co-atualizayao de um poder do alma e de uma poténia do objeto, ques reliza oe fo sree, mas que, sendo hic, nid pode se realizar Completamente distinto & o caso da sensagio de comuns, de sensapao do objeto comitante, da imaginacao segunda, de opinite da intcleccéo atributiva (ti kata tinos). Eles sempre podem sev ou verdadeiras ou falsas, © sdo necessariamente uma, das duas coisas. Este verdadeiro-ou-flso no é, como o vertladsiro da sense, so ou do pensatento de préprios, um ser simples, ou ser des simples (hula); ele uma propriedade de composigdo, de. com, plexio, de sfatese. “Portanto, © pensamento de indivisiveis dis respeito a coisas a propdsito das quais nao existe erro. Mas, onde existem tanto erro como verdade, jd hé uma carta composiede de noemas formando um. (...) Pois o erro reside sempre na com, Posicdo, ..” (III, 6, 450 a 25 — b 2). “Pois a verdade ¢ 0 ewo dizenvse de uma complexéo de noemes” (IIl, 8, 452 8 11-12), ‘Antes de prosseguir, fixemos dois pontos menores. Ae mesmo tempo em que diz que ¢ na composigao de noomas que se encon tra 0 verdadeiro-ourfelso, Aristételes fale muito. fregtientemente da sensagao de comuns, ou da imaginasdo, como verdadeita-ot false. E claro que esta utilizacio do termo & demasiado ampia, € constitui © que se chamaria um abuso de Hinguagem. A percep, so do Sol como tendo um pé de didmetro somente se torne “era, de” 0 ser traduzida em noemas ¢ acrescida da pisils, da crenga, J. sudan idivisel. “Eo pensamonio dos inviscs di epeto Aauilo « propécio de que nio pode haver eo. Mas Ié sade hears dude, hd ume compodito de noma, tomados come e Tose an) #60 evo ent sempre na composite ll 230 436 ED 366 | dda tese: ele € desse tamanho. Ao dizer que um certo produto da sensagdo de comuns ou da imaginacio é falso, Aristételes quer dizer que seria errado afirmar a cortespondente complexéo de noemas. De resto, néo estamos tratando aqui do critério da verdade ¢ do crro daquilo que pode ser verdadeiro ou faleo, nem doe pro blemas relacionados a esse t6pico. O que nos interessa € a “natu- teza” diferente das duas verdades, ou sua “consisténcia”. A pri meira, verdade de ser ou verdade ontolégica, “consiste” na co- atualizago em um simples, que exisic em ato, da alma ¢ de seu objeto. A segunda, verdade de atribuigao ou verdade légica, con- siste na complexio de produtos de outros poderes cognitives da alma (mais precisamente, de seus equivalentes ou tradugbes noe- méticas). ‘Ora, se a imaginacdo segunda discutida em I, 3 faz parte desses poderes cognitivos, cujos produtos sio verdadeiros-oufalsos no sentido que acabo de precisat (¢ os seus produtos sio “na maioria das vezes falsos”, diz Aristételes, 428 a 12), tal nfo & absolutamente o caso da imaginagdo primeira de III, 7 e 8. Esta hima nada tem a ver com o verdadeiro-ow-falso. Aristételes afirma isso, fora de qualquer diivida possivel, na passagem citada de 111, 8 (431 b 10-12): “E a imaginacdo ¢ distinta da afirmacio ¢ da negaglo, pois a verdade e 0 erro dizem-se de uma complexio . de noemas”. Passagem enigmética, incompreensfvel quando se con- tinua a pensar na imaginacio segunda, necessariamente verdadeira- ourfalsa. Mas, a partir do que acabo de dizer, € fécil desenvolver © entimeme ¢ ver claramente sua significagao: “E a imaginagdo € distinta da afirmacio e da negacéo [o que quer dizer que ela nao € uma complexiio de noemas. Portanto, ela nao é verdadeira- owjalsa); pois a verdade ¢ 0 erro dizem-se de uma complexio de noemas”, Ou, se preferitmos: 0 verdadeiro-ou-falso & [esté na] complexdo de nocmas [toda complexio de noemas é afirmagdo ou negaczo]) & imaginagéo é distinte da afirmacdo e da negaggo [portanto, @ imaginacao néo & complextio de nocmas]; [portanto, a imaginacéo no & verdadeira-ov-falsa]. A imaginagio primeira esté além ou aquém do verdadeiro-ou- falso. E, independentemente da passagem citada, isso resulta cla- ramente do que se lembrou acima acerca da fungao da imaginagéo no pensamento, Se 2 alma jamais pensa sem fantasia,’a idéia de aque a maior parte dos produtos de imaginasso so falsos tomna-se 307 insignificante, © verdadeiro-ou-falso nfo apresenta interesse quan do se trata dessas funcées da imaginagio primeira que sto. a apresentagio do objeto, a separagio e a composigao ¢, em diltimo ¢ principal lugar, 0 Esquematismo, Néo apenas porque estes cons. tituem condigses preliminares requeridas para que se posea pro- Priamente tratar de um verdadeiro-ow-fnlso, mas porque, come jd vimos 20 comentar o Esquematismo atistotélico tal como fol esbo- gado no escrito De memoria... 0 “verdadeiro” & pensado a partic © por meio da apresentacdo de seu contraditério, 0 indeterminado 4 partir do determinado, o descontinuo pelo continuo, o fora do. fempo pelo tempo. Que sentido haveria em dizer que a figura tem. Poral fornecida pela imaginagio c sobre a qual o forade-iempo é Pensado “falsa” (ou “verdadeira”, tanto faz), quando, som esa figura, néo poderia haver nenhum pensamento do fora-dotempo? Além disso, essa propria figura, bem como sue relagio com 0 ensamento a0 qual ela dé suporte escapam completamente das determinagses do verdadciro-oufalso. A possibilidade, a necessi. dade de pensar A através do néo-A (com que nos deparamos, novamente, no plano da instituigo social-histérica, como consti, tutiva do simbolismo em gcral © da linguagem em particular) esvazia o sentido tanto desta questdo “‘o ndo-A & verdadeiro ou falso?” como destas outras: “a relagdo entre A e no-A é verda- deira ou falsa? 0 nome Calistenc € verdadero ou falso? a relagao entre © nome Calistene © 0 fomem que a ele responde € verda. deira ou falsa ‘A imaginagio primeira ndo pode ser relacionada com a ver dade de attibuicao ou verdade Iégica, nem subordinada a esta, Ela néo faz parte do reino do logos, o qual a pressupse. Mes la nfo poderia, menos ainda, ser posta em relacio com a verdade de existéncia ou verdade ontoldgica. Daquilo que ele produz nfo se pode dizer, no horizonte aristoiélico, nem que existe, no sent? 0 da ousia, nem que inexiste sbsolutamentc. Muito ao cantritio, ela questiona, por retroacéo, tanto © modo de acesso do nous 8 seus penséveis priprios, as esséncias, como as determinagdes fundamentais de toda ente ¢, finalmente, a ontologia como tal A alma jamais pensa sem fantasia, Ha, portanto, fantasia da essen. Gia, do aquilo que é segundo isso que ele era para ser. Arist3- teles diz isso explicitamente: os indivisiveis séo pensados mediante © continuo, o foraco-tempo ¢ pensado através do tempo. Este Pensamento sempre verdadeito nfo pode mais, portanto, ser con cebido simplesmente como pura co-atualizacao, pela qual o nous 568, » se tomaria aquilo mesmo, 0 nodton. O “aquilo mesmo”, 0 noéton, é necessariamente acompanhado ¢ sustentado por, ¢ apreendido em, ‘algo que no 6 aquilo mesmo: 0 forecio-tempo com o tempo, em € stravés de uma figura do tempo, Vimo iguaimente que a imagins- ef prince bela «bipergfo dos ete em sails inl, mi vamo esoa propia distugdo. Que dizer, por fim, do este. fsto ontlice da mapinagio dese produtos? A” definigéo canénica da imaginacio em Ill, 3 — “movimento engendrado pela sensacio em ato” —, em conformidade, no espitito © na letra, & oniologia de Arist6teles, deixa em aberto considertveis problemas, mesmo em relagéo 8 imaginasio segunda; espero tet Monado que ela nfo tem liao com a giao princi. we essa fatha pode scr corrigida, fenl e's inagnagio prineiee em parca pode ser definide como uma das poténcias (ou poderes) da alma que permitem a esta conocer, julgar © penser — bem como mover segundo 0 movimento local (cf II, 9, 432 2 15-18). Scu ser deine-se determi- ner, assim, a partir das determinag6es telel6gicas-ontolégicas do ser da alma, destinada « conhecer © & mover. Mas isso nao suprime 4 imposiildade de fxar um esttio nioipico qualquer @ seue produtos, de diver 0 que eles slo, de sudmeté-los (sem ser Imaneira Iégica e vazia, como dir o proprio Arist6teles) as deter- minagées du forma ¢ da matéria, da potincia e do ato. A senst bilidade & uma poténcia, ¢ seu ato € a sensesa0, que existe, pois ao mesmo tempo atualizagio do sensivel no cbjeto. A imagine glo € uma pon ojo ao ¢ a fantasia — mas o que € sta? E um problema anélogo se encontra, sem divide, no caso deste outra pots de le, a ineleszo abusive: seu ato 4 come plexo de noemas, da qual se pode perguntar o que ela & Que ringuém se presse « dizor que esta questo néo tem sentido no horizon de Arsttcles — pos 0 propo Ariss slime ue 0s inteligiveis no existem enquanto separados ¢ & parte dos sen- sis, mas eto nas formas seni A costes etl se pudermos nos exprimir assim, da enunciagao, da complexao dk notmas, proven do fo. de que ela pode ser posta em lao com 1 semposigi eleva dos itlgels no sensivel, em outa galeies, ser subsumida go ponte de vst do vedadsrocfa (Nao € porque temos uma crenga verdadeira de que tu és branco que ta é branco, mas € porque tu és branco que n6s dizemos @ verdade quando demos que o &", Metfisiea ©. 10, 1) emun ciacéo atributiva verdadeira “6” alguma coisa, num sentido a 369 nuado do termo “é", porque ela € comandada a pattir do ser- assim efetivo de uma coisa que simplesmente é ¢ & qual ela “corresponde”; cla € sua reproducto, quase se poderia dizer sua imitagdo. £ evidente que isto deixa inteiramente aberto o imenso problema da enunciagao faisa, ou seja, da otigem do erro, pro- hlema qne nao posso abordar aqui (a néo scr para ular que Aristételes considera a imaginacdo como a fonte privilegiada do erro, mo que seré scguido por toda a tradicao filosdfica, @ qual, nao mais que ele, nfo se preocupa em elucidar esta estranha capacidade de criagdo de ndo-ser atribuida assim & imaginagio). Finalmente, porém, mesmo esia — a enunciagao falsa —, median te determinago do verdadeiro-ou-falso, no rompe as amarras ‘ontolégicas ¢ mantém, enquanto negagio ou privagdo, uma cone- xo com o ser. O mesmo no se pode dizer da fantasia, produto da imaginagdo primeira, em relacdo & qual, como vimos, a deter- minagio do verdedeiro-oufalso & desprovida de qualquer pert néncia. Dos produtos da imaginagao primeira, ¢ portanto também, Finalmente, da propria imaginacio primeira, é impossivel dizer © que so © de que mode o sito. Nao ¢ dificil entender por que 0 movimento que se apodera de Acistételes na segunda metade do tiltimo Livro do tratado De anima e 0 impele & descoberta de uma imaginagio distinta, situada numa camada bem mais profunda que aquela da qual ele i havia falado, deveria permanecer sem continuidade no apenas tno préprio tratado mas também na histéria da filosofia até a Publicagao da Critica da raze pura, em L781. Aristételes equi reconhecia um elemento que néo se deixa apreender nem no espace definido pelo senstvel e pelo inteligivel, nem — o que é bem mais imporiante — no espaco que se define pelo verdadeiro © pelo falso, ©, por tris destes, pelo set e pelo néoser. Ble o concebia no como monstruosidadc, fendmeno patolégico, residuo, acidente, forma deficitiria (0 sonho, por exemplo, sejam quais forem © imensos problemas que ele poderia levantar em outros campos, deixase escotomizat filosoficamente de maneira incom. paravelmente mais fécil), mas como condigéo e dimensio esson- cial da atividade da alma quando ela é, a seus olhos, alma por exceléncia: psych? dianoétike, alma pensante. Ele via que a pos- sibilidade que a alma tem de pensar, e portanto, também, de diferenciat o sensivel eo inteligvel, repousa em alguma coisa que do € nem verdadeiramente sensivel, nem verdadeiramente inteli- 370 sivel; © que a possibilidade que o pensamento tem de distinguir entre o verdadeiro e o falso — e, por trés destes, entre © sex ¢ 0 nfoser — repousa em alguma coise que nfo se sujeita as deter- minagdes do verdadciro ¢ do falso ¢ que, tanto em seu modo de existéncia como no modo de existéncia de seus produtos — os phantasmata —, nao encontra lugar nas regides do ser tal como las parecem seguramente estabelecidas sob outras perspectivas. E verdade que este movimento permanece essencialmnte limi- tado. AristGteles nfo reconhecia, nem podia reconhecer — como tampouco Kant —, na imaginagio uma fonte de criagdo. A imagi- nagio primeira em Arist6teles, assim como a imaginagao trans cendental da Critica da razao pura — a Critiea do jutzo introduz ainda outros problemas — so invariantes em si mesmas © quanto a seus produtos. Para cumprir sua destinagdo ¢ fungio, para fornecer um processo, ainda que por meios paradoxais, a 0 ‘que existe intemporalmente, elas devera ser postuladas implicita (Aristoteles) ou explicitamente (Kant) como produzindo sempre 0 Estdvel ¢ 0 Mesmo. Nada mais desprovido de imaginagio que a imaginagdo transcendental de Kant. Tal situagdo, na verdade, € inevitavel sempre que se pense o problema da imaginagéo ¢ do imaginério unicamente em telaclo a0 sujeito, em um horizonte psico-légico ou ego-légico. De fato, enquanto ficarmos confinados a este horizonte, 0 reconhecimento da imaginagio radical como criagio somente poderé conduzir & desarticulacio universal. Se a wginagéo transcendental se pusesse a imaginar nfo importa o qué, 0 mundo se desagregaria no mesmo momento. E por isso que 1 “imaginagdo criadora” permaneceré, filosoficamente, como uma simples palavra, e © papel a ela atribuido estaré limitado aos dominios que parecem ser ontologicamente gratuites (a arte). Um reconhecimento pleno da imaginacéo radical 36 € posstvel quando € acompanhado da descoberta da outra dimensio do imaginério radical, 0 imaginério socia-hist6rico, a sociedade instituinte en- quanto fonte de criagio ontolégica que se desdobra como histéria. ‘ais limitagées nfo impedem que a descoberta aristotélica da imaginacdo ponha em questio, e faca de fato explodir, tanto a teoria das determinagdes do ser como a teoria das determinagoes do saber — e isto ndo em favor de uma instincia transcendente, mas de uma poténcia da alma, poténcia indeterminada e indeter- minével, a0 mesmo tempo que determinante. Como colocé-la ver- dadeiramente em relagéo com 0 que foi dito em outras partes — a menos de comegar tudo de novo? Por essa razio Aristételes, rT no ocaso de sua vida, nem mesmo o tenta. Com sua tenaz ¢ hheréica honestidade, sem se preocupar com ax contradigdes e anti. nomias que cle faz assim surgit em seu texto, cle nos mostra aquilo que viu em sua necessidade profunds © no qual nos permite ver mais longe, so pudermos. Menos profundos, ou menos core josos, os intérpretes e fildsofes que the sucederso se obstinario tonazmente cur sufcar 0 escandalo da imaginasao. 372 ANSTITUIGAO DA SOCIEDADE E RELIGIAO* A humanidade emerge do Caos, do Abismo, do Sem-Fundo. Ela emerge enquanto psique: ruptura da organizaclo regulada do vivente, flaxo representativo/afetiva/intencional que tende a reportar tudo a si, © existe precisamente enquanto sentido continuamente pro- ‘eurado. Sentido essencialmente solipsista, monddico — ou ainda: prazer de tudo reportar a si, Essa procura, quando permanece absoluta ¢ radical, 36 pode fracassar, ¢ levar & morte do suporte vivente da psique © da propria psique. Desviada de sua exigé origindria total, essencialmente alterada, formada/deformada, ca- nalizada, ela pode ser semi-satisfeita mediante a fabricagio social do individuo, Radicalmente inapta & vida, a espécie humana sobre- vive criando a sociedade, ¢ a instituigdo. A instituicdo permite 2 sobrevivéncia da psique 20 impor-the a forma social do individuo, 20 Ihe propor ¢ impor uma outra origem ¢ outra modalidade do sentido: a significagdo imagindria social, a identificago mediati- zada com esta (com suas articulagées), 2 possibilidade de tudo reportar a ela, A questo do sentido deveria, assim, saturar-se, encerrando-se a procura da psique. Mas, de fato, isso nunca acontece. De um Jado, 0 individuo socialmente fabricado (por sélido e estruturado ‘que seja) nunca € mais que uma pelicula recobrindo 0 Caos, © Abismo, 0 Sem-Fundo da prépria psique, que nfo deixa nunca, sob uma ou outra forma, de anunciar-se e apresentar-se a ela. Pode- se reconhecer aqui uma verdade parcial ¢ deformada de certas * Este texto foi extraido de uma obra em preparagSo sobre a institu slo da sociedade © a criaydo histérica, que prossegue as investigagGes que inicici em "Marxisme et théorie révolutionnaire” (Socialisme ou Barbarie, ne 3640, 1964-1965) ¢ comtinuci em A instiuisto imagindria da sociedade, op. cit, Referencias a esses textos séo indicadas aqui pelas siglas MTR (= IIS) ow IIS, seguides do méimero da pégina. Publicado em Esprit, maio de 1982, e nos Mélanges Jacques Ellul, Paris, PUF, 1985, pp. 5-17. (N. do E, a paginas indicadas sbaixo referem-se 2 edigio bratileira de 17S) 373

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